1. Introdução
Este ensaio visa traçar um estudo comparativo entre a
significação das expressões ‘divisão do trabalho sexual’ durkheimiana e
‘divisão sexual do trabalho’ a partir da categoria analítica gênero.
Para tal finalidade num primeiro momento fez-se necessário
ponderar e contextualizar a divisão do trabalho social de Durkheim,
percebida como a principal fonte de solidariedade necessária para a coesão
social - condição para a existência de uma sociedade evoluída.
A análise das influências de vertentes biológicas na
Sociologia de Émile Durkheim, foi o ponto de partida para a compreensão da
legitimação de uma diferenciação funcional estabelecida entre os sexos.
Após percorrer este caminho, finalmente fez-se uma abordagem
da segregação dos espaços profissionais masculinos e femininos, por meio de
autoras que estudam a divisão sexual do trabalho tendo como base as
relações de gênero, enquanto relações sociais de poder estabelecidas entre
mulheres e homens.
2. A Divisão doTrabalho Social: Fonte de Solidariedade
Orgânica
(...) estas grandes sociedades políticas não podem, também
elas, manter-se em equilíbrio senão graças à especialização das tarefas; que
a divisão do trabalho é a origem, se não a única, pelo menos a principal da
solidariedade social (Émile DURKHEIM, da divisão do trabalho
social).
Na visão de Durkheim (1991), para o funcionamento harmônico
de uma sociedade precisaria existir uma coesão social, onde o indivíduo
deveria se adequar à coletividade. Essa adequação seria produzida pelos
laços de solidariedade. Somente por meio de vínculos solidários que uma
“coleção de indivíduos” constituiria uma sociedade.
A solidariedade capaz de assegurar a coesão social entre os
indivíduos é subdivida e classificada pelo autor como sendo de dois tipos: a
solidariedade mecânica ou por similitudes; e a solidariedade
orgânica, devido à divisão do trabalho social. No primeiro caso, o
estabelecimento dos laços solidários se dá entre indivíduos semelhantes, que
comungam os mesmos valores, as mesmas crenças, os mesmos costumes. Neste
caso a coerência social não provém da diferenciação entre os membros da
sociedade, estes se unem mecanicamente, sem precisar de um consenso em torno
dos vários aspectos da vida coletiva.
Ao contrário, a solidariedade orgânica, tem como base
fundamental a diferenciação entre os indivíduos, que possuem culturas e
práticas distintas. Sendo estes indivíduos dessemelhantes, e por
causa/conseqüência exercendo diferentes funções, para que haja uma coesão
social faz-se necessário o consenso, visto que:
A solidariedade orgânica não é possível senão quando cada um
tem uma esfera de acção (SIC) que lhe é própria, conseqüentemente, uma
personalidade. Assim, é necessário que a consciência coletiva deixe
descoberta uma parte da consciência individual, para que aí se estabeleçam
essas funções especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais extensa
esta região for, mais forte é a coesão resultante desta solidariedade (DURKHEIM,
1989, p.152).
Na visão de Durkheim, cada tipo de solidariedade é
correspondente a um determinado tipo de vida social. Os homens se unem
mecanicamente em sociedades segmentárias, como por exemplo, em clãs, tribos.
Já a união em torno do estabelecimento de um consenso, se dá em sociedades
mais complexas, em que para o seu bom funcionamento é fundamental a
diferenciação das funções atribuídas para cada indivíduo. Deste modo, é
possível que no interior de uma sociedade baseada na solidariedade orgânica
existam sociedades menos complexas conformadas por meio da solidariedade
mecânica.
A divisão do trabalho social é, então, a principal fonte de
solidariedade orgânica. Para o autor, uma organização complexa como as
sociedades industriais, baseia-se essencialmente na atribuição de papéis e
funções claramente distintas para seus membros. Esta divisão no âmbito do
trabalho é uma condição imposta aos indivíduos para que estes se amoldem na
sociedade, sob pena de desajustar o seu funcionamento harmonioso e
interferir na coesão social necessária.
Pode-se afirmar que a divisão do trabalho social é um
fenômeno geral, que ocorre com a grande maioria dos indivíduos. E mais, se
dá de forma externa á vontade destes, tendo um caráter coercitivo. Desta
forma, de acordo com o pensamento durkheimiano, a divisão do trabalho social
é um fato social,
o objeto (coisa) de que deve se ocupar a sociologia.
É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não,
suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda
maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo
tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações
individuais (DURKHEIM, 1999, p.13).
É por ser um fato social, se apresentando isolado de suas
manifestações individuais, que o estudo da divisão do trabalho social
pressupõe o estudo da solidariedade social. É por meio do estabelecimento
orgânico de laços solidários que os indivíduos, cada um executando suas
funções, conseguem se manter coesos permitindo o funcionamento saudável do
organismo social.
2.1.A diferenciação das funções no organismo social
Influenciado pelas idéias de Spencer,
Durkheim percebe a sociedade semelhante a um organismo biológico, cujo bom
funcionamento depende da consonância em que seus diversos órgãos trabalham,
cada um executando a função que lhe é devida, sendo esta, por sua vez,
diferenciada.
Mas não basta a execução de funções individuais para que uma
coletividade se mantenha coesa, faz-se necessária a cooperação entre as
mesmas. A existência de laços solidários fazem com que tal entrosamento
harmonioso se realize. Dependendo do grau de complexidade da sociedade de
que se trata, maior ou menor será a diferenciação entre as funções
desempenhadas, assim como também variará o tipo de solidariedade. “Quanto
mais complexa uma coisa, mais as partes que a compõem podem formar
combinações diferentes” (DURKHEIM, 1999, p. 89).
Durkheim vê na divisão do trabalho social a imposição de dois
aspectos: de maneiras de ser e maneiras de fazer coletivas.
É percebendo a sociedade por meio de uma sociologia biologicista, que no
primeiro caso, classifica como sendo de ordem fisiológica, e no segundo, de
ordem anatômica ou morfológica. A não realização pelos indivíduos de suas
funções correspondentes, acarretaria uma ameaça à saúde do organismo social.
A sobrevivência de uma sociedade depende de sua coesão
social, e esta, por sua vez, é ameaçada todas as vezes que ocorre um desvio
do padrão comportamental e funcional. Uma sociedade saudável seria aquela
que suas chances de sobrevivência estão em seu grau máximo, e, portanto,
cada indivíduo executando seu papel que é complementar ao papel de outros
indivíduos.
2.2. A divisão sexual das funções sociais
O estudo durkheimiano do estabelecimento orgânico de uma
solidariedade social traz em si uma noção de complementaridade de papéis e
funções sociais. De acordo com o autor, a divisão do trabalho se dá também
de forma sexuada, ou seja, aos homens e mulheres são atribuídas diferentes
funções dentro da sociedade – funções complementares.
Para analisar a divisão do trabalho sexual, Durkheim utiliza
como fundamento a história da sociedade conjugal. Inicia afirmando que a
união entre um homem e uma mulher se dá devido à sua dessemelhança natural.
“É por que o homem e a mulher diferem um do outro que eles se procuram com
paixão” (DURKHEIM, 1989, p.71). Assim, é da união entre estes seres
distintos que decorrem os laços solidários.
De acordo com o autor, o homem e a mulher isolados um do
outro não passam de partes diferentes de um todo que somente se concretiza
com a divisão do trabalho sexual, origem da solidariedade conjugal. Segundo
seu pensamento, a diferenciação e atribuição de funções femininas e
masculinas se dão baseadas nas disparidades biológicas.
No que se refere às dessemelhanças naturais entre os sexos,
Durkheim aplica o evolucionismo biológico à realidade social. Utilizando-se
de estudos antropológicos influenciados pelo darwinismo social, afirma que
nas sociedades primitivas, as diferenças entre o corpo feminino e o
masculino eram bem menores que nas sociedades evoluídas. A partir de estudos
realizados com crânios de distintas sociedades em variadas épocas,
constatou-se que com a civilização somente houve evolução dos crânios
masculinos, o que levou a um arremate que legitimou uma educação
e uma vida desigual para homens e mulheres:
O volume do crânio do homem e da mulher, mesmo quando se
comparam indivíduos de idade igual, de estrutura igual e de peso igual,
apresenta diferenças consideráveis a favor do homem, e esta desigualdade vai
igualmente crescendo com a civilização, de maneira que do ponto de vista da
massa encefálica e, por conseqüência, da inteligência, a mulher tende a
diferenciar-se cada vez mais do homem (DURKHEIM, 1989, p.3).
Dessemelhanças anatômicas são acompanhadas de dessemelhanças
funcionais. Assim, se com a evolução da sociedade a mulher cada vez mais se
distingue fisicamente do homem, é natural que as funções desempenhadas por
cada um sejam cada vez mais diferenciadas. E mais: se com a evolução
biológica as mulheres encontram-se em patamar inferior ao dos homens,
provavelmente os papéis atribuídos ao sexo feminino são socialmente aceitos
como hierarquicamente inferiores.
Esta visão durkheimiana acerca da divisão sexual das funções
sociais remete, até certo ponto, ao pensamento aristotélico.
O filósofo Aristóteles é citado por Alicia Puleo (2002, p.
65) como o construtor de um pensamento que deu fundamento ao discurso
misógino,
sendo ele o precursor de uma Filosofia androcêntrica.
Cita Ética a Nicômaco,
onde este afirma que a virtude se baseia na noção de função que o humano
realiza em sociedade. Para ele, a função determina que os homens livres
façam uso da razão, enquanto que as mulheres cumpram sua função reprodutiva
e assistencial. Ainda segundo Puleo, no discurso ontológico aristotélico a
oposição matéria/forma corresponde aos dualismos mulher/homem, natureza/
razão, onde complementaridade não significa igualdade, pois na existência
dos dois sexos a forma (homem) é mais divina que a matéria (mulher).
Voltando ao pensamento de Durkheim, percebe-se que mesmo que
seu discurso legitime uma hierarquização entre tarefas masculinas e
femininas, a divisão do trabalho sexual tem, sobretudo uma conotação de
complementaridade entre as distintas funções. Tal complementaridade tem o
poder de assegurar a organização necessária para a manutenção da ordem
social.
Indo além do aspecto econômico, a divisão do trabalho sexual
é permeada por uma ordem social e moral estabelecida. O maior efeito desta
divisão do trabalho não seria o aumento da rentabilidade das funções
divididas, mas o fato de torná-las solidárias. Neste sentido, o autor afirma
que: “(...) pode-se no entanto entrever desde já que, se é [a coesão social]
realmente a função da divisão do trabalho, ela deve ter um caráter moral,
porque a necessidade de ordem, de harmonia, de solidariedade social, passam
geralmente por ser morais” (DURKHEIM,1989, p.79).
Fez-se assim, portanto, social e moralmente aceito uma nítida
segregação dos espaços pensados para cada sexo. De acordo com Durkheim, ao
longo da evolução social foi se observando que as mulheres aos poucos se
ocuparam de atividades até então somente exercidas por homens. Aparentemente
isso traria uma homogeneização entre as atividades femininas e masculinas,
contudo, o que realmente ocorre é que os homens deixam gradualmente esses
espaços para dedicarem-se aos papéis mais ligados à racionalidade (que lhe é
própria) adquirida no decorrer de sua evolução biológica.
Ao ver, em certas classes, as mulheres ocuparem-se como os
homens da arte e da literatura, poder-se-ia crer, é verdade, que as
ocupações dos dois sexos tendem a tornar-se homogêneas. Mas mesmo nesta
esfera de acção a mulher aplica a sua natureza própria, e o seu papel
permanece muito especial, muito diferente do homem. Além disso, se a arte e
as letras começam a tornar-se coisas femininas, o outro sexo parece
abandoná-las para se entregar mais especialmente à ciência (DURKHEIM, 1989,
p.75).
A organização social durkheimiana das sociedades civilizadas
pressupõe uma nítida desigualdade entre os sexos: ao longo dos tempos as
mulheres retiraram-se do espaço público dedicando-se por completo à família.
Distanciando-se crescentemente as funções masculinas e femininas, as duas
grandes funções da vida psíquica aos poucos foram se dissociando: segundo o
autor, as mulheres monopolizaram as funções afetivas; e os homens, por outro
lado, as funções intelectuais.
Tal dicotomia vai permear toda a divisão do trabalho social,
que evidentemente possui um caráter sexuado. Atribuindo biológica e
psiquicamente características e capacidades
distintas para cada sexo, a divisão do trabalho sexual é então legitimada. E
não somente isso, segundo a idéia de Durkheim, tal divisão é essencial para
a existência de uma sociedade complexa.
3 ‘Divisão do Trabalho Sexual’ Versus ‘Divisão
Sexual Do Trabalho
A divisão sexual do trabalho é considerada como um aspecto da
divisão social do trabalho, e nela a dimensão opressão/dominação está
fortemente contida. (...) é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de
vista das relações sexuadas de poder. (...) É assim, indissociável das
relações sociais entre homens e mulheres, que são relações de exploração e
opressão entre duas categorias de sexo socialmente construídas (Helena
HIRATA, Uma nova divisão sexual do trabalho?).
Com o advento dos estudos feministas e de gênero
acerca da divisão sócio-técnica do trabalho, o caráter sexuado destas
relações passou a ser percebido e analisado de uma forma distinta da visão
durkheimiana. Durkheim tinha uma percepção acerca da divisão do trabalho
sexual como a atribuição de funções complementares e harmônicas para
mulheres e homens, essenciais para a conservação da coesão social. Já os
estudos realizados através da categoria de análise gênero, vêem na
divisão sexual do trabalho a importância da percepção das relações de
poder estabelecidas entre os sexos: aqui, a segmentação sexuada dos espaços
profissionais não mais se dá de forma harmoniosa e complementar, percebe-se
a dimensão do conflito, das relações de dominação/subordinação.
Deste modo, então, a expressão durkheimiana ‘divisão do
trabalho sexual’, não apreende as relações de desigualdade entre os sexos, a
delimitação dos espaços sociais masculinos e femininos é percebida como
aspecto fundante de uma sociedade evoluída. Carregado de influências do
biologicismo social, o autor utiliza-se das diferenças corporais entre
mulheres e homens para justificar a delimitação de fronteiras sexuais no
meio social.
Por outro lado, os estudos de gênero através do termo
‘divisão sexual do trabalho ’ denunciam as relações de dominação e opressão
existentes entre os sexos. Aqui as diferenças biológicas não mais justificam
a existência de tal segregação em que as mulheres encontram-se em posição
desvantajosa em relação aos homens. A demarcação sexual dos espaços não foi
delineada naturalmente a partir das características corporais femininas e
masculinas, foi muito mais uma construção sócio-histórica.
Uma das maiores estudiosas da problemática, Helena Hirata
(2002), afirmando que o estudo das relações sociais sexuadas está tendo um
efeito muito fecundo nas ciências sociais, diz que o conceito de divisão
sexual do trabalho não é uno e inequívoco, existindo duas teorias
ideologicamente e epistemologicamente opostas, que seriam: a teoria do
vínculo social e da relação social. A primeira afirma a
complementaridade entre homens e mulheres ou de uma conciliação de papéis em
que a estabilidade social é assegurada pelo papel familiar e doméstico
atribuído às mulheres.
Já a teoria da relação social baseia-se, ao contrário do
vínculo social, na idéia de uma relação antagônica entre homens e mulheres,
onde há práticas de dominação/opressão do masculino sobre o feminino. Esta é
a conduta epistemológica adotada pela autora, haja vista perceber que: se as
relações sociais são permeadas por contradição, conflito, não se trata de
uma condição fixa e imóvel. Assim sendo, a divisão sexual do trabalho
é passível de mudanças no bojo destas relações, permitindo-se não somente o
deslocamento das fronteiras na hierarquia dos sexos, como também a sua
ruptura e real transformação.
Émile Durkheim, com sua visão da divisão do trabalho
sexual, deu os fundamentos para a teoria do vínculo social, ainda muito
aceita e difundida no meio acadêmico e político.
3.1 A divisão sexual do trabalho e da educação: uma
abordagem a partir das relações de gênero
Há uma divisão sexual dos espaços pautada numa hierarquia,
tanto no mercado de trabalho quanto na educação, âmbitos estes diretamente
vinculados. Catherine Marry (2003, p.89), a partir de uma pesquisa
comparativa realizada entre França e Alemanha, afirma que nos dois países,
assim como em toda a parte, as clivagens sexuadas nos estudos e nos empregos
perduram: letras, ciências humanas e especialidades do terciário ainda são
privilégio das mulheres, já as ciências exatas e as técnicas industriais,
dos homens. Segundo a autora essas desigualdades remetem-se: “a mecanismos
de interiorização/imposição da dominação masculina ou à antecipação
refletida e ponderada de seu destino mais provável, o de esposa e mãe, que
deve conciliar vida profissional e vida familiar”.
A formação profissional das mulheres obtida através de cursos
superiores se construiu, segundo Marry, sob a ótica da preparação para as
funções de mãe/esposa (costura, afazeres domésticos, assistência aos doentes
e às crianças), e sua profissionalização (aperfeiçoamento dos conhecimentos
gerais e técnicos). Este fato teve como conseqüência o problema de
reconhecimento social e salarial.
Desta forma, as profissões tipicamente femininas, como por
exemplo, Serviço Social, Pedagogia, Enfermagem, dentre outras, representam
um aperfeiçoamento técnico das tarefas historicamente destinadas à mulher.
Por este fato tais profissionais não possuem igual
status perante os que se encontram nas profissões
masculinizadas, sendo assim desvalorizadas socialmente. É este julgamento
social a causa da desvantagem salarial destas trabalhadoras.
Mas a desigualdade entre os sexos ainda vai mais além da
divisão sexual entre as profissões. Mesmo quando homens e mulheres exercem a
mesma profissão, existe na grande maioria das vezes, a tendência aos cargos
de chefia (ou todos aqueles que requerem um poder maior de decisão), serem
assumidos por profissionais do sexo masculino. São oferecidas aos homens
mais oportunidades de “carreira” do que às mulheres.
De acordo com Hirata (2002,
p. 198) existe ainda no seio da divisão do trabalho social e sexual, uma
apropriação da esfera tecnológica pelo poder masculino. Deste modo defende
ser impossível uma abordagem das relações de trabalho sem perceber que
existe uma apropriação histórico-social da tecnologia pelos homens, pois:
Em diversos postos de trabalho, os homens se apropriam da
tecnologia enquanto conceito, desenvolveram tecnologias de produção
específicas que reivindicaram como direito deles, e que defendem como
domínios masculinos (...) E a partir da apropriação da esfera
tecnológica pelos homens há uma construção social do feminino como
incompetente tecnicamente. (COCKBURN, 1983, apud HIRATA, 2002, p.
199, grifos da autora)
Afirmando a invisibilidade das mulheres enquanto atores
sociais nas mais variadas disciplinas das ciências humanas, Hirata (2002,
p.199) constata que há uma necessidade de estudar de que maneira a
tecnologia afeta a organização do trabalho segundo os sexos. Visto que é a
partir de uma abordagem da divisão sexual do trabalho que se poderá
“desfetichizar” a tecnologia.
Em decorrência disso, nas mais variadas tipologias
industriais analisadas pela autora, a inserção de novas tecnologias é
acompanhada por um movimento de ocupação masculina dos cargos qualificados,
e pela exclusão feminina dos postos que passam a exigir uma maior
qualificação. Assim as operárias carregam um estigma de mão-de-obra não
qualificada, por serem destinados a estas cargos hierarquicamente
inferiores.
A marginalização feminina em relação aos postos de trabalho
que requerem uma maior qualificação para lidar com as novas tecnologias,
somente pode ser compreendida se não perdermos de vista as relações sociais
estabelecidas fora do ambiente profissional. Haja vista ser a divisão
sexuada de papéis existente em todos os níveis do cotidiano, principalmente
no âmbito doméstico, que estruturam as relações profissionais entre homens e
mulheres.
Há então uma interpenetração das esferas pública e privada na
construção social e histórica da divisão sexual do trabalho. Reconsiderar o
conceito de trabalho por meio da análise das relações de gênero seria de
profunda relevância no meio acadêmico. Na sociologia deve-se questionar o
conceito de trabalho, visto que para esta disciplina somente é considerado
trabalho, aquele que se localiza na esfera produtiva da sociedade, ou seja,
aquele que é assalariado. Destarte, o trabalho doméstico é visto de forma
depreciativa, não sendo considerado como tal. Vê-se então a necessidade de
uma ampliação do conceito sociológico de trabalho, que inclua trabalho
assalariado e doméstico, sob pena de desconsiderar a importância histórica e
social das atividades exercidas pelas mulheres.
4. Considerações finais
Émilie Durkheim, ao tomar como objeto de estudo a divisão do
trabalho social, percebeu que nesta havia como fundamento uma divisão do
trabalho estabelecida entre homens e mulheres. De acordo com seu
pensamento, a partir das diferenças biológicas femininas e masculinas se
engendrou uma nítida diferenciação das funções atribuídas para cada sexo.
Principal fonte de solidariedade orgânica, a divisão do trabalho social (e
também sexual), seria fundamental para que houvesse a coesão social
necessária à existência de uma sociedade evoluída.
A visão durkheimiana acerca da dimensão sexuada da
delimitação dos espaços femininos e masculinos no mundo do trabalho,
corresponde a um caráter de complementaridade entre as atividades exercidas
por mulheres e homens. Utilizando a expressão divisão do trabalho sexual,
percebe as relações estabelecidas entre os sexos a partir da conformação
de um vinculo solidário. Esta percepção deu embasamento à teoria do
vínculo social, que se contrapõe à teoria das relações sociais.
Enquanto a primeira não dá conta do caráter conflituoso na
delimitação de fronteiras funcionais entre homens e mulheres,
justificando-as por meio das diferenças biológicas; a segunda, ao contrário,
percebe tais relações como sendo construídas dialeticamente dentro do
processo sócio-histórico, e, portanto, possíveis de ser desconstruídas e
reconstruídas.
Tendo como base de estudo desta problemática a categoria
analítica gênero, o termo divisão sexual do trabalho, dá conta da
existência das relações sociais de poder estabelecidas entre os sexos:
dominação/ subordinação e hierarquização, nas quais as mulheres geralmente
se encontram em desvantagem em relação aos homens.
O estudo da divisão sexual do trabalho a partir das relações
de gênero é de suma relevância teórico-epistemológica, pois deste modo
torna-se possível uma análise mais aprofundada do processo de construção das
fronteiras da desigualdade entre os sexos. E somente assim, poderão ser
melhor compreendidos os fenômenos sociais construídos e que são tomados pelo
imaginário social (e também acadêmico, muitas vezes) como naturais, externos
ao controle dos sujeitos políticos.
Neste sentido, é importante compreender que no seio das
transformações no mundo do trabalho contemporâneo, das “metamorfoses da
questão social”, continua existindo, e sendo fundante, a dimensão sexuada
das relações estabelecidas socialmente. No mercado de trabalho, delineia-se
ainda uma nítida divisão sexual das formações e dos empregos, onde as
profissões tipicamente femininas carregam em si a desvalorização social, e
conseqüentemente, salarial.
No que se reporta ao campo das formações, é bem verdade que
as mulheres, ao se fazerem crescentemente presentes e atuantes em todos os
níveis educacionais, conquistaram mais lugares no mercado de trabalho. Se
antes elas não tinham acesso à educação formal, hoje no Brasil chegam a
representar maioria das matrículas, inclusive no Ensino Superior, no qual em
2003 a presença das mulheres matriculadas já é 12,8% maior do que o
percentual masculino (GODINHO, 2006).
Somente a partir de uma análise realizada através da
categoria gênero, pode-se perceber que as conquistas femininas são de fato
notórias, mas ainda não constituem uma verdadeira igualdade entre os sexos:
se as matrículas femininas são maioria no Ensino Superior, ou se as mulheres
já são quase a metade da População Economicamente Ativa (42,7%), deve-se
perceber que na universidade estas ainda encontram-se em áreas feminizadas e
desvalorizadas. Nos empregos, marcados pela divisão sexual do trabalho, as
mulheres ainda ganham menos que os homens
e tem menores chances de seguirem carreira num emprego estável.
Percebe-se, então, que mudanças no cenário atual não
significam uma efetiva transformação que venha romper com as relações de
gênero desiguais e hierarquizadas. Houve sim um deslocamento dos limites que
segregam os sexos, mas não ocorreu uma real ruptura das fronteiras da
desigualdade.
Sem dúvida, a divisão sexual do trabalho é algo que se
reatualiza e vai permanecendo, embora adquirindo novas formas. Deste modo,
tal problemática ainda representa um terreno bastante fecundo para estudos e
discussões no âmbito das Ciências Sociais. Todavia, por outro lado, este
processo requer bastante cautela. Não se pode descuidar que a obra de
Durkheim influenciou, sobremaneira, na sedimentação de uma visão
biologicista no campo científico, que surge naturalizando papéis desiguais e
seus respectivos status para cada sexo.
Faz-se necessário, então, perceber a divisão do trabalho
existente entre mulheres e homens como uma realidade imersa na teia das
relações sociais, e, como tal, permeada por conflitos e contradições. Assim,
será que uma análise, que tenha como base a lógica da complementaridade
solidária de Durkheim, é suficiente para dá conta de uma questão de tamanha
complexidade? Por outro lado, quais caminhos a categoria gênero necessita
percorrer na conquista de mais espaços no campo científico?
Mesmo nestes tempos em que as Ciências Sociais proclamam uma
pretensa desvinculação do “ranço” positivista, no âmbito dos estudos acerca
do trabalho, muito comumente o caráter sexuado (que age também como um
elemento fundante nas relações de poder), tem sido negligenciado.
__________
No resgate da Ciência grega, Chassot (2003, p. 45) afirma que há 2.400
anos, surgiram concepções que guiaram a produção de conhecimento durante
séculos. Tais concepções legitimaram a submissão do sexo feminino ao
masculino. Citando Aristóteles em seu livro X da Metafísica,
afirma que o filósofo teoriza acerca dos Genos defendendo que os dois
sexos são compreendidos em um só gênero, onde apenas uma forma – a do
pai – é transmitida num geno. A mulher seria apenas o “depósito” onde o
homem guardaria sua semente para a geração de um novo ser. Esta, por sua
vez, não transmitiria suas características genéticas ao filho, sendo
somente o homem o responsável por “dar a forma” ao descendente. Este
afirmou ainda na Metafísica, que os corpos femininos são inacabados como
o corpo de uma criança, cujo sêmen é estéril e o cérebro é menor que o
do homem. Deste modo, Aristóteles através de seu discurso biológico de
inferioridade da mulher, justifica o discurso político que nega a esta o
status de cidadã em sentido pleno. Sendo confinadas ao âmbito
doméstico, as mulheres não possuíam o direito de participação política
na Polis.
por VIVIAN MATIAS DOS SANTOS
ALBUQUERQUE