Hoje em dia tornou-se de uso corrente a expressão “terceiro
setor”, que aparece freqüentemente associada a “ação voluntária”, a
“responsabilidade social empresarial” (RSE) e outras propostas de
intervenção na realidade social com o propósito de contribuir para a sua
melhoria. “Terceiro setor” parece, à primeira vista, haver se convertido
como que numa panacéia: seria a porta de entrada para a salvação de muitos
“deserdados da sorte”, afligidos pelos males que se propagam pela nossa
sociedade. Daí nos parecer oportuno apresentar aqui os pontos centrais das
teorias que fundamentam a apologia do “terceiro setor” e, em seguida,
analisá-los de um ponto de vista crítico.
1. A visão predominante (e apologética) em relação ao
“terceiro setor”
As teorias que definem o “terceiro setor” têm como
pressuposto lógico a possibilidade de se identificar três esferas sociais
distintas. De acordo com essas análises, o primeiro setor se refere à esfera
do poder político-institucional, encarnada pelo Estado. O segundo setor é
aquele representado pelo mercado, ou seja, pela produção e circulação de
bens e serviços visando ao lucro.
Já o “terceiro setor” se configura como sendo a sociedade civil, composto
por indivíduos, grupos e instituições que agem de acordo com uma
racionalidade diferenciada em relação aos outros dois setores. Nessa
perspectiva, Rubem César Fernandes escreve: “Marcando um espaço de
integração cidadã, a sociedade civil distingue-se, pois, do Estado; mas,
caracterizando-se pela promoção de interesses coletivos, diferencia-se
também da lógica do mercado. Forma, por assim dizer, um ‘Terceiro Setor’”
(Fernandes, 2000, p. 27).
O “terceiro setor” se distinguiria por expressões de
solidariedade por meio de atividades autônomas e voluntárias que implicam a
“doação de tempo, trabalho e talento para causas sociais” (Cardoso, 2000, p.
8). Engloba desde práticas tradicionais de filantropia e caridade até ações
com sentidos mais amplos de cidadania como a defesa de diversos direitos e
de melhores condições de vida.
De forma resumida, pode-se afirmar que, na esfera
governamental, os agentes são públicos e a finalidade dos serviços prestados
e dos direitos estabelecidos também é pública – desconsiderando-se aqui a
corrupção, graças à qual agentes públicos realizam seus interesses privados.
Já o mercado é integrado por agentes privados que buscam atender seus
próprios interesses, já que objetivam ao lucro individual. O “terceiro
setor”, para tais autores, é composto por agentes privados que almejam fins
públicos, quer dizer, é não-governamental e não visa a lucro. O extenso
trecho a seguir esclarece esta dupla negação:
No Terceiro Setor, o poder e o lucro não constituem razões
suficientes para a ação. Dizer que são “não-governamentais” implica designar
iniciativas e organizações que, enquanto tais, não fazem parte do governo e
não se confundem com o poder do Estado. Não estão no governo agora e não
levam ao governo no futuro. (...) A segunda negação (“sem fins lucrativos”)
faz referência a uma série de organizações e de ações cujos investimentos
são maiores que os eventuais retornos financeiros. O que elas fazem é
simplesmente caro demais para os mercados disponíveis. (...) requerem
recursos humanos e materiais que ultrapassam com freqüência a capacidade de
pagamento dos mais interessados. Supondo que o Estado não dê conta de
subsidiar toda esta atividade, ou não se disponha a fazê-lo, resulta que
elas só podem subsistir se contarem com doações feitas por terceiros.
Recoloca-se, assim, a distinção já aludida: enquanto os serviços oferecidos
pelo Estado são financiados por impostos compulsórios, os serviços
oferecidos pelo terceiro setor dependem, em grande medida, de doações
voluntárias (Fernandes, 2002, p. 23-24).
Como já foi apontando, o que normalmente se identifica como
“terceiro setor” é formado por um conjunto muito diferenciado de agentes e
tipos de organização. É por isso que Rubens César Fernandes (2002) afirma
que o “terceiro setor” é constituído por concepções e práticas divergentes
que, apesar de não se confundirem, não se contrapõem de forma radical,
configurando um arranjo complexo e instável de oposição e complementaridade,
num espaço público não-estatal. Trata-se de uma gama imensa de ações
voluntárias, instituições filantrópicas destinadas à prestação dos mais
diversos serviços sociais, organizações não-governamentais (ONGs) com
projetos de intervenção sistemática e organizações de defesa de direitos de
grupos sociais específicos. Sob tal conceito englobam-se ações desde o
assistencialismo mais paternalista e conservador até organizações com
intervenções bastante estruturadas no seio da sociedade, orientadas por
concepções mais amplas de cidadania.
Diante dessa complexidade, torna-se inclusive difícil agrupar
tantos componentes em um mesmo conceito. Por essa razão, Rubem César
Fernandes ressalta quatro convergências fundamentais que possibilitam unir
orientações tão distintas no interior do mesmo “setor”. Para ele, o
“terceiro setor”: 1) faz contraponto às ações do governo; 2) faz contraponto
às ações do mercado; 3) empresta um sentido maior aos elementos que o
compõem ao recuperar o pensamento trinário, superando divisões dicotômicas;
4) projeta uma visão integradora da vida pública, ao presumir que ela não se
limita ao âmbito do Estado e por isso não se restringe a atos de governo.
(Fernandes, 2000, p. 29-32). Essas quatro características estariam presentes
nos mais diversos grupos do “terceiro setor”.
Nas teorias afirmativas, esse “setor” é apresentado como uma
alternativa inovadora, num processo de consolidação da democracia e do
desenvolvimento social. Por isso é que Ruth Cardoso fala de um “espaço de
participação e experimentação de novos modos de pensar e agir sobre a
realidade social” que “enriquece e complexifica a dinâmica social” (Cardoso,
2002, p. 8). Daí que o “terceiro setor” seja enaltecido como detentor de uma
lógica diferenciada para o enfrentamento de desigualdades sociais e
problemas ambientais crescentes, pois a burocracia estatal se mostraria
inoperante e distante, e o mercado, em si mesmo, não teria interesse em tais
demandas sociais.
O alerta de Jeremy Rifkin é esclarecedor dessa perspectiva.
Sem meias-palavras, ele proclama aos quatro cantos “uma nova visão” e “uma
nova missão para o século XXI”:
É necessário acabar com os paradigmas políticos e compreender
que cada país tem três setores e não dois. Uma vez que se compreenda isso,
abrir-se-á a possibilidade de um novo contrato social para esta civilização;
trata-se de uma nova visão e de uma nova missão para o século XXI. O setor
do mercado cria capitais e empregos de mercado, mas isso não é suficiente. O
setor do governo cria capitais e empregos de governo, mas isso também não é
suficiente. Existe ainda a sociedade civil, que cria capital social e
empregos (Rifkin, 2000, p. 20).
Apesar disso, a maioria dos autores reconhece que, de certa
maneira, as práticas que configuram o “terceiro setor” existem há muito
tempo, a ponto de alguns enfatizarem que tal “setor” é, na verdade, o
primeiro historicamente. O aspecto “inovador” se referiria, no entanto, à
sua consolidação como forma distinta e estruturada de intervenção social.
Nesse sentido é que se pode fazer um balanço da emergência recente das
práticas e concepções que abrangem o “terceiro setor” no Brasil e América
Latina.
Na década de 1940, o que atualmente se identifica como
ONGs eram basicamente organizações de cooperação internacional –
formadas por Igrejas, instituições de solidariedade etc. – que ajudavam
outras organizações e movimentos sociais nos países pobres. A partir dos
anos 60 e 70, tanto aqui como em grande parte da América Latina, as ONGs
ganharam grande força, exprimindo modos alternativos de oposição política
aos regimes ditatoriais. No final da década de 80, os processos de
democratização foram acompanhados de políticas econômicas regressivas que
afetaram diretamente grupos sociais com os quais as ONGs mantinham forte
vínculo: os setores populares. Diante disso, tais organizações passaram por
processos de redefinição: a visão das organizações da sociedade civil como
instrumento de reivindicação política, de acordo com Andrés Thompson (2000,
p. 46), “cede lugar à pressão pela profissionalização no provimento dos
serviços sociais, aliviando, assim, o papel do Estado e a pressão sobre o
mercado”. A partir desse período, além do “não-governamental”, seu caráter
“sem fins lucrativos” tornou-se fundamental, dando vigor ao conceito de
“terceiro setor”.
No que se refere particularmente à relação com os governos, o
“terceiro setor” conheceu uma inflexão de rumos: de uma relação marcada pela
oposição aos governos ditatoriais, enveredou pelo estabelecimento de
parcerias com o propósito de complementar a implementação de políticas
públicas. Quanto ao mercado, as parcerias sacramentadas tiveram e têm o
intuito de ampliar o alcance do “terceiro setor”, utilizando-se do poder
social e da eficiência organizacional das empresas, que, por sua vez,
começaram a buscar maior legitimidade e aceitação, valendo-se de uma relação
mais harmônica com as comunidades em que estão inseridas. Enfim, conforme as
teorias que lhe dão suporte, o grande desafio do “terceiro setor”, quando
confrontado com as outras duas esferas, é reinventá-las no sentido de
defender e realizar interesses comuns, criando uma nova cultura em oposição
ao individualismo reinante (idem, p. 47).
Dentro desse contexto, a RSE se apresenta como a estruturação
da influência dos valores de solidariedade e cidadania na ação das empresas.
Afigura-se como um fenômeno recente, porém bastante revelador, já que
expressa a grande complexidade e amplitude do que se denomina “terceiro
setor”, que abarca instituições de caridade e filantropia, organizações de
defesa de direitos de grupos específicos e do meio ambiente, associações que
visam à promoção de melhores condições de vida e, mais recentemente,
“empresas cidadãs”.
2. “Mundo da vida”, sociedade civil e “terceiro setor”
Uma reflexão mais profunda sobre a noção de “terceiro setor”
exige que o conceito de sociedade civil nela implícito seja analisado de
forma detalhada, se levarmos em conta que uma nova concepção de sociedade
civil é que possibilita a afirmação de um “novo” setor. Assim, na tentativa
de identificar os fundamentos dessa concepção de sociedade civil, será
analisado aqui o conceito de “mundo da vida”, de Jürgen Habermas, e suas
influências nas teorias do “terceiro setor”.
A segmentação da realidade social, típica das teorias até
aqui trabalhadas, guarda, direta ou indiretamente, relação com a reflexão de
Habermas. Esse filósofo distingue duas esferas da vida social: o “mundo
sistêmico” e o “mundo da vida”. O primeiro, constituído pelo Estado e pelo
mercado, está lastreado na razão instrumental e é marcado por relações
heterônomas próprias do capitalismo. Em oposição a essa esfera, o “mundo da
vida” é caracterizado por uma razão comunicativa que se opõe à reificação
imposta pelo “sistema” (mercado e Estado). A razão do “mundo da vida”
funda-se na linguagem e se caracteriza pela busca do consenso entre os
indivíduos por intermédio do diálogo. É a esfera da autonomia, que se acha
em constante luta contra a colonização imposta pelo mundo sistêmico. Assim,
para Habermas, a disputa política por excelência das sociedades
contemporâneas é aquela que se dá nos pontos de encontro – e conflito –
entre o “sistema” e o “mundo da vida”.
É importante ressalvar que a análise de Habermas tem como
inspiração principalmente os países de capitalismo desenvolvido,
especificamente os europeus, no contexto da crise do Welfare State e
do que ele aponta como “esgotamento das energias utópicas da sociedade do
trabalho” (Habermas, 1987, passim). Além disso, essa formulação de
Habermas se insere numa perspectiva mais ampla de rearticulação do projeto
da modernidade através da ênfase em potencialidades racionais inexploradas
ou apenas parcialmente exploradas pelas sociedades capitalistas guiadas pela
razão instrumental.
Não obstante, é evidente a proximidade das formulações dos
defensores do “terceiro setor” com alguns elementos que ancoram as
concepções de Habermas. Ao analisar a situação dos países capitalistas
desenvolvidos, Habermas (1987, p. 112) frisa que a crise do “Estado de
bem-estar social” não pode ser resolvida por um reforço da
“domesticação social do capitalismo” pelo Estado e nem pelo seu contrário, a
liberalização completa por meio da transferência dos problemas da
administração para o mercado. A contenção e o controle precisam incidir
sobre o mercado e também sobre a administração pública. Para isso, a
reflexão e o controle devem ser buscados em outro lugar: nas relações
estabelecidas em esferas públicas autônomas auto-organizadas, que se baseiam
na solidariedade e se estabelecem pela comunicação. O trecho a seguir é
emblemático:
As sociedades modernas dispõem de três recursos que podem
satisfazer suas necessidades no exercício do governo: o dinheiro, o poder e
a solidariedade. As esferas de influência desses recursos teriam de ser
postas em um novo equilíbrio. Eis o que quero dizer: o poder de integração
social da solidariedade deveria resistir às “forças” dos outros dois
recursos, dinheiro e poder administrativo. Pois bem, os domínios da vida
especializados em transmitir valores tradicionais e conhecimentos culturais,
em integrar grupos e em socializar crescimentos, sempre dependeram da
solidariedade. Mas desta fonte também teria de brotar uma formação política
da vontade que exercesse influência sobre a demarcação de fronteiras e o
intercâmbio existente entre essas áreas da vida comunicativamente
estruturadas, de um lado, e Estado e economia, de outro lado (idem, ibidem).
Parece bastante claro que a perspectiva de Habermas de “mundo
da vida”, indicando esferas públicas autônomas calcadas na solidariedade e
na comunicação, por estar ligada a uma visão global de um projeto de
modernidade, é mais ampla que a noção de “terceiro setor”. Porém, a
proximidade existe e é explícita em algumas formulações de sociedade civil
presentes nas teorias do “terceiro setor”. Liszt Vieira é um dos adeptos do
modelo tripartite que se apóia nas reflexões de Habermas ao indicar uma
concepção de sociedade civil como o território social de defesa e afirmação
de princípios diferenciados em relação aos existentes na lógica dos
mecanismos político-administrativos e do mercado.
Vieira sustenta que a sociedade civil faz parte do “mundo da
vida” definido por Habermas.
No seu entender, a “sociedade civil tem, assim, um âmbito limitado, é parte
da categoria mais ampla do ‘social’ ou do ‘mundo da vida’.” (Vieira, 2000,
p. 46). Para ele, a sociedade civil constitui a “dimensão institucional” do
“mundo da vida”, por ser constituída por “instituições e formas
associativas” de integração social comunicativamente reproduzidas.
Com base no pensamento habermasiano, Vieira elabora uma
noção de sociedade civil que “se refere a movimentos sociais e instituições,
localizados tanto na esfera privada quanto na pública, com o objetivo de se
contrapor às ações sistêmicas de mercado e de Estado” (idem, p. 58-59),
garantindo espaços democráticos e autônomos de busca de consenso. As
associações da sociedade civil desempenham o papel de formar a opinião
pública, diferentemente dos “grupos de interesses”, por isso são uma
instância de crítica e controle do poder. Em outras palavras, as
organizações da sociedade civil estão voltadas para a defesa do interesse
público e da cidadania. Por isso, na análise de Vieira, mais do que um lócus
social, a sociedade civil é o meio e o fim da democracia política,
concepção que se aproxima, segundo o próprio autor, da noção anglo-saxônica
de “terceiro setor” (idem, p. 63).
Essa esfera pública não-estatal, que inclui movimentos
sociais, ONGs, associações de cidadania e exclui sindicatos (“grupos de
interesses” econômicos) e partidos políticos (“organizações pró-estatais”),
se coloca como a alternativa inovadora para reformar e democratizar o Estado
e o mercado, através da consolidação de sujeitos políticos autônomos,
levantando “a bandeira da ética, da cidadania, da democracia e da busca de
um novo padrão de desenvolvimento que não produza a exclusão social e a
degradação ambiental.” (idem, p. 66).
3. Sociedade civil como lócus da luta de classes
Essa perspectiva de sociedade civil como defensora, por si
mesma, do “bem comum” não é por nós partilhada. Os motivos são basicamente
dois: a sociedade civil não pode ser entendida, em si mesma, como sujeito
histórico portador de valores de solidariedade e cidadania; afinal, trata-se
de uma esfera social e não de um agente autônomo. Além disso, a tentativa de
transformar a sociedade civil em uma unidade harmônica e homogênea, ao se
recorrer a uma noção abstrata de “bem comum”, tem um caráter mistificador
por encobrir as contradições inerentes a uma sociedade de classes. A
reflexão presente neste artigo, ao situar as contradições de classe em
primeiro plano, se alimenta da noção de sociedade civil elaborada no campo
do marxismo, especialmente nas obras de Antonio Gramsci.
Nas análises de Karl Marx e Friedrich Engels, a categoria
sociedade civil é utilizada sempre se remetendo à esfera das relações de
produção, ou seja, ao domínio das relações econômicas, que estruturam a base
material da sociedade. Nessa ótica, a sociedade civil subordina o Estado,
tomado como elemento “superestrutural”, no sentido de definir e estabelecer
sua organização e seus objetivos. Com relação a esse aspecto, a perspectiva
desenvolvida por Gramsci traz inovações importantes, já que esse autor não
mais associa a sociedade civil apenas ao âmbito das relações de produção,
levando em conta, em sua definição, aspectos ideológicos e culturais – a
vida espiritual e intelectual – ao lançar mão do conceito de hegemonia.
Martin Carnoy (2004) salienta que, se para Marx a sociedade
civil se vincula à “estrutura”, para Gramsci, ela integra a “superestrutura”,
reconfigurando uma noção ampliada de Estado.
Isto porque, com o conceito de hegemonia, Gramsci amplia e sofistica os
aspectos que Marx classifica como “superestruturais”. O filósofo italiano
remete a dois “‘níveis’ superestruturais”: a sociedade civil, conjunto de
organismos considerados privados, e a sociedade política, ou Estado no seu
sentido estrito. A hegemonia significa direção política, intelectual,
cultural e moral da sociedade por parte das classes dominantes, no sentido
de que sua visão de mundo é apresentada e aceita, mesmo que de forma tensa,
como universal para todas as classes. Portanto, exprime a síntese entre
consentimento (sociedade civil) e coerção (sociedade política).
Como lembra Carlos Montaño, “a atividade da sociedade civil,
na acepção marxiana, constitui o motor da história e, na interpretação
gramsciana, condiciona os espaços e as formas de lutas de classes e a
transformação social.” (Montaño, 2003, p. 263). Sob esse aspecto, é
importante sublinhar que, se Gramsci superou a visão mais limitada de
sociedade civil do marxismo tradicional, ele, no entanto, não negou de forma
alguma sua vinculação íntima às relações de produção, estando, por isso,
enraizada na estrutura de classes da sociedade capitalista. Apesar de ser a
esfera de construção do consenso, entendido como aceitação de determinada
visão de mundo, a sociedade civil não é coesa, sendo perpassada por
contradições e sujeita aos conflitos. Segundo Carnoy,
As instituições, que formam o aparelho hegemônico, somente
têm sentido, na análise de Gramsci, quando estabelecidas no contexto da luta
de classes e da classe dominante, que estende seu poder e controle à
sociedade civil através dessas mesmas instituições (Carnoy, 2004, p. 96).
Para Gramsci, a sociedade civil é a sociedade das classes em
conflito – latente ou manifesto –, e não uma esfera isolada da lógica e dos
processos de reprodução do capital. Por isso, a análise gramsciana possui um
profundo potencial crítico em relação às teorizações do “terceiro setor”, já
que a segmentação da sociedade em três setores, além de separar o domínio
das relações econômicas e a sociedade civil, acaba por ocultar nesta o
conflito de classe, que passa a ser visto como embate de interesses
econômicos particularistas. Esse é o papel mistificador do conceito de
“terceiro setor”, que, a partir de uma representação de “bem comum”, tenta
transformar a sociedade cindida em classes em um todo harmônico e integrado.
Na teorização do “terceiro setor”, sobressai a noção de um
interesse que se diz mais amplo que o interesse de classe. Não é por outro
motivo que Liszt Vieira diferencia as organizações da sociedade civil
daquilo que ele denomina “grupos de interesse”:
As associações da sociedade civil têm o papel de formadoras
da opinião pública e constituidoras da opinião coletiva nos espaços situados
fora do Estado e do mercado. Distinguem-se dos “grupos de interesse”,
caracterizados pela lógica dos interesses econômicos particularistas e pela
defesa dos interesses privados específicos, como, por exemplo, as
organizações sindicais e empresariais. (Vieira, 2000, p. 61).
Para além da “neutralidade” perversa na equiparação feita
entre organizações dos trabalhadores e dos empresários, embute-se, nessa
análise, a visão segundo a qual os interesses da sociedade civil se situam
acima do antagonismo estrutural entre capital e trabalho, ou melhor, os
interesses da sociedade civil são supraclassistas e universais. Estando
acima dos “interesses econômicos particularistas”, os valores do “terceiro
setor” são tidos e havidos também como mais legítimos e proeminentes em
relação a qualquer demanda dos trabalhadores como classe.
Ao criticar a idealização de uma sociedade civil defensora do
“bem comum”,
Montaño acentua que a sociedade civil é, fundamentalmente, um espaço de
tensões e disputas. Daí falar de um processo de ‘lutas na sociedade civil’,
diferentemente das teorias do “terceiro setor”, das quais se subentende a
idéia de “lutas da sociedade civil”:
Essas lutas são travadas por sujeitos, porém não entre a
sociedade civil, o Estado, o mercado, mas por sujeitos individuais (homens e
mulheres) e coletivos (grupos e organizações) em diversos espaços ou esferas
da sociedade total, seja na sociedade civil, no Estado, na
esfera produtiva, no espaço do consumo, na vida cotidiana. (Montaño,
2003, p. 277).
Nem mesmo a idéia de “sociedade civil organizada”
ameniza os problemas de tomá-la como sujeito, porque os grupos organizados
da sociedade civil, como destaca Montaño, não apenas são diversos como são
antagônicos:
Na sociedade civil estão presentes organizações tanto dos
trabalhadores, de “excluídos”, das chamadas “minorias”, dos defensores de
direitos humanos, da mulher, da criança e do adolescente, do meio ambiente,
mas também comparecem organizações representantes do capital (Sesc, Sesi,
Fundação Bradesco) e ainda mais, organizações fascistóides (Tradição Família
e Propriedade, grupos neonazistas, por exemplo), instituições
fanático-religiosas (diversas seitas que pregam o “fim do mundo”, entre
outras) ou até fundamentalistas. Isto é, pensar na sociedade civil como
uno resulta num erro grosseiro de interpretação histórica. (idem, p.
274-275).
Por isso, Montaño chama a atenção para o fato de que as
organizações da sociedade civil que pretendem ter um caráter transformador
devem se articular com os movimentos sociais, e não substituí-los num
processo de “terceirização” da questão social. Para tanto, precisam
abandonar o pragmatismo e a lógica de “gestão controlada dos recursos
comunitários” que caracterizou a maioria das ONGs desde a década de 90, cujo
resultado foi o abandono de projetos mais abrangentes de sociedade em função
do atendimento de demandas pontuais e individualizadas, palatáveis – e
funcionais – ao projeto neoliberal.
Afinal,
O projeto neoliberal quer uma sociedade civil dócil, sem
confronto, cuja cotidianidade, alienada, reificada, seja a “preocupação” e
“ocupação” (não a do trabalho e lutas sociais) em atividades não criadoras
nem transformadoras, mas voltadas para as (auto-) respostas imediatas às
necessidades localizadas. (idem, p. 260).
4. “Terceiro setor” e totalidade social
Toda a crítica até aqui exposta tem como referência aspectos
da totalidade social. Os fenômenos em questão são entendidos como “parte
movente e movida”, nos termos de Lukács (1978), de um contexto
sócio-histórico amplo. Isso significa que o “terceiro setor” e,
especificamente, a “responsabilidade social empresarial” não devem ser
tratados tão-somente a partir de sua lógica interna ou de seus resultados
imediatos. Impõe-se analisá-los no âmbito da sociedade capitalista,
contraditória e cindida em classes, em tempos de “hegemonia neoliberal”
(Anderson, 1995).
Como já foi assinalado, a categoria “mundo da vida”,
desenvolvida por Habermas, mantém clara ligação com as teorias do “terceiro
setor” devido ao fato mesmo de distinguir uma terceira esfera na sociedade
com uma lógica diferenciada em relação à do mercado e do Estado. Mas há
entre elas outro ponto de convergência implícito, não menos importante: o
mundo sistêmico, das relações capitalistas, é considerado insuperável,
restando unicamente a possibilidade de se buscar a emancipação em uma esfera
pública constituída por práticas autônomas ou, na terminologia de Habermas,
pelo agir comunicativo. Esta esfera autônoma então coexistiria – sempre se
defendendo da colonização – com o mundo sistêmico, caracterizado pela
heteronomia, pelo trabalho estranhado e pela razão instrumental. Conforme
aponta Vieira, “trata-se de limitação e regulamentação [do mercado e do
Estado por parte da sociedade civil], e não de abolição” (Vieira, 2000, p.
49).
No que se refere à sociabilidade cotidiana, essa perspectiva
representa a afirmação da possibilidade de existência de relações livres e
autônomas, apesar da permanência da heteronomia e do estranhamento na esfera
produtiva. Isto quer dizer que, nas atividades fora do trabalho, os
indivíduos encontrariam a oportunidade de envolver-se em atividades
autênticas e realizadoras. O trabalho continua subordinado ao capital, porém
não é mais visto como a categoria central da vida social.
Já no que diz respeito à processualidade histórica, um grande
problema dessas teorizações sobre o “terceiro setor” consiste em colocarem a
realidade concreta como o limite para a ação. Em outros termos, o mercado
com sua lógica predatória e o Estado burocratizado e distante da “questão
social” constituem elementos reais, mas o que está dado é a condição de uma
ação futura, e não seu limite.
A perspectiva de atuar a partir das “margens” da ordem
sistêmica, sem embates diretos, mais do que realismo, revela pragmatismo e
mistificação. O aspecto problemático de se pensar uma esfera à parte em
relação ao “sistema” é que a lógica do capital permite, de fato, a
emergência de formas alternativas de ação – “agir comunicativo” ou uma
“economia solidária” –, contudo, de modo algum, ainda na vigência do
capitalismo, essas formas podem se consolidar, se tornar autônomas e, muito
menos, se expandir, estando fadadas à extinção ou a permanecer nas margens
da sociedade.
Como se sabe, o sistema “sociometabólico do capital” (Mészáros,
2002)
não se restringe ao plano econômico e ao Estado, necessitando de um controle
social amplificado que atinge o conjunto das esferas de sociabilidade. Como
ressalta Lukács (1989), a forma mercadoria se expande para a totalidade
social.
É claro que essa noção não nega a existência e a possibilidade de
ressignificações, tensões e resistências, sejam elas cotidianas –
“capilares” – ou estruturadas de forma mais sistemática, daí a utilização da
concepção gramsciana dos aparelhos de hegemonia como espaços de embates. O
que se quer mostrar é que é inconcebível uma esfera que não seja perpassada
pelas contradições próprias do sistema capitalista.
Quando se examina mais a fundo a atividade prática das
organizações do “terceiro setor”, é igualmente problemático falar em
autonomia. Por mais que se considere uma esfera autônoma, com uma
racionalidade específica, o “terceiro setor” é empurrado ao pragmatismo: na
disputa por verbas – tanto estatais quanto do mercado – as organizações têm
que se enquadrar em determinados limites para conseguirem sobreviver e
desenvolver suas atividades, sempre dentro do horizonte imposto pelos
financiadores. Essa limitação parece não se verificar no caso das
organizações bancadas pelas “ONGs financiadoras” de outros países. Todavia,
as financiadoras retiram recursos de grandes transnacionais ou de governos
de países ricos. A diferença, portanto, se resume à existência de uma
mediação a mais; o limite estrutural é o mesmo.
A maioria das ponderações apresentadas até aqui leva ao
questionamento da validade do próprio conceito de “terceiro setor”, por seus
limites teóricos e práticos. Além disso, como já foi indicado, através da
apreensão do contexto sócio-histórico pode-se analisar criticamente a
ascensão de um padrão de intervenção social que elege o “terceiro setor”
como seu grande expoente.
Montaño (2003, p. 267) alude à idéia de um “tripé neoliberal”
para identificar o processo histórico em que a emergência do “terceiro
setor” se enquadra. Esse tripé é formado pelos seguintes processos: 1) a
reestruturação produtiva, cuja conseqüência principal deságua na
precarização das condições de trabalho; 2) a reforma do Estado, que Montaño
identifica como contra-reforma, à medida que se refere à
desresponsabilização do Estado em relação à “questão social”; 3) a
transformação da concepção de sociedade civil como arena de embates em um
“terceiro setor” harmônico que assume a tarefa de responder à “questão
social”, em grande medida abandonada pelo Estado, por obra e graça de ações
focalizadas e pontuais.
No quadro da hegemonia neoliberal, em que o Estado reduz sua
presença nas áreas sociais (infra-estrutura, saúde, educação, segurança
etc.), as organizações da RSE, e do “terceiro setor” como um todo têm uma
funcionalidade no sentido de substituir, complementar ou concorrer com a
ação governamental no que diz respeito ao enfrentamento das demandas
sociais. Nada mais compreensível, se considerarmos que, como relembra Paoli,
“empresários e governo empenham-se em descobrir modos legítimos de
desconstruir as garantias sociais como direitos universalizados (por seu
alto custo), encolhendo seletivamente o acesso a elas e apelando para a
‘criatividade social’ dos atingidos” (Paoli, 2005, p. 390).
Numa perspectiva diferente, Ruth Cardoso afirma que a
ascensão do “terceiro setor” não deve ser entendida como um processo de
desresponsabilização do Estado. Para ela, o âmbito de atuação do Estado e o
do “terceiro setor” estão demarcados e não coincidem. O Estado deve ser a
esfera de garantia dos direitos básicos e universais.
O lugar das ações de governo, a meu ver, está claramente
demarcado. Cabe ao governo garantir os direitos essenciais e universais dos
cidadãos, os quais, por sua vez, podem e devem exigir que isso se faça de
modo eficiente e eqüitativo. No Brasil, o papel da sociedade civil foi
bastante significativo na defesa de direitos básicos de cidadania quando
eles não estavam garantidos. Hoje é tarefa e responsabilidade dos
ministérios governamentais assegurar o acesso à educação, à saúde, ao
trabalho e à cultura a todos os cidadãos deste país. (Cardoso, 2000, p. 10).
Porém, segundo Cardoso, apenas a garantia de direitos
universais não é suficiente numa sociedade como a brasileira, por sua
“herança profunda de desigualdade e marginalização”. Nesse sentido, o papel
do “terceiro setor” consiste em desenvolver “ações diretas e pontuais” que
combatam os desequilíbrios historicamente consolidados. A eficiência do
“terceiro setor” nessa função se ligada à sua busca e experimentação de
soluções inovadoras, que configuram uma nova maneira de agir na área social
qualitativamente diferente em relação ao Estado, burocrático e
centralizado. Para Cardoso, ações voltadas a grupos sociais específicos –
“mais frágeis e vulneráveis” – exigem “regras e modos de atuação que só se
constroem através da ação e experimentação.” (Cardoso, 2000, p. 11). O
Estado, universal mas ao mesmo tempo distante, não tem condições de atender
essas demandas específicas.
Em que pese essa tentativa analítica de desvincular a
ascensão do “terceiro setor” e a desresponsabilização do Estado, o processo
histórico concreto aponta para outra direção. Não há dúvida que as políticas
públicas estatais são centralizadas e, em grande medida, ineficientes,
necessitando de alternativas inovadoras de atendimento das reivindicações
que levem em conta as especificidades e singularidades dos diferentes grupos
sociais. Porém, o período de ascensão do “terceiro setor” não representa um
momento significativo de mudanças nessa direção. Nas últimas décadas, os
direitos universais estão sendo atacados e ameaçados, tanto nos países
centrais do capitalismo quanto em áreas periféricas nas quais algumas
garantias foram conquistadas de forma, muitas vezes, bastante incipiente e
frágil.
Enquanto isso, têm ganhado espaço medidas focalizadas, pontuais e
redistributivas. É nesse processo que o “terceiro setor” se consolida,
financiado, em larga escala, por verbas públicas, que se tornam cada vez
mais escassas para problemas estruturais vinculados aos direitos básicos da
população.
Como ressalva Montaño (2002, p. 239), trata-se da
transformação de direitos estabelecidos em “não-direitos do cidadão”,
dependentes da atividade voluntária e fortuita de indivíduos solidários
isolados, ONGs ou empresas “cidadãs”.
Em outros termos, o processo em questão é de ascensão de uma concepção
restritiva e excludente de cidadania, baseada em “auto-respostas”
focalizadas, que reflete, de acordo com Paoli (2005, p. 409), uma estratégia
de despolitização da “questão social”, altamente funcional ao projeto
neoliberal de reorganização social, tendendo a ser uma espécie de nova volta
no parafuso do controle e da dominação de classe na sociedade capitalista.
por MARCILIO RODRIGUES
LUCAS