por ELAINE CRISTINA DOS SANTOS LIMA

Graduada em Filosofia da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

 

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A categoria da alienação em Lukács: uma contradição entre desenvolvimento da atividade produtiva e aviltamento da personalidade humana

Elaine Cristina dos Santos Lima

 

Resumo

A problemática desse artigo segue no sentido de analisar a partir de Lukács a gênese e estrutura da categoria da alienação, demonstrando assim que essa categoria trata-se de um complexo concernente ao mundo dos homens constantemente articulado com a totalidade social. Em Per una ontologia dell’essere sociale a categoria da alienação, expressa por Lukács, possui um caráter desumanizador no processo de formação humana realizado na sociedade moderna. É demonstrado, portanto, o que considera basilar no desenvolvimento da categoria em questão: por um lado, a elevação das potencialidades humanas proporcionada pelo desenvolvimento das forças produtivas e, por outro, o aviltamento cada vez mais intenso das individualidades, em condições históricas específicas.

Palavras chaves: Ontologia, Alienação, emancipação humana.

Abstract

The problematic of this article follows in the direction to analyze from Lukacs, the geneses and structure of the category of the alienation, demonstrating as soon as this category is about a complex related to the world of the men constantly articulated with the social totality. In Per una ontologia dell’essere sociale the category of the alienation, express for Lukács, it posses a no human character in the process of formation of the men like human being carried through in the modern society. It is demonstrated, therefore, what it considers fundamental in the development of the category in question: One hand the rise of the human beings potentialities proportionate for the development of the productive forces, on the other hand, the lowering each more intense time of the individualities, in specific historical conditions.

Keys word: Ontology, Alienation, human emancipation.

 

“A vida humano-societária é uma luta infinita contra os estranhamentos, ou seja, essa luta coincide com a infinitude do processo de hominização”.

J. Chasin

 

G. LukacsApresentação

O objetivo desse texto é apresentar, de forma sucinta, a problematização sobre o capítulo da alienação da Ontologia do ser social de Lukács. Expor os nexos ontológicos entre alienação e desenvolvimento da personalidade humana é o interesse nuclear. É necessário alertar também, que longe de esgotar o tema, esse texto pretende apenas contribuir para discussão que envolve essa temática, além de indicar apenas alguns tópicos mais essenciais da teoria lukacsiana. Pois, a discussão da teoria da alienação, nos dias atuais, é tão grande e complexa quanto polêmica. Assim, esta é apenas umas das interpretações possíveis de um fenômeno tão presente e tão desumanizador nas relações humanas modernas.

Hegel, Feuerbach e Marx: Uma pequena análise da trajetória da teoria da alienação que desemboca em Lukács

A discussão a respeito da alienação[1] ocupa um lugar muito importante na tradição da filosofia clássica alemã. Pesquisar as fontes de sua origem e compreender suas articulações foram preocupações constantes nos estudos acerca das manifestações da subjetividade e da constituição social. Considerar o complexo da alienação como uma tendência dominante deste século ou considerá-lo como produto das relações sociais – e que, portanto, pode ser superado de acordo com a forma com que as relações humanas se estabelecem – é uma tarefa cara à filosofia, principalmente ao idealismo alemão. Na filosofia hegeliana essa questão aparece claramente.

Hegel compreende o movimento de constituição do ser social como movimento contraditório que se passa no interior da consciência. Em sua Fenomenologia demonstra esse movimento em que o homem se autogera como processo, a objetivação como desobjetivação, como alienação e superação dessa alienação, considerando o trabalho de forma essencial e concebendo o homem objetivado, ou seja, como resultado do seu próprio trabalho. Nesse movimento contraditório inerente ao ser humano, a objetivação se consolida sempre como perda, assim, como alienação. Esse trabalho é o trabalho do espírito que se consolida como próprio fundamento do ser. O movimento que se constitui na vida humana é aquele do espírito que supera a consciência pela autoconsciência. É a superação da propriedade material na idéia e a busca do espírito como a forma única de ser do homem, portanto, o sujeito-objeto idêntico. O trabalho humano que produz o mundo humano é espiritual, o da ação filosófica. O mundo humano, para Hegel, é justamente o mundo do espírito.

Essa questão aparece de forma oposta em Marx, principalmente nos Manuscritos econômico-filosóficos, onde trata de forma ampla sobre essa temática. Marx analisa a crítica que Feuerbach faz a Hegel e a toma como ponto inicial. Feuerbach, em A essência do cristianismo, afirma:

Hegel parte do estranhamento da perspectiva da lógica – do infinito, do universal (abstrato) da substância absoluta e fixa; isto é, dito em termos populares, parte da religião e da teologia. Segundo: supera o infinito, põe o verdadeiro, o sensível, o real, o finito, o particular (filosofia, superação da religião e da teologia). Terceiro: supera de novo o positivo, restabelece a abstração, o infinito (restabelecimento da religião e da teologia). (MARX, 1984)

Para Feuerbach, então, Hegel nega e restaura a abstração da qual parte. Essa negação se dá pelo fato de precisar de uma certeza sensível para se autoconfirmar, visto que apenas enquanto abstração não sustenta a si mesma. Desta forma, Feuerbach diz que Hegel parte do estranhamento, justamente porque parte da abstração enquanto oposição ao mundo sensível, de um giro que coloca como momento primeiro a lógica. Já que para Hegel o homem como ser objetivo só pode realizar a coisa abstrata, a autoconsciência é a abstração do homem. Assim, essa coisa realizada pelo homem é autoconsciência alienada, pois, é ela mesma dada fora de si. Tendo clara a crítica de Feuerbach a Hegel, Marx poderá demonstrar que o movimento da realidade não está situado no próprio pensamento, aquele pensamento que tem como gênese a oposição ao mundo concreto e ao ser efetivo.

Marx afirma que é "perfeitamente compreensível um ser vivo, provido e dotado de forças essenciais objetivas (...) ter objetos reais e naturais de seu ser e igualmente sua auto-alienação ser o assentamento de um mundo real, mas sob a forma de exterioridade (...) que não pertence ao seu ser e que ele não domina” (MARX, 1984) Assim, para Marx, ao se partir do ser objetivo a auto-alienação é o produto de um mundo real exteriorizado, ou seja, como algo diferente de si, como formas objetivadas que se confrontam. A autoconsciência, de forma oposta, através de sua alienação realiza apenas uma coisa abstrata, e não uma coisa concreta, objetiva, pois todo movimento se passa no interior do pensamento.

Para Marx, a relação entre apropriação e objetivação não se realiza no pensamento, mas ocorre de forma a promover o processo de genericidade do ser social, quando este se apropria de sua realidade exterior e o transforma de forma a adequá-lo a seus interesses e necessidades. Porém, principalmente na sociedade moderna essa relação torna-se estranhada, pois, segundo Marx, o homem passa a não se reconhecer em sua atividade. Assim, a apropriação humana da natureza e das objetividades torna-se, para o trabalhador, alienação. Como diz Marx: "a apropriação do objeto se manifesta a tal ponto como estranhamento que quanto mais objetos o trabalhador produzir tanto menos ele pode possuir e mais se submete ao seu produto...”. (MARX, 1984)

Perde-se assim a conexão concreta entre a produção e a vida do trabalhador e, para Marx, isso se deve ao fato de: "o trabalhador se relacionar com o produto de seu trabalho como a um objeto estranho. Por isso a hipótese evidente: quanto mais o trabalhador se exterioriza em seu trabalho, mais o mundo estranho, objetivo, que ele criou, torna-se poderoso diante dele, tanto mais empobrece a si e a seu mundo interior, tanto menos é dono de si próprio". (MARX, 1984) Assim, quanto mais o homem constrói um mundo enriquecido materialmente, tanto mais ele produz um espírito humano miserável. Essa é a manifestação objetiva do próprio trabalho: "o produto é, de fato, a síntese da atividade, da produção, se, por conseguinte, o produto do trabalho é alienação, a própria produção deve ser alienação em ato, a alienação da atividade, a atividade da alienação...” (MARX, 1984). Essa alienação da atividade, atividade da alienação somente pode ser superada, para Marx, quando os trabalhadores tiverem controle consciente e livre dos meios de produção, portanto, somente quando a humanidade se emancipar da exploração do homem pelo homem.

Um rápido delineamento dos princípios da tematização sobre a categoria da alienação em Lukács

Lukács, seguindo na mesma esteira de Marx, também analisa a categoria da alienação. Ele estabelece essa discussão com base num longo debate travado na filosofia, porém, com os olhos fixos nos antagonismos de seu tempo. Seu estudo se coloca em um momento em que lutar contra as alienações – “das relações inter-humanas na sociedade moderna, na qual os indivíduos são reduzidos cada vez mais ao papel de objeto e despossuídos de suas capacidades eminentemente subjetivas de autodeterminação...” (TERTULIAN, 2001, p. 32) – é fundamental para garantir o pleno desenvolvimento das amplas capacidades humanas (subjetivas e objetivas). É necessário mencionar que Lukács elabora sua primeira significativa análise sobre a teoria da alienação em História e Consciência de Classe. Nesse período nosso autor ainda se mantém muito próximo da tematização hegeliana, um marxismo hegelianisado. Numa passagem de História e consciência de classe, ao tratar do rompimento do fenômeno da reificação (categoria que, ao se tornar “socialmente relevante”, conduz a formas de alienação no capitalismo) nosso autor afirma:

(...) em primeiro lugar, que esse rompimento é possível apenas como conscientização das contradições imanentes do próprio processo. Apenas quando a consciência do proletariado é capaz de indicar o caminho para o qual concorre objetivamente a dialética do desenvolvimento, sem no entanto poder cumpri-lo em virtude da sua própria dinâmica, é que a consciência de proletariado despertará para a consciência do próprio processo; somente então o proletariado surgirá como sujeito-objeto idêntico da história, e a sua práxis se tornará uma transformação da realidade. Se o proletariado for incapaz de dar esse passo, a contradição permanecerá sem solução (...) (LUKÁCS, 1923, p. 391).

Nessa passagem, fica claro como nosso autor utiliza a teoria hegeliana da identidade sujeito-objeto para mesclar com a abordagem marxiana das classes sociais e afirmar que a superação da sociedade reificada se dará apenas com a elevação da consciência de classe do proletariado.

Análise que o próprio autor abre mão posteriormente, como afirma no prefácio a outra edição de História e consciência de classe, em 1967: “Ao publicar os documentos mais importantes dessa época (1918-1930), minha intenção é justamente enfatizar seu caráter experimental, e de modo algum conferir-lhe um significado atual na disputa presente em torno do autêntico marxismo” (LUKÁCS, 1967). Porém, essa obra possui uma enorme importância na trajetória da tematização marxiana acerca da teoria da alienação, visto que, no percurso do marxismo oficial essa problemática não possui destaque, sendo Lukács umas das raras exceções a conferir a essa problemática a importância que tem nas análises das relações modernas.

Como já foi afirmado acima, Lukács abre mão de sua tematização sobre a categoria da alienação tal como abordada em História e consciência de classe. Em sua trajetória dentro do marxismo – principalmente ao tomar conhecimento de uma obra de Marx chamada Manuscritos econômico-filosóficos – se afasta cada vez mais da influência hegeliana. Sua obra intitulada O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista, de 1948, já demonstra outra abordagem das relações sociais que é coroada definitivamente com sua obra de maturidade Para uma ontologia do ser social. Nesta obra, a tematização acerca da alienação toma um caráter imensamente diferenciado de História e consciência de classe. É sobre essa abordagem que iremos nos debruçar.

Lukács: A categoria da alienação sob o prisma da ontologia do ser social

A teoria da alienação lukacsiana é fundamentada numa ontologia.[2] Uma ontologia determinada pela atividade fundamental humana: o trabalho. O trabalho, numa tematização lukacsiana, ao se constituir como a atividade fundamental do ser social – que sempre gera necessidades para além de seu próprio âmbito – permite uma complexificação cada vez maior desse ser. A partir do trabalho, os homens podem formar sua personalidade enquanto determinação singular específica. Porém, esta determinação é dada de forma ontológica, articulada com a totalidade social. Assim, somente a personalidade humana é formada e transformada. Seu estatuto de mutabilidade é conseqüência das condições produzidas pelo homem social, é produto da autocriação humana. É justamente no processo de socialização – através da apropriação da riqueza produzida pela humanidade – que a subjetividade forma-se rica. Desta maneira, ao passo que o homem produz as relações humanas histórico-concretas e as apropria, torna-se produto de sua própria atividade. É na forma histórica específica do capitalismo – na forma da “divisão do trabalho, troca, propriedade privada” – que a atividade humana se torna trabalho assalariado. Ao contrário de ser uma atividade que constrói uma subjetividade rica, o trabalho torna-se alienado. O homem torna-se escravo do que produz.

Desta forma, as objetivações, que deveriam expressar o pleno desenvolvimento das capacidades humanas se transmutam em desumanidades criadas pelos próprios homens. Esses entraves à constituição sócio-genérica do devir humano são também denominados por Lukács de alienação. O complexo da alienação é, afirma Lukács logo no início do IV capítulo de Para uma ontologia do ser social:

(...) um fenômeno exclusivamente histórico-social, que se apresenta em determinada altura do desenvolvimento existente, e a partir desse momento, assume na história formas sempre diferentes, cada vez mais claras. Logo, sua constituição não tem nada a ver com uma condition humaine geral e tanto menos possui uma universalidade cósmica (LUKÁCS, 1976, p. 501).

Assim, Lukács está afirmando que o fenômeno da alienação não é um complexo supra-histórico, mas um complexo de caráter sócio-histórico que adquirindo formas particulares se evidencia de acordo com momentos historicamente determinados.  A alienação, em todas as circunstâncias, se compõe no interior da esfera econômica da sociedade, sendo completamente articulada ao nível de desenvolvimento das forças produtivas e à maneira como são estabelecidas as relações de produção. Porém, esse é apenas o lugar que esse complexo ocupa ontologicamente. Sua essência objetiva está justamente na forma em que se realiza, nos respectivos momentos históricos, aquela relação antagônica entre ampliação das potencialidades humanas e desenvolvimento das forças produtivas.

É necessário colocar como primeiro plano de análise a contradição fundamental que já foi apontada acima. Isso nos leva ao fato de que o aumento das capacidades humanas inerentes ao desenvolvimento das forças produtivas se transforma sempre em condições historicamente determinadas, em entraves ao devir da personalidade humana. A antítese dialética estabelecida por essa contradição é o fundamento da alienação. Ela se constitui na base de todas as formas em que se apresenta tal fenômeno. Na dimensão ontológica essa contradição se apresenta de forma particular. No entanto, independente de suas forma e conteúdo, essa contradição fundamental entre desenvolvimento das capacidades humanas e formação da personalidade sempre existirá. Quanto maior o desenvolvimento das forças produtivas, mais clara se torna essa contradição.

Ao olhar para o mundo atual não há dificuldade em perceber que ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da economia requer um crescimento contínuo dos indivíduos, também produz um mundo onde a desumanização atinge proporções nunca vistas antes na história da humanidade. É necessário alertar que o que está em relevância aqui não é o desenvolvimento das forças produtivas. Porém, ao reconhecer sua importância, o pensador húngaro em Para uma ontologia do ser social demarca seus limites ontológicos que se exprime no campo do desenvolvimento econômico-social:

o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente também desenvolvimento das capacidades humanas – aqui emerge plasticamente o problema da alienação – o desenvolvimento das capacidades humanas não produz obrigatoriamente aquele da personalidade humana. Ao contrário: justamente potencializando capacidades singulares pode desfigurar, aviltar etc... a personalidade do homem (LUKÁCS, 1976, p. 520).

Se o desenvolvimento das forças produtivas amplia de um lado as capacidades individuais e faz nascer, por outro lado, em larga medida, a reprodução da desumanidade, percebe-se aqueles limites ontológicos perduráveis a tal desenvolvimento sobre os quais já falamos e que funda a contradição entre o crescimento das singulares capacidades humanas e o crescimento de autênticas individualidades. Já que para Lukács nenhuma personalidade é independente da sociedade na qual foi forjada, mas possui uma relação ontológica, quanto mais um problema de alienação se revela na autêntica individualidade de um homem, mais ele se confirma enquanto ser genérico-social. A demonstração de Lukács dessa problemática fica mais clara quando ele trata da questão da mulher, por exemplo. Ele nos diz que:

O problema de fundo da alienação está (...) na relação entre homem e mulher, do auto-alienar-se de ambos, do recíproco alienar e ser-alienado” cuja gênese está na sexualidade: a subalternidade sexual da mulher constitui “um dos princípios basilares da sua subalternidade em geral (p. 591).

Lukács recorda aqui a freqüência com que ocorre este tipo de alienação no movimento operário, pois embora os homens lutem com paixão e com sucesso contra as próprias alienações dos trabalhadores, na vida familiar “alienam tiranicamente as suas mulheres”, dando origem, portanto, a uma nova alienação de si mesmos. A razão disso está no fato de que entre o desenvolvimento das capacidades dos homens singulares e aquele da sua personalidade ocorrem diferenças qualitativas que nosso autor volta a expressar aqui da seguinte maneira:

Em contradição com o processo primário imposto pelo desenvolvimento das forças produtivas que se move com espontânea necessidade (as diferenciações neste âmbito não podem, de fato, ser negadas, mas só em casos excepcionais têm a ver um pouco mais de perto com a presente questão), e no qual acima de tudo se formam, se transformam etc. capacidades singulares, no segundo caso (ou seja, no desenvolvimento da personalidade) a intenção da atividade humana deve dirigir-se à pessoa como totalidade (LUKÁCS, 1976, p. 589).

Para Lukács, a verdadeira igualdade das mulheres no trabalho, na família e nas várias esferas da sociedade deve ser conquistada a partir do terreno próprio no qual tem sido bloqueada, o da própria sexualidade. Isto implica não apenas lutar contra os impulsos alienantes derivados do homem, mas deve igualmente apontar em direção à efetiva autolibertação interior. A ideologia do “ter” representa “uma das bases fundamentais de toda alienação humana”, e jamais será derrotada “se não for extinta a subalternidade sexual da mulher”, conclui nosso filósofo.

Não obstante a importância deste momento de libertação sexual, qualificado por Lukács como “relevantíssimo” em face da real libertação das alienações, trata-se apenas de um momento que, isolado, não trará qualquer benefício para a solução do problema de “tornar humanas as relações entre os sexos”. Desta forma, “só quando os seres humanos tiverem encontrado relações recíprocas que os unifiquem como entes naturais (tornados sociais) e inseparavelmente como personalidades sociais, será possível superar verdadeiramente a alienação na vida sexual” (p. 592). Podemos então dizer que “a relação autêntica entre homem e mulher, o dar plena vida à unidade entre sexualidade e ser homem, ser-personalidade, pode concretizar-se somente na relação individual de um homem concreto com uma mulher concreta” (p. 593).

No entanto, não será unicamente através de uma elevação da personalidade humana para além da particularidade que o complexo da alienação será superado já que são fenômenos determinados histórico-socialmente. Ou seja, tratam-se de fenômenos objetivos que se efetivam em situações sociais objetivas. Sua plena superação compreende, assim, muito mais do que um esforço teórico; compreende, acima de tudo, uma práxis. Práxis que deve ser engendrada no interior da própria sociedade moderna, visto que é nessa sociedade que esse complexo assume uma forma cada vez mais perversa e é levado às últimas conseqüências trazendo vários danos e impedimentos ao processo de humanização. Por outro lado, não pode passar despercebido que quanto mais o homem se limita a sua particularidade, mais se torna incapaz de superar o complexo da alienação.

Desta forma, demonstra-se uma articulação indissolúvel entre a alienação, o processo de individuação e deste com a sociabilidade. Isso nos permite a conclusão de que indivíduo e sociedade só existem e se reproduzem em permanente relação recíproca, pois no homem singular encontram-se determinações do gênero humano na proporção em que o elemento genérico inerente à categoria trabalho é um dos nexos que sintetiza a individualidade.

Se se aceita que aquela contradição fundamental entre desenvolvimento das capacidades humanas e desenvolvimento da personalidade é o núcleo do fenômeno da alienação, aceita-se também que este último não alcança a ampla totalidade do ser social, e ele não a rebaixa (exceto em abordagens subjetivistas) a uma relação arbitrária entre subjetividade e objetividade, entre indivíduo e sociedade.

De acordo com o que já foi abordado, toda a formação da personalidade humana possui estatuto social em sua raiz e determinação última. Assim, as relações que se realizam entre a totalidade social e os atos singulares e que possuem na vida cotidiana suas expressões imediatas, permitem que as ações particulares exprimam uma importância para além da simples decisão individual. Contudo, "em circunstâncias normais" continua evidente um campo de manobra onde as atitudes pessoais correspondem às exigências das necessidades imediatas. Assim, fica clara a importância de relevar além das determinações causais, o momento subjetivo, a consciência que têm ou não as individualidades com relação ao fenômeno da alienação a que estão submetidas no cotidiano do mundo dos homens.

Considerações finais

Hoje, mais do que em qualquer período da nossa história, a discussão acerca da categoria da alienação e de sua realização na sociedade moderna, de seu fundamento e conseqüências, é vital para a reflexão do processo de torna-se homem do homem.  Num mundo cuja produção e reprodução de misérias se acentuam é necessário debruçar-se sobre os entraves que põem limites ao livre processo de hominização do ser social na tentativa – e aí reside uma grande dificuldade, não só teórica, mas prática – de combatê-los ofensivamente. Os complexos alienantes que surgem em nossas vidas cotidianas assumem uma forma cada vez mais espontânea e naturalizada. É comum a tentativa de colocar problemas advindos das alienações como insuperáveis e até mesmo necessários para o desenvolvimento pleno do homem.

Essa tomada das relações humanas desumanizadas como fenômenos naturais e impulsionadores (apologistas do capital costumam alardear a importância da competição como propulsora da criatividade e do progresso) são expressões de um mundo em que as relações são mediadas diretamente, como acertadamente diz Lukács, pela ideologia do “ter”, que significa “umas das bases fundamentais de toda alienação humana”. Ideologia essa fundamentada numa sociedade que efetiva a propriedade privada e que faz, do produto das relações de produção, mercadorias para serem apropriadas através do ato da venda.

Não só o produto objetivo da atividade humana é transformado em mercadoria e, portanto, alienado, mas também as produções subjetivas se exprimem de forma corrompida e degenerada. Basta perceber a indiferença coletiva em relação aos milhares de famigerados forjados pelas desigualdades sociais, “desigualdade ante as possibilidades da sobrevivência, desigualdades ante a morte” (MANDEL, 1982, p. 12). A estética, as emoções, os sentidos e as várias manifestações subjetivas, propriamente humanas, passam por um enorme processo de fragmentação e enfraquecimento dadas as circunstâncias unilaterais e reificadas nas quais são expressas. Vivemos numa sociedade em que os homens estão dissociados de sua própria realização. O desenvolvimento da sociedade nunca antes esteve de forma tão hostil contrária à formação da individualidade humana. Enfim, a perspectiva de um destino autenticamente humano em nenhum outro momento esteve tão submetido à trivialidade do mercado, trivialidade que, inerente a essa formação societária, constitui espiritualmente o momento histórico vivido.

É necessário, portanto, mais do que nunca estabelecer uma práxis capaz de superar o estado de coisas atual e apontar para uma forma societária em que o desenvolvimento das forças produtivas não signifique uma deformação da personalidade humana. Pois, somente quando objetividade e subjetividade coexistirem harmonicamente é que o homem se realizará humanamente.

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Bibliografia:

CHASIN, J. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica.  In: TEIXEIRA, F. J. S. Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio, 1995.

FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Trad. José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1988.

HEGEL, G. W. F. A Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992. 2 v.

LUKÁCS, G. Per una Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1976 (Primeiro capítulo – Trad. Ivo Tonet (mimeo); Quarto capítulo – Trad. Norma Alcântara).

MANDEL, Ernest. Introdução ao marxismo. Porto Alegre: Movimento, 1982.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política (Prefácio). São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Os pensadores).

______. Manuscritos Econômico-filosóficos. Lisboa: Ed: 70, 1984.

TERTULIAN, Nicolas. Metamorfoses da filosofia marxista: a propósito de um texto inédito de Lukács. Crítica Marxista, Campinas, n. 13, p. 29-44, 2001.

 

por ELAINE CRISTINA DOS SANTOS LIMA

[1] Utilizaremos no presente artigo a tradução de entfremdung por estranhamento e entäusserung por alienação. Esta opção é feita por entendermos que é a que mais se aproxima da tematização marxiana na qual Lukács se apóia para desenvolver sua teoria.

[2] É importante salientar a complexidade que é o tratamento da ontologia nos dias atuais, fundamentalmente, quando se trata de uma referência marxista. O objetivo de uma ontologia marxista é compreender o processo de entificação do ser social e apontar quais os graus e conexões que lhe constitui. Desta forma, é necessário ter em vista que o resgate dessa ontologia, feita por Lukács, expressa a realidade objetiva da natureza e encontra o fundamento real do ser social ao mesmo tempo em que está a viabilizar “na sua simultânea identidade a diferença com a ontologia da natureza” como nos diz Scarponi (LUKÁCS, 1976). Apesar de todo o empenho de Lukács no resgate da explicitação do que é o ser social, e, portanto da análise de suas categorias as mais diversas, é fato o desconhecimento de sua filosofia de cunho ontológico por estudiosos da filosofia e das ciências humanas em geral

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.