“A vida humano-societária é uma luta
infinita contra os estranhamentos, ou seja, essa luta coincide com a
infinitude do processo de hominização”.
J. Chasin
Apresentação
O objetivo desse texto é apresentar, de forma sucinta, a
problematização sobre o capítulo da alienação da Ontologia do ser social
de Lukács. Expor os nexos ontológicos entre alienação e desenvolvimento da
personalidade humana é o interesse nuclear. É necessário alertar também, que
longe de esgotar o tema, esse texto pretende apenas contribuir para
discussão que envolve essa temática, além de indicar apenas alguns tópicos
mais essenciais da teoria lukacsiana. Pois, a discussão da teoria da
alienação, nos dias atuais, é tão grande e complexa quanto polêmica. Assim,
esta é apenas umas das interpretações possíveis de um fenômeno tão presente
e tão desumanizador nas relações humanas modernas.
Hegel, Feuerbach e Marx: Uma pequena análise da trajetória
da teoria da alienação que desemboca em Lukács
A discussão a respeito da alienação
ocupa um lugar muito importante na tradição da filosofia clássica alemã.
Pesquisar as fontes de sua origem e compreender suas articulações foram
preocupações constantes nos estudos acerca das manifestações da
subjetividade e da constituição social. Considerar o complexo da alienação
como uma tendência dominante deste século ou considerá-lo como produto das
relações sociais – e que, portanto, pode ser superado de acordo com a forma
com que as relações humanas se estabelecem – é uma tarefa cara à filosofia,
principalmente ao idealismo alemão. Na filosofia hegeliana essa questão
aparece claramente.
Hegel compreende o movimento de constituição do ser social
como movimento contraditório que se passa no interior da consciência. Em sua
Fenomenologia demonstra esse movimento em que o homem se autogera
como processo, a objetivação como desobjetivação, como alienação e
superação dessa alienação, considerando o trabalho de forma essencial e
concebendo o homem objetivado, ou seja, como resultado do seu próprio
trabalho. Nesse movimento contraditório inerente ao ser humano, a
objetivação se consolida sempre como perda, assim, como alienação. Esse
trabalho é o trabalho do espírito que se consolida como próprio fundamento
do ser. O movimento que se constitui na vida humana é aquele do espírito que
supera a consciência pela autoconsciência. É a superação da propriedade
material na idéia e a busca do espírito como a forma única de ser do homem,
portanto, o sujeito-objeto idêntico. O trabalho humano que produz o mundo
humano é espiritual, o da ação filosófica. O mundo humano, para Hegel, é
justamente o mundo do espírito.
Essa questão aparece de forma oposta em Marx, principalmente
nos Manuscritos econômico-filosóficos, onde trata de forma ampla
sobre essa temática. Marx analisa a crítica que Feuerbach faz a Hegel e a
toma como ponto inicial. Feuerbach, em A essência do cristianismo,
afirma:
Hegel parte do estranhamento da perspectiva da lógica – do
infinito, do universal (abstrato) da substância absoluta e fixa; isto é,
dito em termos populares, parte da religião e da teologia. Segundo: supera o
infinito, põe o verdadeiro, o sensível, o real, o finito, o particular
(filosofia, superação da religião e da teologia). Terceiro: supera de novo o
positivo, restabelece a abstração, o infinito (restabelecimento da religião
e da teologia). (MARX, 1984)
Para Feuerbach, então, Hegel nega e restaura a abstração da
qual parte. Essa negação se dá pelo fato de precisar de uma certeza sensível
para se autoconfirmar, visto que apenas enquanto abstração não sustenta a si
mesma. Desta forma, Feuerbach diz que Hegel parte do estranhamento,
justamente porque parte da abstração enquanto oposição ao mundo sensível, de
um giro que coloca como momento primeiro a lógica. Já que para Hegel o homem
como ser objetivo só pode realizar a coisa abstrata, a autoconsciência é a
abstração do homem. Assim, essa coisa realizada pelo homem é autoconsciência
alienada, pois, é ela mesma dada fora de si. Tendo clara a crítica de
Feuerbach a Hegel, Marx poderá demonstrar que o movimento da realidade não
está situado no próprio pensamento, aquele pensamento que tem como gênese a
oposição ao mundo concreto e ao ser efetivo.
Marx afirma que é "perfeitamente compreensível um ser vivo,
provido e dotado de forças essenciais objetivas (...) ter objetos reais e
naturais de seu ser e igualmente sua auto-alienação ser o assentamento de um
mundo real, mas sob a forma de exterioridade (...) que não pertence ao seu
ser e que ele não domina” (MARX, 1984) Assim, para Marx, ao se partir do ser
objetivo a auto-alienação é o produto de um mundo real exteriorizado, ou
seja, como algo diferente de si, como formas objetivadas que se confrontam.
A autoconsciência, de forma oposta, através de sua alienação realiza apenas
uma coisa abstrata, e não uma coisa concreta, objetiva, pois todo movimento
se passa no interior do pensamento.
Para Marx, a relação entre apropriação e objetivação não se
realiza no pensamento, mas ocorre de forma a promover o processo de
genericidade do ser social, quando este se apropria de sua realidade
exterior e o transforma de forma a adequá-lo a seus interesses e
necessidades. Porém, principalmente na sociedade moderna essa relação
torna-se estranhada, pois, segundo Marx, o homem passa a não se reconhecer
em sua atividade. Assim, a apropriação humana da natureza e das
objetividades torna-se, para o trabalhador, alienação. Como diz Marx: "a
apropriação do objeto se manifesta a tal ponto como estranhamento que quanto
mais objetos o trabalhador produzir tanto menos ele pode possuir e mais se
submete ao seu produto...”. (MARX, 1984)
Perde-se assim a conexão concreta entre a produção e a vida
do trabalhador e, para Marx, isso se deve ao fato de: "o trabalhador se
relacionar com o produto de seu trabalho como a um objeto
estranho. Por isso a hipótese evidente: quanto mais o trabalhador se
exterioriza em seu trabalho, mais o mundo estranho, objetivo, que ele criou,
torna-se poderoso diante dele, tanto mais empobrece a si e a seu mundo
interior, tanto menos é dono de si próprio". (MARX, 1984) Assim, quanto mais
o homem constrói um mundo enriquecido materialmente, tanto mais ele produz
um espírito humano miserável. Essa é a manifestação objetiva do próprio
trabalho: "o produto é, de fato, a síntese da atividade, da produção, se,
por conseguinte, o produto do trabalho é alienação, a própria produção deve
ser alienação em ato, a alienação da atividade, a atividade da alienação...”
(MARX, 1984). Essa alienação da atividade, atividade da alienação somente
pode ser superada, para Marx, quando os trabalhadores tiverem controle
consciente e livre dos meios de produção, portanto, somente quando a
humanidade se emancipar da exploração do homem pelo homem.
Um rápido delineamento dos princípios da tematização sobre
a categoria da alienação em Lukács
Lukács, seguindo na mesma esteira de Marx, também analisa a
categoria da alienação. Ele estabelece essa discussão com base num longo
debate travado na filosofia, porém, com os olhos fixos nos antagonismos de
seu tempo. Seu estudo se coloca em um momento em que lutar contra as
alienações – “das relações inter-humanas na sociedade moderna, na qual os
indivíduos são reduzidos cada vez mais ao papel de objeto e
despossuídos de suas capacidades eminentemente subjetivas de
autodeterminação...” (TERTULIAN, 2001, p. 32) – é fundamental para garantir
o pleno desenvolvimento das amplas capacidades humanas (subjetivas e
objetivas). É necessário mencionar que Lukács elabora sua primeira
significativa análise sobre a teoria da alienação em História e
Consciência de Classe. Nesse período nosso autor ainda se mantém muito
próximo da tematização hegeliana, um marxismo hegelianisado. Numa passagem
de História e consciência de classe, ao tratar do rompimento do
fenômeno da reificação (categoria que, ao se tornar “socialmente relevante”,
conduz a formas de alienação no capitalismo) nosso autor afirma:
(...) em primeiro lugar, que esse rompimento é possível
apenas como conscientização das contradições imanentes do próprio processo.
Apenas quando a consciência do proletariado é capaz de indicar o caminho
para o qual concorre objetivamente a dialética do desenvolvimento, sem no
entanto poder cumpri-lo em virtude da sua própria dinâmica, é que a
consciência de proletariado despertará para a consciência do próprio
processo; somente então o proletariado surgirá como sujeito-objeto idêntico
da história, e a sua práxis se tornará uma transformação da realidade. Se o
proletariado for incapaz de dar esse passo, a contradição permanecerá sem
solução (...) (LUKÁCS, 1923, p. 391).
Nessa passagem, fica claro como nosso autor utiliza a teoria
hegeliana da identidade sujeito-objeto para mesclar com a abordagem marxiana
das classes sociais e afirmar que a superação da sociedade reificada se dará
apenas com a elevação da consciência de classe do proletariado.
Análise que o próprio autor abre mão posteriormente, como
afirma no prefácio a outra edição de História e consciência de classe,
em 1967: “Ao publicar os documentos mais importantes dessa época
(1918-1930), minha intenção é justamente enfatizar seu caráter experimental,
e de modo algum conferir-lhe um significado atual na disputa presente em
torno do autêntico marxismo” (LUKÁCS, 1967). Porém, essa obra possui uma
enorme importância na trajetória da tematização marxiana acerca da teoria da
alienação, visto que, no percurso do marxismo oficial essa problemática não
possui destaque, sendo Lukács umas das raras exceções a conferir a essa
problemática a importância que tem nas análises das relações modernas.
Como já foi afirmado acima, Lukács abre mão de sua
tematização sobre a categoria da alienação tal como abordada em História
e consciência de classe. Em sua trajetória dentro do marxismo –
principalmente ao tomar conhecimento de uma obra de Marx chamada
Manuscritos econômico-filosóficos – se afasta cada vez mais da
influência hegeliana. Sua obra intitulada O jovem Hegel e os problemas da
sociedade capitalista, de 1948, já demonstra outra abordagem das
relações sociais que é coroada definitivamente com sua obra de maturidade
Para uma ontologia do ser social. Nesta obra, a tematização acerca da
alienação toma um caráter imensamente diferenciado de História e
consciência de classe. É sobre essa abordagem que iremos nos debruçar.
Lukács: A categoria da alienação sob o prisma da ontologia
do ser social
A teoria da alienação lukacsiana é fundamentada numa
ontologia.
Uma ontologia determinada pela atividade fundamental humana: o trabalho. O
trabalho, numa tematização lukacsiana, ao se constituir como a atividade
fundamental do ser social – que sempre gera necessidades para além de seu
próprio âmbito – permite uma complexificação cada vez maior desse ser. A
partir do trabalho, os homens podem formar sua personalidade enquanto
determinação singular específica. Porém, esta determinação é dada de forma
ontológica, articulada com a totalidade social. Assim, somente a
personalidade humana é formada e transformada. Seu estatuto de mutabilidade
é conseqüência das condições produzidas pelo homem social, é produto da
autocriação humana. É justamente no processo de socialização – através da
apropriação da riqueza produzida pela humanidade – que a subjetividade
forma-se rica. Desta maneira, ao passo que o homem produz as relações
humanas histórico-concretas e as apropria, torna-se produto de sua própria
atividade. É na forma histórica específica do capitalismo – na forma da
“divisão do trabalho, troca, propriedade privada” – que a atividade humana
se torna trabalho assalariado. Ao contrário de ser uma atividade que
constrói uma subjetividade rica, o trabalho torna-se alienado. O homem
torna-se escravo do que produz.
Desta forma, as objetivações, que deveriam expressar o pleno
desenvolvimento das capacidades humanas se transmutam em desumanidades
criadas pelos próprios homens. Esses entraves à constituição sócio-genérica
do devir humano são também denominados por Lukács de alienação. O complexo
da alienação é, afirma Lukács logo no início do IV capítulo de Para uma
ontologia do ser social:
(...) um fenômeno exclusivamente histórico-social, que se
apresenta em determinada altura do desenvolvimento existente, e a partir
desse momento, assume na história formas sempre diferentes, cada vez mais
claras. Logo, sua constituição não tem nada a ver com uma condition
humaine geral e tanto menos possui uma universalidade cósmica (LUKÁCS,
1976, p. 501).
Assim, Lukács está afirmando que o fenômeno da alienação não
é um complexo supra-histórico, mas um complexo de caráter sócio-histórico
que adquirindo formas particulares se evidencia de acordo com momentos
historicamente determinados. A alienação, em todas as circunstâncias, se
compõe no interior da esfera econômica da sociedade, sendo completamente
articulada ao nível de desenvolvimento das forças produtivas e à maneira
como são estabelecidas as relações de produção. Porém, esse é apenas o lugar
que esse complexo ocupa ontologicamente. Sua essência objetiva está
justamente na forma em que se realiza, nos respectivos momentos históricos,
aquela relação antagônica entre ampliação das potencialidades humanas e
desenvolvimento das forças produtivas.
É necessário colocar como primeiro plano de análise a
contradição fundamental que já foi apontada acima. Isso nos leva ao fato de
que o aumento das capacidades humanas inerentes ao desenvolvimento das
forças produtivas se transforma sempre em condições historicamente
determinadas, em entraves ao devir da personalidade humana. A antítese
dialética estabelecida por essa contradição é o fundamento da alienação. Ela
se constitui na base de todas as formas em que se apresenta tal fenômeno. Na
dimensão ontológica essa contradição se apresenta de forma particular. No
entanto, independente de suas forma e conteúdo, essa contradição fundamental
entre desenvolvimento das capacidades humanas e formação da personalidade
sempre existirá. Quanto maior o desenvolvimento das forças produtivas, mais
clara se torna essa contradição.
Ao olhar para o mundo atual não há dificuldade em perceber
que ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da economia requer um
crescimento contínuo dos indivíduos, também produz um mundo onde a
desumanização atinge proporções nunca vistas antes na história da
humanidade. É necessário alertar que o que está em relevância aqui não é o
desenvolvimento das forças produtivas. Porém, ao reconhecer sua importância,
o pensador húngaro em Para uma ontologia do ser social demarca seus
limites ontológicos que se exprime no campo do desenvolvimento
econômico-social:
o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente
também desenvolvimento das capacidades humanas – aqui emerge plasticamente o
problema da alienação – o desenvolvimento das capacidades humanas não produz
obrigatoriamente aquele da personalidade humana. Ao contrário: justamente
potencializando capacidades singulares pode desfigurar, aviltar etc... a
personalidade do homem (LUKÁCS, 1976, p. 520).
Se o desenvolvimento das forças produtivas amplia de um lado
as capacidades individuais e faz nascer, por outro lado, em larga medida, a
reprodução da desumanidade, percebe-se aqueles limites ontológicos
perduráveis a tal desenvolvimento sobre os quais já falamos e que funda a
contradição entre o crescimento das singulares capacidades humanas e o
crescimento de autênticas individualidades. Já que para Lukács nenhuma
personalidade é independente da sociedade na qual foi forjada, mas possui
uma relação ontológica, quanto mais um problema de alienação se revela na
autêntica individualidade de um homem, mais ele se confirma enquanto ser
genérico-social. A demonstração de Lukács dessa problemática fica mais clara
quando ele trata da questão da mulher, por exemplo. Ele nos diz que:
O problema de fundo da alienação está (...) na relação entre
homem e mulher, do auto-alienar-se de ambos, do recíproco alienar e
ser-alienado” cuja gênese está na sexualidade: a subalternidade sexual da
mulher constitui “um dos princípios basilares da sua subalternidade em geral
(p. 591).
Lukács recorda aqui a freqüência com que ocorre este tipo de
alienação no movimento operário, pois embora os homens lutem com paixão e
com sucesso contra as próprias alienações dos trabalhadores, na vida
familiar “alienam tiranicamente as suas mulheres”, dando origem, portanto, a
uma nova alienação de si mesmos. A razão disso está no fato de que entre o
desenvolvimento das capacidades dos homens singulares e aquele da sua
personalidade ocorrem diferenças qualitativas que nosso autor volta a
expressar aqui da seguinte maneira:
Em contradição com o processo primário imposto pelo
desenvolvimento das forças produtivas que se move com espontânea necessidade
(as diferenciações neste âmbito não podem, de fato, ser negadas, mas só em
casos excepcionais têm a ver um pouco mais de perto com a presente questão),
e no qual acima de tudo se formam, se transformam etc. capacidades
singulares, no segundo caso (ou seja, no desenvolvimento da personalidade)
a intenção da atividade humana deve dirigir-se à pessoa como totalidade
(LUKÁCS, 1976, p. 589).
Para Lukács, a verdadeira igualdade das mulheres no trabalho,
na família e nas várias esferas da sociedade deve ser conquistada a partir
do terreno próprio no qual tem sido bloqueada, o da própria sexualidade.
Isto implica não apenas lutar contra os impulsos alienantes derivados do
homem, mas deve igualmente apontar em direção à efetiva autolibertação
interior. A ideologia do “ter” representa “uma das bases fundamentais de
toda alienação humana”, e jamais será derrotada “se não for extinta a
subalternidade sexual da mulher”, conclui nosso filósofo.
Não obstante a importância deste momento de libertação
sexual, qualificado por Lukács como “relevantíssimo” em face da real
libertação das alienações, trata-se apenas de um momento que, isolado, não
trará qualquer benefício para a solução do problema de “tornar humanas as
relações entre os sexos”. Desta forma, “só quando os seres humanos tiverem
encontrado relações recíprocas que os unifiquem como entes naturais
(tornados sociais) e inseparavelmente como personalidades sociais, será
possível superar verdadeiramente a alienação na vida sexual” (p. 592).
Podemos então dizer que “a relação autêntica entre homem e mulher, o dar
plena vida à unidade entre sexualidade e ser homem, ser-personalidade, pode
concretizar-se somente na relação individual de um homem concreto com uma
mulher concreta” (p. 593).
No entanto, não será unicamente através de uma elevação da
personalidade humana para além da particularidade que o complexo da
alienação será superado já que são fenômenos determinados
histórico-socialmente. Ou seja, tratam-se de fenômenos objetivos que se
efetivam em situações sociais objetivas. Sua plena superação compreende,
assim, muito mais do que um esforço teórico; compreende, acima de tudo, uma
práxis. Práxis que deve ser engendrada no interior da própria sociedade
moderna, visto que é nessa sociedade que esse complexo assume uma forma cada
vez mais perversa e é levado às últimas conseqüências trazendo vários danos
e impedimentos ao processo de humanização. Por outro lado, não pode passar
despercebido que quanto mais o homem se limita a sua particularidade, mais
se torna incapaz de superar o complexo da alienação.
Desta forma, demonstra-se uma articulação indissolúvel entre
a alienação, o processo de individuação e deste com a sociabilidade. Isso
nos permite a conclusão de que indivíduo e sociedade só existem e se
reproduzem em permanente relação recíproca, pois no homem singular
encontram-se determinações do gênero humano na proporção em que o elemento
genérico inerente à categoria trabalho é um dos nexos que sintetiza a
individualidade.
Se se aceita que aquela contradição fundamental entre
desenvolvimento das capacidades humanas e desenvolvimento da personalidade é
o núcleo do fenômeno da alienação, aceita-se também que este último não
alcança a ampla totalidade do ser social, e ele não a rebaixa (exceto em
abordagens subjetivistas) a uma relação arbitrária entre subjetividade e
objetividade, entre indivíduo e sociedade.
De acordo com o que já foi abordado, toda a formação da
personalidade humana possui estatuto social em sua raiz e determinação
última. Assim, as relações que se realizam entre a totalidade social e os
atos singulares e que possuem na vida cotidiana suas expressões imediatas,
permitem que as ações particulares exprimam uma importância para além da
simples decisão individual. Contudo, "em circunstâncias normais" continua
evidente um campo de manobra onde as atitudes pessoais correspondem às
exigências das necessidades imediatas. Assim, fica clara a importância de
relevar além das determinações causais, o momento subjetivo, a consciência
que têm ou não as individualidades com relação ao fenômeno da alienação a
que estão submetidas no cotidiano do mundo dos homens.
Considerações finais
Hoje, mais do que em qualquer período da nossa história, a
discussão acerca da categoria da alienação e de sua realização na sociedade
moderna, de seu fundamento e conseqüências, é vital para a reflexão do
processo de torna-se homem do homem. Num mundo cuja produção e reprodução
de misérias se acentuam é necessário debruçar-se sobre os entraves que põem
limites ao livre processo de hominização do ser social na tentativa – e aí
reside uma grande dificuldade, não só teórica, mas prática – de combatê-los
ofensivamente. Os complexos alienantes que surgem em nossas vidas cotidianas
assumem uma forma cada vez mais espontânea e naturalizada. É comum a
tentativa de colocar problemas advindos das alienações como insuperáveis e
até mesmo necessários para o desenvolvimento pleno do homem.
Essa tomada das relações humanas desumanizadas como fenômenos
naturais e impulsionadores (apologistas do capital costumam alardear a
importância da competição como propulsora da criatividade e do progresso)
são expressões de um mundo em que as relações são mediadas diretamente, como
acertadamente diz Lukács, pela ideologia do “ter”, que significa “umas das
bases fundamentais de toda alienação humana”. Ideologia essa fundamentada
numa sociedade que efetiva a propriedade privada e que faz, do produto das
relações de produção, mercadorias para serem apropriadas através do ato da
venda.
Não só o produto objetivo da atividade humana é transformado
em mercadoria e, portanto, alienado, mas também as produções subjetivas se
exprimem de forma corrompida e degenerada. Basta perceber a indiferença
coletiva em relação aos milhares de famigerados forjados pelas desigualdades
sociais, “desigualdade ante as possibilidades da sobrevivência,
desigualdades ante a morte” (MANDEL, 1982, p. 12). A estética, as emoções,
os sentidos e as várias manifestações subjetivas, propriamente humanas,
passam por um enorme processo de fragmentação e enfraquecimento dadas as
circunstâncias unilaterais e reificadas nas quais são expressas. Vivemos
numa sociedade em que os homens estão dissociados de sua própria realização.
O desenvolvimento da sociedade nunca antes esteve de forma tão hostil
contrária à formação da individualidade humana. Enfim, a perspectiva de um
destino autenticamente humano em nenhum outro momento esteve tão submetido à
trivialidade do mercado, trivialidade que, inerente a essa formação
societária, constitui espiritualmente o momento histórico vivido.
É necessário, portanto, mais do que nunca estabelecer uma
práxis capaz de superar o estado de coisas atual e apontar para uma forma
societária em que o desenvolvimento das forças produtivas não signifique uma
deformação da personalidade humana. Pois, somente quando objetividade e
subjetividade coexistirem harmonicamente é que o homem se realizará
humanamente.
__________
Bibliografia:
CHASIN, J. Marx: Estatuto
Ontológico e Resolução Metodológica. In: TEIXEIRA, F. J. S.
Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio, 1995.
FEUERBACH, L. A Essência do
Cristianismo. Trad. José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1988.
HEGEL, G. W. F. A
Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis:
Vozes, 1992. 2 v.
LUKÁCS, G.
Per una Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1976 (Primeiro
capítulo – Trad. Ivo Tonet (mimeo); Quarto capítulo – Trad. Norma
Alcântara).
MANDEL, Ernest. Introdução
ao marxismo. Porto Alegre: Movimento, 1982.
MARX, Karl. Contribuição à
Crítica da Economia Política (Prefácio). São Paulo: Abril Cultural,
1985. (Os pensadores).
______. Manuscritos
Econômico-filosóficos. Lisboa: Ed: 70, 1984.
TERTULIAN, Nicolas.
Metamorfoses da filosofia marxista: a propósito de um texto inédito de
Lukács. Crítica Marxista, Campinas, n. 13, p. 29-44, 2001.
por ELAINE CRISTINA DOS SANTOS
LIMA