Introdução
Os relatos históricos,
ao disporem a influência da religião em qualquer tempo e espaço, talvez
tenham viciado nossos espíritos e os tornado alvos fáceis de observações e
conclusões mal resolvidas. Pode-se valer de um compêndio do tipo “História
da Religião” e abstrair deste, proposições que se julgará substanciais. As
inúmeras barbáries da Igreja Católica Romana e as pressões do Protestantismo
sobre o indivíduo são anunciadas com base em elementos históricos, os quais
recebem coroação nas análises de praxe. Mas o que há de elementar nisso para
se compreender o valor que as idéias religiosas têm para o sujeito
religioso? Se o que se quer é provar que, no mundo moderno, uma instituição
religiosa é necessariamente bestializante, razoável seria atualizar os
pressupostos e elaborar um pensamento que tenha propriedades para
identificar concepções de mundo, ou seja, ver o mundo pela ótica do
indivíduo, pelos significados que este atribui ao real.
Está dada a metodologia. Nessa empreitada, a Antropologia
traduz-se como veículo que leva-nos por horizontes sinuosos e estreitos,
afastando-nos das interpretações prosaicas. A cultura é aqui tomada como
elemento que dá sentido às ações, em seu modo mais específico, próprio a
cada grupo dentro de uma sociedade. Interpretar significados equivale a
compreender como se configura determinada cultura ou, de outra forma, como
se move a práxis do indivíduo (GEERTZ, 1978, p. 15).
Manifesta-se aqui a defesa de uma análise que não parta do
pressuposto de que qualquer instituição religiosa - pelo menos no
cristianismo - exerce total domínio sobre as vontades de seus componentes,
em todas as instâncias, mas, orienta razoavelmente o pensamento destes. Ou
seja, os valores e práticas não são assimilados necessariamente de forma
arbitrária, posto que, com o evento da racionalização (BARBOSA e QUINTANEIRO,
1995, pp. 139-140), alguns ramos do Protestantismo se viram obrigados a
esclarecer o sentido que o texto bíblico tem para o cristão moderno. Seria
isso, em suma, uma contextualização, uma atualização dos dogmas. O que não
compromete sua base fundamental de interpretação, a qual seria dada a partir
dos textos bíblicos que formam o Novo Testamento.
Importante destacar que no Novo Testamento a fala e as ações
de Jesus Cristo denotam a formação de um novo amálgama de valores que a
religião cristã irá fazer uso no decorrer da posteridade. No entanto, nos
interessa aqui esclarecer que a partir dos séculos XX e XXI tem-se
presenciado um re-posicionamento dos dogmas do Protestantismo, uma ampliação
explicativa dos dogmas que redunda num maior detalhamento da função destes.
É claro, tal re-posicionamento não é quantificavel, mesmo porque ocorre em
frações localizadas e não em alta escala, como é clássico de se esperar.
A proposta que aqui se apresenta não se preocupa em explicar
o universal, mas defende um olhar mais atento e despido de toda bagagem
etnocêntrica para grupos que vivem segundo princípios que se costumar
rotular.
Partindo então desse eixo, tentar-se-á demonstrar que o
pensamento religioso moderno, especialmente um dos ramos da religião
protestante em sua vertente metodista, no que respeita à sexualidade, tem se
mostrado distinto em relação às análises que lhe são atribuídas. No
metodismo wesleyano, o problema do uso do corpo para o sexo assume um dos
lugares prioritários no pensamento do sujeito religioso, sujeito enquanto
autor de seus atos e co-responsável por suas conseqüências.
Tal crença religiosa tem por legítima a idéia de que pessoas
recebem influências da sociedade, mas, o indivíduo tem certo coeficiente de
autonomia sobre suas vontades, o que é traduzido no chamado “livre arbítrio”.
Nos interessa, portanto, definir que a liberdade sexual é balanceada pelo
bem que seus atos podem causar a si mesmo e pelo mal que estes podem causar
para si e para seu semelhante, ou mesmo para a sociedade. Nessa assertiva,
“bem” e “mal” não devem ser associados de forma alguma ao maniqueísmo,
revelam simplesmente uma relação de causa e efeito.
Há ainda outro fator de destaque que impulsiona a ação desses
indivíduos, qual seja, a vontade de “agradar a Deus”. Obviamente, tal
vontade tem suas raízes fundamentadas em toda uma cadeia de valores (BARBOSA
e QUINTANEIRO, 1995, pp. 107-111) que se preza e de experiências que se
vive, as quais nos impõem certas dificuldades, pois, como será possível
examinar um relacionamento entre um ser humano e uma entidade não carnal?
Pode-se assumir pelo menos duas posições: a primeira seria ridicularizar tal
relação e interpretá-la como simples resultado de uma vivência precária,
baseada em valores frívolos e débeis; a segunda seria tentar compreender
quais valores norteiam tal relação e, assim, buscar identificar no que isso
importa para a mobilização dos que defendem tal crença.
O presente artigo é fruto de uma etnografia realizada por
meio de entrevista com um líder comumente chamado de “pastor”, além de
informações obtidas por meio de livros e revistas editados por autores
metodistas. O entrevistado foi o Pr. Luiz Carlos Leite, líder da Igreja
Metodista Wesleyana da cidade de Maringá, estado do Paraná. Tal denominação
religiosa intitula-se como pentecostal e foi fundada em 1967, em Nova
Friburgo, Rio de Janeiro.
Podemos afirmar sumariamente que a compreensão das questões
aqui levantadas se revela importante, pois ajuda a desvendar o porquê da
ação humana mais exatamente numa conduta moral. Compreender isso equivale a
compreender a construção de um sujeito moral, sujeito de si, construtor de
uma ação que tem determinada racionalidade. Pois aquele que se priva de
sexo, o faz pensando em seu próprio bem e no bem do seu “semelhante”.
Um pouco de história
A Reforma Protestante (1521) teve como base a defesa da
Bíblia como autoridade máxima no reconhecimento da fé, livre de quaisquer
intermédios tradicionais. A salvação era considerada graça de Deus, o que
excluía a necessidade de penitências, procissões ou indulgências. Tais
reivindicações eram defendidas pelas três grandes correntes reformadoras
“respeitáveis”: os luteranos, calvinistas e anglicanos.
Por outro lado, o Protestantismo também teve a expressão de
suas idéias manifestada distintamente pela chamada “reforma comunal”.
Segundo o historiador Josep Fontana (2000, pg. 309, 310), “o conformismo
político e social das correntes da reforma dos príncipes” [luteranos,
calvinistas e anglicanos] levou à reação da chamada ‘segunda reforma’, que
expressava a reação dos grupos que queriam ir além”. Convém aqui reproduzir
trecho em que o historiador descreve a importância que essas dissidências
representaram:
(...) houve, entretanto, outra “reforma comunal”, que
propunha a autonomia da comunidade local, ao menos nas questões religiosas.
A fé era considerada nestes casos como uma questão pessoal, que não podia
ser colocada sob o controle de uma Igreja ou de um Estado, e os fiéis
exigiam o direito de nomear e destituir seus pastores. Os anabatistas,
chamados assim porque consideravam que o batismo devia ser recebido – ou
tornar a ser recebido – na idade adulta, com a plena consciência, liam, no
evangelho, o prognóstico de uma sociedade mais fraternal e igualitária,
propugnando idéias de renovação social que chegariam, inclusive, a uma
proposta de comunhão de bens, como a que se quis estabelecer no “reino dos
Santos” de Münster, principalmente, ou nas comunidades que tentaram
reconstruir a Nova Jerusalém na Moravia. Todos estes grupos foram ferozmente
perseguidos tanto por católicos quanto pelas correntes reformadoras
“respeitáveis”, assustados, uns e outros, pela ameaça radical que
representavam.
Dentre esses grupos, o que mais se destacou foi o Metodismo
de John Wesley, ainda segundo Fontana, o qual teve influência dos
anabatistas da Moravia.
A Igreja Metodista Wesleyana, foco de nosso estudo aqui, foi,
na realidade, uma dissidência da Igreja Metodista do Brasil. Esta última
caracterizava-se por um leque de doutrinas consideradas tradicionais.
Segundo relatos
de um dos bispos pioneiros da Igreja Metodista Wesleyana, a cisão com a
Metodista do Brasil ocorreu por falta de liberdade em expressar uma relação
mais próxima com Deus na forma das práticas de “orações com imposições de
mãos”, “expulsão de demônios”, “canto de corinhos” e “vigílias constantes”.
Ao que parece não houve sumariamente uma intenção de formar uma nova
denominação religiosa, conforme afirma o bispo Gessé Teixeira de Carvalho:
“Devido a tal situação, os metodistas avivados começaram a visitar algumas
igrejas cujas doutrinas eram pentecostais para que, no caso de uma sumária
exclusão da Igreja Metodista do Brasil, já teriam em vista uma outra”.
Isto possivelmente indica que a motivação real para a
desvinculação se deu por causa da intenção de livrar-se do tradicionalismo e
vincular-se a Deus de maneira “direta”. A institucionalização aparece aqui
como sendo uma conseqüência da organização dos religiosos em um agrupamento.
Max Weber (1983, pg.98-101) trata o Metodismo como
dissidência que contém em si algumas peculiaridades. A “relação” e a ênfase
em uma experiência sentimental para com a divindade, a prática religiosa
sistemática baseada em valores e livre da rigidez dogmática do Calvinismo e,
em especial, a emoção dirigida racionalmente para a perfeição.
Com base em Weber e Fontana assumimos algumas conclusões
sobre quais idéias o Metodismo, evidentemente inserido no contexto maior do
Protestantismo, passou a difundir a seus componentes. O simples fato de
Lutero defender a tradução da Bíblia para as línguas vulgares torna
acessível a qualquer cristão a leitura da mesma. Isto possivelmente produziu
uma desmistificação do livro sagrado, uma abertura que naquele momento
significou que era possível ter um pouco mais de liberdade na relação do
cristão com seu deus. Lembremos que não era somente a leitura que estava
acessível, mas também não era mais necessário recorrer a inúmeras tradições
simbólicas e exigências clericais, como a indulgência. Importa destacar isto
porque é razoável deduzir que o Metodismo privilegiou um contato espiritual
que se fazia a nível pessoal. O indivíduo não estava ligado mais à
instituição Igreja como o fazia no Catolicismo Romano, mas, como descreve
Fontana, exigia, agora, uma certa autonomia.
Sejamos sóbrios, não se pretende aqui afirmar que neste
momento histórico - nem atualmente - havia uma total autonomia por parte do
cristão protestante em relação à Igreja, mas a Reforma passou a dar vigor a
uma certa liberdade de pensamento que seria mais tarde alargada
involuntariamente, a saber, com o desenvolver do processo de racionalização,
que possivelmente fez com que as igrejas protestantes realçassem sua
interpretação dos textos bíblicos afim de justificar a falta de sentido que
o mundo passara a enfrentar.
Todos esses fatos históricos, com as modificações culturais
que o tempo e o espaço lhe causaram, contribuíram para a formação de uma
conduta moral. Se quisermos definir o que é o sexo para o protestante do
século XXI sem considerar que o mesmo está também inserido em um mundo
secular influenciado pela cultura de massa, pelo apelo ao erotismo, pelo
imediatismo, pelo efêmero, enfim, pela coisificação do humano, nossas
proposições ficarão limitadas e colocadas na reles superfície das relações
humanas concretas. A propósito, citando Max Weber, Clifford Geertz (1978,
pg. 15) define o que é para ele o conceito de cultura, e que, aliás, é sob
tal conceito que se embasa nossa proposta de análise e ilustra uma
preocupação com a pesquisa científica:
(...) o homem é um animal amarrado a teias de significados
que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma
explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na
sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer
por si mesma uma explicação.
Esta citação traduz as intenções aqui presentes.
O que se quer é então desvendar qual o significado dessa moral protestante,
em um grupo metodista específico. O que está subentendido na prática sexual
ponderada? Por que esperar para ter o contato sexual, e esperar o momento
certo? Que papel exerce o “outro” neste caso? Isto se definirá - ou não -
após examinar-se o caminho pelo qual o entrevistado nos fez traçar de acordo
com seu posicionamento diante das perguntas.
Liberdade x Depravação
“Prostituição,
impureza, lascívia (...)”.
A atribuição pejorativa à sexualidade no metodismo wesleyano vai estar
relacionada essencialmente ao exagero. Um dos veículos de propagação das
doutrinas da Igreja Metodista Wesleyana é a revista Explicando as
Escrituras, de uso educativo, utilizada na chamada Escola Bíblica Dominical
- EBD. A EBD acontece todos os domingos e firma-se como meio de instrução
substancial do cristão wesleyano. Esta observação é importante, pois os
conteúdos presentes nas lições e seus respectivos teores interpretativos são
captados por seus ouvintes e ou participantes como sendo uma espécie de
compilação da verdade, são a tradução dos dogmas em linguagem trivial. Em
uma das publicações da revista Explicando as Escrituras, com o tema Pureza
Moral, o autor da lição nº. 08 define o imoral como sendo algo excessivo:
“Um dos grandes sinais que perto está o julgamento divino sobre esta terra,
é a corrupção moral, sendo algo generalizado, a grande promiscuidade que
impera”.
Ainda sobre a revista Explicando as Escrituras, lições que
tratam da conduta do cristão de maneira geral referem-se à conduta ideal
como sendo aquela que sofre o processo da “santificação”, conforme definição
do bispo Sebastião Calegari: “Santificação é o ato de santificar. De modo
geral, podemos ver a santificação como um processo, cujo ponto inicial se dá
quando somos nascidos de novo e passamos a fazer parte da família de Deus”.
O processo de santificação é defendido pelos wesleyanos como sendo uma
separação do mundo secular para uma não-contaminação com este. Tal separação
não tem significado uma aversão ao mundo de forma geral, mas representa
estar inserido em determinado universo sem necessariamente participar de
alguns eventos deste. Ou seja, para o cristão wesleyano, ter uma vida sexual
santa seria não exercer a sexualidade pelos padrões seculares e sim de
acordo com a doutrina da santificação.
O “sexo” como exagero também pode ser encontrado na ênfase
indireta aos escritores bíblicos quando se referem à prática sexual indevida
como sendo aquela que extrapola, que se “apodera” do indivíduo e o faz
escravo dos prazeres. Esta proposição pode ser nitidamente demonstrada pelo
entrevistado na fala que se segue: (...) “a liberdade, não no sentido da
depravação sexual, mas a liberdade do uso da sexualidade pra receber do sexo
tudo aquilo que o sexo pode dar ao ser humano”.
O sexo aparece aqui como sendo algo essencialmente bom, mas
que deve ser utilizado de forma caracterizada como equilibrada. Em uma
biografia sobre o fundador do metodismo, o inglês John Wesley, Mateo
Lelièvre cita Carlos de Rémusat, estudioso do metodismo, o qual afirmou ser
John Wesley “um dos maiores modelos de santidade na vida ativa”. E outro
ponto da biografia, Lilièvre afirmava que “a oração ocupava lugar de
destaque na vida de Wesley. O segredo de seu grande domínio próprio”. Alguns
elementos são importantes aqui: é conferido ao fundador do metodismo um
caráter formado pelos princípios da santidade e também pelo domínio próprio.
Há uma ligação entre santidade e domínio próprio. De acordo com os
wesleyanos a santidade é um processo que acaba por separar o sujeito do
mundo secular e uma das conseqüências de tal separação é a liberdade através
do domínio de si ou do domínio próprio. Como já dissemos, a santificação é
um processo que permeará a conduta do indivíduo de maneira geral e
influenciará por conseqüência sua conduta sexual.
O apóstolo Paulo parece ser aquele que no Novo Testamento
mais se preocupou com uma conduta sexual bem equilibrada, enfatizando a
necessidade de o indivíduo ser sujeito de si no trato com os desejos
sexuais. Ser sujeito de si equivale a dominar os sentidos e as emoções a fim
de não ser presa sua. O homem deve olhar para o mundo de forma a ser guiado
para o projeto que o seu deus manifestou. Uma necessidade sistemática de se
santificar – separar – para influenciar aqueles que o rodeiam.
Liberdade como ponderação, como visão sóbria do mundo,
ancorada na idéia de um domínio de si. Mas essa tal liberdade só pode ser
alcançada com a proximidade que se tem com a divindade e mais
especificamente com a segunda pessoa da trindade, o Espírito Santo. Ao falar
aos coríntios sobre a nova aliança de Deus para com os homens, o apóstolo
Paulo afirma que “o Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito aí há
liberdade”.
Max Weber já dissera das características formadoras do
metodismo e uma delas seria a valorização de uma experiência sentimental com
a divindade. Observamos então que a conduta geral do cristão só vai ser bem
sucedida caso este firme um relacionamento estreito com Deus, a partir da
fé.
Lutero já defendia que a fé era o elo que ligava o humano ao
divino e conferia liberdade.(LUTERO, 1998, p. 31). Vê-se aqui uma busca pela aproximação à personalidade
de Deus, personalidade repleta de plenitude, de todos os adjetivos de que se
precisa. Tal fé não precisava mais do amparo das obras para que fosse
legítima e aceita por Deus. Desse modo, “a fé é feita de tal modo que quem
crê num outro, crê justamente porque considera o outro justo e verdadeiro”.
Mas a conduta moral também vai ser moldada por um princípio
global no cristianismo, a saber, “amarás a teu próximo como a ti mesmo”.
Os wesleyanos também vão difundir este princípio por acreditar que a conduta
deve ser levada de forma a existir uma valorização do “outro”. Isso se
reflete na fala do entrevistado ao defender o casamento como o lugar do
sexo: (...) “nós entendemos que o casamento é o local onde o sexo deve ser
consumado e deve ter toda a beleza que ele possa dar, todo o prazer que ele
possa dar a esse casal”.
O casamento vai ser o resultado de um relacionamento que
gradativamente vai sendo pensado com base nos valores da crença. O casamento
é o local próprio para o sexo porque reserva o equilíbrio - através da
monogamia -, a fé - pois é a expressão da vontade de Deus - e o amor ao
próximo - pois é entendido como o amor compartilhado. Assim, há no casamento
uma problematização do sexo no sentido de condicionar o prazer na sua forma
mais plena somente dentro do matrimônio. O período do namoro e do noivado
podem conter o amor, mas somente na sua forma inicial, a qual será
gradativamente levada a níveis mais profundos:
O início do namoro, do noivado, até chegar ao matrimônio é o
começo de tudo. Eu penso que o rapaz e a moça têm que começar a se entender
sexualmente também no começo do namoro. A coisa vai chegar ao seu ápice no
casamento, mas as coisas começam a partir daqui. Eles têm que aprender a se
beijar, e a se beijar bem. Eles têm que conversar sobre seus impulsos, até
porque como que eles vão saber o seu limite, um do outro, se eles não se
abrirem, não conversarem sobre isso? Porque se eles vão se resguardar para o
casamento, um e o outro tem que saber até onde pode ir e aonde não pode
tocar para que ambos se resguardem, pelo contrário é fogo e pólvora. E se
eles não conversarem sobre isso entre si abertamente vai ser muito difícil
que eles estabeleçam limites, vai ser muito difícil.
O pensar sobre o sexo se torna papel e dever para se chegar
ao relacionamento ideal, ou seja, ao casamento, o clímax do amor. Pensar,
refletir, dialogar. A sistematização da vida, um dos elementos do metodismo
desde sua raiz, é presente no trecho citado. A vida deve ser metodicamente
vivida para se alcançar uma espécie de excelência.
“Prazer, prazer e prazer”
É
clássica a interpretação que considera que o sexo é para o religioso um
enorme tabu, um assunto em que não se deve tocar. Nesses termos, os líderes
em geral valorizam a pureza em relação ao sexo também através do silêncio.
No entanto, a experiência desta pesquisa revelou outro comportamento:
“Nós somos seres que têm sentido, e o sentido do sexo é
prazer, o sentido do sexo é alegria, o sentido do sexo é uma série de
reações no corpo que faz com que um homem e uma mulher tenham a satisfação
de viverem juntos e é uma forma deles consumarem o amor que sentem um pelo
outro. (...) Então quando ele diz: ‘saciar-se os seios com os seios da
esposa e embriagar-se com as suas carícias’, nada mais é do que prazer,
prazer e prazer”. (Pr. Luiz Carlos Leite)
É
comum aceitarmos a tese de que o cristianismo como um todo
visualiza no sexo um simples e restrito potencial procriador da raça humana
e nada além. O prazer não tem valor, não é algo puro, correto, digno. Não é
o que parece no metodismo wesleyano - e possivelmente em outros ramos do
Protestantismo. Acima, na fala do entrevistado, o que há é uma exaltação aos
atributos do prazer: alegria, satisfação, amor. Ele ainda vai mais além,
fala do significado sexual do corpo, também considerado por muitos
pesquisadores um tabu intransponível para a cristandade protestante:
“saciar-se os seios com os seios da esposa e embriagar-se com suas
carícias”.
Estes trechos foram lidos pelo entrevistado, retirados do
“Cânticos dos Cânticos”, da Bíblia, e revelam uma relação positiva do
sujeito para com o corpo:
No capítulo 5, versículo 10 até o 16, a mulher faz uma
declaração específica sobre o corpo masculino do esposo, inclusive ela
menciona o sexo [órgão genital] do seu esposo aqui de forma figurada. E já
lá no capítulo 7 do versículo 1 até o versículo 9, o esposo faz a mesma
coisa, ele exalta a beleza física da sua esposa e toca na sexualidade de uma
forma muito bela, uma poesia hebraica muito linda.
A interpretação que o entrevistado dá ao texto bíblico nos
interessa. Não se percebe qualquer constrangimento ou recusa em se falar da
intimidade do corpo, de suas formas, do prazer que ele causa.
Ao contrário disso, ao falar da moral cristã dos primeiros
séculos, Michel Foucault (2001, pp. 84-85) vai afirmar que a substância
ética desta moral será definida “por um campo dos desejos que se escondem
nos arcanos do coração e por um conjunto de atos cuidadosamente definidos em
sua forma e em suas condições (...)”. Será que é possível definir a moral
dos grupos protestantes atuais desta mesma forma? É razoável que não.
Podemos ainda considerar a fala do pastor Silmar Coelho (2001, p. 15),
também da Igreja Metodista Wesleyana, que se manifesta sobre o problema dos
tabus sexuais:
Outra conseqüência é o tabu. O pudor radicalizado faz algumas
pessoas cometerem verdadeiros atos da idade da pedra. Proibidas, vigiadas e
acusadas, elas se sentem como que dentro de uma camisa-de-força. Fé, pureza
e sexo tornam-se então incompatíveis, antagônicos, inimigos. O erro vira
dogma, leis morais são criadas a partir de uma “revelação” distorcida e a
santidade do sexo é banalizada ou expurgada.
Talvez pareça que as conclusões que se propõem aqui defendam
que o pensamento do grupo estudado trata o sexo como sendo extremamente
natural e que por isso não há de qualquer modo uma moral normativa quanto a
sua prática. Lembremos que a liberdade sexual no metodismo wesleyano vai ser
caracterizada pela ponderação e o equilíbrio. Sendo assim, as normas morais
existem, mas não são arbitrárias como é de praxe considerar.
Além do mais, os próprios gregos, apesar de lhes ser
atribuída uma grande liberdade de costumes, pareceram demonstrar uma grande
reserva na representação dos atos sexuais que eles mostravam em obras
escritas ou até na literatura erótica (FOUCAULT, 2001, p. 39).
Então, a importância não está em reconhecer normas
proibitivas, mas em interpretar o porque delas.
O Cânticos dos Cânticos, da Bíblia, revela uma relação em que
há a valorização do “outro”. A referência à sexualidade, à sensualidade é
feita sem reservas pelo casal, como o próprio pastor descreve mais uma vez
em detalhes:
A esposa dizendo para o esposo no capítulo 5 de Cântico dos
Cânticos, ela diz assim: meu amado é alvo e rosado, mais distinguido entre
dez mil. A sua cabeça é como ouro apurado e os seus cabelos, cachos de
palmeira. São pretos como corvo. Os seus olhos são como os das pombas junto
às correntes das águas, lavados em leite e postos em engaste. As suas faces
são como um canteiro de bálsamo, como colinas de ervas aromáticas e os seus
lábios são lírios que gotejam mirra preciosa. As suas mãos, cilindros de
ouro embutidos de jacinto e o seu ventre como alvo marfim coberto de
safiras. As suas pernas, colunas de mármore assentadas em base de ouro puro
e o seu aspecto como o Líbano, esbelto como os cedros. O seu falar é
muitíssimo doce, sim, ele é totalmente desejável. Tal é o meu amado, tal o
meu esposo ou a filha de Jerusalém.
“Isso daqui nada mais é de que a sexualidade se manifestando
na sua forma mais bela essência”. Esta é a interpretação que se faz do
trecho acima. O corpo sendo exaltado “desde o cabelo até os pés”. Mas a
importância que se dá ao corpo não é desvinculada do princípio moderador que
a experiência que o casamento monogâmico confere. A liberdade do prazer é a
liberdade do sexo bem localizado e que tem o seu momento próprio.
O sexo como “produto baixo”
Já assinalamos aqui que o processo de racionalização descrito
por Max Weber potencialmente exigiu da religião, no nosso caso, do
Protestantismo, respostas mais convincentes às questões que envolvem o
sentido da vida no sentido amplo. A idéia de que o tema sexualidade é tabu
para os religiosos não se confirmou no grupo aqui estudado. Não só a fala do
entrevistado comprova isto, mas os escritores wesleyanos fazem identificar
este fato, como por exemplo, o pastor Silmar Coelho:
Sexo tem sido uma palavra proibida para muitas culturas e
religiões. Tocar neste assunto, na maioria das vezes causa constrangimentos,
risos abafados, e olhares desaprovadores ou marotos. A falta de liberdade, a
incompreensão, o preconceito e a desinformação roubam o diálogo necessário
entre as gerações para a formação de uma sexualidade sadia.
O sagrado precisou ser não exatamente reinventado, mas
justificado de acordo com os novos padrões culturais. “Mas a Igreja, ela se
contextualiza, ela se coloca dentro da sociedade de forma a contribuir e não
a destruir essa sociedade”. Esse contextualizar pode ser interpretado de
acordo com o que afirmamos. Como a racionalização impõe sérias dificuldades
à coesão social, às relações afetuosas, e uma das bases do relacionamento do
metodismo com a divindade é a relação sentimental, encontra-se uma situação
em que se assume duas posturas: esforça-se para trazer os princípios
bíblicos para o ambiente da modernidade ou aguarda-se o declínio da crença.
Optando, evidentemente, pela atualização dos dogmas, nosso
entrevistado declara que na atualidade o sexo foi mediocrizado. Sua
preocupação aqui é possivelmente manifesta por acreditar na influência que o
mundo secular pode exercer na vida dos membros de sua denominação. Ele então
conclui:
(...) o sexo está presente, só que a nossa sociedade
exacerbou demais, a nossa sociedade colocou o sexo como um produto muito
baixo, e o sexo é muito sublime. Quando a gente lê nesses textos que eu
acabei de mencionar pra você aqui, agora, a gente percebe que o sexo tem um
aspecto sublime, um aspecto majestoso. E o sexo da forma como está posto na
sociedade ele é muito barato. Então, nesse sentido a sociedade, ela banaliza
demais a sexualidade, o sexo, e tem muitas pessoas que não desfrutam do sexo
na sua plenitude justamente por causa disso, porque ele comprou, entre
aspas, ele comprou um sexo muito barato e ai ele acaba não desfrutando
verdadeiramente dessa plenitude. Mas quando nós entendemos a sexualidade de
um outro prisma, de um outro ângulo, eu acredito que o sexo tem muito pra
nos dar e nós temos muito pra desfrutar dele.
Neste trecho a crítica que se faz é justamente ao que já nos
reportamos anteriormente – ao exagero. A sociedade é criticada como sendo
aquela que faz uso da sexualidade de forma imprópria, que não considera o
amor como sendo aquele que espera todas as fases de preparo, de ponderação,
do pensar sobre.
“O sexo, que foi criado puro, belo e extremamente prazeroso,
tornou-se uma ferramenta de manipulação, a arma mais poderosa da mídia, um
artigo de consumo, um agente do mal, e uma máquina de fazer dinheiro”. O
trecho foi retirado do livro Sexo Sem Pecado, do pastor Silmar Coelho e
reflete suas interpretações sobre a influência da mídia, sobre as práticas
sexuais. O apelo ao erotismo, a uma forma descompromissada na relação
consigo e com o outro são argumentos dos metodistas wesleyanos.
Considerações finais
A Antropologia defende que o estudo da sexualidade deve
identificar articulações e nexos entre eixos de classificação, na medida em
que, como qualquer outro domínio da vida, a sexualidade depende de
socialização (HEILBORN, 1999, p. 10). Lembrando mais uma vez Clifford Geertz
(1978, p. 15), a cultura deve ser entendida como uma teia de significados.
Apesar de inúmeras pesquisas insistirem em classificar as
religiões como basicamente opressoras e proibitivas e os indivíduos que as
compõem fossem meros produtos de uma dominação excêntrica, podemos concluir
que o pensamento religioso não é homogêneo. Talvez essa classificação seja
defendida por adotar-se um determinado modo de se abordar as crenças, ou
seja, fundamentar as análises a partir da catalogação das normas e
proibições.
Esta não foi a postura que adotamos aqui. A partir de Michel
Foucault (2001, p. 14) nos foi mais interessante partir de uma perspectiva
que identificasse a problematização do sexo, do prazer.
Os metodistas assumem um comportamento positivo em relação ao
prazer, ao corpo e à sensualidade. Mas é fundamental ressaltar: todos esses
elementos têm local próprio e devem ser experimentados sob a “orientação” do
sentimento que é o ápice da relação entre os sexos: o amor. O apóstolo Paulo
discorreu sobre o amor como sendo o mais nobre dos sentimentos e aquele que
de fato pode provocar a coesão entre os indivíduos.
A liberdade sexual é entendida como o domínio de si, ou então
o domínio dos sentimentos e emoções que permeiam o desejo sexual. A
liberdade é uma conduta racional em que o indivíduo traça um caminho em prol
de um objetivo e não se deixa submeter por si mesmo.
Acreditamos que o presente trabalho pode contribuir para
colocar nossos espíritos à par das mudanças que ocorrem na cadeia de
significados das religiões modernas. É claro, os dados aqui apresentados são
talvez limitados para suportarem tantas argumentações, mas certamente fica
aqui a inquietação para se pesquisar mais. O simples fato de ouvirmos um
líder cristão dialogar tão abertamente sobre um tema que sempre foi
considerado tabu pela comunidade científica nos faz repensar as proposições
que vêm se arrastando durante séculos. Diga-se, finalmente, que a defesa que
se faz aqui é a defesa do significado.
__________
Referências
Bibliográficas
Bíblia Edição
Contemporânea, tradução de João Ferreira de
Almeida. Editora Vida, 1996.
COELHO, Silmar. Sexo sem
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FOUCAULT, M. “História da
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por CLÁUDIO LEITE LEANDRO