por CLÁUDIO LEITE LEANDRO

Graduando em Ciências Sociais – Universidade Estadual de Maringá.

 

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Igreja Metodista Wesleyana – uma concepção de liberdade sexual

Cláudio Leite Leandro

 

Resumo: A relação que o indivíduo religioso tem com o sexo fora do casamento é comumente interpretada como problemática no sentido de que há por parte das lideranças religiosas a imposição de inúmeras interdições e de regras proibitivas. Tais regras morais são de fato impostas ao religioso contemporâneo? Concluímos que não. Preocupar-se em identificar regras morais na literatura ou quaisquer manifestações religiosas não vai nos levar a lugares interessantes. Importa-nos, por outro lado, identificar o valor atual que se dá ao sexo, ao prazer e ao desejo. Desvendar o que se entende por liberdade sexual através do discurso das lideranças religiosas, nos leva por um caminho que exige interpretar o relacionamento com a divindade, os valores associados a ele e sua interferência no modo de vida do sujeito moral, na sua ação para consigo e para com o “outro”.

Palavras-chave: religião, sexo, protestantes, lideranças religiosas, liberdade sexual. 

Church Methodism Wesleyan – a conception of sexual liberty

Abstract: The relation that the religious individual has with the sex out of the wedding is commonly interpreted as problematic, in the sense that there is by part of the religious leaderships the imposition of several interjections and prohibited rules. Are such moral rules in fact imposed to the contemporary religious? We do not conclude that. To concern about identifying moral rules in literature or any other religious manifestations will not take us to interesting places. It matter us, on the other hand, to identify the current value that is given to the sex, pleasure and wish. Uncover what we understand for sexual liberty through the speech of religious leadership, take us for a way that require to interpret the relationship with divinity, the values associated to it and its interference in the lifestyle of the moral subject, in its action with itself and with the ‘other’.

Key words: religion, sex, protestants, religious leadership, sexual liberty.

 

Introdução

Os relatos históricos[1], ao disporem a influência da religião em qualquer tempo e espaço, talvez tenham viciado nossos espíritos e os tornado alvos fáceis de observações e conclusões mal resolvidas. Pode-se valer de um compêndio do tipo “História da Religião” e abstrair deste, proposições que se julgará substanciais. As inúmeras barbáries da Igreja Católica Romana e as pressões do Protestantismo sobre o indivíduo são anunciadas com base em elementos históricos, os quais recebem coroação nas análises de praxe. Mas o que há de elementar nisso para se compreender o valor que as idéias religiosas têm para o sujeito religioso? Se o que se quer é provar que, no mundo moderno, uma instituição religiosa é necessariamente bestializante, razoável seria atualizar os pressupostos e elaborar um pensamento que tenha propriedades para identificar concepções de mundo, ou seja, ver o mundo pela ótica do indivíduo, pelos significados que este atribui ao real.

Está dada a metodologia. Nessa empreitada, a Antropologia traduz-se como veículo que leva-nos por horizontes sinuosos e estreitos, afastando-nos das interpretações prosaicas. A cultura é aqui tomada como elemento que dá sentido às ações, em seu modo mais específico, próprio a cada grupo dentro de uma sociedade. Interpretar significados equivale a compreender como se configura determinada cultura ou, de outra forma, como se move a práxis do indivíduo (GEERTZ, 1978, p. 15).

Manifesta-se aqui a defesa de uma análise que não parta do pressuposto de que qualquer instituição religiosa - pelo menos no cristianismo - exerce total domínio sobre as vontades de seus componentes, em todas as instâncias, mas, orienta razoavelmente o pensamento destes. Ou seja, os valores e práticas não são assimilados necessariamente de forma arbitrária, posto que, com o evento da racionalização (BARBOSA e QUINTANEIRO, 1995, pp. 139-140), alguns ramos do Protestantismo se viram obrigados a esclarecer o sentido que o texto bíblico tem para o cristão moderno. Seria isso, em suma, uma contextualização, uma atualização dos dogmas. O que não compromete sua base fundamental de interpretação, a qual seria dada a partir dos textos bíblicos que formam o Novo Testamento.

Importante destacar que no Novo Testamento a fala e as ações de Jesus Cristo denotam a formação de um novo amálgama de valores que a religião cristã irá fazer uso no decorrer da posteridade. No entanto, nos interessa aqui esclarecer que a partir dos séculos XX e XXI tem-se presenciado um re-posicionamento dos dogmas do Protestantismo, uma ampliação explicativa dos dogmas que redunda num maior detalhamento da função destes. É claro, tal re-posicionamento não é quantificavel, mesmo porque ocorre em frações localizadas e não em alta escala, como é clássico de se esperar.

A proposta que aqui se apresenta não se preocupa em explicar o universal, mas defende um olhar mais atento e despido de toda bagagem etnocêntrica para grupos que vivem segundo princípios que se costumar rotular.

Partindo então desse eixo, tentar-se-á demonstrar que o pensamento religioso moderno, especialmente um dos ramos da religião protestante em sua vertente metodista, no que respeita à sexualidade, tem se mostrado distinto em relação às análises que lhe são atribuídas. No metodismo wesleyano, o problema do uso do corpo para o sexo assume um dos lugares prioritários no pensamento do sujeito religioso, sujeito enquanto autor de seus atos e co-responsável por suas conseqüências[2].

Tal crença religiosa tem por legítima a idéia de que pessoas recebem influências da sociedade, mas, o indivíduo tem certo coeficiente de autonomia sobre suas vontades, o que é traduzido no chamado “livre arbítrio”[3]. Nos interessa, portanto, definir que a liberdade sexual é balanceada pelo bem que seus atos podem causar a si mesmo e pelo mal que estes podem causar para si e para seu semelhante, ou mesmo para a sociedade. Nessa assertiva, “bem” e “mal” não devem ser associados de forma alguma ao maniqueísmo, revelam simplesmente uma relação de causa e efeito.

Há ainda outro fator de destaque que impulsiona a ação desses indivíduos, qual seja, a vontade de “agradar a Deus”. Obviamente, tal vontade tem suas raízes fundamentadas em toda uma cadeia de valores (BARBOSA e QUINTANEIRO, 1995, pp. 107-111) que se preza e de experiências que se vive, as quais nos impõem certas dificuldades, pois, como será possível examinar um relacionamento entre um ser humano e uma entidade não carnal? Pode-se assumir pelo menos duas posições: a primeira seria ridicularizar tal relação e interpretá-la como simples resultado de uma vivência precária, baseada em valores frívolos e débeis; a segunda seria tentar compreender quais valores norteiam tal relação e, assim, buscar identificar no que isso importa para a mobilização dos que defendem tal crença.

O presente artigo é fruto de uma etnografia realizada por meio de entrevista com um líder comumente chamado de “pastor”, além de informações obtidas por meio de livros e revistas editados por autores metodistas. O entrevistado foi o Pr. Luiz Carlos Leite, líder da Igreja Metodista Wesleyana da cidade de Maringá, estado do Paraná. Tal denominação religiosa intitula-se como pentecostal e foi fundada em 1967, em Nova Friburgo, Rio de Janeiro.

Podemos afirmar sumariamente que a compreensão das questões aqui levantadas se revela importante, pois ajuda a desvendar o porquê da ação humana mais exatamente numa conduta moral. Compreender isso equivale a compreender a construção de um sujeito moral, sujeito de si, construtor de uma ação que tem determinada racionalidade. Pois aquele que se priva de sexo, o faz pensando em seu próprio bem e no bem do seu “semelhante”.

Um pouco de história

A Reforma Protestante (1521) teve como base a defesa da Bíblia como autoridade máxima no reconhecimento da fé, livre de quaisquer intermédios tradicionais. A salvação era considerada graça de Deus, o que excluía a necessidade de penitências, procissões ou indulgências. Tais reivindicações eram defendidas pelas três grandes correntes reformadoras “respeitáveis”: os luteranos, calvinistas e anglicanos.

Por outro lado, o Protestantismo também teve a expressão de suas idéias manifestada distintamente pela chamada “reforma comunal”. Segundo o historiador Josep Fontana (2000, pg. 309, 310), “o conformismo político e social das correntes da reforma dos príncipes” [luteranos, calvinistas e anglicanos] levou à reação da chamada ‘segunda reforma’, que expressava a reação dos grupos que queriam ir além”. Convém aqui reproduzir trecho em que o historiador descreve a importância que essas dissidências representaram:

(...) houve, entretanto, outra “reforma comunal”, que propunha a autonomia da comunidade local, ao menos nas questões religiosas. A fé era considerada nestes casos como uma questão pessoal, que não podia ser colocada sob o controle de uma Igreja ou de um Estado, e os fiéis exigiam o direito de nomear e destituir seus pastores. Os anabatistas, chamados assim porque consideravam que o batismo devia ser recebido – ou tornar a ser recebido – na idade adulta, com a plena consciência, liam, no evangelho, o prognóstico de uma sociedade mais fraternal e igualitária, propugnando idéias de renovação social que chegariam, inclusive, a uma proposta de comunhão de bens, como a que se quis estabelecer no “reino dos Santos” de Münster, principalmente, ou nas comunidades que tentaram reconstruir a Nova Jerusalém na Moravia. Todos estes grupos foram ferozmente perseguidos tanto por católicos quanto pelas correntes reformadoras “respeitáveis”, assustados, uns e outros, pela ameaça radical que representavam.

Dentre esses grupos, o que mais se destacou foi o Metodismo de John Wesley, ainda segundo Fontana, o qual teve influência dos anabatistas da Moravia.

A Igreja Metodista Wesleyana, foco de nosso estudo aqui, foi, na realidade, uma dissidência da Igreja Metodista do Brasil. Esta última caracterizava-se por um leque de doutrinas consideradas tradicionais. Segundo relatos[4] de um dos bispos pioneiros da Igreja Metodista Wesleyana, a cisão com a Metodista do Brasil ocorreu por falta de liberdade em expressar uma relação mais próxima com Deus na forma das práticas de “orações com imposições de mãos”, “expulsão de demônios”, “canto de corinhos” e “vigílias constantes”. Ao que parece não houve sumariamente uma intenção de formar uma nova denominação religiosa, conforme afirma o bispo Gessé Teixeira de Carvalho: “Devido a tal situação, os metodistas avivados começaram a visitar algumas igrejas cujas doutrinas eram pentecostais para que, no caso de uma sumária exclusão da Igreja Metodista do Brasil, já teriam em vista uma outra”.

Isto possivelmente indica que a motivação real para a desvinculação se deu por causa da intenção de livrar-se do tradicionalismo e vincular-se a Deus de maneira “direta”. A institucionalização aparece aqui como sendo uma conseqüência da organização dos religiosos em um agrupamento.

Max Weber (1983, pg.98-101) trata o Metodismo como dissidência que contém em si algumas peculiaridades. A “relação” e a ênfase em uma experiência sentimental para com a divindade, a prática religiosa sistemática baseada em valores e livre da rigidez dogmática do Calvinismo e, em especial, a emoção dirigida racionalmente para a perfeição.

Com base em Weber e Fontana assumimos algumas conclusões sobre quais idéias o Metodismo, evidentemente inserido no contexto maior do Protestantismo, passou a difundir a seus componentes. O simples fato de Lutero defender a tradução da Bíblia para as línguas vulgares torna acessível a qualquer cristão a leitura da mesma. Isto possivelmente produziu uma desmistificação do livro sagrado, uma abertura que naquele momento significou que era possível ter um pouco mais de liberdade na relação do cristão com seu deus. Lembremos que não era somente a leitura que estava acessível, mas também não era mais necessário recorrer a inúmeras tradições simbólicas e exigências clericais, como a indulgência. Importa destacar isto porque é razoável deduzir que o Metodismo privilegiou um contato espiritual que se fazia a nível pessoal. O indivíduo não estava ligado mais à instituição Igreja como o fazia no Catolicismo Romano, mas, como descreve Fontana, exigia, agora, uma certa autonomia.

Sejamos sóbrios, não se pretende aqui afirmar que neste momento histórico - nem atualmente - havia uma total autonomia por parte do cristão protestante em relação à Igreja, mas a Reforma passou a dar vigor a uma certa liberdade de pensamento que seria mais tarde alargada involuntariamente, a saber, com o desenvolver do processo de racionalização, que possivelmente fez com que as igrejas protestantes realçassem sua interpretação dos textos bíblicos afim de justificar a falta de sentido que o mundo passara a enfrentar.

Todos esses fatos históricos, com as modificações culturais que o tempo e o espaço lhe causaram, contribuíram para a formação de uma conduta moral. Se quisermos definir o que é o sexo para o protestante do século XXI sem considerar que o mesmo está também inserido em um mundo secular influenciado pela cultura de massa, pelo apelo ao erotismo, pelo imediatismo, pelo efêmero, enfim, pela coisificação do humano, nossas proposições ficarão limitadas e colocadas na reles superfície das relações humanas concretas. A propósito, citando Max Weber, Clifford Geertz (1978, pg. 15) define o que é para ele o conceito de cultura, e que, aliás, é sob tal conceito que se embasa nossa proposta de análise e ilustra uma preocupação com a pesquisa científica:

(...) o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação.

            Esta citação traduz as intenções aqui presentes. O que se quer é então desvendar qual o significado dessa moral protestante, em um grupo metodista específico. O que está subentendido na prática sexual ponderada? Por que esperar para ter o contato sexual, e esperar o momento certo? Que papel exerce o “outro” neste caso? Isto se definirá - ou não - após examinar-se o caminho pelo qual o entrevistado nos fez traçar de acordo com seu posicionamento diante das perguntas.

Liberdade x Depravação

“Prostituição, impureza, lascívia (...)”.[5] A atribuição pejorativa à sexualidade no metodismo wesleyano vai estar relacionada essencialmente ao exagero. Um dos veículos de propagação das doutrinas da Igreja Metodista Wesleyana é a revista Explicando as Escrituras, de uso educativo, utilizada na chamada Escola Bíblica Dominical - EBD. A EBD acontece todos os domingos e firma-se como meio de instrução substancial do cristão wesleyano. Esta observação é importante, pois os conteúdos presentes nas lições e seus respectivos teores interpretativos são captados por seus ouvintes e ou participantes como sendo uma espécie de compilação da verdade, são a tradução dos dogmas em linguagem trivial. Em uma das publicações da revista Explicando as Escrituras, com o tema Pureza Moral, o autor da lição nº. 08 define o imoral como sendo algo excessivo: “Um dos grandes sinais que perto está o julgamento divino sobre esta terra, é a corrupção moral, sendo algo generalizado, a grande promiscuidade que impera”.

Ainda sobre a revista Explicando as Escrituras, lições que tratam da conduta do cristão de maneira geral referem-se à conduta ideal como sendo aquela que sofre o processo da “santificação”, conforme definição do bispo Sebastião Calegari: “Santificação é o ato de santificar. De modo geral, podemos ver a santificação como um processo, cujo ponto inicial se dá quando somos nascidos de novo e passamos a fazer parte da família de Deus”. O processo de santificação é defendido pelos wesleyanos como sendo uma separação do mundo secular para uma não-contaminação com este. Tal separação não tem significado uma aversão ao mundo de forma geral, mas representa estar inserido em determinado universo sem necessariamente participar de alguns eventos deste. Ou seja, para o cristão wesleyano, ter uma vida sexual santa seria não exercer a sexualidade pelos padrões seculares e sim de acordo com a doutrina da santificação.

O “sexo” como exagero também pode ser encontrado na ênfase indireta aos escritores bíblicos quando se referem à prática sexual indevida como sendo aquela que extrapola, que se “apodera” do indivíduo e o faz escravo dos prazeres. Esta proposição pode ser nitidamente demonstrada pelo entrevistado na fala que se segue: (...) “a liberdade, não no sentido da depravação sexual, mas a liberdade do uso da sexualidade pra receber do sexo tudo aquilo que o sexo pode dar ao ser humano”.

O sexo aparece aqui como sendo algo essencialmente bom, mas que deve ser utilizado de forma caracterizada como equilibrada. Em uma biografia sobre o fundador do metodismo, o inglês John Wesley, Mateo Lelièvre cita Carlos de Rémusat, estudioso do metodismo, o qual afirmou ser John Wesley “um dos maiores modelos de santidade na vida ativa”. E outro ponto da biografia, Lilièvre afirmava que “a oração ocupava lugar de destaque na vida de Wesley. O segredo de seu grande domínio próprio”. Alguns elementos são importantes aqui: é conferido ao fundador do metodismo um caráter formado pelos princípios da santidade e também pelo domínio próprio. Há uma ligação entre santidade e domínio próprio. De acordo com os wesleyanos a santidade é um processo que acaba por separar o sujeito do mundo secular e uma das conseqüências de tal separação é a liberdade através do domínio de si ou do domínio próprio. Como já dissemos, a santificação é um processo que permeará a conduta do indivíduo de maneira geral e influenciará por conseqüência sua conduta sexual.

O apóstolo Paulo parece ser aquele que no Novo Testamento mais se preocupou com uma conduta sexual bem equilibrada, enfatizando a necessidade de o indivíduo ser sujeito de si no trato com os desejos sexuais. Ser sujeito de si equivale a dominar os sentidos e as emoções a fim de não ser presa sua. O homem deve olhar para o mundo de forma a ser guiado para o projeto que o seu deus manifestou. Uma necessidade sistemática de se santificar – separar – para influenciar aqueles que o rodeiam.[6]

Liberdade como ponderação, como visão sóbria do mundo, ancorada na idéia de um domínio de si. Mas essa tal liberdade só pode ser alcançada com a proximidade que se tem com a divindade e mais especificamente com a segunda pessoa da trindade, o Espírito Santo. Ao falar aos coríntios sobre a nova aliança de Deus para com os homens, o apóstolo Paulo afirma que “o Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito aí há liberdade”.[7]

Max Weber já dissera das características formadoras do metodismo e uma delas seria a valorização de uma experiência sentimental com a divindade. Observamos então que a conduta geral do cristão só vai ser bem sucedida caso este firme um relacionamento estreito com Deus, a partir da fé.

Lutero já defendia que a fé era o elo que ligava o humano ao divino e conferia liberdade.(LUTERO , 1998, p. 31). Vê-se aqui uma busca pela aproximação à personalidade de Deus, personalidade repleta de plenitude, de todos os adjetivos de que se precisa. Tal fé não precisava mais do amparo das obras para que fosse legítima e aceita por Deus. Desse modo, “a fé é feita de tal modo que quem crê num outro, crê justamente porque considera o outro justo e verdadeiro”.

Mas a conduta moral também vai ser moldada por um princípio global no cristianismo, a saber, “amarás a teu próximo como a ti mesmo”.[8] Os wesleyanos também vão difundir este princípio por acreditar que a conduta deve ser levada de forma a existir uma valorização do “outro”. Isso se reflete na fala do entrevistado ao defender o casamento como o lugar do sexo: (...) “nós entendemos que o casamento é o local onde o sexo deve ser consumado e deve ter toda a beleza que ele possa dar, todo o prazer que ele possa dar a esse casal”.

O casamento vai ser o resultado de um relacionamento que gradativamente vai sendo pensado com base nos valores da crença. O casamento é o local próprio para o sexo porque reserva o equilíbrio - através da monogamia -, a fé - pois é a expressão da vontade de Deus - e o amor ao próximo - pois é entendido como o amor compartilhado. Assim, há no casamento uma problematização do sexo no sentido de condicionar o prazer na sua forma mais plena somente dentro do matrimônio. O período do namoro e do noivado podem conter o amor, mas somente na sua forma inicial, a qual será gradativamente levada a níveis mais profundos:

O início do namoro, do noivado, até chegar ao matrimônio é o começo de tudo. Eu penso que o rapaz e a moça têm que começar a se entender sexualmente também no começo do namoro. A coisa vai chegar ao seu ápice no casamento, mas as coisas começam a partir daqui. Eles têm que aprender a se beijar, e a se beijar bem. Eles têm que conversar sobre seus impulsos, até porque como que eles vão saber o seu limite, um do outro, se eles não se abrirem, não conversarem sobre isso? Porque se eles vão se resguardar para o casamento, um e o outro tem que saber até onde pode ir e aonde não pode tocar para que ambos se resguardem, pelo contrário é fogo e pólvora. E se eles não conversarem sobre isso entre si abertamente vai ser muito difícil que eles estabeleçam limites, vai ser muito difícil.

O pensar sobre o sexo se torna papel e dever para se chegar ao relacionamento ideal, ou seja, ao casamento, o clímax do amor. Pensar, refletir, dialogar. A sistematização da vida, um dos elementos do metodismo desde sua raiz, é presente no trecho citado. A vida deve ser metodicamente vivida para se alcançar uma espécie de excelência.

“Prazer, prazer e prazer”

É clássica a interpretação que considera que o sexo é para o religioso um enorme tabu, um assunto em que não se deve tocar. Nesses termos, os líderes em geral valorizam a pureza em relação ao sexo também através do silêncio. No entanto, a experiência desta pesquisa revelou outro comportamento:

“Nós somos seres que têm sentido, e o sentido do sexo é prazer, o sentido do sexo é alegria, o sentido do sexo é uma série de reações no corpo que faz com que um homem e uma mulher tenham a satisfação de viverem juntos e é uma forma deles consumarem o amor que sentem um pelo outro. (...) Então quando ele diz: ‘saciar-se os seios com os seios da esposa e embriagar-se com as suas carícias’, nada mais é do que prazer, prazer e prazer”. (Pr. Luiz Carlos Leite)

É comum aceitarmos a tese de que o cristianismo como um todo visualiza no sexo um simples e restrito potencial procriador da raça humana e nada além. O prazer não tem valor, não é algo puro, correto, digno. Não é o que parece no metodismo wesleyano - e possivelmente em outros ramos do Protestantismo. Acima, na fala do entrevistado, o que há é uma exaltação aos atributos do prazer: alegria, satisfação, amor. Ele ainda vai mais além, fala do significado sexual do corpo, também considerado por muitos pesquisadores um tabu intransponível para a cristandade protestante: “saciar-se os seios com os seios da esposa e embriagar-se com suas carícias”.  

Estes trechos foram lidos pelo entrevistado, retirados do “Cânticos dos Cânticos”, da Bíblia, e revelam uma relação positiva do sujeito para com o corpo:

 No capítulo 5, versículo 10 até o 16, a mulher faz uma declaração específica sobre o corpo masculino do esposo, inclusive ela menciona o sexo [órgão genital] do seu esposo aqui de forma figurada. E já lá no capítulo 7 do versículo 1 até o versículo 9, o esposo faz a mesma coisa, ele exalta a beleza física da sua esposa e toca na sexualidade de uma forma muito bela, uma poesia hebraica muito linda.

A interpretação que o entrevistado dá ao texto bíblico nos interessa. Não se percebe qualquer constrangimento ou recusa em se falar da intimidade do corpo, de suas formas, do prazer que ele causa.

Ao contrário disso, ao falar da moral cristã dos primeiros séculos, Michel Foucault (2001, pp. 84-85) vai afirmar que a substância ética desta moral será definida “por um campo dos desejos que se escondem nos arcanos do coração e por um conjunto de atos cuidadosamente definidos em sua forma e em suas condições (...)”. Será que é possível definir a moral dos grupos protestantes atuais desta mesma forma? É razoável que não. Podemos ainda considerar a fala do pastor Silmar Coelho (2001, p. 15), também da Igreja Metodista Wesleyana, que se manifesta sobre o problema dos tabus sexuais:

Outra conseqüência é o tabu. O pudor radicalizado faz algumas pessoas cometerem verdadeiros atos da idade da pedra. Proibidas, vigiadas e acusadas, elas se sentem como que dentro de uma camisa-de-força. Fé, pureza e sexo tornam-se então incompatíveis, antagônicos, inimigos. O erro vira dogma, leis morais são criadas a partir de uma “revelação” distorcida e a santidade do sexo é banalizada ou expurgada.

Talvez pareça que as conclusões que se propõem aqui defendam que o pensamento do grupo estudado trata o sexo como sendo extremamente natural e que por isso não há de qualquer modo uma moral normativa quanto a sua prática. Lembremos que a liberdade sexual no metodismo wesleyano vai ser caracterizada pela ponderação e o equilíbrio. Sendo assim, as normas morais existem, mas não são arbitrárias como é de praxe considerar.

Além do mais, os próprios gregos, apesar de lhes ser atribuída uma grande liberdade de costumes, pareceram demonstrar uma grande reserva na representação dos atos sexuais que eles mostravam em obras escritas ou até na literatura erótica (FOUCAULT, 2001, p. 39).

Então, a importância não está em reconhecer normas proibitivas, mas em interpretar o porque delas.

O Cânticos dos Cânticos, da Bíblia, revela uma relação em que há a valorização do “outro”. A referência à sexualidade, à sensualidade é feita sem reservas pelo casal, como o próprio pastor descreve mais uma vez em detalhes:

A esposa dizendo para o esposo no capítulo 5 de Cântico dos Cânticos, ela diz assim: meu amado é alvo e rosado, mais distinguido entre dez mil. A sua cabeça é como ouro apurado e os seus cabelos, cachos de palmeira. São pretos como corvo. Os seus olhos são como os das pombas junto às correntes das águas, lavados em leite e postos em engaste. As suas faces são como um canteiro de bálsamo, como colinas de ervas aromáticas e os seus lábios são lírios que gotejam mirra preciosa. As suas mãos, cilindros de ouro embutidos de jacinto e o seu ventre como alvo marfim coberto de safiras. As suas pernas, colunas de mármore assentadas em base de ouro puro e o seu aspecto como o Líbano, esbelto como os cedros. O seu falar é muitíssimo doce, sim, ele é totalmente desejável. Tal é o meu amado, tal o meu esposo ou a filha de Jerusalém.

“Isso daqui nada mais é de que a sexualidade se manifestando na sua forma mais bela essência”. Esta é a interpretação que se faz do trecho acima. O corpo sendo exaltado “desde o cabelo até os pés”. Mas a importância que se dá ao corpo não é desvinculada do princípio moderador que a experiência que o casamento monogâmico confere. A liberdade do prazer é a liberdade do sexo bem localizado e que tem o seu momento próprio.

O sexo como “produto baixo”

Já assinalamos aqui que o processo de racionalização descrito por Max Weber potencialmente exigiu da religião, no nosso caso, do Protestantismo, respostas mais convincentes às questões que envolvem o sentido da vida no sentido amplo. A idéia de que o tema sexualidade é tabu para os religiosos não se confirmou no grupo aqui estudado. Não só a fala do entrevistado comprova isto, mas os escritores wesleyanos fazem identificar este fato, como por exemplo, o pastor Silmar Coelho:

Sexo tem sido uma palavra proibida para muitas culturas e religiões. Tocar neste assunto, na maioria das vezes causa constrangimentos, risos abafados, e olhares desaprovadores ou marotos. A falta de liberdade, a incompreensão, o preconceito e a desinformação roubam o diálogo necessário entre as gerações para a formação de uma sexualidade sadia.     

O sagrado precisou ser não exatamente reinventado, mas justificado de acordo com os novos padrões culturais. “Mas a Igreja, ela se contextualiza, ela se coloca dentro da sociedade de forma a contribuir e não a destruir essa sociedade”. Esse contextualizar pode ser interpretado de acordo com o que afirmamos. Como a racionalização impõe sérias dificuldades à coesão social, às relações afetuosas, e uma das bases do relacionamento do metodismo com a divindade é a relação sentimental, encontra-se uma situação em que se assume duas posturas: esforça-se para trazer os princípios bíblicos para o ambiente da modernidade ou aguarda-se o declínio da crença.

Optando, evidentemente, pela atualização dos dogmas, nosso entrevistado declara que na atualidade o sexo foi mediocrizado. Sua preocupação aqui é possivelmente manifesta por acreditar na influência que o mundo secular pode exercer na vida dos membros de sua denominação. Ele então conclui:

(...) o sexo está presente, só que a nossa sociedade exacerbou demais, a nossa sociedade colocou o sexo como um produto muito baixo, e o sexo é muito sublime. Quando a gente lê nesses textos que eu acabei de mencionar pra você aqui, agora, a gente percebe que o sexo tem um aspecto sublime, um aspecto majestoso. E o sexo da forma como está posto na sociedade ele é muito barato. Então, nesse sentido a sociedade, ela banaliza demais a sexualidade, o sexo, e tem muitas pessoas que não desfrutam do sexo na sua plenitude justamente por causa disso, porque ele comprou, entre aspas, ele comprou um sexo muito barato e ai ele acaba não desfrutando verdadeiramente dessa plenitude. Mas quando nós entendemos a sexualidade de um outro prisma, de um outro ângulo, eu acredito que o sexo tem muito pra nos dar e nós temos muito pra desfrutar dele.

Neste trecho a crítica que se faz é justamente ao que já nos reportamos anteriormente – ao exagero. A sociedade é criticada como sendo aquela que faz uso da sexualidade de forma imprópria, que não considera o amor como sendo aquele que espera todas as fases de preparo, de ponderação, do pensar sobre.

“O sexo, que foi criado puro, belo e extremamente prazeroso, tornou-se uma ferramenta de manipulação, a arma mais poderosa da mídia, um artigo de consumo, um agente do mal, e uma máquina de fazer dinheiro”. O trecho foi retirado do livro Sexo Sem Pecado, do pastor Silmar Coelho e reflete suas interpretações sobre a influência da mídia, sobre as práticas sexuais. O apelo ao erotismo, a uma forma descompromissada na relação consigo e com o outro são argumentos dos metodistas wesleyanos.

Considerações finais

A Antropologia defende que o estudo da sexualidade deve identificar articulações e nexos entre eixos de classificação, na medida em que, como qualquer outro domínio da vida, a sexualidade depende de socialização (HEILBORN, 1999, p. 10). Lembrando mais uma vez Clifford Geertz (1978, p. 15), a cultura deve ser entendida como uma teia de significados.

Apesar de inúmeras pesquisas insistirem em classificar as religiões como basicamente opressoras e proibitivas e os indivíduos que as compõem fossem meros produtos de uma dominação excêntrica, podemos concluir que o pensamento religioso não é homogêneo. Talvez essa classificação seja defendida por adotar-se um determinado modo de se abordar as crenças, ou seja, fundamentar as análises a partir da catalogação das normas e proibições.

Esta não foi a postura que adotamos aqui. A partir de Michel Foucault (2001, p. 14) nos foi mais interessante partir de uma perspectiva que identificasse a problematização do sexo, do prazer.

Os metodistas assumem um comportamento positivo em relação ao prazer, ao corpo e à sensualidade. Mas é fundamental ressaltar: todos esses elementos têm local próprio e devem ser experimentados sob a “orientação” do sentimento que é o ápice da relação entre os sexos: o amor. O apóstolo Paulo discorreu sobre o amor como sendo o mais nobre dos sentimentos e aquele que de fato pode provocar a coesão entre os indivíduos.[9]

A liberdade sexual é entendida como o domínio de si, ou então o domínio dos sentimentos e emoções que permeiam o desejo sexual. A liberdade é uma conduta racional em que o indivíduo traça um caminho em prol de um objetivo e não se deixa submeter por si mesmo.

Acreditamos que o presente trabalho pode contribuir para colocar nossos espíritos à par das mudanças que ocorrem na cadeia de significados das religiões modernas. É claro, os dados aqui apresentados são talvez limitados para suportarem tantas argumentações, mas certamente fica aqui a inquietação para se pesquisar mais. O simples fato de ouvirmos um líder cristão dialogar tão abertamente sobre um tema que sempre foi considerado tabu pela comunidade científica nos faz repensar as proposições que vêm se arrastando durante séculos. Diga-se, finalmente, que a defesa que se faz aqui é a defesa do significado.

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Referências Bibliográficas

BARBOSA, M. L. O; QUINTANEIRO, T. “Max Weber”, Um Toque de Clássicos, Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995, pg. 107-111.

Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

COELHO, Silmar. Sexo sem pecado. Campinas: Editora Adonai, 2001.

FOUCAULT, M. “História da Sexualidade II - o uso dos prazeres”. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

GEERTZ, C. “Uma descrição densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura”, A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pg. 15.

Heilborn, M. L. “Sexualidade – o olhar das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, pg. 7-74.

LILIÈVRE, MATEO. João Wesley – Sua vida e obra, O caráter de Wesley. São Paulo: Editora Vida, 1997.

LUTERO, M. “Da Liberdade do Cristão”. Tradução: Erlon José Paschoal. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pg. 31.

Revista de estudos da religião: As representações sociais do corpo e da sexualidade no Protestantismo Brasileiro. Acesso em 17/06/06. Disponível em http://www.pucsp.br/rever/rv1_2006/t_gomes.htm

Revista Explicando as Escrituras: Maravilhosa Graça, Santificação. Nilópolis: Edições Centro de Publicações, 2005.

Revista Explicando as Escrituras: Metodismo! Um coração cada vez mais abrasado, Como surgiu a Igreja Metodista Wesleyana. Nilópolis: Edições Centro de Publicações, 2002.

Revista Explicando as Escrituras: Nosso proceder e os ensinos proféticos, Pureza Moral. Nilópolis: Edições Centro de Publicações, 2000.

Revista Explicando as Escrituras: Santidade Como Estilo de Vida. Nilópolis: Edições Centro de Publicações, 2002.

 

por CLÁUDIO LEITE LEANDRO

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[1] Não se refere aqui ao saber histórico em si, mas ao uso que se faz dele.

[2] Lamentações 3 (39): “De que se queixa o homem vivente? Queixe-se cada um dos seus pecados.”Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

[3] Gênesis 4 (7): “Se procederes bem, não serás aceito? E se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

[4] Explicando as escrituras – Metodismo! Um coração cada vez mais aquecido. Edições Centro de Publicações. Lição 8, p. 29.

[5] Gálatas 5 (19b). Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

[6] I Coríntios 9 (25-27). Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

[7] II Coríntios 3 (17). Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

[8] I Coríntios 5 (14). Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996

[9] I Coríntios 13. Bíblia Edição Contemporânea, tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1996.

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.