por JULIO CÉSAR LOURENÇO

Graduando em Ciências Sociais (DCS/UEM)

 

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O Crash do indivíduo: racismo e vulnerabilidade social no capitalismo

Julio César Lourenço

 

Resumo: Neste artigo, analisaremos o filme Crash – No limite (2004), uma obra que apresenta como racismo, xenofobia e segregacionismo são inscritos na sociedade capitalista contemporânea. Ele nos faz refletir sobre os preconceitos a partir da ação de indivíduos comuns e vulneráveis, revelando os limites, as contradições e as suas diferentes atitudes num determinado momento histórico da sociedade capitalista.

Palavras Chave: Cinema; Xenofobia; Racismo; EUA.

Abstract: In this article we will analyze the movie Crash (2004), a work which shows how subjects like racism, xenophobia and segregation are inserted in modern capitalist society. It makes us think about preconception of normal and vulnerable people, revealing their limits, contradictions and different behaviors when they are subjected on a determinate historic moment of the capitalist society.

Key-Words: Cinema; Xenophobia; Racism; U.S.A

 

“Temos de nos arrepender nessa geração não tanto pelas más ações das pessoas más, mas pelo silêncio assustador das pessoas boas”

Martin Luther King.

 

Poster do filmeIntrodução

Minha intenção neste artigo constituir-se-á de uma exploração das problemáticas sociais levantadas no enredo do filme Crash, que estão associadas aos ódios racial, cultural e xenófobo existentes na sociedade capitalista norte-americana. Em minha perspectiva, embora o diretor tenha se esforçado em dialogar com diferentes problemas do meio social de Los Angeles (uma sinédoque dos EUA), ele sacrificou um potencial aprofundamento de suas análises sociológicas às suas opções expressivas de configuração da narrativa cinematográfica.

De qualquer forma, Crash é um filme inteligente e corajoso que expõe todo um conjunto de preconceitos da sociedade norte-americana, que estão presentes na construção da individualidade e em ações do cotidiano, podendo se revelar a qualquer momento. Conforme a tese apresentada em Crash, apesar de as pessoas tentarem ocultá-los, com a velocidade da vida moderna, em algum momento, todos perdemos o controle e acabamos por reproduzi-los e perpetuá-los.

Crash entre denúncia e desengajamento

O filme Crash está imerso no contexto dos EUA pós-11 de Setembro, já então marcado pela perda de credibilidade do governo Bush quanto ao papel dos EUA na intervenção no Iraque. Daí, uma certa descrença nas instituições se combina com o aumento da sensação de insegurança e com a expressão do medo de aniquilação através de comportamentos desconfiados, agressivos e preventivos contra “negros” e “imigrantes”, assim como entre negros e imigrantes, que também definem distinções sociais entre si conforme a sua maior ou menor eficácia de aproximação em relação ao modelo “branco” de classe média próspera e letrada. Deste modo, em vez de demonstrar o maniqueísmo característico dos discursos oficiais do governo americano, o filme expõe uma fantástica “zona cinza” e não-linear, em que as díades Bem/Mal, Branco/Negro, Insider/Outsider e Vítima/Algoz são desconstruídas ao longo da trama, demonstrando que pensar responsabilidades envolve uma profunda auto-reflexão do próprio modelo civilizacional das relações sociais.

O cinema é um veículo privilegiado de expressão, criação e reflexão sobre valores e idéias de uma sociedade. Nos EUA, após o atentado ao World Trade Center, uma das atitudes da administração de George W. Bush foi a de aumentar o controle sobre os meios de comunicação. Conseqüentemente, as mídias, enquanto componentes da iniciativa privada, adequaram-se à forma e ao sentido dos discursos e ações políticas deste momento, reforçando as doutrinas defendidas por essa administração. Passados alguns anos, tal controle foi se reduzindo, permitindo paulatinamente o retorno de produções que fazem críticas ao meio social. É importante reconhecer que a indústria do cinema continua a ser um componente vital do conjunto da comunicação cultural e deve-se elucidar que a natureza de suas produções e suas influências ajudam a modelar o caráter e a direção da cultura norte-americana – e não somente ela.

De modo bastante interessante, o filme Crash trabalha a complexidade do ser humano, revelando seus limites, suas contradições e suas diferentes atitudes quando sujeito a um determinado momento ou situação histórica. O seu principal mérito é nos conduzir a pensar sobre os preconceitos[1] existentes no mundo moderno. O silêncio ao qual estamos habituados sobre esses fatos ilude a ponto de fazer supor que eles não existem ou que não possuímos responsabilidade sobre eles; assim, equivocadamente, passa-se a acreditar que eles são valores naturais aos seres humanos. Deste modo, nega-se a debatê-los e eles se tornam um assunto deixado de lado pela maioria, quando deveriam ser combatidos. A desvalorização ou inferiorização de determinados grupos sociais estão presentes na ordem do dia, podendo aparecer quando se teme algum indivíduo por agir de modo não-convencional nas ruas, ou quando se prejulga o caráter ou idoneidade de alguém por usar tatuagens.

O indivíduo moderno é marcado por um paradoxo: ao mesmo tempo que é alçado a preservar a sua autonomia e a livre expressão de si, deve várias vezes – estrategicamente ou forçadamente – cancelá-las em nome da manutenção de uma esfera mínima de segurança pessoal ou social. No filme, tal paradoxo é trabalhado a partir de uma montagem rápida e fragmentada, utilizando-se de personagens comuns, de classes e personalidades diferentes, que terão sua histórias unidas por algum incidente.

Em Los Angeles, as pessoas chocam-se umas com as outras pela necessidade de ter contato com outros seres humanos, afirma um dos protagonistas antes de sofrer um leve acidente de carro. Surpreendente ou não, essa mensagem inicial servirá de base para o enredo e será retomada no final. Ao longo da narrativa, outros “choques” acontecerão, diagnosticando as enfermidades de um entorno social em grave crise de identidade. A partir deste ponto, por diferentes perspectivas, temos a possibilidade de fazer múltiplas leituras e interpretações sobre a forma de vida das pessoas dentro da sociedade moderna.

No filme Crash, o grupo central carismático a definir critérios de valor cultural e excelência social continua sendo visto como branco, capitalista e capitaneador da idéia do sucesso individual como marca distintiva do american way of life. Todos, brancos ou não-brancos, operam com isso como parâmetro de valor e, conseqüentemente, isso torna-se um elemento determinante de frustração quando alguns se vêem excluídos, incapazes de fazer parte ou simplesmente ameaçados de permanecer no sonho americano. A sensação de ameaça é tanto mais contumaz quando este mesmo “sonho”, nos termos atuais do capitalismo flexível, torna maior a dependência funcional em relação aos serviços e recursos de “não-brancos” dentro e fora da sociedade americana. É este campo de frustração e valor que define as projeções mais violentas de ódio, medo e preconceito.

O filme Crash possui várias cenas marcadas pelos efeitos violentos das diversas formas de preconceito existentes na sociedade capitalista norte-americana. Em muitas delas, o diretor traça um panorama sobre vários temas sociais com os quais as pessoas diversas vezes não conseguem lidar, pois não querem se sentir responsáveis pelos efeitos potencialmente destrutivos ou frustrantes do sonho americano para a maioria dos indivíduos. No entanto, o diretor não propõe uma resposta para os temas sociais, mas sim um convite ao espectador para uma reflexão sem maniqueísmos. Todavia, embora a narrativa de denúncia social mostre-se com bastante vitalidade no início do filme, a emotividade configurada para o desenrolar das cenas acaba por produzir um efeito de desengajamento catártico, o que dissipada qualquer efeito prático da energia emocional explorada ao longo do filme sobre os temas abordados.

De qualquer forma, Crash é um filme forte, tenso, interessante e provocador. Ao longo de suas duas horas de duração, várias histórias aparentemente aleatórias se inter-relacionam em determinado momento, explicitando problemas cotidianos relacionados ao racismo, à xenofobia, ao etnicismo, ao segregacionismo e à escravização do trabalho imigrante no seio de uma sociedade capitalista avançada. Tudo isso é representado pelas várias etnias e classes sociais que convivem tensamente em Los Angeles – mas se trata de algo que poderia ser vislumbrado em qualquer outro grande centro do capitalismo no mundo.

A fictícia cidade de Los Angeles em Crash é o espaço da desigualdade e sintetiza os dramas de personalidade, os problemas de consciência e a impessoalidade. Nela a individualidade se dissolve em meio à multidão, cuja dinâmica reduz a contradição social e o crime a uma questão racial ou cultural. Assim, é ofuscada a capacidade de refletir, de sonhar, de acreditar na capacidade de mudança. Tudo é configurado num clima de rendição ideológica, com as pessoas se esquivando das responsabilidades pela miséria, pela violência, pelas guerras, pois transformar é agir contra uma lógica de mundo que, no fundo, é desejada.

No filme, Paul Haggis mostra disposição para produzir desconforto no público, explorando dramaticamente diálogos concisos e fortes que expõem uma atmosfera desencantada de uma cidade marcada pelos imensos arranha-céus em oposição aos guetos, onde medo e a imprevisibilidade nas pessoas que acordam com a missão de lutar pela sobrevivência caminham de mãos dadas. Porém, sem a aceitação de tal luta como parte do jogo social ou sem a afirmação agressiva e individualista de si, o self made man norte-americano não teria um mundo adequado para si. Como em todo paradoxo, há neste modo de vida uma mistura de malignidade e benignidade: um culto à livre iniciativa que não é acompanhada pelo aumento da segurança existencial.

O preconceito é um tema um tanto comum no mundo do cinema. Contudo, Crash consegue ir além dos clichês maniqueístas: o espectador se reconhece nos personagens representados, despertando nele a percepção de como a loucura provocada pela estressante agitação da sociedade moderna nos impede de enxergarmos as imperfeições ao nosso redor e a desumanização dos indivíduos. No entanto, paradoxalmente, não somos levados a intervir altruisticamente nessas questões, pois somente as notamos quando nos vemos numa posição desvantajosa no interior de sua lógica configurativa das relações sociais. Assim, todos concorrem para interpretar corretamente os papéis e fazer eficazmente o jogo social, mas não querem se ver responsáveis pelos efeitos destrutivos ou frustrantes de suas regras.

Daí, não pode haver protagonistas ou antagonistas no plano de enredo do filme Crash. Todos são preconceituosos, vítimas e atores de alguma violência racial, dependendo da situação – lamentando-se das regras do jogo social somente quando a posição ocupada é de loser. Desta forma, o diretor demonstra que todos somos várias pessoas em um mesmo dia. Todos os personagens do filme são indivíduos comuns, vulneráveis, com virtudes e defeitos em igual proporção. Assim, pessoas que, num momento, têm atitudes desprezíveis podem, em outro, agir de maneira nobre e altruísta – mas a ação altruísta é isolada, não tendo maior efeito sobre as regras do jogo social. De igual forma, uma pessoa boa e amável pode, dependendo da circunstância de exposição ao preconceito, cometer um crime hediondo.

Segundo Paiva (2006), a partir de filmes como Crash, “podemos perceber como o cinema tem desnudado as dimensões mais recônditas do estilo de vida americano, por vezes mostrando as ressonâncias regressivas do princípio democrático, expressas através da simulação de cotidiano insólito em que os indivíduos perderam as esperanças e, sem as bases éticas de um princípio comunitário, partem para as atitudes [isoladas] de rebelião e violência”.

Paradoxos da inclusão inconclusa

O filme Crash não possui uma trama central, mas várias tramadas por contigüidade. Assim, tudo se une como um quebra-cabeça de vários destinos que se chocam ou tocam aparentemente por acaso. Nesses termos, um casal branco formado pelo promotor Rick (Brendan Fraser) e sua esposa Jean (Sandra Bullock) são, logo no início do filme, assaltados por uma dupla de negros (Larenz Tate e Ludacris). Paralelamente, existe uma família persa, cuja loja é assaltada e depredada depois que o dono se recusou a trocar uma porta com defeito, apesar das recomendações do chaveiro hispânico Daniel (Michael Peña). Além disso, há o diretor negro de cinema Cameron (Terrence Howard), cuja esposa negra é humilhada por um policial truculento (Matt Dillon) em uma operação de revista na rua. Este policial tem como parceiro de serviço o jovem policial Hanson (Ryan Phillippe), que condena a atitude do colega em um primeiro momento, mas comete o assassinato, motivado por preconceito racial, de um dos assaltantes negros do início do filme que, ao final, revela ser o irmão mais jovem do investigador de polícia interpretado por Don Cheadle que, por sua vez, tem um relacionamento não assumido publicamente com uma investigadora hispânica, que é a sua parceira de trabalho.

A tônica do preconceito é apresentada primeiramente com a dupla de assaltantes negros, Anthony e Peter. Na cena em questão, eles aparecem caminhando na rua e discutindo sobre alguns dos problemas que sua raça enfrenta em praticamente todos os âmbitos da sociedade. Esta conversa é bastante interessante e representativa:

“- Viu algum branco esperar 1h32m por um prato de espaguete? Aquela mulher servia café para todos os brancos à nossa volta, mas nos perguntou se queríamos?

- Eu não queria tomar e você muito menos. Isso é prova de discriminação?

- Notou que a camareira era negra? As mulheres negras não têm estereótipos? Me diga quando foi a última vez que conheceu uma que não te falou o que queria antes de abrir a boca? Aquela garçonete tirou-nos a pinta em dois segundos. Somos negros e os negros não dão gorjeta. Por isso, ela não ia perder tempo.

- E alguém gosta disso? Não dá pra fazer nada pra mudar a cabeça deles. Quanto você deu de gorjeta?

- Você espera que eu pague por este tipo de serviço?”

Nesta cena, os personagens fazem a interessante observação de que os piores empregos da lanchonete são exercidos pelas pessoas negras, fato que ocorre com freqüência mesmo em um país desenvolvido economicamente como os EUA. Outro tema levantado na fala é a diferenciação entre os salários de brancos e negros: ganhando menos, estes últimos não possuem recursos suficientes sequer para pagarem uma gorjeta à garçonete, o que explica a sua preferência em atender aos primeiros. A discussão segue adiante, desnudando ainda mais a sua afirmação:

“- Espera... Viu o que aquela mulher fez?

- Não começa... Olhe à sua volta.

- Você não conseguiria achar uma área da cidade mais branca, segura e iluminada. E, mesmo assim, essa branquela vê dois negros que parecem universitários caminhando pela calçada e a sua reação é de medo? Olhe para nós. Por acaso usamos roupas de assaltantes? Não. Parecemos ameaçadores? Não. É... Se alguém deveria ter medo por aqui, somos nós! Somos os dois únicos negros rodeados por um mar de brancos com excesso de cafeína e patrulhados pela violenta polícia de Los Angeles.

- Então me responda. Por que não estamos apavorados.

- Por que temos armas?

- Talvez você tenha razão”.

A cena em questão é significativamente polêmica, porque mostra, num primeiro momento, a dupla de assaltantes descrevendo a repressão e a discriminação do negro na sociedade; no entanto, num segundo momento, eles próprios “confirmariam” haver “fundamento” na desconfiança dos “brancos” ao realizarem um assalto à mão armada contra o carro do promotor Rick e sua esposa Jean. Com o avanço da narrativa, o diretor tenta nos mostrar que todos os personagens de alguma forma procuram encontrar um lugar seguro num mundo repleto de intolerâncias; por isso, a sensação de cansaço e vulnerabilidade é constante nos personagens, que precisam, de alguma maneira, extravasar as suas ansiedades e reinventar fantasias autoprotetoras.

A incerteza dos imigrantes e o desejo de segurança

Uma das tramas mais tocantes do filme é a que envolve o personagem hispânico Daniel. Ele possui uma filha chamada Elizabeth, que se esconde debaixo da cama por ter medo das balas perdidas que escuta à noite, embora estejam agora vivendo num bairro mais seguro e urbanizado. Ela conta este fato a seu pai, que lhe dá de presente uma capa invisível para “protegê-la”. Daniel sofre preconceito duas vezes no mesmo dia.

A primeira vez é quando realiza um trabalho na casa do promotor Rick, pois foi contratado para trocar as fechaduras devido ao choque-pânico de Jean depois da traumática experiência do assalto. Esta, discutindo com o marido, começa a desconfiar de todos ao seu redor – inclusive da sua empregada, que é hispânica – e, ao ver Daniel executar o serviço na sua porta, nota as suas tatuagens e imagina que ele pertenceria a uma gang de traficantes e, portanto, que ele poderia manter para si cópias das chaves das novas fechaduras. Outro fato interessante nesta cena é que o promotor está lançando sua candidatura para um cargo no governo e espera contar com os votos da comunidade negra. Sendo assim, se fizesse queixa contra a dupla de assaltantes negros e se isso viesse a público, temia perder os votos das “minorias”. Daí o seu cinismo político:

“Por que esses caras tinham de ser negros? Muito bem. Se não podemos esconder essa coisa, nós teremos de neutralizá-la. Precisamos de uma foto minha para condecorar um negro com uma medalha para reverter a situação”.

Segundo o crítico de cinema Pablo Villaça,

“O filme de Paul Haggis não discute apenas o preconceito, mas também uma de suas causas (e, simultaneamente, conseqüências): a violência absurda que ameaça a todos nos dias de hoje. Em certo momento, a personagem de Sandra Bullock desabafa: ‘Eu sinto raiva o tempo todo!’. E é claro que ela sente assim: Como podemos manter a serenidade vivendo em uma sociedade na qual nossas crianças, em vez de temerem o ‘bicho-papão’ ou o ‘boi da cara preta’, sentem medo de balas e de estupradores?” (VILLAÇA, 2005)

A segunda vez em que Daniel sofre preconceito é quando está trocando as fechaduras na loja do comerciante persa Golzari, que anda assustado com a onda de violência contra muçulmanos. Após realizar o serviço, Daniel relata ao comerciante que, para que a loja fique segura realmente, será preciso que ele troque toda a porta e não apenas a fechadura. Golzari discorda, dizendo que a porta é segura e recusa-se a trocá-la. No entanto, a recusa de Golzari não é motivada somente por seu preconceito em relação ao hispânico (pensou que Daniel queria tirar vantagem de sua fragilidade), mas também por sua dificuldade de entender os argumentos, em perfeito inglês, do chaveiro Daniel. Notando o raivoso preconceito, misturado à incapacidade lingüística de Golzari, Daniel recusa-se a receber o seu dinheiro.

Assim, no dia seguinte, quando Golzari reabre a loja, percebe que foi assaltado, e que sua loja está repleta de pichações com mensagens contra estrangeiros na região. Contudo, o filme não deixa claro se houve a presença de grupos organizados ou se foi um ato isolado. A ironia dramática ocorre porque o(s) assaltante(s) entrara(m) na loja pela porta que deveria ter sido trocada, segundo a sugestão feita por Daniel. Sendo de origem persa, a fala de Golzari quando vê sua loja destruída soa até engraçada: “Olhe o que eles escreveram. Pensam que somos árabes. Quando que os persas se tornaram árabes?”. Segundo a psicóloga Santina Rodrigues, este personagem, “por ser persa confundido com árabe, está sempre exasperado em suas frustradas tentativas de comunicação. No fundo, ele tem sempre a impressão de que está sendo passado para trás” (RODRIGUES, 2006). Ela continua: “No mundo muçulmano, não é possível reduzir todas as diferentes tribos ou culturas a um único nome: árabe!” (RODRIGUES, 2006).

A questão dos imigrantes é um tema complicado, pois, acreditando na utopia que poderiam ter condições de vida melhor em outro país, inúmeras pessoas trocam seus lares pela incerteza de um futuro mais promissor em outro país. Contudo, dificilmente alcançam aquilo que imaginaram; pelo contrário, vivem precariamente e sempre com medo. Sobre este assunto, Edmilson Marques afirma:

“Ao chegar aos EUA, as pessoas logo percebem que o ‘que sonhavam’ sobre o país das ‘maravilhas’ nada mais era do que um pensamento falso, uma ideologia. Sentem logo de imediato o impacto cultural e a preponderância dos valores fetichistas. Alguns conseguem se integrar à sociedade e viver as intensas contradições, tensões e solidão – sentimentos presentes tanto nos norte-americanos quanto nos imigrantes”. (MARQUES, 2006, p. 19)

De posse de uma arma carregada por sua filha, sem que soubesse, com balas de festim, Golzari vai até a casa de Daniel e o acusa pelo roubo. Durante a discussão, Golzari aponta a arma para Daniel. Elizabeth, que havia acabado de chegar da escola particular em que estudava, acreditando estar protegida pela capa mágica, corre para pular na frente do pai para protegê-lo. Quase involuntariamente, Golzari dispara a arma pelas costas de Elizabeth, que não sofre nenhum dano. Atônito, Golzari fica parado na rua, enquanto Daniel corre desesperadamente com a filha nos braços para dentro de casa. Golzari imagina que Elizabeth é seu anjo da sorte. As fantasias autoprotetoras de Elizabeth e de Golzari se nivelam dramaticamente, compensando o sentimento de insegurança e desconfiança entre pessoas reciprocamente estranhas.

Ryan e o paradoxo humano

O policial Ryan é talvez o personagem que demonstra melhor a tese central de Haggis, qual seja: sob determinada situação, as pessoas se transformam. Na primeira vez em que ele nos é apresentado, está patrulhando uma avenida e pára o carro de luxo do diretor de cinema Cameron e sua esposa Christine. O casal estava dentro da lei, mas Ryan exagera na hora da revista e abusa da esposa do diretor, que acompanha desesperado tal agressão, mas sem se opor fisicamente à atitude invasiva da mão de Ryan.

Passadas algumas cenas, ele aparece salvando Christine de um acidente automobilístico. Tal acidente foi uma conseqüência indireta do abalo emocional de Christine perante a forma como Camaron lidou com a situação de abuso de Ryan. Em certa medida, sem saber, Ryan impediu que Christine sofresse um efeito mais destrutivo sobre a sua existência do seu próprio abuso de autoridade. Assim, Paul Haggis defende que a questão do preconceito tem ligação direta com as relações de poder, que surgem e se desfazem a cada encontro de acordo com as circunstâncias.

Como já foi dito, o filme Crash explora uma forma de montagem que é comum em filmes nos quais se cruzam histórias contíguas que terminam ao mesmo tempo. Nem todos os críticos de cinema concordam com esta linguagem. Para André Bazin (1955), “o cinema deveria exprimir a realidade do mundo, registrando a especialidade dos objetos e o espaço que eles ocupam, sem uso de artifícios e respeitando sua unidade” (BAZIN, 1955, p. 17-18). Ora, mas isso é supor que haja uma forma de linguagem que consiga expressar de forma neutra a realidade; é esquecer que as formas de montagem são a espinha dorsal da linguagem cinematográfica.

Afinal, um filme cinematográfico não é um documentário ou um telejornal – e mesmo estes são impossíveis sem recorte e montagem. A montagem cria o significado para cada fotograma. Em Crash, a opção pela contigüidade demonstra uma intenção de não criar uma solução simplificada para os problemas raciais nos EUA, mas sim expô-los em sua complexidade filigranática. No entanto, o que poderia ser questionado é se determinada forma cinematográfica que pretenda fazer denúncia social é eficaz em criar um efeito efetivo de engajamento na luta contra valores, princípios e idéias associados à discriminação racial.

 

Bibliografia

BAZIN. A. Comment peut-on être Hitchcocko-Hawksien? Cahiers du Cinéma, n° 44, fevereiro 1955, pp.17-18.

BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1985.

IANNI, O. A Questão Racial. Com Ciência, 12/03/2003. (Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/negros/11.shtml).

MARQUES, E. Estados Unidos: Uma Opção de Vida. Sociologia, nº 2, janeiro 2006, pp.14-19.

PAIVA, C. C.. “O Estado, o poder, e a Comunicação no Cinema: As telas do Brasil, Estados Unidos e Europa”. In http://www.bocc.ubi.pt/pag/paiva-claudio-cardoso-estado-poder-comunicacao-cinema.pdf

RODRIGUES, S.. “Crash: a psicologia analítica no limite entre o particular e o coletivo”. In http://www.rubedo.psc.br/artigosc/crash.htm.

VILLAÇA, P.. Crash – No Limite. Cinema em Cena, 20/10/2005. (Disponível em: http://www.cinemaemcena.com.br/frm_equipe_lista.aspx?tipo=equipe&menu=0)

 

por JULIO CÉSAR LOURENÇO

[1] Vamos entender por preconceito neste artigo toda e qualquer manifestação que tente desvalorizar ou inferiorizar o ser humano, no que diz respeito a características racial, física, social e cultural.
 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.