Em
O Nascimento da Tragédia,
Nietzsche contrapõe a significação moral da existência, através do
surgimento do homem teórico Sócrates, à justificação da existência
enquanto fenômeno estético, através da tragédia, qualificando, assim,
a arte como atividade metafísica do homem.
Nietzsche
se apropria do simbolismo dos deuses helênicos Apolo e Dionísio para
expor sua compreensão da cultura trágica, tal como foi vivenciada pelos
gregos no auge de sua expressão. A tragédia grega é gerada tanto pela
duplicidade dos dois impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco,
provenientes desses deuses da arte, quanto pela “vontade” helênica.
No
que concerne à “vontade”, essa se apresenta como ato metafísico que,
em sua aptidão ao sofrimento e na transfiguração do mundo artístico,
se revê em uma esfera mais bela e mais gloriosa, a dos deuses Olímpicos.
Então, tendo como seu mais sincero exemplo a sabedoria de Sileno[1],
que anuncia a condição humana, os gregos conseguem encarar o aspecto
mais monstruoso de sua existência, com a condição da mediação do
mundo artístico dos deuses, para com a verdadeira tragédia chegarem a
seu consolo metafísico.
Já
acerca daqueles dois impulsos artísticos da natureza, enquanto o apolíneo
tem como comparação o sonho e a aparência, pois expressa a necessidade
da experiência onírica e apresenta a imagem divina do princípio de
individuação[2],
bem como a figuração da beleza da aparência como precondição para a
arte plástica, o dionisíaco se refere à embriaguez: suprime o subjetivo
para, em meio ao auto-esquecimento e ao encantamento, unificar-se ao
Uno-primordial, o que permite a arte não-figurada da música.
Muito
se tem a dizer sobre a relação desses dois impulsos artísticos da tragédia.
Ao caracterizar o encantamento como pressuposto de toda arte dramática e
explicar o verdadeiro papel do coro na tragédia, Nietzsche nos oferece
uma explicação dessa relação. A saber:
Nos
termos desse entendimento devemos compreender a tragédia grega como sendo
o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens
apolíneo. Aquelas partes corais com que a tragédia está entrançada são,
em certa medida, o seio materno de todo assim chamado diálogo, que dizer,
do mundo cênico inteiro, do verdadeiro drama. Esse substrato da tragédia
irradia, em várias descargas consecutivas, a visão do drama, que é no
todo uma aparição de sonho e, nessa medida, uma natureza épica, mas
que, de outro lado, como objetivação de estados dionisíacos, representa
não a redenção apolínea na aparência, porém ao contrário, o
quebrantamento do indivíduo e sua unificação com o Ser primordial.
(NIETZSCHE, 1992, p. 60)
Nesse
sentido, Nietzsche concebe a tragédia grega tendo como único herói trágico
no fundo de todas as máscaras o deus Dionísio. No entanto, este Dionísio
sofredor se dá no palco helênico em várias configurações, mas aparece
apenas de maneira nitidamente épica através do apolíneo que interpreta
para o coro o seu estado dionisíaco.
Para
ilustrar a aliança desses estados artísticos, vale citar outra passagem
nietzscheana que explicita melhor a consideração trágica do mundo:
(...)
Nos pontos de vista aduzidos temos já todas as partes componentes de uma
profunda e pessimista consideração do mundo e ao mesmo tempo a doutrina
misteriosófica da tragédia: o conhecimento básico da unidade de tudo o
que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal,
a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da
individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida.
(NIETZSCHE, 1992, p. 70).
Mesmo
com a sua consideração pessimista do mundo, apenas através da tragédia
os gregos conseguiam excitar, purificar e descarregar a sua existência, o
que confere à arte trágica uma força de transformação necessária à
vida.
Entretanto,
dando espaço à nova comédia Ática, a tragédia sofre o seu declínio e
aniquilamento. Eurípides, o mais novo poeta trágico, em seu estado mais
crítico, não entende a tragédia e concebe de uma nova maneira a relação
da obra de arte com o público, relação na qual o público deve ter o
esclarecimento necessário para entender a arte, já que equipara
entendimento à criação. Eurípides, acreditando em uma arte mais
consciente, deixa a sabedoria dionisíaca para depositar fé em outro sábio:
Sócrates.
Segundo
Nietzsche, a morte da tragédia grega teria resultado da contradição do
dionisíaco e do socrático. A peça euripidiana, com suas características
socráticas, passa das introvisões apolíneas a “frios pensamentos
paradoxais”, deixa de lado os êxtases dionisíacos para dar lugar aos
“afetos ardentes”, distanciando-se da arte para se aproximar da
realidade com seu naturalismo inartístico. Portanto, é por meio de Eurípides
que Sócrates demonstra seus princípios estéticos, através da máxima
“Tudo deve ser inteligível para ser belo”, acabando por condenar o
instinto e a inexistência de uma compreensão da arte trágica.
Para
se entender Sócrates, a quem Nietzsche culpa pela nova consideração
científica do mundo, faz-se necessário entender que a compreensão trágica
da existência foi aniquilada e que desta tendência socrática surge uma
nova forma de existência, a do homem teórico. A arte não é mais a
atividade metafísica suprema, pois, a partir de Eurípides e do declínio
da tragédia, a cultura tem como atividade suprema a busca insaciável
pelo saber, caracterizando, então, o âmago da nova civilização, a ciência.
Em
sua caracterização da figura de Sócrates, Nietzsche não apresenta
apenas os conceitos socráticos para fazer valer sua crítica ao otimismo
dialético, mas ainda discorre sobre um Sócrates muito próximo daquele
do diálogo Apologia de Sócrates
de Platão, que no momento de seu julgamento acredita mais intensamente em
seu conceito de justiça. É assim que no texto platônico se pode
observar um Sócrates que afirma a sua busca pelo saber:
Em
pouco tempo aprendi com os poetas que não é por meio da sabedoria que
eles fazem o que fazem, mas por uma espécie de dom natural e em estado de
inspiração, como se dá com os adivinhos e os profetas. Estes, também,
falam muitas coisas bonitas, mas sem saberem o que dizem. O mesmo me
pareceu dar-se com os poetas, tendo-se me revelado, de igual modo, que,
pelo fato de fazerem suas composições, em todos os assuntos eles se
consideravam os mais sábios dos homens, o que, evidentemente, não eram.
Assim, afastava-me também dali com a convicção de ser superior a eles
tanto quanto o era aos políticos. (Apologia
de Sócrates, 22b-c).
Desse
Sócrates muitos aspectos se assemelham ao Sócrates apresentado por
Nietzsche em O Nascimento da Tragédia.
O Sócrates que com sua racionalidade condena a arte como expressão
irracional e, por isso, transforma a forma de existência helênica em
outra que não trágica. A esse respeito, o próprio significado geral do
relato platônico, ou seja, mostrar a defesa de Sócrates durante o seu
julgamento, vai contra a acepção trágica da vida, pois, em sua defesa,
Sócrates tenta justificar e tornar compreensível sua existência.
Essas
semelhanças não se explicam apenas por Nietzsche utilizar-se da imagem
do Sócrates moribundo que em seu julgamento afirma ouvir uma espécie de
voz divina que o dissuade, o conhecido “daimon
de Sócrates”, mas principalmente porque, através dessa afirmação,
Nietzsche comprova como a sabedoria instintiva em Sócrates tem o papel
inverso daquele de sua consciência, uma vez que, não apenas no plano artístico,
a razão se torna condição primeira por sua própria natureza. Sobre
isso Nietzsche declara:
Enquanto,
em todas as pessoas produtivas, o instinto é justamente a força
afirmativa criativa, e a consciência se conduz de maneira crítica e
dissuasora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a
consciência em criador – uma verdadeira monstruosidade per
defectum! E na verdade percebemos aí um monstruoso defectus de toda disposição mística, de modo que se poderia
considerar Sócrates como o específico não-místico, no qual, por
superfetação, a natureza lógica se desenvolvesse tão excessiva quanto
no místico a sabedoria instintiva. (NIETZSCHE, 1992, p. 86)
Para
Nietzsche, Sócrates é o progenitor da ciência e o protótipo do
otimismo teórico que procura, através do seu mecanismo dialético de
conceitos e deduções, constituir um saber verdadeiro que não seja
aparente e errado. Um exemplo disso é o conceito socrático da virtude,
que vinculado ao saber e vinculando crença e moral acaba por destruir a
tragédia e criar um verdadeiro pessimismo prático. Sobre esse ponto
versa a seguinte passagem da Apologia de Sócrates:
(...)
Outra coisa não faço senão perambular pela cidade para vos persuadir a
todos, moços e velhos, a não vos preocupardes com o corpo nem com
riquezas, mas a pordes o maior empenho no aperfeiçoamento da alma,
insistindo em que a virtude não é dada pelo dinheiro, mas o inverso: da
virtude é que provém a riqueza e os bens humanos em universal, assim públicos
como particulares. (Apologia de Sócrates,
30a-b)
O
problema de Sócrates, em Nietzsche, não é resultado apenas do fato dele
ter matado a tragédia para fazer florescer a ciência, e sim porque com a
ciência começa uma cultura que busca iludida por uma “logicização”
de um mundo que tende para o inesclarecido e que, com o otimismo teórico,
não consegue nada mais que uma ética prática do pessimismo. Para
esclarecer essa tendência lógica, Nietzsche usa a imagem do cão que
corre atrás da sua própria cauda:
Agora
porém a ciência, esporeada por sua vigorosa ilusão, corre, indetenível,
até os seus limites, nos quais naufraga seu otimismo oculto na essência
da lógica. Pois a periferia do círculo da ciência possui infinitos
pontos e, enquanto não for possível prever de maneira nenhuma como se
poderá alguma vez medir completamente o círculo, o homem nobre e dotado,
ainda antes de chegar ao meio de sua existência, tropeça, e de modo
inevitável, em tais pontos fronteiriços da periferia, onde fixa o olhar
no inesclarecível. Quando divida aí, para seu susto, como, nesses
limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e acaba por morder a
própria causa – (...). (NIETZSCHE, 1992, p. 95)
Sendo
assim, o princípio da cultura moderna já atesta a sua doença
primordial, pois, com sua consideração otimista, desconfia da validade
de seus fundamentos, mas, mesmo assim, tem medo de enfrentar as suas
conseqüências. Tratando desse sinal mais profundo de doença, Nietzsche
irá além da contraposição de arte e ciência para contrapor vida e
moral, já que dentro do desenvolvimento da civilização científica a
moral se transformou em um instinto de aniquilamento para qual só a arte,
na vida e na cultura, pode apresentar cura.
Nietzsche
acreditava que, apenas mediante a arte, a existência humana poderia
justificar-se e, por isso, revê o auge da cultura grega para tentar
explicar como se originou e se desenvolveu a arte trágica. No entanto, a
tragédia tem os seus dias contados, pois com Eurípides e Sócrates ela
sucumbe diante da tentativa de entendimento da arte. A partir daí, a estética
é revista por um socratismo estético que tenta tornar toda a arte
consciente, o que vai acarretar não só em uma mudança estética, mas
também cultural.
Em
sua obra O Nascimento da Tragédia,
Nietzsche apresenta uma figura socrática muito fiel à relatada por Platão
na Apologia de Sócrates, em que
vemos um Sócrates justificando sua existência no momento de seu
julgamento e afirmando os seus conceitos, bem como a sua busca pelo saber,
o que se confronta com a existência trágica que não é compreensível,
como também a busca pelo inteligível que acabou por condenar a tragédia.
Ao
criticar Sócrates, o que Nietzsche tenta fazer é avaliar até onde a ciência
e seu otimismo teórico é saudável para uma civilização, já que o
insaciável conhecimento otimista é pessimista na prática e degenerou
toda a cultura ao tornar tudo lógico. Além de destruir a tragédia, o
otimismo teórico destruiu também a cultura moderna, pois não soube
enfrentar as conseqüências das falhas de sua ciência lógica.
Para
Nietzsche, a consideração trágica do mundo se contrapõe a consideração
teórica ou socrática, qual caracteriza a cultura moderna. Entretanto,
para ele, a cultura moderna está doente pelas conseqüências inerentes
à civilização cientifica e só pode ser salva tendo a arte como modelo
para a cultura.
__________
Referências
Bibliográficas
NIETZSCHE,
Friedrich Wihelm. Crepúsculo
dos Ídolos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores).
__________.
Trad. e Not. J. Guinsburg. O
Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e pessimismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
PLATÃO.
Trad. Carlos Alberto Nunes. Apologia
de Sócrates. Belém: EDUFPA, 2001.