por VIVIAN MATIAS DOS SANTOS ALBUQUERQUE

Pesquisadora do grupo Gênero, Família e Geração nas Políticas Sociais, mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará.

 

 

 

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Divisão Sexual do Trabalho: complementaridade ou conflito?

Vivian Matias dos Santos Albuquerque

 

Resumo

Diversas correntes intelectuais se dedicaram à tentativa de explicar a divisão sexual do trabalho. Neste sentido, situa-se a relevância da análise comparativa entre os significados das expressões categóricas 'divisão do trabalho sexual' durkheimiana e 'divisão sexual do trabalho' a partir da perspectiva de gênero. Percebe-se que no bojo dos estudos acerca da diferenciação 'funcional' entre mulheres e homens destacam-se duas principais vertentes: a teoria do vínculo social, que mais se aproxima da concepção durkheimiana na qual a 'divisão do trabalho sexual' tem um caráter de complementaridade; e por outro lado tem-se a teoria que parte das relações sociais, a qual percebe a 'divisão sexual do trabalho' como construto dialético inserido no processo sócio-histórico, e, portanto, passível de ser desconstruído e reconstruído.

Palavras-chave: Gênero; Divisão sexual do trabalho; Divisão do trabalho social.

Abstract

From stereotype’s gender was build social and historically a sexual division’s social functions that frequently links the private space to the ‘feminine’, while the masculine is linked to the public space. There where various intellectuals traditions that tried to elucidate this observable fact. Therefore, this paper objects to analyze signification’s category – sexual division’s work – from the Durkheim’s theory and from the gender’s discussion.

Key-words: Gender; Sexual division’s work; Social division’s work.

 

1. Introdução

Este ensaio visa traçar um estudo comparativo entre a significação das expressões ‘divisão do trabalho sexual’ durkheimiana e ‘divisão sexual do trabalho’ a partir da categoria analítica gênero.

Para tal finalidade num primeiro momento fez-se necessário ponderar e contextualizar a divisão do trabalho social de Durkheim, percebida como a principal fonte de solidariedade necessária para a coesão social - condição para a existência de uma sociedade evoluída.

A análise das influências de vertentes biológicas na Sociologia de Émile Durkheim, foi o ponto de partida para a compreensão da legitimação de uma diferenciação funcional estabelecida entre os sexos.

Após percorrer este caminho, finalmente fez-se uma abordagem da segregação dos espaços profissionais masculinos e femininos, por meio de autoras que estudam a divisão sexual do trabalho tendo como base as relações de gênero, enquanto relações sociais de poder estabelecidas entre mulheres e homens.

2. A Divisão doTrabalho Social: Fonte de Solidariedade Orgânica

(...) estas grandes sociedades políticas não podem, também elas, manter-se em equilíbrio senão graças à especialização das tarefas; que a divisão do trabalho é a origem, se não a única, pelo menos a principal da solidariedade social (Émile DURKHEIM, da divisão do trabalho social). 

Na visão de Durkheim (1991), para o funcionamento harmônico de uma sociedade precisaria existir uma coesão social, onde o indivíduo deveria se adequar à coletividade. Essa adequação seria produzida pelos laços de solidariedade. Somente por meio de vínculos solidários que uma “coleção de indivíduos” constituiria uma sociedade.

A solidariedade capaz de assegurar a coesão social entre os indivíduos é subdivida e classificada pelo autor como sendo de dois tipos: a solidariedade mecânica ou por similitudes; e a solidariedade orgânica, devido à divisão do trabalho social. No primeiro caso, o estabelecimento dos laços solidários se dá entre indivíduos semelhantes, que comungam os mesmos valores, as mesmas crenças, os mesmos costumes. Neste caso a coerência social não provém da diferenciação entre os membros da sociedade, estes se unem mecanicamente, sem precisar de um consenso em torno dos vários aspectos da vida coletiva.

Ao contrário, a solidariedade orgânica, tem como base fundamental a diferenciação entre os indivíduos, que possuem culturas e práticas distintas. Sendo estes indivíduos dessemelhantes, e por causa/conseqüência exercendo diferentes funções, para que haja uma coesão social faz-se necessário o consenso, visto que:

A solidariedade orgânica não é possível senão quando cada um tem uma esfera de acção (SIC) que lhe é própria, conseqüentemente, uma personalidade. Assim, é necessário que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência individual, para que aí se estabeleçam essas funções especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais extensa esta região for, mais forte é a coesão resultante desta solidariedade (DURKHEIM, 1989, p.152).

Na visão de Durkheim, cada tipo de solidariedade é correspondente a um determinado tipo de vida social. Os homens se unem mecanicamente em sociedades segmentárias, como por exemplo, em clãs, tribos. Já a união em torno do estabelecimento de um consenso, se dá em sociedades mais complexas, em que para o seu bom funcionamento é fundamental a diferenciação das funções atribuídas para cada indivíduo. Deste modo, é possível que no interior de uma sociedade baseada na solidariedade orgânica existam sociedades menos complexas conformadas por meio da solidariedade mecânica.  

A divisão do trabalho social é, então, a principal fonte de solidariedade orgânica. Para o autor, uma organização complexa como as sociedades industriais, baseia-se essencialmente na atribuição de papéis e funções claramente distintas para seus membros. Esta divisão no âmbito do trabalho é uma condição imposta aos indivíduos para que estes se amoldem na sociedade, sob pena de desajustar o seu funcionamento harmonioso e interferir na coesão social necessária.

Pode-se afirmar que a divisão do trabalho social é um fenômeno geral, que ocorre com a grande maioria dos indivíduos. E mais, se dá de forma externa á vontade destes, tendo um caráter coercitivo. Desta forma, de acordo com o pensamento durkheimiano, a divisão do trabalho social é um fato social[1], o objeto (coisa) de que deve se ocupar a sociologia.

É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais (DURKHEIM, 1999, p.13).

É por ser um fato social, se apresentando isolado de suas manifestações individuais, que o estudo da divisão do trabalho social pressupõe o estudo da solidariedade social.  É por meio do estabelecimento orgânico de laços solidários que os indivíduos, cada um executando suas funções, conseguem se manter coesos permitindo o funcionamento saudável do organismo social.

2.1.A diferenciação das funções no organismo social

Influenciado pelas idéias de Spencer[2], Durkheim percebe a sociedade semelhante a um organismo biológico, cujo bom funcionamento depende da consonância em que seus diversos órgãos trabalham, cada um executando a função que lhe é devida, sendo esta, por sua vez, diferenciada.

Mas não basta a execução de funções individuais para que uma coletividade se mantenha coesa, faz-se necessária a cooperação entre as mesmas. A existência de laços solidários fazem com que tal entrosamento harmonioso se realize. Dependendo do grau de complexidade da sociedade de que se trata, maior ou menor será a diferenciação entre as funções desempenhadas, assim como também variará o tipo de solidariedade. “Quanto mais complexa uma coisa, mais as partes que a compõem podem formar combinações diferentes” (DURKHEIM, 1999, p. 89).

Durkheim vê na divisão do trabalho social a imposição de dois aspectos: de maneiras de ser e maneiras de fazer coletivas. É percebendo a sociedade por meio de uma sociologia biologicista, que no primeiro caso, classifica como sendo de ordem fisiológica, e no segundo, de ordem anatômica ou morfológica. A não realização pelos indivíduos de suas funções correspondentes, acarretaria uma ameaça à saúde do organismo social[3].

A sobrevivência de uma sociedade depende de sua coesão social, e esta, por sua vez, é ameaçada todas as vezes que ocorre um desvio do padrão comportamental e funcional. Uma sociedade saudável seria aquela que suas chances de sobrevivência estão em seu grau máximo, e, portanto, cada indivíduo executando seu papel que é complementar ao papel de outros indivíduos.

2.2. A divisão sexual das funções sociais

O estudo durkheimiano do estabelecimento orgânico de uma solidariedade social traz em si uma noção de complementaridade de papéis e funções sociais. De acordo com o autor, a divisão do trabalho se dá também de forma sexuada, ou seja, aos homens e mulheres são atribuídas diferentes funções dentro da sociedade – funções complementares.

Para analisar a divisão do trabalho sexual, Durkheim utiliza como fundamento a história da sociedade conjugal. Inicia afirmando que a união entre um homem e uma mulher se dá devido à sua dessemelhança natural. “É por que o homem e a mulher diferem um do outro que eles se procuram com paixão” (DURKHEIM, 1989, p.71). Assim, é da união entre estes seres distintos que decorrem os laços solidários.

De acordo com o autor, o homem e a mulher isolados um do outro não passam de partes diferentes de um todo que somente se concretiza com a divisão do trabalho sexual, origem da solidariedade conjugal. Segundo seu pensamento, a diferenciação e atribuição de funções femininas e masculinas se dão baseadas nas disparidades biológicas.

No que se refere às dessemelhanças naturais entre os sexos, Durkheim aplica o evolucionismo biológico à realidade social. Utilizando-se de estudos antropológicos influenciados pelo darwinismo social, afirma que nas sociedades primitivas, as diferenças entre o corpo feminino e o masculino eram bem menores que nas sociedades evoluídas. A partir de estudos realizados com crânios de distintas sociedades em variadas épocas, constatou-se que com a civilização somente houve evolução dos crânios masculinos, o que levou a um arremate que legitimou uma educação[4] e uma vida desigual para homens e mulheres:

O volume do crânio do homem e da mulher, mesmo quando se comparam indivíduos de idade igual, de estrutura igual e de peso igual, apresenta diferenças consideráveis a favor do homem, e esta desigualdade vai igualmente crescendo com a civilização, de maneira que do ponto de vista da massa encefálica e, por conseqüência, da inteligência, a mulher tende a diferenciar-se cada vez mais do homem (DURKHEIM, 1989, p.3).

Dessemelhanças anatômicas são acompanhadas de dessemelhanças funcionais. Assim, se com a evolução da sociedade a mulher cada vez mais se distingue fisicamente do homem, é natural que as funções desempenhadas por cada um sejam cada vez mais diferenciadas. E mais: se com a evolução biológica as mulheres encontram-se em patamar inferior ao dos homens, provavelmente os papéis atribuídos ao sexo feminino são socialmente aceitos como hierarquicamente inferiores.

Esta visão durkheimiana acerca da divisão sexual das funções sociais remete, até certo ponto, ao pensamento aristotélico.

O filósofo Aristóteles é citado por Alicia Puleo (2002, p. 65) como o construtor de um pensamento que deu fundamento ao discurso misógino[5], sendo ele o precursor de uma Filosofia androcêntrica[6]. Cita Ética a Nicômaco, onde este afirma que a virtude se baseia na noção de função que o humano realiza em sociedade. Para ele, a função determina que os homens livres façam uso da razão, enquanto que as mulheres cumpram sua função reprodutiva e assistencial. Ainda segundo Puleo, no discurso ontológico aristotélico a oposição matéria/forma corresponde aos dualismos mulher/homem, natureza/ razão, onde complementaridade não significa igualdade, pois na existência dos dois sexos a forma (homem) é mais divina que a matéria (mulher)[7].

Voltando ao pensamento de Durkheim, percebe-se que mesmo que seu discurso legitime uma hierarquização entre tarefas masculinas e femininas, a divisão do trabalho sexual tem, sobretudo uma conotação de complementaridade entre as distintas funções. Tal complementaridade tem o poder de assegurar a organização necessária para a manutenção da ordem social.

Indo além do aspecto econômico, a divisão do trabalho sexual é permeada por uma ordem social e moral estabelecida. O maior efeito desta divisão do trabalho não seria o aumento da rentabilidade das funções divididas, mas o fato de torná-las solidárias. Neste sentido, o autor afirma que: “(...) pode-se no entanto entrever desde já que, se é [a coesão social] realmente a função da divisão do trabalho, ela deve ter um caráter moral, porque a necessidade de ordem, de harmonia, de solidariedade social, passam geralmente por ser morais” (DURKHEIM,1989, p.79).

Fez-se assim, portanto, social e moralmente aceito uma nítida segregação dos espaços pensados para cada sexo. De acordo com Durkheim, ao longo da evolução social foi se observando que as mulheres aos poucos se ocuparam de atividades até então somente exercidas por homens. Aparentemente isso traria uma homogeneização entre as atividades femininas e masculinas, contudo, o que realmente ocorre é que os homens deixam gradualmente esses espaços para dedicarem-se aos papéis mais ligados à racionalidade (que lhe é própria) adquirida no decorrer de sua evolução biológica.

Ao ver, em certas classes, as mulheres ocuparem-se como os homens da arte e da literatura, poder-se-ia crer, é verdade, que as ocupações dos dois sexos tendem a tornar-se homogêneas. Mas mesmo nesta esfera de acção a mulher aplica a sua natureza própria, e o seu papel permanece muito especial, muito diferente do homem. Além disso, se a arte e as letras começam a tornar-se coisas femininas, o outro sexo parece abandoná-las para se entregar mais especialmente à ciência (DURKHEIM, 1989, p.75).

A organização social durkheimiana das sociedades civilizadas pressupõe uma nítida desigualdade entre os sexos: ao longo dos tempos as mulheres retiraram-se do espaço público dedicando-se por completo à família. Distanciando-se crescentemente as funções masculinas e femininas, as duas grandes funções da vida psíquica aos poucos foram se dissociando: segundo o autor, as mulheres monopolizaram as funções afetivas; e os homens, por outro lado, as funções intelectuais.

Tal dicotomia vai permear toda a divisão do trabalho social, que evidentemente possui um caráter sexuado. Atribuindo biológica e psiquicamente características e capacidades[8] distintas para cada sexo, a divisão do trabalho sexual é então legitimada. E não somente isso, segundo a idéia de Durkheim, tal divisão é essencial para a existência de uma sociedade complexa.

3 ‘Divisão do Trabalho Sexual’ Versus ‘Divisão Sexual Do Trabalho

A divisão sexual do trabalho é considerada como um aspecto da divisão social do trabalho, e nela a dimensão opressão/dominação está fortemente contida. (...) é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista das relações sexuadas de poder. (...) É assim, indissociável das relações sociais entre homens e mulheres, que são relações de exploração e opressão entre duas categorias de sexo socialmente construídas (Helena HIRATA, Uma nova divisão sexual do trabalho?).

Com o advento dos estudos feministas e de gênero[9] acerca da divisão sócio-técnica do trabalho, o caráter sexuado destas relações passou a ser percebido e analisado de uma forma distinta da visão durkheimiana. Durkheim tinha uma percepção acerca da divisão do trabalho sexual como a atribuição de funções complementares e harmônicas para mulheres e homens, essenciais para a conservação da coesão social. Já os estudos realizados através da categoria de análise gênero, vêem na divisão sexual do trabalho a importância da percepção das relações de poder estabelecidas entre os sexos: aqui, a segmentação sexuada dos espaços profissionais não mais se dá de forma harmoniosa e complementar, percebe-se a dimensão do conflito, das relações de dominação/subordinação.

Deste modo, então, a expressão durkheimiana ‘divisão do trabalho sexual’, não apreende as relações de desigualdade entre os sexos, a delimitação dos espaços sociais masculinos e femininos é percebida como aspecto fundante de uma sociedade evoluída.  Carregado de influências do biologicismo social, o autor utiliza-se das diferenças corporais entre mulheres e homens para justificar a delimitação de fronteiras sexuais no meio social.

Por outro lado, os estudos de gênero através do termo ‘divisão sexual do trabalho ’ denunciam as relações de dominação e opressão existentes entre os sexos. Aqui as diferenças biológicas não mais justificam a existência de tal segregação em que as mulheres encontram-se em posição desvantajosa em relação aos homens. A demarcação sexual dos espaços não foi delineada naturalmente a partir das características corporais femininas e masculinas, foi muito mais uma construção sócio-histórica.

Uma das maiores estudiosas da problemática, Helena Hirata (2002), afirmando que o estudo das relações sociais sexuadas está tendo um efeito muito fecundo nas ciências sociais, diz que o conceito de divisão sexual do trabalho não é uno e inequívoco, existindo duas teorias ideologicamente e epistemologicamente opostas, que seriam: a teoria do vínculo social e da relação social. A primeira afirma a complementaridade entre homens e mulheres ou de uma conciliação de papéis em que a estabilidade social é assegurada pelo papel familiar e doméstico atribuído às mulheres.

Já a teoria da relação social baseia-se, ao contrário do vínculo social, na idéia de uma relação antagônica entre homens e mulheres, onde há práticas de dominação/opressão do masculino sobre o feminino. Esta é a conduta epistemológica adotada pela autora, haja vista perceber que: se as relações sociais são permeadas por contradição, conflito, não se trata de uma condição fixa e imóvel. Assim sendo, a divisão sexual do trabalho é passível de mudanças no bojo destas relações, permitindo-se não somente o deslocamento das fronteiras na hierarquia dos sexos, como também a sua ruptura e real transformação.

Émile Durkheim, com sua visão da divisão do trabalho sexual, deu os fundamentos para a teoria do vínculo social, ainda muito aceita e difundida no meio acadêmico e político[10].

3.1 A divisão sexual do trabalho e da educação: uma abordagem a partir das relações de gênero

Há uma divisão sexual dos espaços pautada numa hierarquia, tanto no mercado de trabalho quanto na educação, âmbitos estes diretamente vinculados. Catherine Marry (2003, p.89), a partir de uma pesquisa comparativa realizada entre França e Alemanha, afirma que nos dois países, assim como em toda a parte, as clivagens sexuadas nos estudos e nos empregos perduram: letras, ciências humanas e especialidades do terciário ainda são privilégio das mulheres, já as ciências exatas e as técnicas industriais, dos homens. Segundo a autora essas desigualdades remetem-se: “a mecanismos de interiorização/imposição da dominação masculina ou à antecipação refletida e ponderada de seu destino mais provável, o de esposa e mãe, que deve conciliar vida profissional e vida familiar”[11].

A formação profissional das mulheres obtida através de cursos superiores se construiu, segundo Marry, sob a ótica da preparação para as funções de mãe/esposa (costura, afazeres domésticos, assistência aos doentes e às crianças), e sua profissionalização (aperfeiçoamento dos conhecimentos gerais e técnicos). Este fato teve como conseqüência o problema de reconhecimento social e salarial.

Desta forma, as profissões tipicamente femininas, como por exemplo, Serviço Social, Pedagogia, Enfermagem, dentre outras, representam um aperfeiçoamento técnico das tarefas historicamente destinadas à mulher. Por este fato tais profissionais não possuem igual status perante os que se encontram nas profissões masculinizadas, sendo assim desvalorizadas socialmente. É este julgamento social a causa da desvantagem salarial destas trabalhadoras.

Mas a desigualdade entre os sexos ainda vai mais além da divisão sexual entre as profissões. Mesmo quando homens e mulheres exercem a mesma profissão, existe na grande maioria das vezes, a tendência aos cargos de chefia (ou todos aqueles que requerem um poder maior de decisão), serem assumidos por profissionais do sexo masculino. São oferecidas aos homens mais oportunidades de “carreira” do que às mulheres.

De acordo com Hirata (2002, p. 198) existe ainda no seio da divisão do trabalho social e sexual, uma apropriação da esfera tecnológica pelo poder masculino. Deste modo defende ser impossível uma abordagem das relações de trabalho sem perceber que existe uma apropriação histórico-social da tecnologia pelos homens, pois:

Em diversos postos de trabalho, os homens se apropriam da tecnologia enquanto conceito, desenvolveram tecnologias de produção específicas que reivindicaram como direito deles, e que defendem como domínios masculinos (...) E a partir da apropriação da esfera tecnológica pelos homens há uma construção social do feminino como incompetente tecnicamente. (COCKBURN, 1983, apud HIRATA, 2002, p. 199, grifos da autora)

Afirmando a invisibilidade das mulheres enquanto atores sociais nas mais variadas disciplinas das ciências humanas, Hirata (2002, p.199) constata que há uma necessidade de estudar de que maneira a tecnologia afeta a organização do trabalho segundo os sexos. Visto que é a partir de uma abordagem da divisão sexual do trabalho que se poderá “desfetichizar” a tecnologia.

Em decorrência disso, nas mais variadas tipologias industriais analisadas pela autora, a inserção de novas tecnologias é acompanhada por um movimento de ocupação masculina dos cargos qualificados, e pela exclusão feminina dos postos que passam a exigir uma maior qualificação. Assim as operárias carregam um estigma de mão-de-obra não qualificada, por serem destinados a estas cargos hierarquicamente inferiores.

A marginalização feminina em relação aos postos de trabalho que requerem uma maior qualificação para lidar com as novas tecnologias, somente pode ser compreendida se não perdermos de vista as relações sociais estabelecidas fora do ambiente profissional. Haja vista ser a divisão sexuada de papéis existente em todos os níveis do cotidiano, principalmente no âmbito doméstico, que estruturam as relações profissionais entre homens e mulheres.

Há então uma interpenetração das esferas pública e privada na construção social e histórica da divisão sexual do trabalho. Reconsiderar o conceito de trabalho por meio da análise das relações de gênero seria de profunda relevância no meio acadêmico. Na sociologia deve-se questionar o conceito de trabalho, visto que para esta disciplina somente é considerado trabalho, aquele que se localiza na esfera produtiva da sociedade, ou seja, aquele que é assalariado. Destarte, o trabalho doméstico é visto de forma depreciativa, não sendo considerado como tal. Vê-se então a necessidade de uma ampliação do conceito sociológico de trabalho, que inclua trabalho assalariado e doméstico, sob pena de desconsiderar a importância histórica e social das atividades exercidas pelas mulheres.

4. Considerações finais 

Émilie Durkheim, ao tomar como objeto de estudo a divisão do trabalho social, percebeu que nesta havia como fundamento uma divisão do trabalho estabelecida entre homens e mulheres.  De acordo com seu pensamento, a partir das diferenças biológicas femininas e masculinas se engendrou uma nítida diferenciação das funções atribuídas para cada sexo. Principal fonte de solidariedade orgânica, a divisão do trabalho social (e também sexual), seria fundamental para que houvesse a coesão social necessária à existência de uma sociedade evoluída.

A visão durkheimiana acerca da dimensão sexuada da delimitação dos espaços femininos e masculinos no mundo do trabalho, corresponde a um caráter de complementaridade entre as atividades exercidas por mulheres e homens. Utilizando a expressão divisão do trabalho sexual, percebe as relações estabelecidas entre os sexos a partir da conformação de um vinculo solidário. Esta percepção deu embasamento à teoria do vínculo social, que se contrapõe à teoria das relações sociais.

Enquanto a primeira não dá conta do caráter conflituoso na delimitação de fronteiras funcionais entre homens e mulheres, justificando-as por meio das diferenças biológicas; a segunda, ao contrário, percebe tais relações como sendo construídas dialeticamente dentro do processo sócio-histórico, e, portanto, possíveis de ser desconstruídas e reconstruídas.

Tendo como base de estudo desta problemática a categoria analítica gênero, o termo divisão sexual do trabalho, dá conta da existência das relações sociais de poder estabelecidas entre os sexos: dominação/ subordinação e hierarquização, nas quais as mulheres geralmente se encontram em desvantagem em relação aos homens.

O estudo da divisão sexual do trabalho a partir das relações de gênero é de suma relevância teórico-epistemológica, pois deste modo torna-se possível uma análise mais aprofundada do processo de construção das fronteiras da desigualdade entre os sexos. E somente assim, poderão ser melhor compreendidos os fenômenos sociais construídos e que são tomados pelo imaginário social (e também acadêmico, muitas vezes) como naturais, externos ao controle dos sujeitos políticos.

Neste sentido, é importante compreender que no seio das transformações no mundo do trabalho contemporâneo, das “metamorfoses da questão social”, continua existindo, e sendo fundante, a dimensão sexuada das relações estabelecidas socialmente. No mercado de trabalho, delineia-se ainda uma nítida divisão sexual das formações e dos empregos, onde as profissões tipicamente femininas carregam em si a desvalorização social, e conseqüentemente, salarial.

No que se reporta ao campo das formações, é bem verdade que as mulheres, ao se fazerem crescentemente presentes e atuantes em todos os níveis educacionais, conquistaram mais lugares no mercado de trabalho. Se antes elas não tinham acesso à educação formal, hoje no Brasil chegam a representar maioria das matrículas, inclusive no Ensino Superior, no qual em 2003 a presença das mulheres matriculadas já é 12,8% maior do que o percentual masculino (GODINHO, 2006).

Somente a partir de uma análise realizada através da categoria gênero, pode-se perceber que as conquistas femininas são de fato notórias, mas ainda não constituem uma verdadeira igualdade entre os sexos: se as matrículas femininas são maioria no Ensino Superior, ou se as mulheres já são quase a metade da População Economicamente Ativa (42,7%), deve-se perceber que na universidade estas ainda encontram-se em áreas feminizadas e desvalorizadas. Nos empregos, marcados pela divisão sexual do trabalho, as mulheres ainda ganham menos que os homens[12] e tem menores chances de seguirem carreira num emprego estável.

Percebe-se, então, que mudanças no cenário atual não significam uma efetiva transformação que venha romper com as relações de gênero desiguais e hierarquizadas. Houve sim um deslocamento dos limites que segregam os sexos, mas não ocorreu uma real ruptura das fronteiras da desigualdade.

Sem dúvida, a divisão sexual do trabalho é algo que se reatualiza e vai permanecendo, embora adquirindo novas formas. Deste modo, tal problemática ainda representa um terreno bastante fecundo para estudos e discussões no âmbito das Ciências Sociais. Todavia, por outro lado, este processo requer bastante cautela. Não se pode descuidar que a obra de Durkheim influenciou, sobremaneira, na sedimentação de uma visão biologicista no campo científico, que surge naturalizando papéis desiguais e seus respectivos status para cada sexo.

Faz-se necessário, então, perceber a divisão do trabalho existente entre mulheres e homens como uma realidade imersa na teia das relações sociais, e, como tal, permeada por conflitos e contradições. Assim, será que uma análise, que tenha como base a lógica da complementaridade solidária de Durkheim, é suficiente para dá conta de uma questão de tamanha complexidade? Por outro lado, quais caminhos a categoria gênero necessita percorrer na conquista de mais espaços no campo científico?

Mesmo nestes tempos em que as Ciências Sociais proclamam uma pretensa desvinculação do “ranço” positivista, no âmbito dos estudos acerca do trabalho, muito comumente o caráter sexuado (que age também como um elemento fundante nas relações de poder), tem sido negligenciado.


__________

[1] Durkheim (1999) afirma que “É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda a maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais” (p.13). Para a sua observação, ainda segundo o autor, “a primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas” (p. 15).

[2] Spencer estabelece como uma proposição evidente que “uma sociedade só existe quando à justaposição acrescentou-se a cooperação”, sendo somente então que a união dos indivíduos se torna uma sociedade propriamente dita. (DURKHEIM, 1999, p.21)

[3] Ainda seguindo este mesmo viés, o pensamento durkheimiano define o que pode ser benéfico ou danoso para o bom funcionamento da sociedade. Melhor dizendo, o que pode ser normal e patológico no meio social. Afirma ele: “Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos. (...) poderemos dizer que o tipo normal se confunde com o tipo médio e que todo desvio em relação a esse padrão da saúde é um fenômeno mórbido” (DURKHEIM, 1999, p. 58).

[4] Em Durkheim, “toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. (...) a educação tem justamente por objetivo produzir o ser social (...)” (1999, p. 06).

[5] Misoginia (misogynia), s. f (Méd.) repulado mórbida do homem às mulheres. (FERREIRA, A. B. H. Pequeno dicionário brasileiro da Língua Portuguesa, 1978.) Ou seja, um discurso misógino é aquele que contém a aversão às mulheres, reafirmando sua inferioridade em relação aos homens.

[6] Afirma Puleo (2002, p.116) que o androcentrismo é um efeito do sistema de gênero-sexo (relações sociais estabelecidas entre os sexos) no qual se consolida o homem e o masculino com excelência e a mulher e o feminino como desvio ou carência. O viés androcêntrico afeta todos os âmbitos da cultura.

[7] No resgate da Ciência grega, Chassot (2003, p. 45) afirma que há 2.400 anos, surgiram concepções que guiaram a produção de conhecimento durante séculos. Tais concepções legitimaram a submissão do sexo feminino ao masculino. Citando Aristóteles em seu livro X da Metafísica, afirma que o filósofo teoriza acerca dos Genos defendendo que os dois sexos são compreendidos em um só gênero, onde apenas uma forma – a do pai – é transmitida num geno. A mulher seria apenas o “depósito” onde o homem guardaria sua semente para a geração de um novo ser. Esta, por sua vez, não transmitiria suas características genéticas ao filho, sendo somente o homem o responsável por “dar a forma” ao descendente. Este afirmou ainda na Metafísica, que os corpos femininos são inacabados como o corpo de uma criança, cujo sêmen é estéril e o cérebro é menor que o do homem. Deste modo, Aristóteles através de seu discurso biológico de inferioridade da mulher, justifica o discurso político que nega a esta o status de cidadã em sentido pleno. Sendo confinadas ao âmbito doméstico, as mulheres não possuíam o direito de participação política na Polis.

[8] “A única causa que determina então a maneira como o trabalho se divide é a diversidade das capacidades. Pela força das coisas a partilha faz-se portanto no sentido das aptidões, pois que não há razão para que se faça de outro modo. Assim se realiza por si mesma a harmonia entre a constituição de cada indivíduo e a sua condição” (DURKHEIM, 1989,p.171).

[9] “A preocupação teórica relativa ao gênero como categoria de análise somente surge no final do século XX. Em toda a produção científica feminista realizada do século XVIII até o início do século passado não havia o estudo a partir de um ângulo relacional (Scott, 1990, p.13). Até então algumas teorias constituíam sua lógica a partir de analogias da oposição binária masculino/feminino, outras ainda reconheciam a “questão feminina” como formulação de uma identidade sexual subjetiva. Somente a partir da utilização do gênero se passou a fazer referência às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, não o sexo biológico, mas uma categoria social imposta sobre o corpo sexuado” (MATIAS DOS SANTOS,2004, p.31).

[10] As políticas públicas desenvolvidas a partir desta lógica, no que se remete às mulheres, visam a conciliação da vida familiar e profissional, sendo destinadas a estas, geralmente, trabalhos em tempo parcial.

[11] Um dos grandes influenciadores do pensamento sociológico de Durkheim foi o teórico do positivismo, Auguste Comte. A sociedade positivista é também permeada pela relação desigual entre os sexos, onde as mulheres possuem papéis sociais inferiores a serem assumidos sob a pena do caos social: “Para o positivismo a humanidade [divinizada] é formada só de homens. Quanto à mulher, Comte julgou-a condenada à inferioridade pelas leis irrevogáveis da natureza.(...) Contudo, embora as mulheres sejam excluídas da humanidade divinizada, não são excluídas da sociedade positivista. Elas não participam da sua atividade, porém cada uma é a inspiradora de cada um dos membros. As mulheres, segundo Comte, são o sustentáculo das Providências Sociais, pois seu concurso é indispensável para o advento do positivismo. Elas têm uma “função moderadora” e uma única missão: a de amar.” (RIBEIRO JÚNIOR, 1982, p.33-34). A ordem social necessita de uma fiel esposa e boa mãe, que seja dócil e amável.  A participação feminina é recolhida à insignificância política de coadjuvante. Isso corresponde à idéia durkheimiana de que houve uma divisão dos dois pilares psíquicos da sociedade entre os sexos: os homens ficaram com a intelectualidade, as mulheres com a afetividade. Nada seria mais vinculado à afetividade do que os estereótipos e papéis de mãe e esposa.

[12] Em 2003, as mulheres com 11 anos ou mais de estudo ganham apenas 58,6% do que recebem os homens com igual escolaridade. Fonte: IBGE, Síntese de indicadores sociais 2004/ Mulher. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br> Acesso em: 10 Maio 2006.

 

por VIVIAN MATIAS DOS SANTOS ALBUQUERQUE

Referências Bibliográficas

ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. 4 ed. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CHASSOT, A. I. A Ciência é masculina? É sim, senhora! São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. (Coleção Aldus 16)

DURKHEIM, E. A divisão do trabalho social. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1991. (Volume II).

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.