por MARCILIO RODRIGUES LUCAS

Graduando em História na Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

 

 

 

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Um novo aperto no parafuso: o “terceiro setor” e a estratégia de despolitização da “questão social”

Marcilio Rodrigues Lucas

 

Resumo: Este artigo procura oferecer uma contribuição ao debate e à compreensão das concepções que permeiam o “terceiro setor”, inclusive a noção de sociedade civil implícita nesse conceito. Além disso, o texto aponta os limites e a funcionalidade do “terceiro setor” no contexto de ascensão das práticas neoliberais, no momento em que o Estado se afasta da “questão social” e ganha força uma concepção restritiva de cidadania.

Palavras-chave: terceiro setor, sociedade civil, Estado, neoliberalismo.

Abstract: This article seeks to contribute in the debate and comprehension of the concepts that surround the “third sector”, including the knowledge of civil society implicit in it. Besides that, the article points the limits and functionality of the “third sector” within the context of ascension of neoliberal practices, when the State keeps itself distance from “social issues” and a restricted concept of citizenship becomes stronger.

Key-words: third sector, civil society, State, neoliberalism.

 

Cena do filme "Quanto vale ou é por quilo?". (Fonte: http://www.quantovaleoueporquilo.com.br)Hoje em dia tornou-se de uso corrente a expressão “terceiro setor”, que aparece freqüentemente associada a “ação voluntária”, a “responsabilidade social empresarial” (RSE) e outras propostas de intervenção na realidade social com o propósito de contribuir para a sua melhoria. “Terceiro setor” parece, à primeira vista, haver se convertido como que numa panacéia: seria a porta de entrada para a salvação de muitos “deserdados da sorte”, afligidos pelos males que se propagam pela nossa sociedade. Daí nos parecer oportuno apresentar aqui os pontos centrais das teorias que fundamentam a apologia do “terceiro setor” e, em seguida, analisá-los de um ponto de vista crítico.

1. A visão predominante (e apologética) em relação ao “terceiro setor”

As teorias que definem o “terceiro setor” têm como pressuposto lógico a possibilidade de se identificar três esferas sociais distintas. De acordo com essas análises, o primeiro setor se refere à esfera do poder político-institucional, encarnada pelo Estado. O segundo setor é aquele representado pelo mercado, ou seja, pela produção e circulação de bens e serviços visando ao lucro[1]. Já o “terceiro setor” se configura como sendo a sociedade civil, composto por indivíduos, grupos e instituições que agem de acordo com uma racionalidade diferenciada em relação aos outros dois setores. Nessa perspectiva, Rubem César Fernandes escreve: “Marcando um espaço de integração cidadã, a sociedade civil distingue-se, pois, do Estado; mas, caracterizando-se pela promoção de interesses coletivos, diferencia-se também da lógica do mercado. Forma, por assim dizer, um ‘Terceiro Setor’” (Fernandes, 2000, p. 27).

O “terceiro setor” se distinguiria por expressões de solidariedade por meio de atividades autônomas e voluntárias que implicam a “doação de tempo, trabalho e talento para causas sociais” (Cardoso, 2000, p. 8). Engloba desde práticas tradicionais de filantropia e caridade até ações com sentidos mais amplos de cidadania como a defesa de diversos direitos e de melhores condições de vida.

De forma resumida, pode-se afirmar que, na esfera governamental, os agentes são públicos e a finalidade dos serviços prestados e dos direitos estabelecidos também é pública – desconsiderando-se aqui a corrupção, graças à qual agentes públicos realizam seus interesses privados. Já o mercado é integrado por agentes privados que buscam atender seus próprios interesses, já que objetivam ao lucro individual. O “terceiro setor”, para tais autores, é composto por agentes privados que almejam fins públicos, quer dizer, é não-governamental e não visa a lucro. O extenso trecho a seguir esclarece esta dupla negação:

No Terceiro Setor, o poder e o lucro não constituem razões suficientes para a ação. Dizer que são “não-governamentais” implica designar iniciativas e organizações que, enquanto tais, não fazem parte do governo e não se confundem com o poder do Estado. Não estão no governo agora e não levam ao governo no futuro. (...) A segunda negação (“sem fins lucrativos”) faz referência a uma série de organizações e de ações cujos investimentos são maiores que os eventuais retornos financeiros. O que elas fazem é simplesmente caro demais para os mercados disponíveis. (...) requerem recursos humanos e materiais que ultrapassam com freqüência a capacidade de pagamento dos mais interessados. Supondo que o Estado não dê conta de subsidiar toda esta atividade, ou não se disponha a fazê-lo, resulta que elas só podem subsistir se contarem com doações feitas por terceiros. Recoloca-se, assim, a distinção já aludida: enquanto os serviços oferecidos pelo Estado são financiados por impostos compulsórios, os serviços oferecidos pelo terceiro setor dependem, em grande medida, de doações voluntárias (Fernandes, 2002, p. 23-24).

Como já foi apontando, o que normalmente se identifica como “terceiro setor” é formado por um conjunto muito diferenciado de agentes e tipos de organização. É por isso que Rubens César Fernandes (2002) afirma que o “terceiro setor” é constituído por concepções e práticas divergentes que, apesar de não se confundirem, não se contrapõem de forma radical, configurando um arranjo complexo e instável de oposição e complementaridade, num espaço público não-estatal. Trata-se de uma gama imensa de ações voluntárias, instituições filantrópicas destinadas à prestação dos mais diversos serviços sociais, organizações não-governamentais (ONGs) com projetos de intervenção sistemática e organizações de defesa de direitos de grupos sociais específicos. Sob tal conceito englobam-se ações desde o assistencialismo mais paternalista e conservador até organizações com intervenções bastante estruturadas no seio da sociedade, orientadas por concepções mais amplas de cidadania.

Diante dessa complexidade, torna-se inclusive difícil agrupar tantos componentes em um mesmo conceito. Por essa razão, Rubem César Fernandes ressalta quatro convergências fundamentais que possibilitam unir orientações tão distintas no interior do mesmo “setor”.  Para ele, o “terceiro setor”: 1) faz contraponto às ações do governo; 2) faz contraponto às ações do mercado; 3) empresta um sentido maior aos elementos que o compõem ao recuperar o pensamento trinário, superando divisões dicotômicas; 4) projeta uma visão integradora da vida pública, ao presumir que ela não se limita ao âmbito do Estado e por isso não se restringe a atos de governo. (Fernandes, 2000, p. 29-32). Essas quatro características estariam presentes nos mais diversos grupos do “terceiro setor”.

Nas teorias afirmativas, esse “setor” é apresentado como uma alternativa inovadora, num processo de consolidação da democracia e do desenvolvimento social. Por isso é que Ruth Cardoso fala de um “espaço de participação e experimentação de novos modos de pensar e agir sobre a realidade social” que “enriquece e complexifica a dinâmica social” (Cardoso, 2002, p. 8). Daí que o “terceiro setor” seja enaltecido como detentor de uma lógica diferenciada para o enfrentamento de desigualdades sociais e problemas ambientais crescentes, pois a burocracia estatal se mostraria inoperante e distante, e o mercado, em si mesmo, não teria interesse em tais demandas sociais.

O alerta de Jeremy Rifkin é esclarecedor dessa perspectiva. Sem meias-palavras, ele proclama aos quatro cantos “uma nova visão” e “uma nova missão para o século XXI”:

É necessário acabar com os paradigmas políticos e compreender que cada país tem três setores e não dois. Uma vez que se compreenda isso, abrir-se-á a possibilidade de um novo contrato social para esta civilização; trata-se de uma nova visão e de uma nova missão para o século XXI. O setor do mercado cria capitais e empregos de mercado, mas isso não é suficiente. O setor do governo cria capitais e empregos de governo, mas isso também não é suficiente. Existe ainda a sociedade civil, que cria capital social e empregos (Rifkin, 2000, p. 20).

Apesar disso, a maioria dos autores reconhece que, de certa maneira, as práticas que configuram o “terceiro setor” existem há muito tempo, a ponto de alguns enfatizarem que tal “setor” é, na verdade, o primeiro historicamente. O aspecto “inovador” se referiria, no entanto, à sua consolidação como forma distinta e estruturada de intervenção social. Nesse sentido é que se pode fazer um balanço da emergência recente das práticas e concepções que abrangem o “terceiro setor” no Brasil e América Latina.

Na década de 1940, o que atualmente se identifica como ONGs eram basicamente organizações de cooperação internacional – formadas por Igrejas, instituições de solidariedade etc. – que ajudavam outras organizações e movimentos sociais nos países pobres. A partir dos anos 60 e 70, tanto aqui como em grande parte da América Latina, as ONGs ganharam grande força, exprimindo modos alternativos de oposição política aos regimes ditatoriais. No final da década de 80, os processos de democratização foram acompanhados de políticas econômicas regressivas que afetaram diretamente grupos sociais com os quais as ONGs mantinham forte vínculo: os  setores populares. Diante disso, tais organizações passaram por processos de redefinição: a visão das organizações da sociedade civil como instrumento de reivindicação política, de acordo com Andrés Thompson (2000, p. 46), “cede lugar à pressão pela profissionalização no provimento dos serviços sociais, aliviando, assim, o papel do Estado e a pressão sobre o mercado”. A partir desse período, além do “não-governamental”, seu caráter “sem fins lucrativos” tornou-se fundamental, dando vigor ao conceito de “terceiro setor”.

No que se refere particularmente à relação com os governos, o “terceiro setor” conheceu uma inflexão de rumos: de uma relação marcada pela oposição aos governos ditatoriais, enveredou pelo estabelecimento de parcerias com o propósito de complementar a implementação de políticas públicas. Quanto ao mercado, as parcerias sacramentadas tiveram e têm o intuito de ampliar o alcance do “terceiro setor”, utilizando-se do poder social e da eficiência organizacional das empresas, que, por sua vez, começaram a buscar maior legitimidade e aceitação, valendo-se de uma relação mais harmônica com as comunidades em que estão inseridas. Enfim, conforme as teorias que lhe dão suporte, o grande desafio do “terceiro setor”, quando confrontado com as outras duas esferas, é reinventá-las no sentido de defender e realizar interesses comuns, criando uma nova cultura em oposição ao individualismo reinante (idem, p. 47).

Dentro desse contexto, a RSE se apresenta como a estruturação da influência dos valores de solidariedade e cidadania na ação das empresas. Afigura-se como um fenômeno recente, porém bastante revelador, já que expressa a grande complexidade e amplitude do que se denomina “terceiro setor”, que abarca instituições de caridade e filantropia, organizações de defesa de direitos de grupos específicos e do meio ambiente, associações que visam à promoção de melhores condições de vida e, mais recentemente, “empresas cidadãs”.

2. “Mundo da vida”, sociedade civil e “terceiro setor”

Uma reflexão mais profunda sobre a noção de “terceiro setor” exige que o conceito de sociedade civil nela implícito seja analisado de forma detalhada, se levarmos em conta que uma nova concepção de sociedade civil é que possibilita a afirmação de um “novo” setor. Assim, na tentativa de identificar os fundamentos dessa concepção de sociedade civil, será analisado aqui o conceito de “mundo da vida”, de Jürgen Habermas, e suas influências nas teorias do “terceiro setor”.

A segmentação da realidade social, típica das teorias até aqui trabalhadas, guarda, direta ou indiretamente, relação com a reflexão de Habermas. Esse filósofo distingue duas esferas da vida social: o “mundo sistêmico” e o “mundo da vida”. O primeiro, constituído pelo Estado e pelo mercado, está lastreado na razão instrumental e é marcado por relações heterônomas próprias do capitalismo. Em oposição a essa esfera, o “mundo da vida” é caracterizado por uma razão comunicativa que se opõe à reificação imposta pelo “sistema” (mercado e Estado). A razão do “mundo da vida” funda-se na linguagem e se caracteriza pela busca do consenso entre os indivíduos por intermédio do diálogo. É a esfera da autonomia, que se acha em constante luta contra a colonização imposta pelo mundo sistêmico. Assim, para Habermas, a disputa política por excelência das sociedades contemporâneas é aquela que se dá nos pontos de encontro – e conflito – entre o “sistema” e o “mundo da vida”.

É importante ressalvar que a análise de Habermas tem como inspiração principalmente os países de capitalismo desenvolvido, especificamente os europeus, no contexto da crise do Welfare State e do que ele aponta como “esgotamento das energias utópicas da sociedade do trabalho” (Habermas, 1987, passim). Além disso, essa formulação de Habermas se insere numa perspectiva mais ampla de rearticulação do projeto da modernidade através da ênfase em potencialidades racionais inexploradas ou apenas parcialmente exploradas pelas sociedades capitalistas guiadas pela razão instrumental.

Não obstante, é evidente a proximidade das formulações dos defensores do “terceiro setor” com alguns elementos que ancoram as concepções de Habermas. Ao analisar a situação dos países capitalistas desenvolvidos, Habermas (1987, p. 112) frisa que a crise do “Estado de bem-estar social” não pode ser resolvida por um reforço da “domesticação social do capitalismo” pelo Estado e nem pelo seu contrário, a liberalização completa por meio da transferência dos problemas da administração para o mercado. A contenção e o controle precisam incidir sobre o mercado e também sobre a administração pública. Para isso, a reflexão e o controle devem ser buscados em outro lugar: nas relações estabelecidas em esferas públicas autônomas auto-organizadas, que se baseiam na solidariedade e se estabelecem pela comunicação. O trecho a seguir é emblemático:

As sociedades modernas dispõem de três recursos que podem satisfazer suas necessidades no exercício do governo: o dinheiro, o poder e a solidariedade. As esferas de influência desses recursos teriam de ser postas em um novo equilíbrio. Eis o que quero dizer: o poder de integração social da solidariedade deveria resistir às “forças” dos outros dois recursos, dinheiro e poder administrativo. Pois bem, os domínios da vida especializados em transmitir valores tradicionais e conhecimentos culturais, em integrar grupos e em socializar crescimentos, sempre dependeram da solidariedade. Mas desta fonte também teria de brotar uma formação política da vontade que exercesse influência sobre a demarcação de fronteiras e o intercâmbio existente entre essas áreas da vida comunicativamente estruturadas, de um lado, e Estado e economia, de outro lado (idem, ibidem).

Parece bastante claro que a perspectiva de Habermas de “mundo da vida”, indicando esferas públicas autônomas calcadas na solidariedade e na comunicação, por estar ligada a uma visão global de um projeto de modernidade, é mais ampla que a noção de “terceiro setor”. Porém, a proximidade existe e é explícita em algumas formulações de sociedade civil presentes nas teorias do “terceiro setor”. Liszt Vieira é um dos adeptos do modelo tripartite que se apóia nas reflexões de Habermas ao indicar uma concepção de sociedade civil como o território social de defesa e afirmação de princípios diferenciados em relação aos existentes na lógica dos mecanismos político-administrativos e do mercado.

Vieira sustenta que a sociedade civil faz parte do “mundo da vida” definido por Habermas[2]. No seu entender, a “sociedade civil tem, assim, um âmbito limitado, é parte da categoria mais ampla do ‘social’ ou do ‘mundo da vida’.” (Vieira, 2000, p. 46). Para ele, a sociedade civil constitui a “dimensão institucional” do “mundo da vida”, por ser constituída por “instituições e formas associativas” de integração social comunicativamente reproduzidas.

 Com base no pensamento habermasiano, Vieira elabora uma noção de sociedade civil que “se refere a movimentos sociais e instituições, localizados tanto na esfera privada quanto na pública, com o objetivo de se contrapor às ações sistêmicas de mercado e de Estado” (idem, p. 58-59), garantindo espaços democráticos e autônomos de busca de consenso. As associações da sociedade civil desempenham o papel de formar a opinião pública, diferentemente dos “grupos de interesses”, por isso são uma instância de crítica e controle do poder. Em outras palavras, as organizações da sociedade civil estão voltadas para a defesa do interesse público e da cidadania. Por isso, na análise de Vieira, mais do que um lócus social, a sociedade civil é o meio e o fim da democracia política, concepção que se aproxima, segundo o próprio autor, da noção anglo-saxônica de “terceiro setor” (idem, p. 63).

Essa esfera pública não-estatal, que inclui movimentos sociais, ONGs, associações de cidadania e exclui sindicatos (“grupos de interesses” econômicos) e partidos políticos (“organizações pró-estatais”), se coloca como a alternativa inovadora para reformar e democratizar o Estado e o mercado, através da consolidação de sujeitos políticos autônomos, levantando “a bandeira da ética, da cidadania, da democracia e da busca de um novo padrão de desenvolvimento que não produza a exclusão social e a degradação ambiental.” (idem, p. 66).

3. Sociedade civil como lócus da luta de classes

Essa perspectiva de sociedade civil como defensora, por si mesma, do “bem comum” não é por nós partilhada. Os motivos são basicamente dois: a sociedade civil não pode ser entendida, em si mesma, como sujeito histórico portador de valores de solidariedade e cidadania; afinal, trata-se de uma esfera social e não de um agente autônomo. Além disso, a tentativa de transformar a sociedade civil em uma unidade harmônica e homogênea, ao se recorrer a uma noção abstrata de “bem comum”, tem um caráter mistificador por encobrir as contradições inerentes a uma sociedade de classes. A reflexão presente neste artigo, ao situar as contradições de classe em primeiro plano, se alimenta da noção de sociedade civil elaborada no campo do marxismo, especialmente nas obras de Antonio Gramsci.

Nas análises de Karl Marx e Friedrich Engels, a categoria sociedade civil é utilizada sempre se remetendo à esfera das relações de produção, ou seja, ao domínio das relações econômicas, que estruturam a base material da sociedade. Nessa ótica, a sociedade civil subordina o Estado, tomado como elemento “superestrutural”, no sentido de definir e estabelecer sua organização e seus objetivos. Com relação a esse aspecto, a perspectiva desenvolvida por Gramsci traz inovações importantes, já que esse autor não mais associa a sociedade civil apenas ao âmbito das relações de produção, levando em conta, em sua definição, aspectos ideológicos e culturais – a vida espiritual e intelectual – ao lançar mão do conceito de hegemonia.

Martin Carnoy (2004) salienta que, se para Marx a sociedade civil se vincula à “estrutura”, para Gramsci, ela integra a “superestrutura”[3], reconfigurando uma noção ampliada de Estado[4]. Isto porque, com o conceito de hegemonia, Gramsci amplia e sofistica os aspectos que Marx classifica como “superestruturais”. O filósofo italiano remete a dois “‘níveis’ superestruturais”: a sociedade civil, conjunto de organismos considerados privados, e a sociedade política, ou Estado no seu sentido estrito. A hegemonia significa direção política, intelectual, cultural e moral da sociedade por parte das classes dominantes, no sentido de que sua visão de mundo é apresentada e aceita, mesmo que de forma tensa, como universal para todas as classes. Portanto, exprime a síntese entre consentimento (sociedade civil) e coerção (sociedade política). 

Como lembra Carlos Montaño, “a atividade da sociedade civil, na acepção marxiana, constitui o motor da história e, na interpretação gramsciana, condiciona os espaços e as formas de lutas de classes e a transformação social.” (Montaño, 2003, p.  263). Sob esse aspecto, é importante sublinhar que, se Gramsci superou a visão mais limitada de sociedade civil do marxismo tradicional, ele, no entanto, não negou de forma alguma sua vinculação íntima às relações de produção, estando, por isso, enraizada na estrutura de classes da sociedade capitalista. Apesar de ser a esfera de construção do consenso, entendido como aceitação de determinada visão de mundo, a sociedade civil não é coesa, sendo perpassada por contradições e sujeita aos conflitos. Segundo Carnoy,

As instituições, que formam o aparelho hegemônico, somente têm sentido, na análise de Gramsci, quando estabelecidas no contexto da luta de classes e da classe dominante, que estende seu poder e controle à sociedade civil através dessas mesmas instituições (Carnoy, 2004, p. 96). 

Para Gramsci, a sociedade civil é a sociedade das classes em conflito – latente ou manifesto –, e não uma esfera isolada da lógica e dos processos de reprodução do capital. Por isso, a análise gramsciana possui um profundo potencial crítico em relação às teorizações do “terceiro setor”, já que a segmentação da sociedade em três setores, além de separar o domínio das relações econômicas e a sociedade civil, acaba por ocultar nesta o conflito de classe, que passa a ser visto como embate de interesses econômicos particularistas. Esse é o papel mistificador do conceito de “terceiro setor”, que, a partir de uma representação de “bem comum”, tenta transformar a sociedade cindida em classes em um todo harmônico e integrado.

Na teorização do “terceiro setor”, sobressai a noção de um interesse que se diz mais amplo que o interesse de classe. Não é por outro motivo que Liszt Vieira diferencia as organizações da sociedade civil daquilo que ele denomina “grupos de interesse”:

As associações da sociedade civil têm o papel de formadoras da opinião pública e constituidoras da opinião coletiva nos espaços situados fora do Estado e do mercado. Distinguem-se dos “grupos de interesse”, caracterizados pela lógica dos interesses econômicos particularistas e pela defesa dos interesses privados específicos, como, por exemplo, as organizações sindicais e empresariais. (Vieira, 2000, p. 61).

Para além da “neutralidade” perversa na equiparação feita entre organizações dos trabalhadores e dos empresários, embute-se, nessa análise, a visão segundo a qual os interesses da sociedade civil se situam acima do antagonismo estrutural entre capital e trabalho, ou melhor, os interesses da sociedade civil são supraclassistas e universais. Estando acima dos “interesses econômicos particularistas”, os valores do “terceiro setor” são tidos e havidos também como mais legítimos e proeminentes em relação a qualquer demanda dos trabalhadores como classe.

Ao criticar a idealização de uma sociedade civil defensora do “bem comum”[5], Montaño acentua que a sociedade civil é, fundamentalmente, um espaço de tensões e disputas. Daí falar de um processo de ‘lutas na sociedade civil’, diferentemente das teorias do “terceiro setor”, das quais se subentende a idéia de “lutas da sociedade civil”:

Essas lutas são travadas por sujeitos, porém não entre a sociedade civil, o Estado, o mercado, mas por sujeitos individuais (homens e mulheres) e coletivos (grupos e organizações) em diversos espaços ou esferas da sociedade total, seja na sociedade civil, no Estado, na esfera produtiva, no espaço do consumo, na vida cotidiana. (Montaño, 2003, p. 277).

Nem mesmo a idéia de “sociedade civil organizada”[6] ameniza os problemas de tomá-la como sujeito, porque os grupos organizados da sociedade civil, como destaca Montaño, não apenas são diversos como são antagônicos:

Na sociedade civil estão presentes organizações tanto dos trabalhadores, de “excluídos”, das chamadas “minorias”, dos defensores de direitos humanos, da mulher, da criança e do adolescente, do meio ambiente, mas também comparecem organizações representantes do capital (Sesc, Sesi, Fundação Bradesco) e ainda mais, organizações fascistóides (Tradição Família e Propriedade, grupos neonazistas, por exemplo), instituições fanático-religiosas (diversas seitas que pregam o “fim do mundo”, entre outras) ou até fundamentalistas. Isto é, pensar na sociedade civil como uno resulta num erro grosseiro de interpretação histórica. (idem, p. 274-275).

Por isso, Montaño chama a atenção para o fato de que as organizações da sociedade civil que pretendem ter um caráter transformador devem se articular com os movimentos sociais, e não substituí-los num processo de “terceirização” da questão social. Para tanto, precisam abandonar o pragmatismo e a lógica de “gestão controlada dos recursos comunitários” que caracterizou a maioria das ONGs desde a década de 90, cujo resultado foi o abandono de projetos mais abrangentes de sociedade em função do atendimento de demandas pontuais e individualizadas, palatáveis – e funcionais – ao projeto neoliberal[7]. Afinal,

O projeto neoliberal quer uma sociedade civil dócil, sem confronto, cuja cotidianidade, alienada, reificada, seja a “preocupação” e “ocupação” (não a do trabalho e lutas sociais) em atividades não criadoras nem transformadoras, mas voltadas para as (auto-) respostas imediatas às necessidades localizadas. (idem, p. 260).

4. “Terceiro setor” e totalidade social

Toda a crítica até aqui exposta tem como referência aspectos da totalidade social. Os fenômenos em questão são entendidos como “parte movente e movida”, nos termos de Lukács (1978), de um contexto sócio-histórico amplo. Isso significa que o “terceiro setor” e, especificamente, a “responsabilidade social empresarial” não devem ser tratados tão-somente a partir de sua lógica interna ou de seus resultados imediatos. Impõe-se analisá-los no âmbito da sociedade capitalista, contraditória e cindida em classes, em tempos de “hegemonia neoliberal” (Anderson, 1995).   

Como já foi assinalado, a categoria “mundo da vida”, desenvolvida por Habermas, mantém clara ligação com as teorias do “terceiro setor” devido ao fato mesmo de distinguir uma terceira esfera na sociedade com uma lógica diferenciada em relação à do mercado e do Estado. Mas há entre elas outro ponto de convergência implícito, não menos importante: o mundo sistêmico, das relações capitalistas, é considerado insuperável, restando unicamente a possibilidade de se buscar a emancipação em uma esfera pública constituída por práticas autônomas ou, na terminologia de Habermas, pelo agir comunicativo. Esta esfera autônoma então coexistiria – sempre se defendendo da colonização – com o mundo sistêmico, caracterizado pela heteronomia, pelo trabalho estranhado e pela razão instrumental. Conforme aponta Vieira, “trata-se de limitação e regulamentação [do mercado e do Estado por parte da sociedade civil], e não de abolição” (Vieira, 2000, p. 49).

No que se refere à sociabilidade cotidiana, essa perspectiva representa a afirmação da possibilidade de existência de relações livres e autônomas, apesar da permanência da heteronomia e do estranhamento na esfera produtiva. Isto quer dizer que, nas atividades fora do trabalho, os indivíduos encontrariam a oportunidade de envolver-se em atividades autênticas e realizadoras. O trabalho continua subordinado ao capital, porém não é mais visto como a categoria central da vida social[8].

Já no que diz respeito à processualidade histórica, um grande problema dessas teorizações sobre o “terceiro setor” consiste em colocarem a realidade concreta como o limite para a ação. Em outros termos, o mercado com sua lógica predatória e o Estado burocratizado e distante da “questão social” constituem elementos reais, mas o que está dado é a condição de uma ação futura, e não seu limite.

A perspectiva de atuar a partir das “margens” da ordem sistêmica, sem embates diretos, mais do que realismo, revela pragmatismo e mistificação. O aspecto problemático de se pensar uma esfera à parte em relação ao “sistema” é que a lógica do capital permite, de fato, a emergência de formas alternativas de ação – “agir comunicativo” ou uma “economia solidária” –, contudo, de modo algum, ainda na vigência do capitalismo, essas formas podem se consolidar, se tornar autônomas e, muito menos, se expandir, estando fadadas à extinção ou a permanecer nas margens da sociedade.

Como se sabe, o sistema “sociometabólico do capital” (Mészáros, 2002)[9] não se restringe ao plano econômico e ao Estado, necessitando de um controle social amplificado que atinge o conjunto das esferas de sociabilidade. Como ressalta Lukács (1989), a forma mercadoria se expande para a totalidade social[10]. É claro que essa noção não nega a existência e a possibilidade de ressignificações, tensões e resistências, sejam elas cotidianas – “capilares” – ou estruturadas de forma mais sistemática, daí a utilização da concepção gramsciana dos aparelhos de hegemonia como espaços de embates. O que se quer mostrar é que é inconcebível uma esfera que não seja perpassada pelas contradições próprias do sistema capitalista[11].

Quando se examina mais a fundo a atividade prática das organizações do “terceiro setor”, é igualmente problemático falar em autonomia. Por mais que se considere uma esfera autônoma, com uma racionalidade específica, o “terceiro setor” é empurrado ao pragmatismo: na disputa por verbas – tanto estatais quanto do mercado – as organizações têm que se enquadrar em determinados limites para conseguirem sobreviver e desenvolver suas atividades, sempre dentro do horizonte imposto pelos financiadores. Essa limitação parece não se verificar no caso das organizações bancadas pelas “ONGs financiadoras” de outros países. Todavia, as financiadoras retiram recursos de grandes transnacionais ou de governos de países ricos. A diferença, portanto, se resume à existência de uma mediação a mais; o limite estrutural é o mesmo.

A maioria das ponderações apresentadas até aqui leva ao questionamento da validade do próprio conceito de “terceiro setor”, por seus limites teóricos e práticos. Além disso, como já foi indicado, através da apreensão do contexto sócio-histórico pode-se analisar criticamente a ascensão de um padrão de intervenção social que elege o “terceiro setor” como seu grande expoente.

Montaño (2003, p. 267) alude à idéia de um “tripé neoliberal” para identificar o processo histórico em que a emergência do “terceiro setor” se enquadra. Esse tripé é formado pelos seguintes processos: 1) a reestruturação produtiva, cuja conseqüência principal deságua na precarização das condições de trabalho; 2) a reforma do Estado, que Montaño identifica como contra-reforma, à medida que se refere à desresponsabilização do Estado em relação à “questão social”; 3) a transformação da concepção de sociedade civil como arena de embates em um “terceiro setor” harmônico que assume a tarefa de responder à “questão social”, em grande medida abandonada pelo Estado, por obra e graça de ações focalizadas e pontuais.

No quadro da hegemonia neoliberal, em que o Estado reduz sua presença nas áreas sociais (infra-estrutura, saúde, educação, segurança etc.), as organizações da RSE, e do “terceiro setor” como um todo têm uma funcionalidade no sentido de substituir, complementar ou concorrer com a ação governamental no que diz respeito ao enfrentamento das demandas sociais. Nada mais compreensível, se considerarmos que, como relembra Paoli, “empresários e governo empenham-se em descobrir modos legítimos de desconstruir as garantias sociais como direitos universalizados (por seu alto custo), encolhendo seletivamente o acesso a elas e apelando para a ‘criatividade social’ dos atingidos” (Paoli, 2005, p. 390).

Numa perspectiva diferente, Ruth Cardoso afirma que a ascensão do “terceiro setor” não deve ser entendida como um processo de desresponsabilização do Estado.  Para ela, o âmbito de atuação do Estado e o do “terceiro setor” estão demarcados e não coincidem. O Estado deve ser a esfera de garantia dos direitos básicos e universais.

O lugar das ações de governo, a meu ver, está claramente demarcado. Cabe ao governo garantir os direitos essenciais e universais dos cidadãos, os quais, por sua vez, podem e devem exigir que isso se faça de modo eficiente e eqüitativo. No Brasil, o papel da sociedade civil foi bastante significativo na defesa de direitos básicos de cidadania quando eles não estavam garantidos. Hoje é tarefa e responsabilidade dos ministérios governamentais assegurar o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e à cultura a todos os cidadãos deste país. (Cardoso, 2000, p. 10).

Porém, segundo Cardoso, apenas a garantia de direitos universais não é suficiente numa sociedade como a brasileira, por sua “herança profunda de desigualdade e marginalização”. Nesse sentido, o papel do “terceiro setor” consiste em desenvolver “ações diretas e pontuais” que combatam os desequilíbrios historicamente consolidados. A eficiência do “terceiro setor” nessa função se ligada à sua busca e experimentação de soluções inovadoras, que configuram uma nova maneira de agir na área social qualitativamente diferente em relação ao Estado, burocrático e centralizado.  Para Cardoso, ações voltadas a grupos sociais específicos – “mais frágeis e vulneráveis” – exigem “regras e modos de atuação que só se constroem através da ação e experimentação.” (Cardoso, 2000, p. 11). O Estado, universal mas ao mesmo tempo distante, não tem condições de atender essas demandas específicas[12].

Em que pese essa tentativa analítica de desvincular a ascensão do “terceiro setor” e a desresponsabilização do Estado, o processo histórico concreto aponta para outra direção. Não há dúvida que as políticas públicas estatais são centralizadas e, em grande medida, ineficientes, necessitando de alternativas inovadoras de atendimento das reivindicações que levem em conta as especificidades e singularidades dos diferentes grupos sociais. Porém, o período de ascensão do “terceiro setor” não representa um momento significativo de mudanças nessa direção. Nas últimas décadas, os direitos universais estão sendo atacados e ameaçados, tanto nos países centrais do capitalismo quanto em áreas periféricas nas quais algumas garantias foram conquistadas de forma, muitas vezes, bastante incipiente e frágil[13]. Enquanto isso, têm ganhado espaço medidas focalizadas, pontuais e redistributivas. É nesse processo que o “terceiro setor” se consolida, financiado, em larga escala, por verbas públicas, que se tornam cada vez mais escassas para problemas estruturais vinculados aos direitos básicos da população.

Como ressalva Montaño (2002, p. 239), trata-se da transformação de direitos estabelecidos em “não-direitos do cidadão”, dependentes da atividade voluntária e fortuita de indivíduos solidários isolados, ONGs ou empresas “cidadãs”[14]. Em outros termos, o processo em questão é de ascensão de uma concepção restritiva e excludente de cidadania, baseada em “auto-respostas” focalizadas, que reflete, de acordo com Paoli (2005, p. 409), uma estratégia de despolitização da “questão social”, altamente funcional ao projeto neoliberal de reorganização social, tendendo a ser uma espécie de nova volta no parafuso do controle e da dominação de classe na sociedade capitalista.


 

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[1] Alguns autores, principalmente os estadunidenses, adotam uma classificação inversa: consideram o mercado como primeiro setor e o Estado como segundo. Ver Salamon (1985) e Wuthnow (1991).

[2] Ao definir o “mundo da vida”, Habermas não apresenta uma teorização sobre a concepção de sociedade civil, o que possibilita um leque ainda maior de divergências interpretativas entre os autores que tentam estabelecer tal relação. Maria da Glória Gohn, por exemplo, entende que o “mundo da vida” é parte da sociedade civil, e não o contrário: “O mundo da vida é diferenciado dos sistemas econômico e estatal. Ele é um subsistema da sociedade civil, é parte dela e não sua totalidade, e engloba várias formas institucionais – permanentes ou não – que atuam como organismo de limitação e de mediação entre o Estado e o mercado”. (Gohn, 2000, p. 138).  Para os propósitos desta análise, essa divergência entre Maria da Glória Gohn e Liszt Vieira tem pouca importância e, na verdade, apenas reforça o argumento da proximidade entre a reflexão habermasiana e as teorias afirmativas do “terceiro setor”.  

[3] Os termos “estrutura” e “superestrutura” aparecem aqui entre aspas devido aos seus limites conceituais.  Se por um lado eles possuem um valor didático e pedagógico, por outro, podem resultar em simplificações improcedentes. V. Thompson (2001, p. 252-263).

[4] “Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e governo, identificação que precisamente é um representar-se da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, já que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que se devem referir à noção de sociedade civil (no sentido, podia dizer-se, em que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é hegemonia couraçada de coerção).” (Gramsci, 1974, p. 404). 

[5] Em sua obra Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social, Montaño caracteriza essa noção de sociedade civil e o conceito de “terceiro setor” como “ideológicos”, numa clara demonstração de filiação, neste ponto, à perspectiva do marxismo mais tradicional, que entende ideologia como falsificação, como falsa consciência. A despeito de utilizar boa parte das reflexões de Montaño, não emprego o termo “ideológico” para caracterizar aspectos mistificadores das teorizações do “terceiro setor”, pois, a partir da contribuição de Gramsci, ideologia pode ser entendida como visão de mundo e, dessa forma, até mesmo as concepções críticas são ideológicas, se encaradas num sentido amplo. 

[6] “Não se trata mais de um sinônimo de sociedade, mas de uma maneira de pensá-la, de uma perspectiva ligada à noção de igualdade de direitos, autonomia, participação, enfim, os direitos civis, políticos e sociais da cidadania. Em virtude disso, a sociedade civil tem que ser ‘organizada’.” (Vieira, 2000, p. 63).

[7] Os fundamentos do neoliberalismo podem ser encontrados em Hayek (1990). Para um balanço e uma análise crítica do desenvolvimento da hegemonia neoliberal, ver Anderson (1995) e Antunes (2003, 2004), entre outros.

[8] Com relação ao debate sobre a centralidade do trabalho nas sociedades capitalistas contemporâneas, ver Antunes (2003, esp. cap. VIII).

[9] A utilização da expressão “sistema sociometabólico do capital”, à maneira de Mészáros, tem neste texto o intuito de se contrapor às noções, atualmente predominantes nas ciências humanas, que identificam sistema capitalista apenas como a esfera econômica (produção e circulação de mercadorias). Sistema capitalista não corresponde exclusivamente ao mercado, nem mesmo somente ao mercado e ao Estado; corresponde, na verdade, a uma totalidade social que inclui as diversas esferas de sociabilidade existentes.

[10] Esta afirmação pode ser atribuída também ao próprio Marx, que já em seus Manuscritos econômico-filosóficos acentuava que, na sociedade capitalista, o estranhamento não se limita ao processo produtivo e aos produtos do trabalho, se manifestando na totalidade – objetiva e subjetiva – do gênero humano (Marx, 1989).

[11] Várias teorizações apologéticas do “terceiro setor” tocam na questão dos limites da autonomia. “Ser ‘não-governamental’ e ‘não-lucrativo’ não significa, é claro, estar em algum outro mundo além das esferas de influência do Estado e do mercado, ou infenso aos condicionamentos sociais. O terceiro setor não é feito de matéria angelical”. (Fernandes, 2002, p. 24). Apesar disso, tais ponderações são bastante insuficientes, já que são articuladas, a todo momento, com a afirmação de uma lógica completamente distinta: “no entanto, constituem uma esfera institucional distinta, cujas características próprias lhes são dadas justamente pela negação do lucro ou do poder de Estado. (...) Exercitar e promover a adesão voluntária aos valores enquanto fins em si mesmos é a sua razão de ser específica.” (Fernandes, 2002, p. 24-25).

[12] Nesse sentido, o Estado deveria “aprender” com o “terceiro setor”, por meio do estabelecimento de parcerias. Este foi, aliás, o argumento usado para defender o Programa Comunidade Solidária colocado em prática pela então primeira-dama Ruth Cardoso no governo FHC. 

[13] Enquanto Ruth Cardoso discursava sobre a necessidade do aprendizado com o “terceiro setor”, Bresser Pereira, ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-1998), defendia e implementava medidas de uma reforma estatal altamente regressiva, em nome da idéia de “público não-estatal”.

[14] É nesse sentido que Maria Célia Paoli frisa que os “excluídos”, que antes tenderiam a se organizar em movimentos sociais para defender direitos, agora dependem das políticas localizadas. “Agora sujeitos a serem natureza descartável pelo próprio desmonte do setor público e pelo menosprezo à universalidade dos direitos de cidadania, sujeitos a todas as formas de violência, separados e hierarquizados pelas barreiras da passagem do privado ao público, resta-lhes a esperança de serem capturados pelas políticas compensatórias e localizadas da filantropia social organizada no âmbito dos grupos da sociedade civil.” (Paoli, 2005, p. 389).

 

por MARCILIO RODRIGUES LUCAS

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.