por VIVIAN BATISTA GOMBI

Graduanda em Filosofia na Universidade Estadual de Maringá

 

 

 

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A estética socrática contra a consideração trágica do mundo na obra O Nascimento da Tragédia

Vivian Batista Gombi

 

“Pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente.”

(NIETZSCHE, 1992, p. 47)

 

Resumo

Este trabalho tem como objetivo apresentar as críticas de Nietzsche a Sócrates através da contraposição entre a existência trágica e a existência socrática. Pretendo ainda mostrar que a figura de Sócrates na obra O Nascimento da Tragédia de Nietzsche é semelhante à imagem de Sócrates na Apologia de Sócrates de Platão.

Palavras-chave: existência trágica, existência socrática, Sócrates e ciência.

Abstract

The purpose of this paper is to present the Nietzsche’s critique against Socrates by making contraposition between the tragic existence and the Socratic existence. I still intend to show Socrates’ picture in Nietzsche’s O Nascimento da Tragédia and Socrates’ image in Plato’s Apologia de Sócrates are alike.

Keywords: tragic existence, Socratic existence, Socrates and science.

 

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche contrapõe a significação moral da existência, através do surgimento do homem teórico Sócrates, à justificação da existência enquanto fenômeno estético, através da tragédia, qualificando, assim, a arte como atividade metafísica do homem.

Nietzsche se apropria do simbolismo dos deuses helênicos Apolo e Dionísio para expor sua compreensão da cultura trágica, tal como foi vivenciada pelos gregos no auge de sua expressão. A tragédia grega é gerada tanto pela duplicidade dos dois impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco, provenientes desses deuses da arte, quanto pela “vontade” helênica.

No que concerne à “vontade”, essa se apresenta como ato metafísico que, em sua aptidão ao sofrimento e na transfiguração do mundo artístico, se revê em uma esfera mais bela e mais gloriosa, a dos deuses Olímpicos. Então, tendo como seu mais sincero exemplo a sabedoria de Sileno[1], que anuncia a condição humana, os gregos conseguem encarar o aspecto mais monstruoso de sua existência, com a condição da mediação do mundo artístico dos deuses, para com a verdadeira tragédia chegarem a seu consolo metafísico.

Já acerca daqueles dois impulsos artísticos da natureza, enquanto o apolíneo tem como comparação o sonho e a aparência, pois expressa a necessidade da experiência onírica e apresenta a imagem divina do princípio de individuação[2], bem como a figuração da beleza da aparência como precondição para a arte plástica, o dionisíaco se refere à embriaguez: suprime o subjetivo para, em meio ao auto-esquecimento e ao encantamento, unificar-se ao Uno-primordial, o que permite a arte não-figurada da música.

Muito se tem a dizer sobre a relação desses dois impulsos artísticos da tragédia. Ao caracterizar o encantamento como pressuposto de toda arte dramática e explicar o verdadeiro papel do coro na tragédia, Nietzsche nos oferece uma explicação dessa relação. A saber:

Nos termos desse entendimento devemos compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo. Aquelas partes corais com que a tragédia está entrançada são, em certa medida, o seio materno de todo assim chamado diálogo, que dizer, do mundo cênico inteiro, do verdadeiro drama. Esse substrato da tragédia irradia, em várias descargas consecutivas, a visão do drama, que é no todo uma aparição de sonho e, nessa medida, uma natureza épica, mas que, de outro lado, como objetivação de estados dionisíacos, representa não a redenção apolínea na aparência, porém ao contrário, o quebrantamento do indivíduo e sua unificação com o Ser primordial. (NIETZSCHE, 1992, p. 60)

Nesse sentido, Nietzsche concebe a tragédia grega tendo como único herói trágico no fundo de todas as máscaras o deus Dionísio. No entanto, este Dionísio sofredor se dá no palco helênico em várias configurações, mas aparece apenas de maneira nitidamente épica através do apolíneo que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco.

Para ilustrar a aliança desses estados artísticos, vale citar outra passagem nietzscheana que explicita melhor a consideração trágica do mundo:

(...) Nos pontos de vista aduzidos temos já todas as partes componentes de uma profunda e pessimista consideração do mundo e ao mesmo tempo a doutrina misteriosófica da tragédia: o conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal, a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida. (NIETZSCHE, 1992, p. 70).

Mesmo com a sua consideração pessimista do mundo, apenas através da tragédia os gregos conseguiam excitar, purificar e descarregar a sua existência, o que confere à arte trágica uma força de transformação necessária à vida.

Entretanto, dando espaço à nova comédia Ática, a tragédia sofre o seu declínio e aniquilamento. Eurípides, o mais novo poeta trágico, em seu estado mais crítico, não entende a tragédia e concebe de uma nova maneira a relação da obra de arte com o público, relação na qual o público deve ter o esclarecimento necessário para entender a arte, já que equipara entendimento à criação. Eurípides, acreditando em uma arte mais consciente, deixa a sabedoria dionisíaca para depositar fé em outro sábio: Sócrates.

Segundo Nietzsche, a morte da tragédia grega teria resultado da contradição do dionisíaco e do socrático. A peça euripidiana, com suas características socráticas, passa das introvisões apolíneas a “frios pensamentos paradoxais”, deixa de lado os êxtases dionisíacos para dar lugar aos “afetos ardentes”, distanciando-se da arte para se aproximar da realidade com seu naturalismo inartístico. Portanto, é por meio de Eurípides que Sócrates demonstra seus princípios estéticos, através da máxima “Tudo deve ser inteligível para ser belo”, acabando por condenar o instinto e a inexistência de uma compreensão da arte trágica.

Para se entender Sócrates, a quem Nietzsche culpa pela nova consideração científica do mundo, faz-se necessário entender que a compreensão trágica da existência foi aniquilada e que desta tendência socrática surge uma nova forma de existência, a do homem teórico. A arte não é mais a atividade metafísica suprema, pois, a partir de Eurípides e do declínio da tragédia, a cultura tem como atividade suprema a busca insaciável pelo saber, caracterizando, então, o âmago da nova civilização, a ciência.

Em sua caracterização da figura de Sócrates, Nietzsche não apresenta apenas os conceitos socráticos para fazer valer sua crítica ao otimismo dialético, mas ainda discorre sobre um Sócrates muito próximo daquele do diálogo Apologia de Sócrates de Platão, que no momento de seu julgamento acredita mais intensamente em seu conceito de justiça. É assim que no texto platônico se pode observar um Sócrates que afirma a sua busca pelo saber:

Em pouco tempo aprendi com os poetas que não é por meio da sabedoria que eles fazem o que fazem, mas por uma espécie de dom natural e em estado de inspiração, como se dá com os adivinhos e os profetas. Estes, também, falam muitas coisas bonitas, mas sem saberem o que dizem. O mesmo me pareceu dar-se com os poetas, tendo-se me revelado, de igual modo, que, pelo fato de fazerem suas composições, em todos os assuntos eles se consideravam os mais sábios dos homens, o que, evidentemente, não eram. Assim, afastava-me também dali com a convicção de ser superior a eles tanto quanto o era aos políticos. (Apologia de Sócrates, 22b-c).

Desse Sócrates muitos aspectos se assemelham ao Sócrates apresentado por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. O Sócrates que com sua racionalidade condena a arte como expressão irracional e, por isso, transforma a forma de existência helênica em outra que não trágica. A esse respeito, o próprio significado geral do relato platônico, ou seja, mostrar a defesa de Sócrates durante o seu julgamento, vai contra a acepção trágica da vida, pois, em sua defesa, Sócrates tenta justificar e tornar compreensível sua existência.

Essas semelhanças não se explicam apenas por Nietzsche utilizar-se da imagem do Sócrates moribundo que em seu julgamento afirma ouvir uma espécie de voz divina que o dissuade, o conhecido “daimon de Sócrates”, mas principalmente porque, através dessa afirmação, Nietzsche comprova como a sabedoria instintiva em Sócrates tem o papel inverso daquele de sua consciência, uma vez que, não apenas no plano artístico, a razão se torna condição primeira por sua própria natureza. Sobre isso Nietzsche declara:

Enquanto, em todas as pessoas produtivas, o instinto é justamente a força afirmativa criativa, e a consciência se conduz de maneira crítica e dissuasora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador – uma verdadeira monstruosidade per defectum! E na verdade percebemos aí um monstruoso defectus de toda disposição mística, de modo que se poderia considerar Sócrates como o específico não-místico, no qual, por superfetação, a natureza lógica se desenvolvesse tão excessiva quanto no místico a sabedoria instintiva. (NIETZSCHE, 1992, p. 86)

Para Nietzsche, Sócrates é o progenitor da ciência e o protótipo do otimismo teórico que procura, através do seu mecanismo dialético de conceitos e deduções, constituir um saber verdadeiro que não seja aparente e errado. Um exemplo disso é o conceito socrático da virtude, que vinculado ao saber e vinculando crença e moral acaba por destruir a tragédia e criar um verdadeiro pessimismo prático. Sobre esse ponto versa a seguinte passagem da Apologia de Sócrates:

(...) Outra coisa não faço senão perambular pela cidade para vos persuadir a todos, moços e velhos, a não vos preocupardes com o corpo nem com riquezas, mas a pordes o maior empenho no aperfeiçoamento da alma, insistindo em que a virtude não é dada pelo dinheiro, mas o inverso: da virtude é que provém a riqueza e os bens humanos em universal, assim públicos como particulares. (Apologia de Sócrates, 30a-b)

O problema de Sócrates, em Nietzsche, não é resultado apenas do fato dele ter matado a tragédia para fazer florescer a ciência, e sim porque com a ciência começa uma cultura que busca iludida por uma “logicização” de um mundo que tende para o inesclarecido e que, com o otimismo teórico, não consegue nada mais que uma ética prática do pessimismo. Para esclarecer essa tendência lógica, Nietzsche usa a imagem do cão que corre atrás da sua própria cauda:

Agora porém a ciência, esporeada por sua vigorosa ilusão, corre, indetenível, até os seus limites, nos quais naufraga seu otimismo oculto na essência da lógica. Pois a periferia do círculo da ciência possui infinitos pontos e, enquanto não for possível prever de maneira nenhuma como se poderá alguma vez medir completamente o círculo, o homem nobre e dotado, ainda antes de chegar ao meio de sua existência, tropeça, e de modo inevitável, em tais pontos fronteiriços da periferia, onde fixa o olhar no inesclarecível. Quando divida aí, para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e acaba por morder a própria causa – (...). (NIETZSCHE, 1992, p. 95)

Sendo assim, o princípio da cultura moderna já atesta a sua doença primordial, pois, com sua consideração otimista, desconfia da validade de seus fundamentos, mas, mesmo assim, tem medo de enfrentar as suas conseqüências. Tratando desse sinal mais profundo de doença, Nietzsche irá além da contraposição de arte e ciência para contrapor vida e moral, já que dentro do desenvolvimento da civilização científica a moral se transformou em um instinto de aniquilamento para qual só a arte, na vida e na cultura, pode apresentar cura.

Nietzsche acreditava que, apenas mediante a arte, a existência humana poderia justificar-se e, por isso, revê o auge da cultura grega para tentar explicar como se originou e se desenvolveu a arte trágica. No entanto, a tragédia tem os seus dias contados, pois com Eurípides e Sócrates ela sucumbe diante da tentativa de entendimento da arte. A partir daí, a estética é revista por um socratismo estético que tenta tornar toda a arte consciente, o que vai acarretar não só em uma mudança estética, mas também cultural.

Em sua obra O Nascimento da Tragédia, Nietzsche apresenta uma figura socrática muito fiel à relatada por Platão na Apologia de Sócrates, em que vemos um Sócrates justificando sua existência no momento de seu julgamento e afirmando os seus conceitos, bem como a sua busca pelo saber, o que se confronta com a existência trágica que não é compreensível, como também a busca pelo inteligível que acabou por condenar a tragédia.

Ao criticar Sócrates, o que Nietzsche tenta fazer é avaliar até onde a ciência e seu otimismo teórico é saudável para uma civilização, já que o insaciável conhecimento otimista é pessimista na prática e degenerou toda a cultura ao tornar tudo lógico. Além de destruir a tragédia, o otimismo teórico destruiu também a cultura moderna, pois não soube enfrentar as conseqüências das falhas de sua ciência lógica.

Para Nietzsche, a consideração trágica do mundo se contrapõe a consideração teórica ou socrática, qual caracteriza a cultura moderna. Entretanto, para ele, a cultura moderna está doente pelas conseqüências inerentes à civilização cientifica e só pode ser salva tendo a arte como modelo para a cultura.

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Referências Bibliográficas

NIETZSCHE, Friedrich Wihelm. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores).

__________. Trad. e Not. J. Guinsburg. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PLATÃO. Trad. Carlos Alberto Nunes. Apologia de Sócrates. Belém: EDUFPA, 2001.

[1] Depois de capturado, o rei Midas perguntou para Sileno qual dentre as coisas era melhor e mais preferível para os homens, para qual o demônio responde: “-Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. (NIETZSCHE, 1992, p. 36)

[2] Observação de Schopenhauer sobre o homem colhido no véu de Maia: “Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no princípio de individuação”. (NIETZSCHE, 1992, p.30)

 

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Publicado em 20.04.07 - Última atualização: 23 abril, 2007.