por RAFAEL DUARTE OLIVEIRA VENANCIO

Graduando em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e bolsista de Iniciação Científica do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-CEBRAP) com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

 

 

 

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Ápices e abismos na montanha-russa do Jornalismo

Rafael Duarte Oliveira Venancio

 

Resumo: Quando se pensa em “História do Jornalismo”, a reflexão é feita, normalmente, em um relato cheio de grandes conquistas (demarcando um período de sucesso entre Émile Zola e Watergate) ou em um pessimismo atemporal. Esse artigo propõe uma análise cuidadosa de uma trajetória que se apresenta como uma montanha-russa. Esse percurso de ápices e abismos é necessário para apontar um caminho de mudanças e de pesquisas para o campo jornalístico.

Palavras-chaves: Jornalismo, História, conquistas, declínios, perspectiva futura.

Abstract: When you think of a “History of Journalism”, the meditation is made, generally, by a report full of big achievements (delimitating a successful period between Émile Zola and Watergate) or by a timeless pessimism. This article presents a careful analysis of a “rollercoast-type” course. This up-and-down way is crucial to point out a path of changes and researches to the journalistic field.

Keywords: Journalism, History, achievements, declines, future perspective.

 

Toda profissão ou prática humana possui seus altos e baixos. Aliás, o senso comum poderia dizer que é nesses movimentos oscilatórios que se desenrola a história, ou seja, entre apogeu e decadência. A análise proposta por esse trabalho quer buscar esses momentos no Jornalismo[1], mas parte de uma constatação importante.

Durante o decorrer da História do Jornalismo, parece que os jornalistas e seus estudiosos tendem a massificar os períodos, tornando uma trajetória só de glórias ou um poço, vil e trágico, sem fundo. Talvez, seja esse o principal bloqueio para uma mudança que proporcionaria à atividade se aproximar mais de sua função social.

O que parece uma mera questão de gosto, vira algo mais complexo. Ora, se o Jornalismo rigorosamente sua função e sempre, ou pelo menos na grande maioria das vezes, ajudou a sociedade, por que mudá-lo? Por outro lado, se o Jornalismo é uma lástima, considerado a expressão da alienação da sociedade e apenas favorecendo os poderosos, por que insistir nele?

Porém, o Jornalismo é intrínseco à sociedade contemporânea, principalmente sob a imagem de mundo de cunho capitalista. Herbert Marcuse, no seu livro A ideologia da sociedade industrial, quando busca uma forma de encerrar a “sociedade unidimensional” pensa em

um exemplo (infelizmente fantástico): a mera ausência de toda propaganda e de todos os meios doutrinários de informação e diversão lançaria o indivíduo num vazio traumático no qual ele teria a oportunidade de cogitar e pensar, de conhecer a si mesmo (ou antes, o negativo de si mesmo) e a sua sociedade (MARCUSE, 1967, p. 226).

Só que, em seguida, ele constata a incompatibilidade dessa prática com o mundo atual, ao afirmar que

sem dúvida, tal situação seria um pesadelo insuportável. Conquanto as criaturas possam suportar a criação contínua de armas nucleares, garoa radiativa e alimentos duvidosos, não podem (por essa mesma razão!) tolerar serem provadas da diversão e da educação que as torna capazes de reproduzir disposições para a sua defesa e (ou) a sua destruição (MARCUSE, 1967, p. 226).

Na verdade, para Marcuse, essa incompatibilidade é o grande trunfo para sair da “sociedade unidimensional”, pois “o não-funcionamento da televisão e dos meios estranhos de informação pode, assim, começar a conseguir o que as contradições inerentes do capitalismo não conseguiram – a desintegração do sistema” (MARCUSE, 1967, p. 226).

Essa posição marcusiana extrema não reflete, totalmente, a opinião daqueles que querem uma alternativa ao capitalismo. Lênin via uma outra função para o Jornalismo, que é refletida no nome da primeira parte da sua coletânea de artigos denominada A informação de classe. “O jornal como organizador coletivo da força revolucionária” (LÊNIN, 1978, p. 17) é o resumo das idéias no período anterior e no início da Revolução de 1917.

Em 1899, quando pensava na articulação da revolução do proletariado e como tornar verdadeira a premissa de Marx que diz que toda luta de classes é luta política, Lênin afirmou que acreditava

que, na atualidade, a tarefa essencial consiste em achar a solução desses problemas, e para isso devemos propor, como objetivo mais imediato, a organização do jornal do partido, sua tiragem regular; sua estreita ligação com todos os grupos locais. Cremos que para a organização dessa tarefa deve dirigir-se, no futuro imediato, toda a atividade dos social-democratas (LÊNIN, 1978, p. 22).

Como podemos perceber, tanto para o capitalismo como para o comunismo (principalmente para aquele conhecido como Socialismo Real), o Jornalismo tem uma função crucial, mesmo adotando diferentes conceitos de ação. Como o próprio parênteses de sua fala denuncia, nem mesmo Marcuse acredita no fim do Jornalismo.

Portanto, fazer uma análise dos altos e baixos do Jornalismo é essencial para compreender o seu percurso e para procurar as linhas de fuga para uma atividade, que poderia ser assim chamada, voltada para a melhoria da sociedade.

1. Zola e o ápice

Ao invés de pegar o início do Jornalismo, essa análise começará pelo primeiro caso jornalístico de grande notoriedade que, talvez, possa ser considerado um dos ápices da prática jornalística. A relação de Émile Zola com o Caso Dreyfus não mostra apenas o bom Jornalismo, mas também todo um mecanismo, que pode ser ajuizado qualitativamente como podre, da prática na época.

É um ótimo ponto de partida para não só discutir ética, uso político e função social do Jornalismo, mas também para pensar em alguns exemplos que possam nos ajudar na mudança, que é um dos vieses desse trabalho. Engana-se quem acredita que, apenas com o envolvimento direto de Zola na defesa do caso, podemos achar esses exemplos.

Logo no tímido envolvimento inicial do escritor, o artigo Pour les Juifs (Para os Judeus), com suas críticas ao anti-semitismo e suas propostas de inclusão social, é um grande exemplo tanto para a imprensa da época, que mobilizava a sociedade francesa com o tema do anti-semitismo e utilizava o judeu Dreyfus como exemplo-mor de traidor da pátria, como para os dias de hoje onde a pauta da inclusão social está mais forte do que nunca, porém os jornalistas apenas “factualizam” as discussões, sem explicá-las.

Como constata Gisely Hime em seu estudo, Zola, ao se dirigir aos anti-semitas, “destaca que ‘se ainda há Judeus, a culpa é sua. Eles teriam desaparecido, teriam se fundido, se não o tivessem forçado a se defender, a se agrupar, a se confinar em sua própria raça. (...) No dia em que o Judeu for apenas um homem como nós, ele será nosso irmão’” (HIME, 1997, p. 2).

“Para Zola, defender os judeus é defender os princípios fundamentais da República Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ideário da Revolução Francesa de 1789” (HIME, 1997, p. 3), ou seja, podemos, no limite, interpretar que essa intervenção inicial de Zola contra a própria imprensa da época é um retorno para a gênese do Jornalismo. Como lembra Ciro Marcondes Filho,

o jornalismo é filho legítimo da Revolução Francesa (...) Ele expande-se a partir da luta pelos direitos humanos nesta que foi a ‘revolução símbolo’ da destituição da aristocracia, do fim das monarquias e de todo o sistema absolutista herdado da Idade Média, assim como da afirmação do espírito burguês (MARCONDES FILHO, 2000, p. 10).

É nesse movimento que reside a escolha dessa análise por um início com Zola. Ele, além de ser em si um ponto alto do Jornalismo e representar uma luta contra os baixos da prática, significa uma retomada ao seu alto início. Isso significa que, no limite, podemos perceber dois ápices jornalísticos e como eles estão encadeados.

Só que não foi apenas na luta contra o anti-semitismo que Zola se destacou no Caso Dreyfus. Graças a sua forte participação como jornalista, através de pesquisa de campo e de artigos nos jornais, pode denunciar, como aponta Hime, a falibilidade das instituições, o uso dos temas unânimes na imprensa francesa (anti-semitismo e nacionalismo) como legitimação de um mecanismo falho de Pátria e o mau exercício do jornalismo (HIME, 1997, p. 12-13).

A importância de mostrar a falibilidade das instituições para a sociedade não era apenas para ridicularizar as Forças Armadas, o Executivo e o Judiciário franceses. Era para mostrar para a sociedade francesa como ela pode ser utilizada e manipulada para buscar legitimidade. Era interessante para o Exército aparecer novamente aos olhos da população como forte e confiável, já que tinha entrado em desmoralização após a derrota para a Alemanha em 1870.

Os outros poderes seguiram a mesma lógica: para fortalecer o nacionalismo, usaram a imagem que o povo judeu é um povo traidor historicamente e colocaram a culpa, não só da traição em si, mas de toda derrocada francesa, em um capitão judeu inocente. E toda a imprensa “comprou” e divulgou todo o movimento de legitimação, chegando ao extremo de que “o líder da campanha anti-Dreyfus (...) foi o Le Matin, jornal que, entre outras ações para destruir o ‘traidor da França’, publicou o fac-símile dos documentos secretos... e forjados” (HIME, 1997, p. 7).

Sobre o mau exercício do jornalismo, tem o emblemático artigo no Le Figaro intitulado Procès-verbal (Processo-verbal), cuja primeira parte é dedicada a críticas à imprensa. Vemos Zola aqui criticar que

nesses jornais, ditos sérios e honestos, a impassibilidade diante dos acontecimentos, nenhuma preocupação em apurar a verdade dos fatos, antes, o interesse em conquistar pela exploração do escândalo, da desgraça, maior número de leitores: ‘Esses jornais honestos contentaram-se em registrar tudo com um cuidado escrupuloso, a verdade como erro’. Zola indigna-se contra a falta de revolta diante do erro cometido contra Dreyfus e denuncia a perversão da imprensa, como uma perigosa úlcera para a Nação, pois amplifica graves doenças sociais como o anti-semitismo (HIME, 1997, p. 7-8).

Além da famosa carta J´accuse (Eu acuso) e da absolvição do Capitão Dreyfus, Zola nos mostra um importante exemplo de Jornalismo no alto de sua função. Como conclui Hime,

um exemplo que nos estimula a refletir os limites de nossa ação, sobre os interesses que verdadeiramente a movem, sobre a nossa capacidade de lutar verdadeiramente por uma causa justa, independente dos resultados que isso possa nos trazer. Somos capazes? Ou nos escondemos atrás dos limites impostos pela atual estrutura das empresas jornalísticas e pelos falsos ideais de imparcialidade e objetividade? Somos capazes? (HIME, 1997, p. 13).

Só poderemos saber isso se estudarmos melhor o que provocou essa crise no Jornalismo na época de Zola. Será que essa crise não nos aflige até hoje?

2. Mercado Editorial como declínio

Qual seria o principal fator de crise que assolou o jornalismo na época de Zola e, segundo alguns teóricos, ainda assola toda a produção da cultura na sociedade capitalista? O fenômeno da reificação, ampliado depois pelo conceito de indústria cultural, seria o culpado. Mas, esses teóricos não chamariam de crise e sim, de que o Jornalismo passa a ser fator de legitimação e controle do status quo.

Segundo Georg Lukács, crítico literário e formulador do conceito de reificação, a obra Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, demonstraria bem tal processo, que, em linhas gerais, seria uma ampliação do conceito marxista de “fetichismo de mercadoria” que envolveria todas as relações humanas, coisificando-as.

Em seu ensaio sobre Ilusões Perdidas, José Miguel Wisnik afirma que

Lukács, para quem o confronto com o rebaixamento dos valores ‘autênticos’ origina o gênero, viu neste romance o próprio paradigma da destruição, pelo capitalismo, do humanismo revolucionário das primeiras concepções burguesas da sociedade e da cultura, assim como em D. Quixote o mundo dos ideais feudais cavalheirescos fora destruído pela sociedade burguesa em via de formação (WISNIK, 1992, p. 326).

Como ressalta Sílvio Demétrio em seu artigo,

tal conflito é o centro da obra de Balzac, a saber, como reconhece Georg Lukács, a “transformação do espírito em mercadoria”. Não há mais espaço para as “ilusões” do humanismo, que levara a frente das manifestações populares os intelectuais do século XIX. Tanto o jornalismo quanto a literatura vêem-se envolvidos com uma nova dimensão que os transformará: o mercado editorial de grande escala (DEMÉTRIO, s/d, p. 2).

A relação entre reificação e Jornalismo não fica apenas na análise da obra de Balzac, Lukács dedicou um largo parágrafo a ela em sua História e Consciência de Classe, onde afirma que

essa estrutura mostra-se em seus traços mais grotescos no jornalismo, em que justamente a própria subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto da personalidade do ‘proprietário’ como da essência material e concreta dos objetos em questão, e que é colocado em movimento segundo leis próprias. A “ausência de convicção” dos jornalistas, a prostituição de suas experiências e convicções só podem ser compreendidas como ponto culminante da reificação capitalista (LUKÁCS, 2000, p. 222).

Entretanto, nos dias atuais, não se resumiria a esse o problema. Entraria em cena, a “indústria cultural” e, com ela, além de manutenção do status quo, a cultura e, conseqüentemente, o jornalismo perderiam a concepção de “valor de uso” marxista. Para eles, só restaria o “valor de troca”.

Como afirmam Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento, ao se assimilar

totalmente à necessidade, a obra de arte defrauda de antemão os homens justamente da liberação do princípio da utilidade, liberação essa que a ela incumbia realizar. O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 148).

E completam dizendo que

o consumidor torna-se a ideologia da indústria da diversão, de cujas instituições não consegue escapar. É preciso ver Mrs. Miniver, do mesmo modo que é preciso assinar as revistas Life e Time. Tudo é percebido do ponto de vista da possibilidade de servir para outra coisa, por mais vaga que seja a percepção dessa coisa. Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 148).

E com isso, como ainda afirmam muitos adornianos, a cultura e o Jornalismo continuariam imersos nessa conjuntura, sem esperança de saída. Porém, não basta ficarmos parados e terminar nossa análise por aqui. Precisamos buscar no jornalismo do século XX, novos exemplos de como fazer e de como não agir. A análise dos altos e baixos ainda é necessária para perceber se tivemos outro ápice similar ao de Zola para observá-lo e construir o terreno para a mudança.

3. Entre Watergate e Santiago Zavala

O caso mais celebrado com exemplo de bom jornalismo no século XX é o caso Watergate que desvelou uma série de fraudes feitas pelo Partido Republicano e que ocasionou a derrubada do presidente Nixon. Aliás, o Watergate, além de ser considerado ápice da prática na contemporaneidade, transcende os limites do bom Jornalismo e o reconecta à defesa da democracia.

Não é só o caso Watergate, mas toda o imaginário do Jornalismo criado pela cultura norte-americana. Um exemplo de produto cultural recente que retrata o imaginário dessa época é o filme Boa noite, e boa sorte, sobre a luta do jornalista Ed Murrow contra os exageros da campanha anticomunista liderada pelo Senador Joseph McCarthy.

Um acréscimo sobre a representação desse imaginário no filme. Creio que a melhor escolha do diretor, George Clooney, foi filmá-lo em preto-e-branco. A imagem desse jornalismo tem esse aspecto. Aspecto de jornal, a folha branca com letra preta, como se naquela tinta fossem denunciadas as sujeiras, as marcas da sociedade.

Preto-e-branco também simboliza todas os focos de oposição dessa prática jornalística. Branco e preto, presença e ausência de luz, o acusador e o acusado, o lado de cá e o lado de lá da notícia, o povo e os seus inimigos, os jornalistas e os poderosos.

A coloração do Quarto Poder só podia ser em preto-e-branco, já que o colorido sempre foi ligado ao entretenimento, que teria o pressuposto de alegrar a vida, deixá-la mais leve. Tanto que, nos primeiros anos dos filmes a cores, os musicais aproveitavam todo esse potencial e faziam muito sucesso com o público.

Mesmo sem cores, esse jornalismo deixa, na visão de tal imaginário, a vida mais leve, pois ele sempre estará vigilante para sua sociedade contra os abusos dos poderosos. Nesse ponto, a citação de Marcondes Filho sobre a gênese do Jornalismo na Revolução Francesa pode ser relembrada, aliás, podemos afirmar, no limite, que é um retorno a ela, esquecida desde os tempos de Zola.

Só que há uma atualização ou, pelo menos, um reforço nas tintas: esse imaginário de Jornalismo nunca se desgruda da democracia. Michael Schudson lembra, no seu artigo Creating public knowledge, que

“a fome nunca atingiu gravemente”, diz Amartya Sen, economista com extensa literatura sobre esse tema, “países com regime democrático e uma imprensa relativamente livre.” Este é um pensamento fantástico. Sen acrescenta que ele é válido inclusive para países democráticos pobres que tenham tido suas plantações devastadas. A democracia do tipo eleitoral, com o apoio da mídia, evita a fome. Quando a procura pelas notícias aumenta, os contornos políticos se alteram (SCHUDSON, 1995, p. 27).

A questão muda de rumo. É aqui que começa a surgir a visão de que o jornalismo, dentro e de braços dados com a democracia, seria sempre lindo e maravilhoso. Aliás, pregam que seria impossível ter uma dissociação entre as duas, elas se tornaram sinônimas.

Como lembra Nelson Traquina, em A tribo jornalística, há a mobilização de todo um catálogo de estórias que permite ao jornalista completar o seu trabalho. O valor-notícia da consonância corresponde ao esforço do jornalista em encaixar novas situações em velhas definições. Assim, a utilização do sufixo “gate”, do caso Watergate, torna-se cada vez mais comum e em casos esdrúxulos como Collorgate e Pittagate.

Tudo isso para permitir não só a fácil identificação de uma nova reconfiguração do mesmo corpo, do mesmo “inventário de discurso”, mas também de sempre reforçar o imaginário que Jornalismo e democracia são um só.

Praticamente na mesma época e não muito longe dos Estados Unidos, um novo imaginário de Jornalismo foi criado: o imaginário latino-americano. Onde o Jornalismo seria apenas um sustento, como qualquer profissão, que abrigaria apenas os boêmios e os indecisos.

Na verdade, se seguirmos a linguagem do livro Conversas na Catedral, do escritor peruano Mario Vargas Llosa, falaremos que o Jornalismo é o lugar onde alguns personagens liminares ganham a vida. Veja bem, eles não são super-heróis como Bob Woodward, Carl Bernstein e Ed Murrow, são pessoas, opacas e sem cor, imersas na massa social sem destaque.

Defesa da democracia? Que democracia tinha a América Latina no meio do século XX? Só governos militares (com golpes apoiados pela democracia dos EUA) ou governos elitistas. E o jornalismo como prática existia normalmente, criando um Jornalismo como mero emprego.

O livro de Llosa demonstra bem não só um país em decadência, mas mostra um Jornalismo em igual situação. Um Jornalismo que persiste até hoje, mas quer, para se legitimar, absorver o Imaginário norte-americano. Aliás, só absorver a imagem já construída e não mudar suas atitudes e práticas jornalísticas de acordo com as regras deles.

Quando se pensa em reformar um jornal por aqui, usam o USA Today (como no caso da Folha) e não o The Washington Post. Pensam apenas em reformas gráficas e estruturais de texto, mas não em mudanças de enfoque.

Porém, mesmo assim, usam e abusam do “Jornalismo e democracia”. Só que, ao conviver com o Imaginário latino-americano, a cantilena não tem tanta força. Ficamos em uma situação dúbia. Estamos em um apogeu ou no declínio? Realmente, jornalismo é democracia ou jornalismo é reificação e indústria cultural? Sabemos que a situação não está boa, porém, como podemos mudar?

4. Conclusão

A dúvida em definir se estamos no apogeu ou no declínio é mais grave do que aparenta. A caracterização desse “double bind” no Jornalismo, onde ficamos entre dois imaginários, o do jornalista “super-herói” norte-americano e o do jornalista “fodido” latino-americano; entre Jornalismo é democracia e Jornalismo é reificação e indústria cultural, ou seja, controle do status quo; e entre não-mudar e mudar.

A situação de “double bind” é clara no Jornalismo. O termo foi cunhado por Gregory Bateson para relatar o caso de uma mãe que tem medo do contato íntimo com o seu filho criança, mas que, simultaneamente, não aceita seus próprios sentimentos de medo e busca que o filho a veja como mãe amorosa, ou seja, ela é ambígua.

A patologia do “double bind” surgiria com a proibição pela mãe de ser cobrada pelo filho, quando este percebe a ambigüidade. Ou seja, ela impede-o de metacomunicar, atrofiando assim sua capacidade de interação, desfigurando a sua percepção metacomunicativa. Surge daí a esquizofrenia.

No Jornalismo, isso também acontece. Não só pelo comportamento da imprensa (que toma atitudes erradas e, para legitimá-las e não ficar mal com o público, se relaciona com a democracia), mas com a postura de diversos teóricos do Jornalismo que são radicalmente contra qualquer questionamento, transformando os críticos em meras pessoas que não gostam, mas que se imbuem da missão de pensar o Jornalismo[2].

Para sair dessa situação não basta afirmar como Marcuse e pregar a extinção do Jornalismo. Se ele, como prática atual, está decadente, ainda podemos salvá-lo como parte integrante do Conhecimento. O Jornalismo deve seguir mais o exemplo de Zola para servir ao povo do que entrar nos jogos de Poder entre políticos de situação e oposição.

Aliás, aquela pergunta proposta por Hime é pertinente aqui. Somos capazes de efetuar essa mudança? Somos capazes de seguir Zola e os rapazes do Watergate?

Na verdade, para mudar temos que ser capazes de acreditar que o Jornalismo que aí está pode ser modificado. Ele não é uma estrutura fixa, ele está sendo, ele é um devir. Tanto é um devir que pudemos, nessa análise, falar em vários Jornalismos dentro de jornalismos. 

Então, podemos implementar o novo sim. Acreditar que o Jornalismo pode ser modificado para além do seu escopo atual é indispensável para sair desse “double bind” entre apogeu e declínio. O que precisamos é nos desamarrar das concepções antigas e ir, “freireanamente”, em direção a um Jornalismo como ação cultural para a liberdade.

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Bibliografia

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BALZAC, Honoré de. Ilusões Perdidas. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

DEMÉTRIO, Silvio Ricardo. Os limites do devir – literatura no jornalismo.

Disponível na Internet em: <www.bocc.ubi.pt/pag/demetrio-silvio-literatura-jornalismo.pdf >, s/d. Acesso em 28 set. 2006.

HIME, Gisely. O jornalista Zola e o Caso Dreyfus (1894-1906) – Reflexões sobre o exercício do jornalismo. São Paulo: ECA/USP, 1997.

LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2004.

LÊNIN, Vladimir I. La información de clase. Cidade do México: Siglo XXI, 1978.

LLOSA, Mario V. Conversas na Catedral. São Paulo: Círculo do Livro, 1977.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e jornalismo – A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker, 2000.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

SCHUDSON, Michael. Creating public knowledge (trad. Andrea Limberto Leite). Media Studies Journal. Media and democracy. V. 9, n. 3. New York: Columbia University, 1995.

TRAQUINA, Nelson. A tribo jornalística – uma comunidade transnacional. Lisboa: Editorial Notícias, 2004.

WISNIK, José Miguel. Ilusões Perdidas. IN: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 326.

[1] Usarei “Jornalismo” para definir a atividade como um todo, como parte do Conhecimento; já “jornalismo” será para caracterizar essa atividade dentro de uma determinada época.

[2] Um exemplo disso é o apêndice A formação universitária dos jornalistas escrito por Nilson Lage. In: LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.169-183.

 

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Publicada em 21.12.06 - Última atualização: 12 dezembro, 2006.