por EDUARDO KAMITANI

Graduando em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá

 

 

 

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A Crise do Capital: 

uma resenha sobre a obra de Ernest Mandel

Eduardo Kamitani

 

Resumo

No presente artigo propomos uma resenha sobre as idéias de Ernest Mandel e Karl Marx sobre as crises periódicas do modo de produção capitalista. Nossos objetivos consistem em esclarecer as teorias dos dois autores em um ponto específico, ou seja, alternância entre períodos de intensa reprodução de capital com períodos de crise e recessão. Dessa forma, durante as fases de prosperidade as contradições inerentes ao próprio sistema produtor de mercadorias criam as condições necessárias para o surgimento das crises.

Palavras-chave: crise do capitalismo, mercadoria, pós-guerra, marxismo.

Abstract

The present article approaches the periodic crises of capitalist production’s way, trought a marxist perspective. Our objectives consist in clarifying, breaking of the theories of Ernest Mandel and Karl Marx, as the way of alternating capitalist production periods of intense reproduction, or either, of rich productivity, with periods of crisis and contraction. Moreover, to demonstrate that, during the prosperity phases, the inherent contradictions to the proper producing system of merchandises create the necessary conditions for the sprouting of the crises.

Word-key: crisis of the capitalism, merchandise, postwar period, marxism.

 

Apresentação

Nossos objetivos, nesse texto, consistem em apresentar os resultados e conclusões desses cinco meses de pesquisa[1] baseados, principalmente, nas leituras de “O Capital” – livro I, tomo I – de Karl Marx, e a obra de Ernest Mandel “A Crise do Capital: os fatos e sua interpretação marxista”. Pretendemos esclarecer as idéias principais de cada autor e de suas respectivas obras, respeitando a convergência de idéias, uma vez que, ambos se encontram no campo do marxismo, e ilustrando a contribuição desses para a crítica do modo de produção capitalista.

Vale ressaltar que o texto busca apenas esclarecer as idéias principais de Mandel e Marx, e não esgotar o tema, ou mesmo discutir a dinâmica do capital nos dias atuais. Portanto, a problematização sobre as crises periódicas do capital vai no sentido apresentar as alguns pontos centrais presentes nas teorias dos autores citados.

O fim dos anos “dourados”

O período conhecido como “30 anos gloriosos do capitalismo” - fim da segunda guerra até início dos anos 1970 – garantiu ao capital, segundo Mandel (1990), alguns anos de expansão. As políticas econômicas fundamentadas nas teorias de John Maynard Keynes, além dos avanços na estrutura produtiva (fordismo/taylorismo), contribuíram para um avanço significativo no processo de acumulação capitalista. Denominado por Mandel de “onda longa expansiva”, esse período permitiu um alto nível de concentração e centralização do capital. Durante três décadas o capital gozou de intensa reprodução.  Nas palavras do autor:

“Essa expansão (boom do pós-guerra) tinha dado um impulso poderoso a um novo avanço das forças produtivas, a uma nova revolução tecnológica. Propiciou um novo salto para a concentração de capitais e a internacionalização da produção, as forças produtivas ultrapassando cada vez mais os limites do Estado burguês nacional (tendência que começou a se manifestar desde o início do século, mas que se amplificou consideravelmente desde 1948)”.  (MANDEL, 1990, p. 11-12).

O padrão de acumulação fordista/taylorisa racionalizou a produção, aumentando os lucros (ANTUNES, 2002). A terceira revolução tecnológica, resultado da alta concentração de capitais e de pesados investimentos no setor de P&D, reestruturou a produção e aumentou o nível de automação do trabalho. Os ramos da produção que primeiro adquiriram essas novas técnicas usufruíram lucros exorbitantes, os chamados “superlucros” (MANDEL, 1990).

A exploração sobre o trabalho somado ao incremento de novas técnicas aumentou a extração da mais-valia relativa. Esta sofreu um salto quantitativo nesse período, principalmente em alguns Estados europeus como Inglaterra, RDA, Benelux, França, entre outros, além é claro, os EUA. O resultado dessa reestruturação produtiva salta aos olhos sobre a forma do Well fare-state (MANDEL, 1990, p. 27).

O Estado de bem-estar social promoveu a redução vertiginosa do desemprego, além de garantir direitos sociais aos trabalhadores. Essas medidas, fruto de pesados déficits orçamentários, reverteram-se como melhoras significativas para a classe operária, fortalecendo suas organizações e sindicatos. O capitalismo, dessa forma, parecia ter eliminado suas contradições. O Estado de bem–estar social, fundado sobre técnicas keynesianas de controle da economia, apresentava indícios de ter descoberto a fórmula para dar ao capital uma feição mais “humana”.

Porém, de acordo com Mandel, o rumo foi outro. No fim da década de 1960 e início dos 1970 a crise desponta. A lua de mel do capital com o Well fare-state chega ao fim, e com ela o retorno de todas as contradições e mazelas inerentes ao próprio sistema produtor de mercadorias (MANDEL 1990, p. 27).

A crise de 1973/74 ressuscitou o conflito de classes. O capital se armou para enfrentamento com os trabalhadores, no sentido de revogar suas conquistas. Mas, o fortalecimento das instituições operárias reduziu o impacto das investidas do capital. Dessa maneira, a burguesia encontrou dificuldades para restabelecer um padrão de acumulação que fosse suficiente para sair da recessão. (MANDEL, 1990, p. 16-18). Além do mais, o incremento de novas tecnologias agravou a crise, devido ao aumento da composição orgânica do capital.

Esse aumento elevou a tendência decrescente da taxa de lucros, já que, a atuação da mercadoria força de trabalho foi reduzida em relação à reprodução automatizada. De acordo com Mandel, isso encurta o valor unitário das mercadorias e desvaloriza os capitais. Desembocando em um aumento significativo da produção global, mas uma redução nos valores unitários das mercadorias. O conjunto desses fatores aliado ao aumento da capacidade excedente eleva a possibilidade de estagnação (MANDEL, 1990, p. 27).

A capacidade de produção excedente – razão entre capacidade de produção global e realização dessa produção - só aparece quando a fase expansiva atinge o seu cume. O aumento em instalações de novas fábricas para suprir a demanda por mercadorias, eleva a capacidade de produção, mas, é quando a expansão termina que a capacidade ociosa, ou excedente, aparece.

É nesse ponto que podemos perceber uma das contradições fundamentais do modo capitalista de produção, o antagonismo entre a produção de mercadorias voltada para a capacidade de consumo da sociedade – ou mesmo para além dessa capacidade – e a realização do consumo. A capacidade de produção de valores de uso – presentes no corpo das mercadorias - entra em contradição com a sua realização enquanto valores de troca.  É nesse contexto que a tendência de inversão de uma “onda longa expansiva” para uma “onda longa depressiva” aumenta, e a produção capitalista caminha para uma crise de superprodução (MANDEL, 1990, p. 27).

A crise: causas e desdobramentos

Na concepção de Mandel, a crise não é o rebento de um único elemento determinante, como por exemplo, superprodução e subconsumo, mas sim de um complexo conjunto de elementos que convergem historicamente. Os outros aspectos sobre a crise geral do modo de produção capitalista como a queda tendencial na taxa de lucros e o aumento da composição orgânica do capital, devem ser entendidos como desdobramentos da crise, ou seja, como agravantes do processo (MANDEL, 1990).

O erro das teorias de causa única, de acordo com Mandel, encontra-se na análise isolada dos elementos causadores, levando assim, a uma incapacidade de elaborar uma teoria marxista que dê conta de explicar a crise na sua totalidade. Para demonstrar a fragilidade dessas teorias de causa única, Mandel recorre ao escritos de Marx e Engels, no tomo III de “O Capital”, no qual eles explicam as crises como resultantes da redução da taxa de lucro e da realização da mais-valia, ou seja, como decorrência de múltiplas determinações. Nas palavras dos autores, “as condições de exploração são limitadas pela força produtiva da sociedade; as outras, pela desproporcionalidade dos diferentes ramos da produção e pela capacidade de consumo da sociedade” (MARX, ENGELS, apud: MANDEL, 1990).

O que Marx e Engels revelam é que a capacidade de exploração da força de trabalho tem seus limites no grau de desenvolvimento das forças produtivas, em um determinado período histórico, enquanto que a produção de mercadorias encontra seu limite na dessincronização dos diferentes ramos da produção, e na capacidade de consumo de toda a sociedade. Como se toda a sociedade fosse capaz de consumir (MANDEL, 1990, p. 209).

Para Mandel, assim como os outros agravantes da crise, a redução na taxa de lucro não deve ser entendida de forma mecanicista: “queda na taxa de lucros/redução dos investimentos/redução do emprego/redução da renda/crise de superprodução” (MANDEL, 1990, p. 211). É preciso buscar compreender a relação entre a redução na taxa de lucros como desencadeamento da crise. Para tanto, faz se necessário distinguir os “fenômenos do aparecimento da crise, de seus detonadores, sua causa mais profunda e sua função no quadro da lógica imanente do modo de produção capitalista” (MANDEL, 1990, p. 211).

De acordo com o autor, “O acontecimento detonador que precipita as crises de superprodução distingue suas formas de aparição” (MANDEL, 1990, p. 212). Desse modo, os acontecimentos como crashs bancários, bancarrotas, falências e aumento do valor de matérias-primas – o petróleo em 1973/74 – , não podem ser confundidos como causas. Embora esses acontecimentos precipitem a crise e aumentem a gravidade da recessão, eles não a causam. Nas palavras do economista, “para que ele (o detonador) possa desencadeá-lo, é necessário que coincida com toda uma série de pré-condições que não decorrem em medida alguma da influência autônoma do detonador” (MANDEL, 1990, p. 212).

É, portanto, na lógica da expansão capitalista que encontramos as condições para um contexto de crise. Entre esses fatores, podemos apontar primeiro a dificuldade em manter as matérias-primas á preços baixos, devido à baixa elasticidade da produção. Segundo, quanto mais longa a expansão, mais difícil será para os capitais encontrarem setores em que a composição orgânica do capital seja mais baixa, ou seja, setores mais lucrativos. E terceiro, a concorrência capitalista acentua a queda nos preços. Portanto, quando o valor das mercadorias cai, obriga o capitalista a acentuar a extração de mais-valia, limitada pela redução do número de trabalhadores, resultado da adoção de técnicas mais modernas a produção.

Porém, essa diminuição da realização dos lucros não aparece de imediato. É primeiramente um montante de capitais que não serão mais reinvestidos na produção, devido à baixa rentabilidade, que mais tarde criaram um entrave para a sua reprodução. Esses capitais, desviados do setor produtivo, passam a agir, cada vez mais, de forma especulativa. O aumento de especulação financeira, ou a transferência de riquezas da produção para o setor rentista, consiste em uma tendência em tempos de crise. Segundo o autor:

“A massa absoluta de capitais não retrocede em razão disso; pode até aumentar. O emprego e a massa salarial não retrocedem também; estão até em um nível bastante elevado, se não máximo. Mas os investimentos, o emprego e a produtividade (proporção de mais-valia relativa) não crescem mais em proporção suficiente para sustentar por si próprios a expansão, que prossegue sem dar atenção ao que se passa do lado do “último consumidor”. A indústria não é mais “o melhor cliente da indústria” (MANDEL, 1990, p.  215).

A massa de capitais acumulados pela expansão é redirecionada para setores improdutivos – militar, financeiro especulativo – diminuindo a continuidade do ciclo de reprodução do capital, proporcionado pelos investimentos produtivos. A irracionalidade do sistema capitalista, regido pela lei do valor, e as contradições próprias que levam a economia mundial a um superaquecimento irremediável revelam-se sobre o véu especulativo parasitário (MANDEL, 1990, p. 215).

A superprodução de mercadorias tem, em última instância o caráter determinante, no entanto, ela é resultado de um movimento que engloba a queda na taxa de lucro, aumento da composição orgânica do capital, aumento da capacidade de produção excedente, subconsumo, superacumulação de capitais e superaquecimento. Todavia, nenhum desses elementos, embora sejam cruciais para o seu desenvolvimento, podem, sozinhos, explicar a crise. A crise não pode ser reduzida como resultado único de nenhum desses elementos, e sim pelo conjunto (MANDEL, 1990, p. 217).

Mas, embora a crise não seja o resultado de um elemento determinante, ela pode ser explicada, primeiramente, por um fator que congrega todos os elementos citados acima, a produção capitalista de mercadorias e as relações que envolvem essa produção. Portanto, na mercadoria – forma elementar do capitalismo – podemos observar a primeira possibilidade de recessão.

De acordo com Marx, a mercadoria é ao mesmo tempo produção social – pois se destina a cumprir uma necessidade humana - e apropriação privada, devido às relações baseadas na propriedade privada dos meios de produção. Na relação de troca o caráter social da mercadoria não pode aparecer de imediato, é preciso antes que a mercadoria seja representada pelo trabalho privado, a fim de se permutar como valor de troca. O reconhecimento dessa como trabalho social só acontece pela sua apropriação enquanto valor de uso (MARX, 1983, p. 48).

Segundo Mandel, “tal reconhecimento, a posteriori do trabalho social que ela (mercadoria) contém é sempre aleatório, uma vez que depende sempre do fato de a mercadoria ser efetivamente vendida e do preço com que é vendida” (MANDEL, 1990, p. 210).

Isso quer dizer que, a possibilidade de realização da mercadoria, enquanto valor, depende das condições históricas em que esta é produzida. Dessa forma, o trabalho social médio contido nas mercadorias só se realiza através das trocas, só pode se relacionar através da célula base do capitalismo. Caso a mercadoria não se realize, automaticamente, o trabalho social nela contido é desperdiçado (MARX, 1983, p. 96).

Dessa maneira, as mercadorias, enquanto portadoras de trabalho humano, são responsáveis pelo “metabolismo social”. Essas, por sua vez, relacionam-se entre si, garantindo que os diferentes tipos de trabalho sejam trocados[2]. Deste modo, é nas trocas, na circulação de mercadorias que o “metabolismo social” se realiza (MARX, 1983, p. 94). Nas palavras de Marx:

“Na medida em que o processo de troca transfira mercadorias das mãos em que elas são não-valores de uso para as mãos em que elas são valores de uso, ele é metabolismo social. O produto de uma modalidade útil de trabalho substitui o da outra. Uma vez tendo alcançado o lugar em que serve de valor de uso, a mercadoria cai da esfera de intercâmbio das mercadorias na esfera de consumo” (MARX, 1983: 94).

Conseqüentemente, a não realização das mercadorias, em tempos de crise, impede que o trabalho social nelas contido possa ser trocado. Nesse sentido, a destruição de mercadorias durante a crise, ou a sua não realização enquanto portadora de trabalho social médio implica em desperdício de trabalho. Entendemos, dessa maneira, que a superprodução de mercadorias interrompe o metabolismo social. O que sugere que a crise não é apenas econômica, e sim social, pois implica a não realização do trabalho, mesmo que esse se encontre alienado. Para compreendermos melhor esse processo devemos voltar nossos olhares para as contradições que a mercadoria carrega em si.

A mercadoria não é apenas valor de troca – se assim o fosse não seria possível ser mercadoria - segundo Marx, “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam no estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa” (MARX, 1983, p. 45). É preciso então que, essa coisa, esse produto, tenha alguma serventia, que seja útil de alguma forma, que possua um valor de uso. Além disso, a mercadoria deve ser compreendida como portadora da contradição entre as duas formas de valor, contradição determinada pelas relações sociais de produção nas quais essas mercadorias são produzidas (MARX, 1983, p. 53).

Para Marx, a contradição entre valor de uso e valor de troca começa nas trocas de mercadorias. Para que essas trocas ocorram é preciso antes que, a mercadoria A seja um não valor de uso para seu possuidor e valor de uso para seu receptor, e que a mercadoria B seja um não valor de uso para o seu portador e valor de uso para o dono da mercadoria A. Só assim as mercadorias podem ser trocadas, enquanto não valor de uso para uns e valor de uso para outros.

Até aqui ainda não entramos na relação de valor de troca entre as mercadorias, portanto, as trocas ainda são realizadas apenas entre diferentes tipos de trabalho útil, ou seja, entre trabalhos qualitativamente distintos.

Todavia, na realização das trocas de valores – e valor de uso ao mesmo tempo - o trabalho útil, contido nas mercadorias “desaparecem aos olhos dos seus possuidores” (MARX, 1983, p. 47). O valor de uso é esquecido na relação de troca porque representa, qualitativamente, diferentes formas de trabalho, de trabalho útil. Se o trabalho útil não for ocultado, ou reduzido a trabalho social médio, capaz de ser equiparado a qualquer outra forma de trabalho, as trocas seriam inviáveis no modo de produção capitalista.

Desse modo, na relação de troca as mercadorias devem se relacionar com iguais, como coisas semelhantes, privadas de diferenças. Nas palavras de Marx, “como valores de uso, as mercadorias são, antes de qualquer coisa, de diferente qualidade, como valores de troca só podem ser de quantidade diferente, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor de uso” (MARX, 1983, p. 47).

Podemos assim observar que, enquanto o valor de uso é abstraído nas trocas de mercadorias na esfera da circulação, na produção a situação se inverte. A produção de mercadorias é primeiramente produção de valores de uso com potencial para se tornarem valores de troca. Sendo assim, a produção é primeiramente social, pois visa atender uma necessidade, seja ela qual for. Entretanto, é na realização enquanto valor que o trabalho social é apropriado de forma privada. Essa apropriação depende das relações sociais de produção. Nesse caso, a produção capitalista, baseada na propriedade privada dos meios de produção, garante a apropriação privada da riqueza social produzida.

A contradição entre valor de uso e valor ainda se manifesta diretamente na riqueza social produzida, uma vez que:

[...] “à crescente massa de riqueza material pode corresponder um decréscimo simultâneo da grandeza de valor. Esse movimento contraditório origina-se do duplo caráter do trabalho. Força produtiva é sempre, naturalmente, força produtiva de trabalho útil concreto, e determina, de fato, apenas o grau de eficácia de uma atividade produtiva adequada a um fim, num espaço de tempo dado. O trabalho útil torna-se, portanto, uma fonte mais rica ou mais pobre de produtos, em proporção direta ao aumento ou à queda de sua força produtiva” (MARX, 1983, p. 53).

Marx completa sua explicação sobre na relação inversamente proporcional entre produção de riqueza material e a produção de valor na seguinte afirmação; “A mesma variação da força produtiva, a qual aumenta a fecundidade do trabalho e, portanto, a massa de valores de uso por ele fornecida diminui, assim, a grandeza de valor dessa massa global aumentada, quando ela encurta a soma do tempo de trabalho necessário à sua produção. e vice-versa” (MARX, 1983, p. 53).

Deste modo, o aumento da produção da riqueza material, proporcionado pelo aumento das forças produtivas, reduz a massa de valores produzidos. O resultado desse processo é que sob o modo de produção capitalista quanto mais riqueza material é produzida pelo trabalhador, menor valor terá o seu trabalho. 

O que devemos compreender é que a mercadoria como produto alienado ao seu produtor, mediante as relações de produção, como portadora da contradição entre produção social e apropriação privada, apresenta a primeira possibilidade de uma crise de superprodução. É nela que, primeiramente, se manifesta a possibilidade de uma lacuna entre superprodução e subconsumo.

A função da crise

Segundo Mandel, as crises são formas eficientes de impor a lei do valor, uma vez que, é durante as retomadas da produção que o capital concentra-se, destruindo os capitais mais frágeis através da concorrência, e engordando os grandes oligopólios. A capacidade dos capitais mais fortes de agüentar por mais tempo os períodos de recessão, uma vez que esses podem manter os preços mais baixos por um período maior em relação aos capitais mais fracos, permite que as grandes companhias aumentem seu poderio.

A realização dos chamados superlucros, obtidos pelas companhias que detém alto nível de desenvolvimento técnico, acentuam o processo de centralização do capital. Capitalistas que já adotaram novas técnicas vendem suas mercadorias pelos preços antigos – antes da adoção de novas técnicas -, já que esses não são corrigidos imediatamente [3](MANDEL, 1990, p. 113).

Lênin em “O Imperialismo: fase superior do capitalismo” (2005), já anunciava que as crises e depressões na economia capitalista resultam na agregação dos capitais mais fracos pelos mais fortes. De acordo com ele, “o verdadeiro começo dos monopólios contemporâneos encontramo-lo, no máximo, na década de 1860. O primeiro grande período de desenvolvimento dos monopólios começa com a depressão internacional da indústria na década de 1870 e prolonga-se até princípios da última década do século” (LÊNIN, 2005, p. 22).

Em outro trecho de sua obra Lênin resume a formação dos monopólios através das crises sucessivas no final do século XIX.

“Assim, o resumo da história dos monopólios é o seguinte: 1. Décadas de 1860 e 1870, o grau superior culminante, de desenvolvimento da livre concorrência. Os monopólios não constituem mais do que germes quase imperceptíveis; 2. Depois da crise de 1873, longo período de exceção, não são ainda sólidos, representando ainda um fenômeno passageiro; 3. Ascenso do final do século XIX e crise de 1900 a 1903: os cartéis passam a ser uma das bases de toda vida econômica. O capitalismo transformou-se em imperialismo” (LÊNIN, 2005, p. 23).

Ao estudar com afinco os desdobramentos da formação do imperialismo e dos monopólios no final do século XIX e início do século XX, Lênin percebeu que as crise e depressões da economia, baseada na livre concorrência, contribuíam ainda mais para a concentração do capital nas mãos dos grandes grupos empresariais[4].

A crise, portanto, age no sentido de sanear a economia, destruindo os capitais mais fracos, fortalecendo os grandes grupos empresariais, destruindo meios de produção obsoletos e criando novas ferramentas de controle sobre o trabalho (toyotismo, fordismo), ou seja, criando condições para que o capital possa continuar se reproduzindo. A busca incessante por lucro elimina os entraves para sua continuidade através das crises.

Conseqüências da recessão: desemprego e fome no olho do furacão

É durante os períodos de crise que o modo de produção capitalista manifesta, com maior clareza, sua incapacidade de resolver as contradições que cria. A destruição de mercadorias, desemprego, fome, miséria, investimentos no setor bélico e desvio de capitais da produção para o setor especulativo são alguns dos reflexos das recessões, e ao mesmo tempo representam as medidas adotadas pelo capital para sair do atoleiro da crise.

Segundo Mandel, a fome de 1973/74 “na zona do Sahel, na África, e em zona importante da península indiana” (1990), representa um exemplo claro da irracionalidade da produção capitalista que estabelece o lucro ao invés das necessidades humanas no centro da produção. O risco de superprodução de produtos agrícolas nos EUA, durante a crise de 1973/74, ilustra bem essa afirmação, já que, esse foi contido pela redução na superfície de plantio. A redução artificial da produção de alimentos visava preservar os preços dos produtos[5] (MANDEL, 1990, p. 115).

Já o desemprego, durante a crise da década de 1970, atingiu níveis extraordinários para a maioria dos países europeus e para os Estado Unidos, em comparação a década de 1960. Nos EUA, em 1975, o desemprego assolou quase oito milhões de pessoas. Na Grã-Bretanha o desemprego foi de 1 312 milhões em 1976 (MANDEL, 1991, p. 16). Níveis absurdos se comparados aos anos 60 e 50 do século XX.  

Esse desemprego, durante os anos 1975/76, deve-se, sobretudo, ao recuo da produção industrial nos países centrais. O avanço da produção, marcado pela terceira revolução tecnológica, garantiu um acréscimo na produção, entretanto, com a crise não havia como conservar o nível de produtividade de forma que mantivesse os empregos. De acordo com Mandel, o desemprego vertiginoso desse período está ligado, principalmente, a reconstituição do exército industrial de reserva, reduzido “durante o logo período de expansão do pós-guerra” (MANDEL, 1990, p. 16). Exército esse composto por imigrantes vindos de países menos industrializados da Europa, que passaram a atuar nos setores mais precários da produção. Com a crise esses trabalhadores foram os primeiros a serem demitidos (MANDEL, 1990, p. 16).

Saídas para a crise: liberalização dos mercados nacionais, keynesianismo e exportações para os Estados “operários burocratizados”

Os países imperialistas viram na URSS a possibilidade de escoamento da produção e redução dos estoques, ambos estagnados pela recessão. As exportações de tecnologia para os “Estados operários burocratizados” (MANDEL, 1990), realizados pelos principais países imperialistas – EUA, Japão, França, Grã-Bretanha, RFA, Itália – representava uma luz no fim do túnel da crise. A expansão das exportações para o Leste Europeu, como mercado de substituição, no início da crise, abriu os horizontes para esses países de compensar a retração na demanda interna. Nas palavras de Mandel, “as exportações dos países imperialistas para os socialistas conheceram, de fato, uma expansão considerável em 1974/75” (MANDEL, 1990, p. 121).

Os países membros da OPEP também ocuparam papel importante no escoamento da produção. O acúmulo de capitais nas mãos dessas nações, devido ao alto valor do petróleo, desencadeou um processo de industrialização elevando, crescendo vertiginosamente as importações de equipamentos de infra-estrutura, vindos principalmente de nações como Alemanha, EUA e Japão. Mas a industrialização desses países, de acordo com Mandel, aumentou a capacidade de produção excedente global. Desse modo, a expansão da produção para os países da OPEP tornou-se uma faca de dois gumes para o sistema capitalista como um todo, pois, ao mesmo tempo em que representa uma saída para a crise, cria as condições necessárias para uma nova recessão (MANDEL, 1990, p. 42).

Além dessas medidas de contenção da crise e retomada da produção, podemos acrescentar as políticas monetárias anticrise, como as tentativas de contenção da inflação e de restrição ao crédito, proporcionados por um déficit orçamentário gigantesco. Estima-se que durante os anos de 75/76 os Estados Unidos tenha realizado sua retomada econômica através de um déficit orçamentário de “70 bilhões de dólares a 80 bilhões, nos anos fiscais de julho de 1975/junho de 1976” respectivamente[6] (MANDEL, 1990, p. 59). 

Contudo, o preço da adoção de políticas provocou uma desvalorização do papel moeda e uma inflação descontrolada.  Segundo Mandel, “o limite da aplicação das técnicas anticrise é atingido logo que a inflação tendo, exaurido o grosso das reservas de uma potência imperialista, começa a se acelerar e perde todo o efeito estimulante sobre a atividade econômica, provocando, até, conseqüências perversas” (1990, p. 60). A inflação, dessa maneira, foge do controle das autoridades financeiras e passa a ocasionar deficiências no consumo. Além disso, com a inflação em alta há a necessidade de injetar constantemente uma massa monetária elevada na economia. O resultado disso é um prejuízo enorme para os países que não tem capacidade realizar essa injeção.

Conseqüentemente, o Estado, através da intervenção na economia, não pode deter o surgimento da crise, mas apenas amenizar seus estragos. Mas, a atuação das técnicas anticrise e as medidas de contenção da recessão repousam todo seu peso sobre os ombros da classe operária (MANDEL, 1990, p. 60).

A crise e a classe operária

“Toda crise de superprodução constitui uma agressão massiva do capital ao trabalho assalariado. Aumentando o desemprego e o medo do desemprego, a crise tende a fazer com que os trabalhadores aceitem as reduções (ou estagnações) dos salários reais, a aceleração dos ritmos da produção, as perdas de conquistas em matéria de condições de trabalho e de seguridade social, a redução das proteções construídas na fase de prosperidade contra a pobreza e a injustiça mais flagrantes” (MANDEL, 1990, p. 231).

A crise descarrega todo seu peso sobre as costas dos trabalhadores, forçando-os a aceitar recuos de direitos e benefícios conquistados durante anos de enfrentamento. Todavia, o grau de consciência, organização e união dos trabalhadores é que, em última instância, delimita o grau das investidas do capital sobre o trabalho durante os períodos de crise (MANDEL, 1990, p. 231).

O fortalecimento da classe operária durante os anos “gloriosos” do capitalismo – mediante o pleno emprego e garantias de direitos sociais – significou uma ameaça para os interesses do capital. Ameaça essa que se mostra mais evidente com a crise e o aumento frenético do desemprego.

Em contrapartida a burguesia, de acordo com Mandel, lançou mão de “uma colossal campanha de mistificação da opinião operária para “explicar” a crise como escassez, e não como superprodução” de mercadorias (1990, p. 232).  Essa campanha consistia em culpar os sindicatos operários pelo desemprego, como se esse fosse resultado do aumento dos salários dos trabalhadores.

Muitos partidos comunistas e lideranças sindicais aderiram a essa campanha na Europa, defendendo uma cooperação entre patrões e empregados para diminuir o desemprego e sair da recessão. A defesa dessa cooperação era fundamentada, segundo Mandel, nas teorias neoricardianas sobre a taxa de lucro. “Para os neoricardianos, a taxa de lucro é simplesmente produto do nível dos salários. A composição orgânica do capital não tem nenhuma influência” (MANDEL, 1990, p. 232).Dessa maneira, as teorias que defendem a queda na taxa de lucro como fruto do aumento dos salários atribui a culpa do desemprego ao trabalhador[7] (MANDEL, 1990, p. 232-233).

Porém, a incapacidade dos governos em manter um nível de emprego regular, ou seja, a impossibilidade dos Estados em conter a concorrência interimperialista, acaba enfraquecendo o apelo à austeridade e à cooperação entre trabalhadores e patrões.

Além disso, as teorias marxistas sobre a queda na taxa de lucro como resultado do aumento da composição orgânica do capital, agem como contraponto às teorias neoricardianas, oferecendo uma explicação ao desemprego que não ataca o salário dos trabalhadores.

Conclusão

Por fim, entendemos que a crise de superprodução deve ser compreendida como um processo de auto-superação do modo de produção capitalista, ou seja, como extremo da contradição capital e trabalho. O surgimento da crise anuncia a contradição entre forças produtivas e relações de produção, uma vez que, o capital aumenta sua incapacidade de aproveitar o desenvolvimento nas forças produtivas por ele desenvolvidas. O capital, dessa forma, revela forças que em seguida é incapaz da controlar e usufruir.

Mas o capitalismo demonstrou, até hoje, uma extrema capacidade de superação das crises e recessões por que passou. As medidas adotadas na década 1980 através das liberalizações propostas pela chamada “revolução conservadora” – Reagan nos EUA e Tatcher na Inglaterra – e pelo “Consenso de Washington”, garantiram a retomada da reprodução do capital a nível global. Entre as principais propostas para sair da recessão estavam; a desregulamentação das taxa de câmbio e a securitização das dívidas públicas. Além disso, a reestruturação na produção, e a adoção do sistema toyotista de organização produtiva, se conjugam com as medidas liberalizantes na economia, contribuindo para a manutenção da reprodução do capital (CHESNAIS, 1996, p. 15).

Nesse sentido, concluímos que o capital possui meios de se metamorfosear, ou seja, de superar seus momentos de crise. Trata-se de um processo de superação do capital por ele mesmo, negando suas antigas formas de se reproduzir, conservando sua natureza – busca pelo lucro –, e desenvolvendo novas formas de garantir sua reprodução. Assim, o fim do Estado de bem-estar social, e das políticas keynesianas nos anos 1970, impulsionaram o capital a buscar novas formas de se reproduzir, de sair da recessão, de superar as barreiras do Estado burguês e se mundializar.

 

Referências Bibliográficas

ANTUNES, R. As Novas Formas de Acumulação de Capital e as Formas Contemporâneas de Estranhamento (Alienação). Caderno CRH, Salvador, n. 37, p. 23-45, jul./dez. 2002.

CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. Tradução; Silvana F. Foá, São Paulo, ed: Xamã, 1996.

__________. Crise da Ásia ou do capitalismo? Revista Adusp, São Paulo, [s.n.], 1998. Disponível em: <http://www.adusp.org.br/revista/14/r14a05.pdf.>. Acesso em: 29.04.06.

LENÎN, V. Imperialismo: fase superior do capitalismo. Tradução Leila Prado. São Paulo: Ed. Centauro, 2005.

MANDEL, E. A Crise do Capital; os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo: Ed. Ensaios, 1990.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo I. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, ed: Abril Cultural, 1983.

[1] Esse artigo é resultado da síntese de leituras realizadas durante o período que decorre do mês de agosto de 2006 a dezembro do mesmo ano, referentes ao projeto de iniciação denominado “Crise do capitalismo: capital financeiro e globalização” (PIBIC-Fundação Araucária), sob a orientação do professor doutor Nilson Nobuaki Yamauti.

[2] Isso só é possível porque quantitativamente os diferentes tipos de trabalho podem ser medidos, ou seja, tornam-se iguais, como dispêndio de energia. É no processo de produção que o trabalho social se aliena ao corpo da mercadoria, transferindo a essa seu valor (MARX, 1983).

[3] Mas, quando esses valores são corrigidos termina por desvalorizar os capitais. Nesse quadro, se não houver uma nova revolução nas técnicas de produção que possibilite ao capital manter a rentabilidade, a economia capitalista entra em recessão (MANDEL, 1990, p. 113).

[4] Ao contrário do que pensam os liberais, de que a livre concorrência leva a distribuição e ao equilíbrio entre os capitais, Lênin mostrou que na prática o que acontece é o inverso disso, ou seja, a livre concorrência concentra riquezas. 

[5] Durante a década de 1960 o governo americano reduziu a área de cultivo da terra em vinte milhões de hectares, gastando, dessa forma, três milhões de dólares com incentivos aos proprietários de terras com o intuito de reduzir a superfície de plantio. Segundo Mandel, “o déficit dos países atingidos pela fome foi de doze milhões de toneladas em 1972/73, enquanto que apenas a redução da produção nos EUA em relação ao potencial foi de 20 milhões de toneladas de trigo”, ou seja, sem contabilizar outros tipos de grãos como milho e soja (MANDEL, 1990, p. 115).

[6] Na Alemanha Ocidental o déficit foi de “30 bilhões de dólares em 1975 e no Japão, de 20 bilhões de dólares”. Essas políticas anticrise, propostas por Keynes, teve papel fundamental para reduzir os danos da recessão (MANDEL, 1990, p. 59).

[7] Fica evidente nesse caso, a importância do uso de teorias para justificar ações práticas na defesa de interesses de classe. Seja em nome do capital ou do trabalho.

 

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Publicado em 20.04.07 - Última atualização: 23 abril, 2007.