por JULIANA PEDROSA PEREIRA

Advogada e mestranda em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas.

 

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Direitos Humanos, criminalidade e capitalismo: uma estreita relação

Juliana Pedrosa Pereira

 

Resumo

Quando estudamos o fenômeno da violência e as políticas sociais que visam enfrentá-lo, não basta lançarmos um olhar para a ciência do direito, mas devemos tentar buscar principalmente os fundamentos sócio-econômicos do problema, pois a partir deles poderemos explicar o grave desrespeito aos direitos humanos e o aumento descontrolado da forma mais visível de violência: o crime. De fato, o crime sempre existiu em qualquer sociedade, mas na sociedade capitalista não podemos estudá-lo sem fazer as mediações com o sistema político, social e econômico próprios deste sistema.

Palavras chaves: direitos humanos, criminalidade, sociedade capitalista, políticas publicas.

Abstract

When we study the phenomenon of the violence and the social politics that they aim at to face it, are not enough to launch a look for the science of the right, but we must try to mainly search the beddings partner-economic of the problem, therefore from them we will be able to explain the serious disrespect to the human rights and the uncontrolled increase of the violence form most visible: the crime. In fact, the crime always existed in any society, but in the capitalist society we cannot study it without making the mediation with the system politician, social and economic proper of this system.

Keywords: human rights, criminality, capitalist society, public politics.

 

O que fazer para combater o aumento da criminalidade na sociedade moderna parece ser uma preocupação de todos os indivíduos indistintamente. O crime organizado, o comércio ilegal de armas, os atos de terrorismo, a verdadeira mundialização do mercado do crime com o tráfico de entorpecentes e de seres humanos são apenas novas faces da violência que deve ser enfrentada pelos Estados.

Em torno do tema da criminalidade gira uma verdadeira mobilização internacional, que considera o enfrentamento da violência um tema prioritário no catálogo dos chamados “Direitos Humanos”. Neste sentido, novas saídas são criadas a todo o momento com o intuito de garantir esses direitos, mas,  contraditoriamente, eles são cada vez mais desrespeitados.

Um recurso comum é a tentativa de que os países adotem tratados e convenções que os comprometam na busca da paz. A edição de novas leis, o tratamento e a assistência adequada aos sujeitos do crime, políticas voltadas tanto para a punição severa daqueles que infringem a lei quanto para aqueles que sofrem as conseqüências do ato criminoso parecem ser o caminho para uma sociedade com menos crime.

No entanto, é justamente em nossos dias que presenciamos as violações mais brutais e atentatórias à vida humana, quando os próprios Estados que se comprometem na busca pela paz são os primeiros a abandonar os princípios dos direitos fundamentais em prol do atendimento de interesses particulares, o que acontece com freqüência,  nos acordos comerciais assinados por estas mesmas nações.

Apesar da constante evocação dos Direitos Humanos no cenário internacional, sabemos que grande parte da população mundial vive na ausência de direitos e de dignidade humana.

Para entender essa contradição, temos que percorrer um longo caminho. Primeiramente, é importante que saibamos a história dos Direitos Humanos. Nas palavras de Pontes de Miranda (1967, p. 622):

A afirmação e o reconhecimento da dignidade humana, o que se operou por lentas e dolorosas conquistas na história da humanidade, foi resultado de avanços ora contínuos, ora esporádicos, nas três dimensões: democracia, liberdade, igualdade. Erraria quem pensasse que se chegou perto da completa realização. A evolução apenas se iniciou para alguns povos; e aqueles mesmos que alcançaram, até hoje, os mais altos graus ainda se acham a meio caminho.

O que diria então o nobre jurista em tempos atuais, quando apesar dos avanços tecnológicos que encurtam as distâncias entre nações e povos, ainda estamos muito longe de presenciar a realização plena destes direitos.

Foi significativa a contribuição de Pontes de Miranda para a sistematização dos direitos e garantias individuais que até hoje norteiam a aplicação e efetivação de tais institutos, mas nos afastando da análise dogmática e positivista do autor não podemos concordar que a distância que separa os países desenvolvidos dos periféricos como o Brasil é apenas cronológica e que pode ser resolvida no campo do Direito.

De acordo com Pontes (1967):

A desigualdade econômica não é, de modo nenhum, desigualdade de fato, e sim a resultante, em parte, de desigualdades artificiais, ou de desigualdades de fato mais desigualdades econômicas mantidas por leis. O direito que em parte as fêz, pode aparar e extinguir as desigualdades econômicas que produziu. Exatamente aí é que se passa a grande transformação da época industrial, com a tendência a maior igualdade econômica, que há de começar, como já começou em alguns países, pela atenuação mais ou menos extensa das desigualdades.

A nosso ver, o fator econômico é fundamental e para se falar em redução de desigualdades sociais e principalmente da criminalidade é preciso atingir o ponto crucial, a raiz do problema.

Com isso não queremos cair no velho equívoco de associação do crime com a desigualdade social. De fato, o crime sempre existiu em qualquer tipo de sociedade e jaz superada a idéia de que o crime é determinado pela pobreza ou pela marginalidade, pois a maior parte dos marginalizados e pobres não participam da criminalidade. Contudo, é na sociedade capitalista que ele adquire um novo status e mostra a sua face mais sombria.

Foi na chamada acumulação primitiva, descrita com propriedade por Marx e, portanto, uma fase longa (entre os séculos XV e XVIII) anterior ao Capitalismo propriamente dito, que os trabalhadores foram separados dos meios de produção e das terras, restando apenas a sua força de trabalho para vender. Mas está não foi uma separação pacífica como descreve o referido autor (1975):

Mas, os que se emanciparam só se tornaram vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os seus meios de produção e os privaram de todas as garantias que as velhas instituições feudais asseguravam a sua existência. E a história da expropriação que sofreram foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade.

Neste sentido, os trabalhadores se viram sem saída com a criação de um verdadeiro mercado de força de trabalho, onde tudo o que produzia era para vender no mercado.

Tonet e Lessa (2004) colocam que neste ponto a sociedade se converte em um enorme mercado e tudo passa a ser mercadoria:

Com o amadurecimento do modo de produção capitalista, esta forma de relação social se converte no padrão de relacionamento de todos os homens entre si. As sociedades que não conseguiram se integrar ao mercado são destruídas pelo capitalismo e, as outras que o conseguiram, adaptaram as suas formações sociais para produzirem, venderem e comprarem mercadorias. Ou seja, o capital, que se expressa nesta nova forma de relação entre os homens que e a mercadoria, se desenvolve na história como potência descontrolável.

E é por considerar a influência dessa nova visão de mundo que o capitalismo traz, onde até o crime vira mercadoria, que ao abordar a temática da criminalidade e das novas políticas públicas no campo dos direitos humanos, lançaremos um olhar sobre as determinações históricas e sociais do sujeito comum do ato criminoso: o homem.

Para isto, partimos do pressuposto de Marx de que os homens, para existirem, devem transformar constantemente a natureza e o fazem através do trabalho e utilizando as palavras do autor em O Capital (1975):

“Como atividade que visa, de uma forma ou de outra, à apropriação do que é natural, o trabalho é condição natural da existência humana, uma condição do metabolismo entre homem e natureza, independente de qualquer forma social”

O trabalho, portanto permite ao homem realizar sua própria história, pois ao transformar a natureza, o indivíduo também transforma a si mesmo e à sociedade, embora consideramos, ainda de acordo com Marx, que nem toda atividade humana é trabalho, mas apenas a transformação da natureza.

Deste modo, desde a descoberta do machado na sociedade primitiva, passando pelas fases de desenvolvimento do trabalho e da própria humanidade, sabemos que a história não se fez de forma pacífica. A história da humanidade também se fez com o uso da força e do poder, com verdadeiros massacres e desperdício de vidas, onde a criminalidade sempre esteve em voga.

Na atualidade, é comum vermos pesquisadores se debruçando sobre o tema da violência na sociedade moderna e o aparecimento de inúmeras teorias que visam explicar as causas do crime.

Acreditamos que existem muitas causas para o crime, mas admitimos que a violência intrínseca ao capitalismo alimenta a criminalização, afinal, na lei do mercado vale a lei do mais forte, o que contribuiu para a “normalidade” com que a sociedade moderna aceita os atos atentatórios à vida humana.

Contamos hoje com um verdadeiro mercado paralelo do crime, onde o crime compensa mais do que o trabalho formal e por isso assistimos a uma verdadeira banalização da vida humana.

No mundo capitalista antes de pensar no coletivo, pensa-se na vantagem individual. A banalização da vida humana, tão pregada como sendo a causa principal da violência moderna, tem o seu nascimento no movimento capitalista que resume a vida do homem a uma mera luta pela riqueza.

Nas palavras de Tonet e Lessa (2004):

[...] todas as relações humanas são convertidas em instrumentos desta luta pela acumulação privada de capital. Os homens têm no capital seu espelho, e se constroem cotidianamente como sua imagem. As necessidades que impulsionam as prévias-ideações não são mais necessidades humanas, mas necessidades que brotam da dinâmica reprodutiva do capital. De modo obrigatório, necessário, o capital predomina sobre as necessidades verdadeiramente humanas, fazendo com que a reprodução social dos indivíduos e da totalidade social esteja a serviço dos interesses particulares da burguesia.

No Capital, Marx (2004) aponta que crimes como genocídio e escravidão foram praticados como sendo uma via para se chegar ao “progresso” prometido pelo sistema capitalista:

[...] o descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, a escravização e sepultamento nas minas da população aborígine, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalaram os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original.

No contexto da ampla violência gerada pelo capitalismo, pelo egoísmo de consumo, pela exploração do homem pelo homem, os detentores do poder deixam à margem a origem da verdadeira violência e apontam a criminalidade como causa principal de todos os problemas sociais.

A classe dominante reconhece que o grande problema social e político do mundo moderno é a violência, entretanto, como sinônimo de criminalidade. Todas as atenções são voltadas para o crime visível,  estampado na mídia diariamente como fator garantidor de audiência e desvia-se da violência contida da dinâmica capitalista, verdadeira causa do fosso social.

Deste modo,  a violência que parece ser combatida, inclusive pelos movimentos de Direitos Humanos é a criminalidade comum.

Neste ponto é válido atentar para as observações feitas por Rusche e Kirchheimer(2004, p. 18) de que “[...] todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondam às suas relações de produção. [...] quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mas duros eram os castigos, para fim de dissuadi-las do crime”

Diante disso, os acontecimentos históricos que permitiram a instauração do sistema capitalista falam por si só quando tentamos explicar esse desprezo com a própria vida humana.

Entre os anos de 1830 a 1848, observamos que a grande indústria ainda não estava consolidada, não existindo, portanto uma consciência de classe, pois ainda existiam muitos trabalhadores no campo e os chamados trabalhadores livres.

Mesmo durante a Revolução Francesa, quando os trabalhadores pobres apoiaram a burguesia revolucionária, estes não tinham nenhum instrumento teórico para fundamentar as lutas sociais e tinham como incentivo à promessa de dias melhores que eram sinalizados com a revolução industrial que em princípio absolveu uma considerável força de trabalho, e somente mais tarde, desempregou uma grande massa de trabalhadores.

Deste modo, foi apenas com a revolução de 1848 e a contribuição dada por Marx e Engels com a edição do Manifesto do Partido Comunista que os trabalhadores tiveram acesso ao referencial teórico e prático-político da sociedade da época. Neste sentido, o momento político e social que o Manifesto coloca não é nenhuma novidade, a situação já era conhecida dos trabalhadores, a inovação se deu porque este instrumento fortaleceu a consciência de classe.

É importante atentar que não eram só os comunistas que criticavam os problemas sociais advindos do capitalismo e que a expressão “questão social” não era um termo comumente utilizado pela classe operária, mas pela própria burguesia, pelos os trabalhadores médios, pelos filantropos e pela igreja que se referiam a ela quando queriam  designar essa nova forma de empobrecimento que crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas.

Como ensina Netto (2001):

A designação desse pauperismo pela expressão “ questão social” relaciona-se diretamente aos seus desdobramentos sócio-políticos.(...)Lamentavelmente para a ordem burguesa que se consolidava, os pauperizados não se conformaram com a sua situação: da primeira década até a metade do século XIX, seu protesto tomou as mais diversas formas, da violência luddista à constituição das trade unions, configurando uma ameaça real às instituições sociais existentes. Foi a partir da perspectiva efetiva de uma eversão da ordem burguesa que o pauperismo designou-se como “questão social” .

Na passagem do século XVIII para o século XIX, o capitalismo dominante era o chamado capitalismo industrial ou liberal, onde o desenvolvimento se dava através da livre-concorrência, ou seja, sem a intervenção do Estado que neste momento era construído sobre as bases do direito individual, protegendo a propriedade privada e mantendo a segurança pública.

Como relata Soares (2005):

“É somente em um momento preciso da história, sob uma estrita determinação social, exatamente quando as relações de produção capitalistas vão se constituindo, que a liberdade e a igualdade aparecem como se fossem inerentes à própria natureza do homem”.

Assim, o capitalismo exige a presença do homem livre, que possa vender a sua força de trabalho, porque ele se funda numa relação de assalariamento e não na coerção direita sobre o trabalhador, como no escravismo.

O momento onde vigorava o capitalismo industrial era a época em que a classe trabalhadora era ainda uma incipiente organização, portanto antes dos episódios de 1848. Foi somente a partir desta data que houve uma expansão mundial do capitalismo, sendo inclusive o período de 1848 a 1875 designado por alguns autores, entre os quais Hobsbawm (1996), como a “Era do Capital”.

Durante estes quase 30 anos houve um crescente processo de urbanização com o crescimento dos centros urbanos e do contingente de trabalhadores, mas eles ainda possuíam características comuns como o empobrecimento e ainda não existiam as políticas de valorização social, muito menos, direitos sociais.

Foi apenas na década de 70 do século XIX, com a primeira grande crise do capital, que ficou configurada a contradição entre a produção e o consumo, pois existia muita produção de mercadorias e pouco consumo, devido às péssimas condições da população trabalhadora. Neste momento, os capitalistas começaram a se associar, formando redes e conglomerados, caracterizando uma nova forma de capitalismo, o monopolista.

A fase mais significativa do capitalismo monopolista ocorreu entre 1890 a 1940 e também ficou conhecida como período do “imperialismo clássico” que tinha como principal característica a busca de mecanismos para o aumento dos lucros, o que somente seria possível com o controle dos mercados. Para atingir os seus objetivos a burguesia carecia de um agente extra-econômico que fosse financiado por toda a sociedade e quem assumiu este papel foi o Estado.

O redimensionamento das funções do Estado no capitalismo monopolista fica bem estabelecido nas palavras de Netto (1992), quando ele coloca que:

A necessidade de uma nova modalidade de intervenção do Estado decorre primariamente, como aludimos, da demanda que o capitalismo monopolista tem de um vetor extra-econômico para assegurar seus objetivos estritamente econômicos. O eixo da intervenção estatal na idade do monopólio é direcionado para garantir os superlucros dos monopólios – e, para tanto, como poder político e econômico, o Estado desempenha uma multiplicidade de funções.

Deste modo, o Estado começa a intervir na dinâmica social. Neste sentido aparecem as chamadas políticas sociais, entre as quais, as voltadas para a minimização da violência crescente. Na sociedade moderna ele (o Estado) se propõe a ser o promotor da ordem social, pois é acima de tudo o detentor do jus puniendi.

O monopólio do Estado na administração da justiça criminal é justificado na eliminação na chamada vingança privada e na idéia de uma instituição neutra que regule os indivíduos para a manutenção da ordem. Esse entendimento deita raízes na idéia de um estado de natureza advinda de filósofos como Hobbes.

Em um texto que explica os fundamentos dos direitos humanos, Bussinger (1997) coloca o fundamento da soberania absoluta do Estado em Hobbes:

A impotência e a fraqueza perante a morte, que advém da guerra de todos contra todos no estado de natureza, leva os homens a transformá-las em potência e força materializadas em um poder soberano, acima dos indivíduos, criado artificialmente por estes, perante o qual nenhum homem pode hesitar de dar o seu consentimento para que este poder realize a necessidade de todos e de cada um: a segurança e a paz..

Desde as teorias de Hobbes, passando pela defesa da propriedade como bem natural e inalienável do homem descrita em Locke e a defesa enfática da liberdade em Rousseau, todos estes pensamentos ainda hoje estão presentes na concepção moderna de Estado e tiveram o seu apogeu na Revolução Francesa (1789), pois constituem a base dos chamados direitos humanos, que exigem uma atuação do Estado para a criação das condições necessárias ao “bem-estar” social.

Como não poderia deixar de ser, a teoria penal do direito de punir do Estado também é explicada sob o argumento de que se o Estado não possuísse o uso da força, estaríamos em um estado de guerra permanente, de todos contra todos. Esse direito extingue o antigo poder de punir do rei absolutista e só deve ser aplicado pelo devido processo legal, no qual, todo indivíduo é inocente até a prova em contrário.

Esse entendimento vai de encontro à necessidade da sociedade burguesa emergente e funda todo o direito moderno. Observemos o que explica Michel Miaille (1989):

A reunião dos homens exige  que seja encontrada uma ordem que possa, se necessário, impor-se pela força. Essa ordem será a do direito: essa força será a do Estado. Mas nem essa força, nem essa ordem são arbitrárias: elas são legitimadas pelo bem comum que querem instaurar. Por outras palavras, acima dos interesses particulares entre os quais os homens se dilaceram, existe um interesse comum, superior e válido em si mesmo. É essa autonomia do Estado com instituição do bem comum acima da sociedade que é própria da figura do Estado burguês.

Assim, o Estado tem um papel de defensor da sociedade, afastando os criminosos da convivência social e criando leis, sanções e prisões para fazer valer o seu direito de punir.

Não precisamos ser observadores perspicazes para saber que o Estado sempre falhou na punição daqueles que são considerados uma ameaça à “harmonia social”. Isso nos faz refletir se é realmente possível que Ele (o Estado) defenda a sociedade da criminalidade.

Para citar um exemplo atual de impunidade frente à criminalidade em nosso país, vejamos dados recentes fornecidos pela União dos Escrivães de Polícia Civil do Estado de Pernambuco[1] (Unepe). Segundo eles, uma média de 300 inquéritos policiais se acumula, em cada uma das 38 delegacias distritais e metropolitanas, o que soma uma marca de mais de 10 mil casos que não são resolvidos pela polícia naquele Estado.

Outros dados oficiais da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco[2] informam que dos 1.007 registros de assassinatos cometidos no Recife durante o ano de 2004, 748 não chegaram a se transformar em inquérito policial, Ou seja, 74% das mortes não foram apuradas.

Esses dados somente ilustram algo que não é novidade em nosso país e no mundo, os crimes que chegam à polícia e mesmo ao sistema criminal não representam uma cifra significativa em relação aos crimes que ficam impunes.

Podemos listar uma série de crimes que acontecem diariamente e que não chegam ao conhecimento das autoridades e do Estado, entre os mais freqüentes citamos os acidentes rodoviários, o consumo de drogas ilícitas, o empresário que usa informação privilegiada para obter lucro.

Abordamos estes delitos porque são ainda raros os casos, em nosso país, de pessoas que estejam cumprindo pena em decorrência deles e é também pública a notícia de que as prisões brasileiras estão superlotadas de pessoas com cada vez menos recursos.

Outro mito que precisa ser esclarecido é o de que o Estado não consegue aplicar de maneira eficaz o seu direito de punir porque as leis existentes no ordenamento não são suficientes ou seriam muito benéficas aos transgressores, ou ainda que a impunidade gera a necessidade de uma ação mais eficaz e repressora da polícia. Em resumo,  que falta vontade política.

A verdade é que nos últimos 15 anos, inúmeras leis penais foram publicadas e modificadas, milhares de pessoas estão presas. De acordo com um relatório da Secretaria Nacional de Segurança Pública, divulgado no ano de 2002, em 1995 eram 149 mil presos no Brasil, em 2002, eram 249 mil, mas apesar disso houve um aumento da violência em todos os sentidos.[3]

Quanto à necessidade de uma ação mais repressora da polícia, não se tem notícia de nenhum dado oficial que comprove o seu benefício na diminuição do crime. Um dado interessante é fornecido pelo jornalista Caco Barcellos (2002, p. 37), que em seu livro mostra que do universo selecionado de 3.545 mortos pela PM paulista em 22 anos, 2 mil eram migrantes pobres. Cerca de 65% das vítimas nunca havia cometido crime na cidade de São Paulo ou na grande São Paulo.

Miaille (1989), recorrendo à teoria de Marx, explica que:

A sociedade do modo de produção capitalista sofre a dominação econômica da classe dominante, a burguesia. Esta não pode manter e conter as contradições sociais senão recorrendo a um aparelho repressivo, o Estado. A classe economicamente dominante é, pois também a classe politicamente dominante; ela investe o aparelho de Estado (administração, exército, polícia, justiça, etc.) e fá-lo funcionar no sentido de seus interesses.

Sobre isso podemos relacionar os atos ilícitos praticados pelas classes dominantes, pois raramente o sistema criminal é voltado para a punição de crimes de colarinho branco, por exemplo.

Se a mesma política judicial e penal utilizada com os pobres fosse aplicada  com as classes dominantes, muito menos gente (ou nenhuma) estaria nas prisões. Se o princípio da igualdade perante a lei fosse aplicado, deveria ser isso que aconteceria, a menos que também os responsáveis de classes dominantes por atos criminosos fossem também presos.

Mas, quando alguém diz que a justiça só se aplica aos pobres, sempre aparece principalmente na mídia sensacionalista ou no discurso do grupo político que está no poder, um caso de prisões de figuras públicas que serve para tentar inverter, demagogicamente, o impacto da real ameaça de deslegitimação da justiça.

Diante dessa situação, admitimos que exista hoje, mais do que nunca, a necessidade do Estado em promover a “paz social”. Nesta função está incluída a emergência por políticas públicas que procurem manter essa aparência, afinal de contas o aumento da criminalidade é um dos males sociais que mais preocupa a sociedade moderna, mas a efetivação dessas políticas esbarra na efetivação dos próprios direitos sociais.

Trindade ( 2002) explicita claramente o problema:

Contudo, configura-se uma situação em que, entre dispor formalmente de instrumentos jurídicos para a proteção dos direitos humanos e efetivamente leva-los à prática, medeia um abismo que se alarga. Se, no plano jurídico, a antiga contradição entre a liberdade (individualista) e a demanda de igualdade real encontrou caminhos para ser conceitualmente superada, é fácil constatar que nem mesmo no plano jurídico essa “superação foi incorporada” – basta olhar para compêndios de doutrina que insistem em qualificar boa parte dos direitos sociais como meramente programática, ou para as normas legais que os tratam efetivamente dessa maneira ou, ainda, para os tribunais que, com poucas exceções, acatam esse entendimento.

Neste sentido, o maior problema para a identificação dos problemas sociais no Brasil (inclusive do problema da criminalidade) e as possíveis formas de seu enfrentamento, reside na idéia de que eles são apenas um resquício do atraso evolutivo brasileiro, da permanência dos efeitos da escravatura, do desenvolvimento tardio de nosso capitalismo, de que na verdade ela não seria um tema atual, possivelmente superado com a estabilidade econômica e a democracia.

Sem dúvidas, a falta de acesso dos trabalhadores aos seus direitos políticos contribuiu para agravar a situação brasileira devido à associação e à vinculação da cidadania ao trabalho, o que atrasou inclusive as lutas sociais das classes trabalhadoras que quando tiveram acesso aos seus direitos políticos já estavam na era do Estado neoliberal, em plena década de 80 do século XX.

Neste sentido, as políticas sociais no Brasil não podem ser consideradas, nem de longe, como universais, inclusive exigindo dos seus sujeitos verdadeiros atestados de pobreza, como escreve Telles( 2001, p. 26):

(...) o Estado cria a figura do necessitado, que faz da pobreza um estigma pela evidência do fracasso do indivíduo em lidar com os azares da vida e que transforma  a ajuda  numa espécie de celebração pública de sua inferioridade, já que o ser acesso depende do indivíduo provar que seus filhos estão subnutridos, que ele próprio é um incapacitado para a vida em sociedade e que a desgraça é grande o suficiente para merecer a ajuda estatal.

No capitalismo clássico dos países desenvolvidos (entre os mais expressivos: França, Inglaterra) a cidadania não veio condicionada ao trabalho. Nestes países, os trabalhadores primeiro conquistaram os direitos políticos e não podemos desconsiderar que eles também vivenciaram o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), período de grande ampliação e desenvolvimento das políticas públicas, embora mesmo assim não conseguiu garantir uma verdadeira universalidade dos direitos sociais.

Já no Brasil, a luta pela cidadania tem um caráter diferente, as políticas públicas já nasceram focalizadas e as políticas de enfrentamento da violência não são exceção. Os limites dessas políticas não estão somente na dificuldade que a equipe técnica tem em conseguir efetivar os direitos sociais dos usuários, mas sobretudo nos limites da liberdade e igualdade formais impostas pelo sistema capitalista

E é por este motivo que não podemos deixar de associar a violência ao capitalismo, onde as relações sociais são, antes de mais nada, instrumentos para o enriquecimento pessoal.

Enquanto o debate da violência e das novas políticas públicas que visam amenizá-la não partirem da análise das transformações sofridas pelo homem nesta sociedade capitalista, estaremos apenas procurando respostas vazias, que não atingem a raiz do problema e por isso não podem ser consideradas para diminuir a onda de violência que assombra o mundo.

__________

[1] Dados publicados pelo Jornal do Comércio, em 29 de maio de 2005.

[2] Dados obtidos através dos relatórios mensais enviados pelas delegacias de polícia à Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, publicados em matéria do Jornal do Comércio em 29 de maio de 2005.

Referências Bibliográficas

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Publicado em 20.04.07 - Última atualização: 16 agosto, 2007.