por ROBSON DOS SANTOS

Mestre em Sociologia pela Unicamp

 

 

 

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A estética política – literatura e sociedade em O Esperado, de Plínio Salgado

Robson dos Santos

 

Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender a relação entre política e literatura no romance O Esperado, de Plínio Salgado, publicado em 1931. A análise busca apontar a dinâmica entre o pensamento político e a criação estética, a partir de uma investigação das interfaces entre o projeto político integralista de Salgado e a politização de suas produções artísticas, processo esse relacionado às condições e regras do campo literário e intelectual brasileiro de então.

Palavras-chave: campo literário, sociedade, romance

Abstract: This article has as objective understand the relation between politics and literature in the O Esperado, Plínio Salgado´s romance, published in 1931. The analysis propose to indicate the dynamic between the politician thought and the aesthetic creation and to demonstrate the connection between the Salgado´s integralista project and its artistic productions. This process show the conditions and rules of the literary and  intellectual field in the Brazil.

keywords: literary field, society, romance

 

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A7%C3%A3o_Integralista_BrasileiraIntrodução

A primeira metade do século XX no Brasil é marcada por uma quantidade significativa de disputas políticas, confrontos ideológicos e de alterações econômicas e sociais. A necessidade que orientava os debates nos campos sociais, independente do lado em confronto, era a superação do chamado atraso nacional e a inserção do país no processo de modernização capitalista. Isso exigia a elaboração de um “projeto de nação”, um corpo de sugestões que pudesse orientar o desenvolvimento político e institucional do país, equiparando-o aos centros capitalistas em ascensão. Nesse universo marcado pelo confronto político e econômico, as disputas ideológicas sofrem um acirramento, principalmente durante a década de trinta: integralistas e comunistas digladiam-se no campo intelectual. Enquanto isso, Getulio Vargas capitaneava a construção de um Estado autoritário que buscava identificar nos confrontos ideológicos do período uma ameaça à ordem: eis que surge o Estado Novo.

A luz do contexto traçado sucintamente acima, objetiva-se nesse artigo realizar uma análise de O Esperado, romance de Plínio Salgado, publicado em 1931, após a chamada Revolução de 1930 e no momento em que Salgado havia retornado da Europa, onde tomara contato mais diretamente com as idéias fascistas e consolidara o desejo de fundar uma organização política. 

Ao investigarmos um aspecto da produção do principal representante do integralismo brasileiro, buscamos compreender de que forma suas propostas estéticas organizam-se a partir da necessidade de um engajamento político que encontraria na literatura um espaço privilegiado de propagação ideológica, condição comum no contexto extremamente politizado do campo literário, seja à esquerda ou à direita. Salgado não concebe projeto político sem uma dimensão artística e vice-versa.

Entre os diagnósticos sugeridos pelos intelectuais com a intenção de sanar os males da nação e apontar “projetos” para o país, o integralismo de Salgado foi um dos que concatenou muitos adeptos. Inserindo sua obra no contexto acima indicado esperamos compreender como se apresenta sua “tomada de posição” frente às discussões em pauta, bem como problematizar os paradoxos da vertente reacionária do modernismo, representada por ele e que irrompe de forma destacada em diversos de seus romances e obras sobre arte, como O estrangeiro (romance de 1926), Literatura e política (ensaio de 1927) e O Cavaleiro de Itararé (romance de 1933), entre outros.

O Esperado marca-se por uma tensão que percorre a narrativa em todos os momentos, caracterizada pelo conflito entre modernidade e tradição, entre o projeto estético que se torna hegemônico no campo intelectual a partir de 1922 e os projetos passadistas, mas que, muitas vezes, se harmonizam no campo político. Redigido entre o final dos anos 20 e início dos 30, absorve e desenvolve uma série de pressupostos modernistas para consolidar uma perspectiva literária com intenções políticas e envolvida pela ruptura estética, mas que irá recorrer a uma noção conservadora de tradição para subsidiar seu projeto político.

Apesar da relevância de Salgado para a compreensão do contexto em questão, vale notar a pequena quantidade de obras analíticas sobre seus romances. As referências às suas obras restringem-se, na maioria das vezes, aos textos predominantemente políticos e sociais. À sua literatura quase nada foi dedicado, apesar de seu vínculo estético com o modernismo de 1922. É óbvio que a rejeição histórica que a crítica reserva ao seu integralismo possui sólidos fundamentos, mas é preciso ressaltar que tal rejeição se articula ao jogo de forças no interior do campo literário, e explica, em partes, sua não consagração literária. No entanto, não deixa de ser interessante tentar vislumbrar por meio de sua obra um “clima” histórico particular, seja da sociedade nacional, seja do próprio campo literário, que possui um espaço destacado para proposições reacionárias e para sua posterior consagração.

Política e sociedade em O Esperado

“Muito se tem escrito, desde que o mundo é mundo, acerca desse grande problema da finalidade do Homem. E de tudo o que se sabe, a única coisa que resta, eterna e inquietadora, é a permanência de uma contínua aflição, a dor de secretos desejos, aspirações perenes de felicidade”[1]. As palavras aqui citadas são oriundas do texto de divulgação mais conhecido da doutrina Intregalista. Ele foi publicado em 1933, dois anos após O Esperado. Neste trecho podemos notar uma das características que se apresentam em diversas obras de Salgado: certo negativismo quanto a situação humana na terra, uma desesperança para com as formas de sociedades que até então se constituíram, uma desilusão para com o destino humano. Esta percepção orienta Salgado na elaboração de seu romance e a situação política e social brasileira, implícita ou explicitamente, compõe o conteúdo de seu texto. As influências intelectuais-filosóficas provem dos textos de Nietzsche e Shopenhauer. Salgado compartilha com tais autores uma percepção particularmente negativa da sociedade moderna e industrial, situação paradoxal, mas comum a certo modernismo reacionário. Em muitos casos, sua perspectiva se aproxima da máxima shopenhauriana que afirma a doutrina do sofrimento perene da existência humana.

Se o sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nosso existência é o maior contra-senso do mundo. Pois constitui um absurdo supor que a dor infinita, originária da necessidade essencial à vida, de que o mundo está pleno, é sem sentido e puramente acidental. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, aquela para o prazer possui limites estreitos. Embora toda infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade em geral constitui a regra (SHOPENHAUER, 2000, p. 277)

Sob as diretrizes sugeridas em tal visão de mundo, a literatura de Salgado é construída. Modernismo, nacionalismo, negativismo, política e engajamento constituem os parâmetros de sua produção.

O Esperado é o segundo romance de uma trilogia que Salgado havia iniciado com O Estrangeiro e terminaria em O Cavaleiro de Itararé. Esse conjunto de obras, como indica o autor no prefácio de O Esperado, buscava formar um panorama da situação social e histórica do Brasil. Imigração, messianismo, corrupção política, instituições fragilizadas, religiosidade, conflitos ideológicos e disputas políticas, transformações sociais e econômicas. Essa é a matéria prima da trilogia. Além disso, essa série de livros também é reveladora do tipo de concepção de Plínio Salgado sobre a situação histórica dos anos 20. Eles refletem sua inquietação com as contradições de uma sociedade em transição e expressam a fonte de onde brotam e se elaboram alguns dos temas fundamentais da ideologia integralista (TRINDADE, 1974).

A elaboração de O Esperado  ocorre por meio da apresentação de um quadro social profundamente fragmentado. Salgado constrói o romance sob um clima de modificações políticas no país e de maturação de uma nova perspectiva para seu pensamento. O clima de transição, de instabilidade, de incerteza, orquestra os sentimentos dos personagens. A sociedade em O Esperado é fragmentada e por isso abundam personagens no livro, por vezes de forma aparentemente desarticulada, mas atrelada à visão de mundo do autor.

A quantidade exagerada de personagens acaba por impedir um aprofundamento mais detalhado da psicologia dos indivíduos da trama, uma investigação mais destacada das motivações de cada um, bem como das perspectivas que os orientam. No entanto, a opção de Salgado por uma gama enorme de integrantes do romance visa traduzir as divergências e posturas que caracterizavam o contexto político. Comunistas, anarquistas, oligarcas, capitalistas, liberais, católicos, poetas, desempregados, prostitutas, burgueses, operários, o rol é extenso e complexo, mas cada um figura como síntese dos grupos sociais que compunham o almágama brasileiro. Suas vidas cruzam-se e distanciam-se na São Paulo que já se metamorfoseara em metrópole industrializada, mas ansiosa ainda da renda que flui das fazendas de café. Salgado vislumbra a capital paulista como paradigma do desespero que envolve o país. Urbana, capitalista, materialista, mundana e sensualista, a metrópole é o ambiente em que são dispostos os personagens de O Esperado. Não é gratuito o título do capítulo de abertura do livro: Sinfonia de cimento armado. Nele Salgado expõe a polifonia cultural e social que define a cidade, o artificialismo do concreto, as buzinas dos automóveis, a multidão, tudo aos seus olhos assume uma dimensão assombrosa e catastrófica, típica da modernidade sóciocultural (BENJAMIM, 1975). Em O Esperado, Salgado contempla a modernidade que avança imponentemente, mas sob um viés tradicionalista enxerga a urbe como caos, destruição e superficialidade: toda a vida social e política da metrópole era convencional e falsa. Religião, arte, política – movimentação inexpressiva de fantoches. Tudo era sofisma e dialética insincera de arrazoados (p. 51). É nela, contudo, que a vida parece se realizar numa profusão cultural que traduz em certa medida anseios modernistas, ansiosos em compreender o resultado do mix cultural que constitui a “nação”.

Multidão indo e vindo, no dia azul, na rua Quinze embandeirada em festa. Um soldado que vai, um padre que vem. Dois sírios conversam na esquina: concordatas com desvios e acordos forçados. Bigodes e relógios de portugueses, rostos massa de tomate de italianos. No trote buzinado um ford, um chauffeur japonês sacode um alemão. Negrinhas de meias de seda nos braços palm-beach de zumbis endomingados desfilando no cake-walke cosmopolita das estilizações yankes do Zanzibar (p. 16)

A metrópole é composta das mais variadas nacionalidades. A ironia para com os imigrantes, bem como as funções e hábitos que Salgado relaciona a eles é ilustrativa de sua perspectiva nacionalista. O elemento “estrangeiro” surge para impor algum tipo de desarmonia ao movimento, seja com seus comportamentos baseados em concordatas ou em desvios forçados, seja desfilando roupas e modas estrangeiras. Aqui Salgado parece retomar os temas que orientaram O Estrangeiro, o primeiro romance da série: a fusão étnica e o nacionalismo. Esses, na visão de O Esperado parecem manter uma tensão responsável pela situação pouco privilegiada em que se encontra o Brasil.

A trama de O Esperado não possui um personagem central. Orquestra-se a partir das discussões e dos conflitos que permeiam a tentativa de votação de um projeto que beneficiaria abertamente os interesses de um investidor inglês. Direta e indiretamente a maioria dos indivíduos vê sua existência mudar completamente ao longo do texto em decorrência dos jogos de poder e barganhas que giram ao redor deste projeto. O capital inglês é simbolizado na figura de Mr. Sanpsom, um soturno milionário com interesses em investir no Brasil. É a ele que os políticos passarão a recorrer e auxiliar.

A fragmentação é um dado com o qual Salgado buscará traduzir a situação social do país. Em São Paulo a vida pulsa, mas ela se estende para o interior em busca dos recursos advindos do “ouro negro”. A referência aos jogos de poder no interior do Estado visa elaborar críticas ao “antigo regime”. As disputas políticas mobilizam oligarquias regionais que se estendem pelas cidades paulistas infladas com a expansão cafeeira. No controle da situação encontra-se Avelino Prazeres, um senador corrupto que organiza politicamente o poderio dos grupos regionais. Em suas mãos se encontra o futuro de Edmundo Milhomens, um jovem intelectual que busca um emprego e é conduzido ao gabinete do senador. Lá recebe a proposta de assumir um cargo de delegado em Bauru, em troca, comprometera-se a realizar alguns favores ao senador e aos seus amigos fazendeiros locais. Milhomens titubeia, mas a dependência que a mãe e a irmã possuem em relação a ele o obriga a seguir em frente e aceitar o cargo. A partir de então sua existência sofrerá uma alteração gigantesca. Idealista, romântico e espiritualista, verá suas aspirações dissolverem-se ao ser obrigado, submetido ao poder do capital, a expulsar um pequeno proprietário de terras que barra a expansão de um grande fazendeiro. A resistência e a honestidade do pequeno proprietário João Tinoco farão com que recuse continuar no oficio. Abandonaria a carreira. Uma onda de covardia esfriava-o. Edmundo desejaria ser um lavrador, como João Tinoco, para respirar a liberdade. A advocacia repugnava-o: era a processualização dos combates do regime capitalista, pelos ideais mais materiais da espécie, - os interesses egoísticos em choque (p. 241).

A resistência de João Tinoco e dos demais pequenos proprietários não é suficiente para barrar a grilagem que avança faminta, financiada pelo dinheiro de Mr. Sanpsom. A imagem dos trabalhadores indo embora, expulsos das terras que lhes pertenciam, desestabiliza as crenças de Milhomens, que acaba por largar o cargo. Sua miséria, contudo, dura pouco, pois rapidamente casa-se com uma moça portadora de uma grande herança e retorna para a capital.

A mesma sorte não teve Camurça. Funcionário de um cartório por mais de vinte anos possui poucas esperanças na vida até que recebe a proposta para assumir um cargo de chefe num cartório do interior, vinculado a Avelino Prazeres. Sua função resume-se a falsificar atestados de propriedade para grandes proprietários poderem desalojar pequenos sitiantes. Tudo parece assumir uma pacata rotina corrupta até que acaba sendo vítima de um golpe que resulta no vazamento de uma série de informações secretas. A partir de então sua vida entra em completa decadência. Demitido, não consegue mais arrumar emprego e entrega-se ao alcoolismo. Além disso, tem que assistir impotente a prostituição de sua filha, Graciosa. O desespero e o desanimo tomam conta de seus pensamentos. Nesse momento passa a se envolver com Solidônio, um operário anarquista que crê somente no poder emancipador das bombas. É com elas que Camurça irá consolidar sua decadência ao explodir o carro de Milhomens, que havia ido até sua casa, a pedido de Graciosa, para ajudar financeiramente sua família. No atentado, Graciosa é morta e Milhomens fica gravemente ferido. A Camurça resta a prisão. A atitude de Camurça parece traduzir uma insatisfação geral. O carro de Milhomens, um automóvel de luxo no bairro pobre, desperta a indignação. O carro era Higienópolis, era a Avenida, os bairros aristocráticos, que vinham até a rua Javry, tristinha e esquecida. Para acordar pavores vagos da gente pobre, a inveja dos olhares moços que sonhavam com estrelas de cinema, e o rancor subterrâneo dos proletários de meia idade, meio materialistas, com alma de burgueses e uma compreensão da existência como os próprios burgueses (p. 347). Salgado parece resumir às angústias e sofrimentos dos moradores a uma questão meramente de inveja. Camurça, síntese dessa sensação é quem acabará realizando o que os demais não conseguem.

As diversas idéias e os conflitos intelectuais que marcavam os anos vinte e trinta encontram em um dos cenários do romance, o Clube Talvez, um espaço destacado de profusão de idéias e de discussão. O Clube, que é nome de um dos capítulos do livro, reúne intelectuais, poetas, operários, comunistas, jornalistas, escritores, enfim, uma diversidade de idéias e formas de pensamento, que sintetizam grande parte dos debates do período.  

Nesse ponto, é importante abrir um parênteses. A questão social ganhou um destaque particular na literatura desde o advento do realismo, no século XIX. O modernismo é herdeiro desta tradição assim como reprodutor da mesma. Compreender a situação social do Brasil exige de “O Esperado” uma elasticidade analítica. A sociedade, como já notamos, passa no romance por uma profunda crise de ordem política, cultural, econômica, espiritual e moral. Em todos os âmbitos da existência reina a instabilidade, a incerteza. Isso é notável não somente por meio dos diversos indivíduos que povoam a trama, mas também a partir das epígrafes que abrem cada uma das três partes do romance e nas quais é possível captar o “clima” que impulsiona e assusta Salgado.

A primeira parte sugestivamente chama-se “Que Angústia é Essa” e a epígrafe resume sua proposta: “Há um rumor de angústias e de gemidos, crescendo em torno dos arranha-céus...”. Ora, o ambiente da angústia é a metrópole que parece tomada por uma imensa dor. A São Paulo dos anos 20 encontra-se em pleno processo de desenvolvimento urbano. Contraditório, esse movimento é acompanhado pela emergência de novos atores sociais que infiltram-se pelo caos urbano, intraduzível e complexo. Choques, itinerários, onda advena, erupções nativas, desvios, silvos, zumbidos, avanços, retornos, esmagamentos, migrações, refluxos... Blem-blom! Blom! E a vida caminhando, sofrendo, doendo” (p. 24).

Sob a caoticidade metropolitana os diversos personagens da trama buscam compreender a insatisfação geral que povoa o pensamento nacional. Todos se encontram impotentes diante das forças obscuras que os envolvem. Cada um de nós exprime um mal-estar (p. 131). Essa sensação não é particular de algum grupo específico, mas define a percepção social das diversas classes, principalmente daquelas que ganhavam uma dimensão mais ampla nos anos 20. Isso se torna evidente ao lermos o diálogo entre os freqüentadores do Club Talvez, heterogeneamente composto.

_ Os operários de mano estarão satisfeitos?

_ De certo que não, respondeu Tupan.

Corregio perguntou a Infantini:

_ Os grandes industriais estão contentes?

_ Evidente que não, foi a resposta.

(...).

_ E a lavoura está em aperturas, acrescentou ainda Infantini.

_ E o funcionalismo, por sua vez, grita...

(...).

_ Que angústia é essa, que põe em conflito umas classes com as outras? (p. 132).

Se a primeira parte traduz a perplexidade e a incerteza diante das modificações em curso, a segunda busca compreender as origens de tal situação. Novamente a epígrafe que abre “A guerra dos deuses” é sintética das conclusões de Salgado. “São novas solicitações de novos mitos, que travam a grande batalha, que exigem novos cultos e multiplicam os caminhos e as perplexidades...”.

Compreender o sentimento que toma conta daquela sociedade exige que o autor exponha as forças sociais que operam no período. O poder parece ainda encontrar-se na renda proveniente da propriedade rural, mais especificamente do café. Nesta parte, o narrador detalhará os grupos que agem nos bastidores do poder público, organizando leis e trocando favores na obsessão de expandir as propriedades. Não é gratuito o fato de Edmundo Milhomens e Camurça serem enviados para o interior. Ambos funcionariam apenas como ferramentas políticas úteis à manipulação eleitoral e judicial, orquestradas pelo senador Avelino prazeres. Os dois também sofrerão, de formas diversas, a humilhação provocada pela manipulação imposta por Prazeres. Enfrentarão um interior paulista pintado com cores fortes por Salgado: inóspito, sem lei, selvagem. Milhomens cederá ao ver seus princípios idealistas sofrerem as agressões da corrupção institucionalizada e desistirá. Camurça será arruinado ao cometer um erro que o coloca em perigo os planos de Prazeres. No interior, Salgado os descreve como vítimas dos novos deuses: o capitalismo, o liberalismo, o dinheiro de Mr. Sanpsom que financia a expansão da produção e dos roubos, das corrupções e das mortes.

A metáfora crítica de Salgado, que vê uma transição das crenças humanas do Deus cristão para o Deus-Automóvel-Capital, ganha tons mais destacados ao introduzir na narrativa o Deus-Auto. Sob os protestos do Sr. Arcebispo, na vibrante pastoral, que principiava com o versículo da epístola de São João: ‘não ameis o mundo nem as cousas que há no mundo’, - foi se erguendo, com larga porta quadrada e andares superpostos de cimento armado, o tempo moderno do Deus-Auto. Era um acontecimento social surpreendente, e a sua inauguração seria a parada triunfal de todas as marcas puro sangue dos carros magníficos de raça (p. 231).

O automóvel, símbolo do desenvolvimento capitalista, enche a capital financiada pelas corrupções dos políticos interessados na renda que vem do campo, para Salgado. O tradicional e o moderno são faces distintas, mas complementares, das contradições que aparecem em “O Esperado”.

Vale ainda notar a metáfora religiosa da qual Salgado se serve para ilustrar sua perplexidade. Em sua concepção, o materialismo capitalista destrói sem piedade as tradições religiosas, familiares, morais. Tudo, para as civilizações materialistas, são o êxito e a fortuna, porque a vida se cinge ao máximo do conforto e do prazer[2]. Ou ainda, no mesmo texto, quando predomina o materialismo, também predomina o orgulho, a vaidade, a rebeldia, a discórdia, a indisciplina, razão pela qual as civilizações desabam, as Pátrias sucumbem, a sociedade apodrece na confusa desmoralizadora dos costumes; e a vida se torna insuportável para os que não estão no Poder, acastelados no governo ou na riqueza[3].

Não poderíamos encontrar síntese mais apropriada para a segunda parte do romance de Salgado do que estas palavras extraídas de seu texto de divulgação política, publicado dois aos após “O Esperado”.

A consolidação do materialismo capitalista conflui na solidificação do liberalismo social, conformando o comportamento e as crenças da sociedade: e a divindade responderá que só pela força individual e não coletiva, os seus favores serão alcançados, respondeu Marcos (p. 194).

A situação social exigia mudanças imediatas. Em O Esperado, o resultado dos conflitos, da corrupção, da exploração, do materialismo exagerado, da miséria e de todas as moléstias que dissolvem a pátria é a desordem generalizada, as batalhas e a morte. Na última parte do romance, intitulada “O ofício de trevas”, Salgado sugere uma perspectiva messiânica para sua leitura sócio-política do período. A solução do caos encontra-se na emergência de algum líder que conduziria a nação e restauraria sua harmonia. Ou como indica a epígrafe “... e até que chegue o Desejado, serão multiplicadas as angústias, e a pátria terá, como nos velhos ritos, o seu ofício de trevas!”

Nesta parte do romance as diversas forças sociais concatenam-se na busca de uma salvação. Aqui, o projeto de lei que beneficiaria os negócios de Mr. Sanpsom é votado pelos parlamentares.

No centro de São Paulo diversos grupos sociais se agitam e se organizam ao longo do dia para protestar contra a votação: O largo São Francisco fulgurava no sol com movimento desumano. Eram os estudantes que se reuniam. Havia um orador que falava em Pátria, em bandeira Verde e Amarela (p. 353). Mais adiante, e nessa manhã declarara-se a greve geral (p. 356). (...) A greve geral inundava a baixada do Brás, como uma enchente do Tiete. Pelas vendas, pelos botequins, pelas praças, pelos passeios, nos pátios das fábricas, nas esquinas, por toda parte, homens pardos, fulinosos, que falavam e gesticulavam (p. 358).

Os habitantes da metrópole param no intuito de se opor a votação do tal projeto. Operários, soldados, intelectuais, todos se unem na defesa nacional, imbuídos do espírito patriótico. Era a vasa da metrópole, que crescia, que avultava, que galgava a colina, que se extendia (sic) ameaçadora, invencível, estrugindo, com um grito coletivo de ferocidade. Era a maré, que subia (O Esperado, p. 376). Contudo, sua união é vã, pois é desorganizada, sem um condutor, um líder, como sugere Salgado.

A apoteose do livro é o confronto entre a massa que se aglomera no centro e a polícia. A população corre desorientada em meio a uma tempestade que se aproxima cada vez mais, tornando o clima profundamente sombrio. Uma multidão gigantesca, formada por uma heterogeneidade social, simboliza a Pátria furtada, lesada. A massa é incontrolável e desorientada, assim como o país. Sob o aglomerado humano pesa um silêncio, uma incerteza rompida com o conflito, as bombas, tiros, correria e mortes. Mas a luz de um relâmpago aqueles olhos viram alguma coisa. E aquelas vozes clamaram, em coro, como uma só voz: É ele! É ele! Sim! Nós o vemos! Aqui, o esperado messias é vislumbrado como um cavaleiro salvador entre a escuridão. Ele só apareceria, contudo, dois anos depois com a solidificação do líder integralista. Por enquanto todos correm desorientados, mas Salgado indaga no último capítulo: Para onde?

Algumas considerações finais

O pensamento de Plínio Salgado resulta de uma formação intelectual inserida no processo de transformação social e cultural que definia a sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX. Por um lado vinculava-se à tradição política da República Velha. Sua filiação à antiga ordem política oligárquica, contudo, não o impediu de tomar partido em prol do modernismo da Semana de 22. Sua ação até 1930 envolve uma contradição básica: embora engajado num partido político tradicional o PRP, participa da vanguarda da revolução estética modernista (TRINDADE, 1974). Tal contradição, contudo, deve ser relativizada. Afinal, grande parte do capital que financiava o modernismo provinha de rendas acumuladas do plantio de café em São Paulo e de seus fazendeiros. A revolução estética não traduzia uma revolução social, visto que a alteração do quadro cultural e simbólico é concomitante a algumas reformas políticas que não passavam de um rearranjo das forças pelo alto, ou uma revolução passiva. A contradição que Trindade vislumbra em Salgado pode constituir a contradição do próprio modernismo brasileiro.

Nesse sentido, O Esperado representa um momento de transição no pensamento de Salgado. Preocupado com as transformações vivenciadas pela sociedade brasileira, o romance já indica alguns elementos que iriam fazer parte de sua ideologia integralista. Como sugere Trindade, neste romance, pela primeira vez, o fascismo deixa de ser para Salgado uma ideologia exótica imposta pela Europa e torna-se aos poucos uma alternativa possível ao contexto nacional, exigindo somente algumas adaptações sócioculturais.

Escrito sob uma perspectiva negativa, o romance possui um fundo messiânico e um olhar particular sobre as condições sociais do Brasil e de São Paulo em particular. A partir de uma estética politizada, Salgado antecipa em O Esperado as diretrizes do movimento integralista brasileiro, que irá irromper com certo poder e influência social no decorrer dos anos trinta e do qual Plínio Salgado constitui um dos principais representantes e a mais influente liderança.

 

Bibliografia

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MICELI, Sergio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2001.

BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1975.

BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte – gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Ed. Companhia da Letras, 1996.

TRINDADE, Hélgio. Integralismo – o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo. Ed. Difel, 1974.

SALGADO, Plínio. O Esperado. Obras completas. São Paulo. Editora das Américas. 1ª ed. 1931.

________. O que é Integralismo. Obras completas 2ª ed. (vol. IX). São Paulo. Editora das Américas. 1956.

SHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. In: Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural, 2000.

[1] Salgado, Plínio. O que é Integralismo. (p. 18).

[2] Ibidem

[3] Ibidem

 

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Publicado em 20.04.07 - Última atualização: 23 abril, 2007.