“Temos de nos arrepender nessa geração não
tanto pelas más ações das pessoas más, mas pelo silêncio assustador das
pessoas boas”
Martin Luther King.
Introdução
Minha intenção neste artigo constituir-se-á de uma exploração
das problemáticas sociais levantadas no enredo do filme Crash,
que estão associadas aos ódios racial, cultural e xenófobo existentes na
sociedade capitalista norte-americana. Em minha perspectiva, embora o
diretor tenha se esforçado em dialogar com diferentes problemas do meio
social de Los Angeles (uma sinédoque dos EUA), ele sacrificou um potencial
aprofundamento de suas análises sociológicas às suas opções expressivas de
configuração da narrativa cinematográfica.
De qualquer forma, Crash
é um filme inteligente e
corajoso que expõe todo um conjunto de preconceitos da sociedade
norte-americana, que estão presentes na construção da individualidade e em
ações do cotidiano, podendo se revelar a qualquer momento. Conforme a tese
apresentada em Crash, apesar de as pessoas tentarem
ocultá-los, com a velocidade da vida moderna, em algum momento, todos
perdemos o controle e acabamos por reproduzi-los e perpetuá-los.
“Crash” entre denúncia
e desengajamento
O filme Crash está imerso no contexto dos EUA
pós-11 de Setembro, já então marcado pela perda de
credibilidade do governo Bush quanto ao papel dos EUA na intervenção no
Iraque. Daí, uma certa descrença nas instituições se combina com o aumento
da sensação de insegurança e com a expressão do medo de aniquilação através
de comportamentos desconfiados, agressivos e preventivos contra
“negros” e “imigrantes”, assim como entre negros e imigrantes,
que também definem distinções sociais entre si conforme a sua maior ou menor
eficácia de aproximação em relação ao modelo “branco” de classe média
próspera e letrada. Deste modo, em vez de demonstrar o maniqueísmo
característico dos discursos oficiais do governo americano, o filme expõe
uma fantástica “zona cinza” e não-linear, em que as díades Bem/Mal,
Branco/Negro, Insider/Outsider e Vítima/Algoz são
desconstruídas ao longo da trama, demonstrando que pensar responsabilidades
envolve uma profunda auto-reflexão do próprio modelo civilizacional das
relações sociais.
O cinema é um veículo privilegiado de expressão, criação e
reflexão sobre valores e idéias de uma sociedade. Nos EUA, após o atentado
ao World Trade Center, uma das atitudes da administração de George W. Bush
foi a de aumentar o controle sobre os meios de comunicação.
Conseqüentemente, as mídias, enquanto componentes da iniciativa privada,
adequaram-se à forma e ao sentido dos discursos e ações políticas deste
momento, reforçando as doutrinas defendidas por essa administração. Passados
alguns anos, tal controle foi se reduzindo, permitindo paulatinamente o
retorno de produções que fazem críticas ao meio social. É importante
reconhecer que a indústria do cinema continua a ser um componente vital do
conjunto da comunicação cultural e deve-se elucidar que a natureza de suas
produções e suas influências ajudam a modelar o caráter e a direção da
cultura norte-americana – e não somente ela.
De modo bastante interessante, o filme Crash
trabalha a complexidade do ser humano, revelando seus limites, suas
contradições e suas diferentes atitudes quando sujeito a um determinado
momento ou situação histórica. O seu principal mérito é nos conduzir a
pensar sobre os preconceitos
existentes no mundo moderno. O silêncio ao qual estamos habituados sobre
esses fatos ilude a ponto de fazer supor que eles não existem ou que não
possuímos responsabilidade sobre eles; assim, equivocadamente, passa-se a
acreditar que eles são valores naturais aos seres humanos. Deste modo,
nega-se a debatê-los e eles se tornam um assunto deixado de lado pela
maioria, quando deveriam ser combatidos. A desvalorização ou inferiorização
de determinados grupos sociais estão presentes na ordem do dia, podendo
aparecer quando se teme algum indivíduo por agir de modo não-convencional
nas ruas, ou quando se prejulga o caráter ou idoneidade de alguém por usar
tatuagens.
O indivíduo moderno é marcado por um paradoxo: ao mesmo tempo
que é alçado a preservar a sua autonomia e a livre expressão de si, deve
várias vezes – estrategicamente ou forçadamente – cancelá-las em nome da
manutenção de uma esfera mínima de segurança pessoal ou social. No filme,
tal paradoxo é trabalhado a partir de uma montagem rápida e fragmentada,
utilizando-se de personagens comuns, de classes e personalidades diferentes,
que terão sua histórias unidas por algum incidente.
Em Los Angeles, as pessoas chocam-se umas com as outras pela
necessidade de ter contato com outros seres humanos, afirma um dos
protagonistas antes de sofrer um leve acidente de carro. Surpreendente ou
não, essa mensagem inicial servirá de base para o enredo e será retomada no
final. Ao longo da narrativa, outros “choques” acontecerão, diagnosticando
as enfermidades de um entorno social em grave crise de identidade. A partir
deste ponto, por diferentes perspectivas, temos a possibilidade de fazer
múltiplas leituras e interpretações sobre a forma de vida das pessoas dentro
da sociedade moderna.
No filme Crash, o grupo central carismático a
definir critérios de valor cultural e excelência social continua sendo visto
como branco, capitalista e capitaneador da idéia do sucesso individual como
marca distintiva do american way of life. Todos, brancos ou
não-brancos, operam com isso como parâmetro de valor e, conseqüentemente,
isso torna-se um elemento determinante de frustração quando alguns se vêem
excluídos, incapazes de fazer parte ou simplesmente ameaçados de permanecer
no sonho americano. A sensação de ameaça é tanto mais contumaz quando este
mesmo “sonho”, nos termos atuais do capitalismo flexível, torna maior a
dependência funcional em relação aos serviços e recursos de “não-brancos”
dentro e fora da sociedade americana. É este campo de frustração e valor que
define as projeções mais violentas de ódio, medo e preconceito.
O filme Crash possui várias cenas marcadas
pelos efeitos violentos das diversas formas de preconceito existentes na
sociedade capitalista norte-americana. Em muitas delas, o diretor traça um
panorama sobre vários temas sociais com os quais as pessoas diversas vezes
não conseguem lidar, pois não querem se sentir responsáveis pelos efeitos
potencialmente destrutivos ou frustrantes do sonho americano para a maioria
dos indivíduos. No entanto, o diretor não propõe uma resposta para os temas
sociais, mas sim um convite ao espectador para uma reflexão sem
maniqueísmos. Todavia, embora a narrativa de denúncia social mostre-se com
bastante vitalidade no início do filme, a emotividade configurada para o
desenrolar das cenas acaba por produzir um efeito de desengajamento
catártico, o que dissipada qualquer efeito prático da energia emocional
explorada ao longo do filme sobre os temas abordados.
De qualquer forma, Crash é um filme forte,
tenso, interessante e provocador. Ao longo de suas duas horas de duração,
várias histórias aparentemente aleatórias se inter-relacionam em determinado
momento, explicitando problemas cotidianos relacionados ao racismo, à
xenofobia, ao etnicismo, ao segregacionismo e à escravização do trabalho
imigrante no seio de uma sociedade capitalista avançada. Tudo isso é
representado pelas várias etnias e classes sociais que convivem tensamente
em Los Angeles – mas se trata de algo que poderia ser vislumbrado em
qualquer outro grande centro do capitalismo no mundo.
A fictícia cidade de Los Angeles em Crash é o
espaço da desigualdade e sintetiza os dramas de personalidade, os problemas
de consciência e a impessoalidade. Nela a individualidade se dissolve em
meio à multidão, cuja dinâmica reduz a contradição social e o crime a uma
questão racial ou cultural. Assim, é ofuscada a capacidade de refletir, de
sonhar, de acreditar na capacidade de mudança. Tudo é configurado num clima
de rendição ideológica, com as pessoas se esquivando das responsabilidades
pela miséria, pela violência, pelas guerras, pois transformar é agir contra
uma lógica de mundo que, no fundo, é desejada.
No filme, Paul Haggis mostra disposição para produzir
desconforto no público, explorando dramaticamente diálogos concisos e fortes
que expõem uma atmosfera desencantada de uma cidade marcada pelos imensos
arranha-céus em oposição aos guetos, onde medo e a imprevisibilidade nas
pessoas que acordam com a missão de lutar pela sobrevivência caminham de
mãos dadas. Porém, sem a aceitação de tal luta como parte do jogo social ou
sem a afirmação agressiva e individualista de si, o self made man
norte-americano não teria um mundo adequado para si. Como em todo paradoxo,
há neste modo de vida uma mistura de malignidade e benignidade: um culto à
livre iniciativa que não é acompanhada pelo aumento da segurança
existencial.
O preconceito é um tema um tanto comum no mundo do cinema.
Contudo, Crash consegue ir além dos clichês maniqueístas: o
espectador se reconhece nos personagens representados, despertando nele a
percepção de como a loucura provocada pela estressante agitação da sociedade
moderna nos impede de enxergarmos as imperfeições ao nosso redor e a
desumanização dos indivíduos. No entanto, paradoxalmente, não somos levados
a intervir altruisticamente nessas questões, pois somente as notamos quando
nos vemos numa posição desvantajosa no interior de sua lógica configurativa
das relações sociais. Assim, todos concorrem para interpretar corretamente
os papéis e fazer eficazmente o jogo social, mas não querem se ver
responsáveis pelos efeitos destrutivos ou frustrantes de suas regras.
Daí, não pode haver protagonistas ou antagonistas no plano de
enredo do filme Crash. Todos são preconceituosos, vítimas e
atores de alguma violência racial, dependendo da situação – lamentando-se
das regras do jogo social somente quando a posição ocupada é de loser.
Desta forma, o diretor demonstra que todos somos várias pessoas em um mesmo
dia. Todos os personagens do filme são indivíduos comuns, vulneráveis, com
virtudes e defeitos em igual proporção. Assim, pessoas que, num momento, têm
atitudes desprezíveis podem, em outro, agir de maneira nobre e altruísta –
mas a ação altruísta é isolada, não tendo maior efeito sobre as regras do
jogo social. De igual forma, uma pessoa boa e amável pode, dependendo da
circunstância de exposição ao preconceito, cometer um crime hediondo.
Segundo Paiva (2006), a partir de filmes como Crash,
“podemos perceber como o cinema tem desnudado as dimensões mais recônditas
do estilo de vida americano, por vezes mostrando as ressonâncias regressivas
do princípio democrático, expressas através da simulação de cotidiano
insólito em que os indivíduos perderam as esperanças e, sem as bases éticas
de um princípio comunitário, partem para as atitudes [isoladas] de rebelião
e violência”.
Paradoxos da inclusão inconclusa
O filme Crash não possui uma trama central, mas
várias tramadas por contigüidade. Assim, tudo se une como um quebra-cabeça
de vários destinos que se chocam ou tocam aparentemente por acaso. Nesses
termos, um casal branco formado pelo promotor Rick (Brendan Fraser) e sua
esposa Jean (Sandra Bullock) são, logo no início do filme, assaltados por
uma dupla de negros (Larenz Tate e Ludacris). Paralelamente, existe uma
família persa, cuja loja é assaltada e depredada depois que o dono se
recusou a trocar uma porta com defeito, apesar das recomendações do chaveiro
hispânico Daniel (Michael Peña). Além disso, há o diretor negro de cinema
Cameron (Terrence Howard), cuja esposa negra é humilhada por um policial
truculento (Matt Dillon) em uma operação de revista na rua. Este policial
tem como parceiro de serviço o jovem policial Hanson (Ryan Phillippe), que
condena a atitude do colega em um primeiro momento, mas comete o
assassinato, motivado por preconceito racial, de um dos assaltantes negros
do início do filme que, ao final, revela ser o irmão mais jovem do
investigador de polícia interpretado por Don Cheadle que, por sua vez, tem
um relacionamento não assumido publicamente com uma investigadora hispânica,
que é a sua parceira de trabalho.
A tônica do preconceito é apresentada primeiramente com a
dupla de assaltantes negros, Anthony e Peter. Na cena em questão, eles
aparecem caminhando na rua e discutindo sobre alguns dos problemas que sua
raça enfrenta em praticamente todos os âmbitos da sociedade. Esta conversa é
bastante interessante e representativa:
“- Viu algum branco esperar 1h32m por um prato de espaguete?
Aquela mulher servia café para todos os brancos à nossa volta, mas nos
perguntou se queríamos?
- Eu não queria tomar e você muito menos. Isso é prova de
discriminação?
- Notou que a camareira era negra? As mulheres negras não têm
estereótipos? Me diga quando foi a última vez que conheceu uma que não te
falou o que queria antes de abrir a boca? Aquela garçonete tirou-nos a pinta
em dois segundos. Somos negros e os negros não dão gorjeta. Por isso, ela
não ia perder tempo.
- E alguém gosta disso? Não dá pra fazer nada pra mudar a
cabeça deles. Quanto você deu de gorjeta?
- Você espera que eu pague por este tipo de serviço?”
Nesta cena, os personagens fazem a interessante observação de
que os piores empregos da lanchonete são exercidos pelas pessoas negras,
fato que ocorre com freqüência mesmo em um país desenvolvido economicamente
como os EUA. Outro tema levantado na fala é a diferenciação entre os
salários de brancos e negros: ganhando menos, estes últimos não possuem
recursos suficientes sequer para pagarem uma gorjeta à garçonete, o que
explica a sua preferência em atender aos primeiros. A discussão segue
adiante, desnudando ainda mais a sua afirmação:
“- Espera... Viu o que aquela mulher fez?
- Não começa... Olhe à sua volta.
- Você não conseguiria achar uma área da cidade mais branca,
segura e iluminada. E, mesmo assim, essa branquela vê dois negros que
parecem universitários caminhando pela calçada e a sua reação é de medo?
Olhe para nós. Por acaso usamos roupas de assaltantes? Não. Parecemos
ameaçadores? Não. É... Se alguém deveria ter medo por aqui, somos nós! Somos
os dois únicos negros rodeados por um mar de brancos com excesso de cafeína
e patrulhados pela violenta polícia de Los Angeles.
- Então me responda. Por que não estamos apavorados.
- Por que temos armas?
- Talvez você tenha razão”.
A cena em questão é significativamente polêmica, porque
mostra, num primeiro momento, a dupla de assaltantes descrevendo a repressão
e a discriminação do negro na sociedade; no entanto, num segundo momento,
eles próprios “confirmariam” haver “fundamento” na desconfiança dos
“brancos” ao realizarem um assalto à mão armada contra o carro do promotor
Rick e sua esposa Jean. Com o avanço da narrativa, o diretor tenta nos
mostrar que todos os personagens de alguma forma procuram encontrar um lugar
seguro num mundo repleto de intolerâncias; por isso, a sensação de cansaço e
vulnerabilidade é constante nos personagens, que precisam, de alguma
maneira, extravasar as suas ansiedades e reinventar fantasias autoprotetoras.
A incerteza dos imigrantes e o desejo de segurança
Uma das tramas mais tocantes do filme é a que envolve o
personagem hispânico Daniel. Ele possui uma filha chamada Elizabeth, que se
esconde debaixo da cama por ter medo das balas perdidas que escuta à noite,
embora estejam agora vivendo num bairro mais seguro e urbanizado. Ela conta
este fato a seu pai, que lhe dá de presente uma capa invisível para
“protegê-la”. Daniel sofre preconceito duas vezes no mesmo dia.
A primeira vez é quando realiza um trabalho na casa do
promotor Rick, pois foi contratado para trocar as fechaduras devido ao
choque-pânico de Jean depois da traumática experiência do assalto. Esta,
discutindo com o marido, começa a desconfiar de todos ao seu redor –
inclusive da sua empregada, que é hispânica – e, ao ver Daniel executar o
serviço na sua porta, nota as suas tatuagens e imagina que ele pertenceria a
uma gang de traficantes e, portanto, que ele poderia manter para si
cópias das chaves das novas fechaduras. Outro fato interessante nesta cena é
que o promotor está lançando sua candidatura para um cargo no governo e
espera contar com os votos da comunidade negra. Sendo assim, se fizesse
queixa contra a dupla de assaltantes negros e se isso viesse a público,
temia perder os votos das “minorias”. Daí o seu cinismo político:
“Por que esses caras tinham de ser negros? Muito bem. Se não
podemos esconder essa coisa, nós teremos de neutralizá-la. Precisamos de uma
foto minha para condecorar um negro com uma medalha para reverter a
situação”.
Segundo o crítico de cinema Pablo Villaça,
“O filme de Paul Haggis não discute apenas o preconceito, mas
também uma de suas causas (e, simultaneamente, conseqüências): a violência
absurda que ameaça a todos nos dias de hoje. Em certo momento, a personagem
de Sandra Bullock desabafa: ‘Eu sinto raiva o tempo todo!’. E é claro que
ela sente assim: Como podemos manter a serenidade vivendo em uma sociedade
na qual nossas crianças, em vez de temerem o ‘bicho-papão’ ou o ‘boi da cara
preta’, sentem medo de balas e de estupradores?” (VILLAÇA, 2005)
A segunda vez em que Daniel sofre preconceito é quando está
trocando as fechaduras na loja do comerciante persa Golzari, que anda
assustado com a onda de violência contra muçulmanos. Após realizar o
serviço, Daniel relata ao comerciante que, para que a loja fique segura
realmente, será preciso que ele troque toda a porta e não apenas a
fechadura. Golzari discorda, dizendo que a porta é segura e recusa-se a
trocá-la. No entanto, a recusa de Golzari não é motivada somente por seu
preconceito em relação ao hispânico (pensou que Daniel queria tirar vantagem
de sua fragilidade), mas também por sua dificuldade de entender os
argumentos, em perfeito inglês, do chaveiro Daniel. Notando o raivoso
preconceito, misturado à incapacidade lingüística de Golzari, Daniel
recusa-se a receber o seu dinheiro.
Assim, no dia seguinte, quando Golzari reabre a loja, percebe
que foi assaltado, e que sua loja está repleta de pichações com mensagens
contra estrangeiros na região. Contudo, o filme não deixa claro se houve a
presença de grupos organizados ou se foi um ato isolado. A ironia dramática
ocorre porque o(s) assaltante(s) entrara(m) na loja pela porta que deveria
ter sido trocada, segundo a sugestão feita por Daniel. Sendo de origem
persa, a fala de Golzari quando vê sua loja destruída soa até engraçada: “Olhe
o que eles escreveram. Pensam que somos árabes. Quando que os persas se
tornaram árabes?”. Segundo a psicóloga Santina Rodrigues, este
personagem, “por ser persa confundido com árabe, está sempre exasperado em
suas frustradas tentativas de comunicação. No fundo, ele tem sempre a
impressão de que está sendo passado para trás” (RODRIGUES, 2006). Ela
continua: “No mundo muçulmano, não é possível reduzir todas as diferentes
tribos ou culturas a um único nome: árabe!” (RODRIGUES, 2006).
A questão dos imigrantes é um tema complicado, pois,
acreditando na utopia que poderiam ter condições de vida melhor em outro
país, inúmeras pessoas trocam seus lares pela incerteza de um futuro mais
promissor em outro país. Contudo, dificilmente alcançam aquilo que
imaginaram; pelo contrário, vivem precariamente e sempre com medo. Sobre
este assunto, Edmilson Marques afirma:
“Ao chegar aos EUA, as pessoas logo percebem que o ‘que
sonhavam’ sobre o país das ‘maravilhas’ nada mais era do que um pensamento
falso, uma ideologia. Sentem logo de imediato o impacto cultural e a
preponderância dos valores fetichistas. Alguns conseguem se integrar à
sociedade e viver as intensas contradições, tensões e solidão – sentimentos
presentes tanto nos norte-americanos quanto nos imigrantes”. (MARQUES, 2006,
p. 19)
De posse de uma arma carregada por sua filha, sem que
soubesse, com balas de festim, Golzari vai até a casa de Daniel e o acusa
pelo roubo. Durante a discussão, Golzari aponta a arma para Daniel.
Elizabeth, que havia acabado de chegar da escola particular em que estudava,
acreditando estar protegida pela capa mágica, corre para pular na frente do
pai para protegê-lo. Quase involuntariamente, Golzari dispara a arma pelas
costas de Elizabeth, que não sofre nenhum dano. Atônito, Golzari fica parado
na rua, enquanto Daniel corre desesperadamente com a filha nos braços para
dentro de casa. Golzari imagina que Elizabeth é seu anjo da sorte. As
fantasias autoprotetoras de Elizabeth e de Golzari se nivelam
dramaticamente, compensando o sentimento de insegurança e desconfiança entre
pessoas reciprocamente estranhas.
Ryan e o paradoxo humano
O policial Ryan é talvez o personagem que demonstra melhor a
tese central de Haggis, qual seja: sob determinada situação, as pessoas se
transformam. Na primeira vez em que ele nos é apresentado, está patrulhando
uma avenida e pára o carro de luxo do diretor de cinema Cameron e sua esposa
Christine. O casal estava dentro da lei, mas Ryan exagera na hora da revista
e abusa da esposa do diretor, que acompanha desesperado tal agressão, mas
sem se opor fisicamente à atitude invasiva da mão de Ryan.
Passadas algumas cenas, ele aparece salvando Christine de um
acidente automobilístico. Tal acidente foi uma conseqüência indireta do
abalo emocional de Christine perante a forma como Camaron lidou com a
situação de abuso de Ryan. Em certa medida, sem saber, Ryan impediu que
Christine sofresse um efeito mais destrutivo sobre a sua existência do seu
próprio abuso de autoridade. Assim, Paul Haggis defende que a questão do
preconceito tem ligação direta com as relações de poder, que surgem e se
desfazem a cada encontro de acordo com as circunstâncias.
Como já foi dito, o filme Crash explora uma
forma de montagem que é comum em filmes nos quais se cruzam histórias
contíguas que terminam ao mesmo tempo. Nem todos os críticos de cinema
concordam com esta linguagem. Para André Bazin (1955), “o cinema deveria
exprimir a realidade do mundo, registrando a especialidade dos objetos e o
espaço que eles ocupam, sem uso de artifícios e respeitando sua unidade” (BAZIN,
1955, p. 17-18). Ora, mas isso é supor que haja uma forma de linguagem que
consiga expressar de forma neutra a realidade; é esquecer que as formas de
montagem são a espinha dorsal da linguagem cinematográfica.
Afinal, um filme cinematográfico não é um documentário ou um
telejornal – e mesmo estes são impossíveis sem recorte e montagem. A
montagem cria o significado para cada fotograma. Em Crash, a
opção pela contigüidade demonstra uma intenção de não criar uma solução
simplificada para os problemas raciais nos EUA, mas sim expô-los em sua
complexidade filigranática. No entanto, o que poderia ser questionado é se
determinada forma cinematográfica que pretenda fazer denúncia social é
eficaz em criar um efeito efetivo de engajamento na luta contra valores,
princípios e idéias associados à discriminação racial.
Bibliografia
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Cahiers du Cinéma, n° 44, fevereiro
1955, pp.17-18.
BERNADET, Jean-Claude. O
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IANNI, O. A Questão Racial.
Com Ciência, 12/03/2003. (Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/negros/11.shtml).
MARQUES, E. Estados Unidos:
Uma Opção de Vida. Sociologia, nº 2, janeiro 2006, pp.14-19.
PAIVA, C. C.. “O Estado,
o poder, e a Comunicação no Cinema: As telas do Brasil, Estados Unidos e
Europa”. In http://www.bocc.ubi.pt/pag/paiva-claudio-cardoso-estado-poder-comunicacao-cinema.pdf
RODRIGUES, S.. “Crash:
a psicologia analítica no limite entre o particular e o coletivo”.
In http://www.rubedo.psc.br/artigosc/crash.htm.
VILLAÇA, P.. Crash – No Limite. Cinema em
Cena, 20/10/2005. (Disponível em: http://www.cinemaemcena.com.br/frm_equipe_lista.aspx?tipo=equipe&menu=0)
por JULIO CÉSAR LOURENÇO