Quando
se pensa na introdução de recursos tecnológicos na educação, em
especial os suportes digitais, é impossível não refletir sobre o papel
do professor. Antes mesmo de se questionar sobre vantagens e dificuldades,
possibilidades e desafios, a redefinição das práticas de ensino se
demonstra inevitável conseqüência desse movimento. A implementação da
informática na educação, pela sua complexidade, suscita um sem número
de questões.
No
presente trabalho, pretende-se realizar um exercício de pensamento
voltado para o professor diante desse (já não tão novo) panorama de
inserção tecnológica na escola. No entanto, antes de abordar questões
mais operacionais, do tipo harware e software, parece-nos
relevante instar algumas reflexões no plano conceitual. Se a relação
entre o professor e a tecnologia for analisada como um encontro, algumas
questões importantes poderão ser levantadas.
Quais
categorias de pensamento irão nortear uma prática pedagógica apoiada
por recursos digitais? De que conceitos o professor deve se apropriar para
auxiliá-lo a pensar/repensar sua atividade? Qual o papel, ou novo papel,
do profissional da educação num quadro em que, professor e alunos têm
acesso praticamente às mesmas informações? Estas são apenas algumas
perguntas, dentre as quais, para este texto, dar-se-á atenção especial
aos aspectos relacionados ao terreno conceitual.
Penso
em “William Wilson”. Neste conto alegórico, Edgar Allan Poe (2003)
narra a história do personagem-título, um homem que durante toda sua
vida foi assombrado pelo seu duplo. Desde a infância, o jovem William era
admoestado por um indivíduo singular, que lhe era idêntico em tudo,
inclusive no nome. Assim fala William sobre seu rival: “nada podia
perturbar-me mais seriamente (por mais que eu escondesse escrupulosamente
essa perturbação) do que qualquer alusão a uma similaridade de inteligência,
robustez física ou ainda outra condição que pudesse existir entre nós”
(POE, 2003, p. 126). A única diferença perceptível entre os dois seria
talvez o fator mais marcante. Embora o timbre de voz fosse o mesmo, sua cópia
não falava tão alto quanto ele, na verdade sua voz era quase um
sussurro. No entanto, como diz William, “aquele seu murmúrio singular
acabou se transformando no próprio eco de quando eu falava” (POE, 2003,
p. 127). Então, ao longo de sua vida, nos momentos em que seu
comportamento se apresentava mais imoral, quando menos esperava, seu sósia
reaparecia para simplesmente sussurrar no seu ouvido, em tom de reprovação:
“William Wilson...”.
Abandonemos
o conto por ora, para falar de outro conflito. Lucien Sfez, no livro “Crítica
da Comunicação”, aborda a relação do homem com a tecnologia como um
encontro com seu alter-ego.
O autor afirma que “passamos a viver num mundo de máquinas de
transportar, de fabricar, de pensar, Frankenstein, nosso duplo,
aquele que criamos, assume sua autonomia e em seguida o poder” (SFEZ,
2000, p. 19). Por que não falar também sobre máquinas de educar?
Ao se ver diante do computador, não estaria o professor identificando seu
algoz? Quem já ministrou aulas em laboratórios de informática sabe o
quanto é difícil disputar a atenção dos estudantes com esta máquina.
É uma concorrência desleal, senão perversa. Portanto, se somado a isso,
forem considerados outros pontos, referentes à dificuldade de manuseio, não
será totalmente estranho afirmar que, no encontro com seu “duplo”, o
professor imagina-se diante de seu nêmesis.
A
saída para o encontro sfeziano entre o professor e seu duplo
tecnológico, parece ser um desvio no sentido da reflexão sobre a própria
prática docente. Tal introspecção implica, inevitavelmente, no estudo
dos conceitos envolvidos na adoção dos recursos informatizados no
ensino. Permitir, até mesmo estimular, o professor a apreender tais
categorias de pensamento é o passo primeiro para amenizar os efeitos
ditos nocivos do citado encontro (para muitos, um desencontro).
É, sem dúvida, um exercício para fortalecer o professor na qualidade de
agente facilitador do conhecimento. Se este profissional sente-se ameaçado
diante do Frankenstein usurpador, que se lhe forneça então as
armas, isto é, as “tochas” conceituais que fundamentarão o caminho
de sua luta.
Operar
com conceitos, na verdade, extrapola o usual pragmatismo que acomete a prática
docente. Do mesmo modo, é diferente de uma atividade de cunho apenas
científico. Trabalhar com o processo de ensino está, intrinsecamente,
imbricado no processo de aprendizagem, sobre o qual o professor tem pouco
ou nenhum controle. Por mais que se tente planejar e preparar uma aula,
tem-se domínio quase nulo sobre os resultados da aprendizagem, visto que
a mesma ocorre no âmbito da subjetividade do indivíduo que aprende. O
professor é como o Semeador,
cuja semente/conhecimento, que é distribuída por igual a todos os
solos/alunos, germina de forma diferenciada, seminal para uns, menos
fecunda para outros. Nesse território inóspito, importa conhecer as
teorias da aprendizagem, para tentar reduzir a margem de insegurança que
permeia o ofício de ensinar. Ademais, quando se opera num ambiente
repleto de incertezas como o da Educação, um resgate filosófico se faz
necessário. Refletir sobre a própria prática e “manusear” conceitos
é invadir, no melhor dos sentidos, o território da Filosofia. Quando o
professor se torna um educador-filósofo, está abrindo um leque de
possibilidades para pensar/repensar sua arte, criando assim espaço para
um esplêndido repositório de idéias. Desconstruir certezas e
permitir-se desaprender aquilo que lhe engessa o pensamento é o início
de uma caminhada rumo ao constante aprimoramento pessoal, ou seja, o
autodesenvolvimento.
No
encontro com Deleuze e Guattari (1997, p. 51) depreende-se que a produção
de conceitos acontece numa “zona abstrata” conhecida como plano de imanência. Tal plano é fundamental para o trabalho do
filósofo, pois é nele que transitam os conceitos existentes, bem como
brotam novos. Para os autores, o plano
de imanência é o campo onde os conceitos se produzem, circulam e
se inter-relacionam. Declaram ainda que “os conceitos são
acontecimentos, mas o plano é o horizonte de acontecimentos” (DELEUZE e
GUATTARI, 1997, p. 52). Na verdade, é aceitável supor a existência de
uma multiplicidade de planos, referentes a diferentes ramos de
conhecimento. Esses diferentes planos vivem em movimento constante, uma
vez que acompanham a dinâmica da mente humana, e estão sujeitos a
encontros, rupturas, sobreposições e justaposições. Num exercício de
pensamento, pode-se vislumbrar a existência de um plano de imanência para a Educação e outro para a Informática,
cada qual com seu respectivo repertório conceitual. Logo, é totalmente
crível que, na justaposição desses planos, se possa colher e analisar
os conceitos que irão brotar nesse fértil terreno interseccional.
No
arcabouço conceitual que preenche a intersecção da Informática com a
Educação pode-se destacar algumas noções essenciais. Num primeiro
momento, a noção de virtualidade
expressa as possibilidades da aplicação dos recursos digitais na educação.
O virtual, longe do sentido irreal ou fantasmático que usualmente lhe é
atribuído, traz embutido o que possui potência de real, isto é, aquilo
que tem condições de se realizar, mas encontra-se latente. Para Pais
(2002, p. 30), o virtual “entendido como a soma de todas as potências
que podem ser transformadas em eventos da atualidade é um conceito de
profundo interesse pedagógico, pois destaca o desafio da criatividade de
uma nova idéia e não concebe a existência de um modelo que possa
garantir a atualização desse resultado”. As implicações dessa concepção
de virtualidade se fazem
sentir diretamente no trabalho do professor. As práticas de ensino,
imbricadas em um instrumental informatizado, demandam assim um potencial
criativo muito maior. Os mecanismos mentais acionados por processos
virtuais precisam se converter em aprendizagem real, concretizada na
articulação dos saberes adquiridos. Um professor pode, por exemplo,
passar horas com os alunos buscando informações sobre Agricultura em sites
de busca. No entanto, esta situação não é nada diferente daquela já
praticada numa sala de aula tradicional, onde o aluno é um repositório
sem-fim de dados. No mesmo exemplo, porém, é diferente quando os alunos,
sob supervisão do professor, buscam informações na rede mundial para,
com elas, montar uma mini-horta na escola.
Pais
(2002, p. 16) destaca o mérito pedagógico da interatividade,
que se constitui a seu ver na maneira como o usuário estabelece relação
com as informações contidas no software. Para o autor, a interatividade
permite expandir as condições de elaboração do conhecimento. O desafio
embutido neste conceito reside na maneira como o software destinado
à aprendizagem é montado. O mesmo não pode ser uma mera reprodução do
livro didático, ou seja, necessita dispor de uma dinâmica hipertextual,
que permita ao usuário navegar pelo universo de informações disponível
de forma não linear e autônoma.
No
entanto, a discussão envolvendo esse conceito será aprofundada por
Villardi (2005, p. 100), que faz distinção entre interatividade
e interação. Estes dois
conceitos, normalmente tratados de forma sinônima, recebem abordagens
distintas pela autora. Embora reconheça a origem comum destes
substantivos, Villardi atribui aos mesmos diferentes graus de amplitude e
complexidade. Assim, a interatividade
se apresenta como conjunto de ações que estabelecem uma comunicação
unilateral entre os sujeitos. No âmbito da interatividade,
portanto, os participantes desse tipo de comunicação não se afetam
mutuamente, não há trocas. Imagine, para ilustrar de forma prática, o
caso do usuário que responde a uma pesquisa de opinião de um determinado
site. Para a autora “a interatividade
pressupõe uma distinção de natureza ou de nível hierárquico entre os
sujeitos envolvidos” (VILLARDI, 2005, p. 101). A interação,
por seu turno, possui maior complexidade, pois evoca um ambiente
comunicativo apropriado e a predisposição dos “atores envolvidos” no
processo para proporcionar “afetação múltipla”. Isto implica que,
numa comunicação caracterizada pela interação,
o emissor envia uma mensagem que impacta seu receptor, entretanto, este
mesmo sujeito, sofre o reflexo de sua própria ação, sendo afetado também
no processo. A interação,
na esfera educacional, torna-se facilitadora do aprendizado por se
constituir num território colaborativo que promove novos encontros e
novas trocas entre as partes. Villardi conclui que a interação
“culmina, portanto, em mudança de concepção e em construção de
conhecimentos a partir da reflexão e da crítica, em ambientes
cooperativos, de dentro dos quais emerge a aprendizagem” (VILLARDI,
2005, p. 101).
Outra
noção para se trazer à baila é a simulação.
É importante ressaltar que este conceito tem existência anterior à
Informática e já se encontrava presente nas situações de aprendizagem,
antes mesmo da penetração dos recursos digitais na Educação. A simulação tem papel preponderante no sentido de enriquecer a
aprendizagem, tornando mais significativo o conhecimento apreendido em
aula. Pais observa que, através da simulação,
“a aprendizagem de um conceito torna-se mais significativa na medida em
que o aluno é capaz de reconhecê-lo numa diversidade de situações, ou
seja, de simular o conhecimento nessa diversidade” (PAIS, 2002, p. 153).
É o caso de um estudante de Administração que usa determinado software
para prever o desempenho financeiro futuro de uma organização, testando
diversos panoramas econômicos possíveis. Pais (ibidem)
ressalta ainda a mudança que isto implica no processo de representação,
dado que a simulação
permite uma análise pela variabilidade dos ângulos e o acréscimo do
movimento. Por esse motivo, o conhecimento simulado irá ocupar um patamar
intermediário, não sendo essencialmente de natureza teórica, nem de
natureza empírica. Não obstante, seu impacto se fará sentir na aplicação
prática dos conhecimentos adquiridos. Graças a softwares
especiais, estudantes de medicina, por exemplo, podem estudar a fisiologia
do corpo humano em tempo real, visualizando situações que, antes, cadáver
algum permitiria. O aumento da percepção por representações gráficas
dinâmicas, em oposição às representações estáticas do livro didático,
promove uma evolução marcante, desencadeando o surgimento de um novo
modelo cognitivo de aprendizagem.
Para
o próximo conceito, permita-me recorrer uma vez mais à literatura, para
somá-lo a uma analogia bastante ilustrativa. No romance histórico
Musashi de Yoshikawa (1999), o personagem-título é um jovem samurai do
Japão feudal do Século XVII. Devido a situações desconcertantes,
geradas por seu espírito indisciplinado, foi condenado à morte pelas
autoridades xogunais. Um monge interveio a seu favor e a pena foi comutada
para clausura por um determinado período. O rapaz ficaria confinado numa
cela no alto de uma torre. Entretanto, naquele local isolado do mundo
exterior encontravam-se pilhas de livros em torno de uma escrivaninha. O
conselho do monge foi:
leia
tudo que for possível (...) encerrado neste escuro recinto, considere-se
dentro do ventre materno, preparando-se para o nascimento. Aos
olhos da carne, este recinto nada mais é do que um escuro quarto selado.
No entanto, olhe com atenção e medite: a sala está repleta de luz,
(...) tanto poderá viver enclausurado num escuro quarto selado, ou passar
os dias numa sala cheia de luz – a escolha é sua e cabe ao seu
espírito decidir (YOSHIKAWA, 1999, p. 146, grifos meus).
Se
tomarmos a “sala cheia de luz” como uma metáfora para uma forma
diferenciada de ensino, entender-se-á a dimensão do conceito de círculo
de potência. Ao invés de submeter o educando a uma interminável
seqüência de aulas expositivas/explicativas, pode-se imergi-lo numa
situação onde possa se confrontar com fontes diversificadas de
conhecimento, permitindo-lhe atuar de forma autônoma, selecionando o que
lhe for repleto de significados. É vital ressaltar, entrementes, que isto
não implica na erradicação das aulas expositivas/ explicativas, visto
que sua importância é indiscutível. Entende-se que o ensino é feito de
momentos e o círculo de potência
pode ser um deles. Entretanto, na educação contemporânea, persistem as
situações em que o aluno costuma ser mero depositário de saberes
previamente selecionados, que são apresentados ao estudante sem deixar
margem para qualquer reflexão crítica, onde questionamentos não são
bem-vindos. Tais momentos acabam tornando-se estanques, desprovidos de
propósito e terminam como um fim em si mesmo.
Esse
momento de ensino, o círculo de
potência, onde alunos e professor operam coletivamente, de maneira
emancipada e interdependente, é tratado por Rancière (2004, p. 34) na
obra “O mestre ignorante”. O objetivo é mergulhar o aluno num círculo
de possibilidades, uma “sala cheia de luz” onde ele possa ser
conduzido por sua própria inteligência e traçar seus próprios
caminhos, suas próprias saídas. São proporcionados múltiplos encontros
com novos saberes, em que o professor/facilitador deve disponibilizar um
manancial diversificado de conhecimentos, apresentados nas múltiplas
possibilidades midiáticas existentes. Assim, num contexto de Informática
aplicada à Educação, extrapola-se o livro didático, recorrendo-se à
multimídia (world wide web, CD-ROM’s interativos, recursos
audiovisuais, softwares didáticos, etc.) para, num processo pleno
de interação,
criar novas possibilidades de aprendizagem.
De
posse dos conceitos aqui apresentados, qual seria então o papel do
professor? O que se torna preponderante no seu desempenho para que, no
encontro com seu duplo tecnológico, possa concretizar um novo paradigma
de formação humana?
Retornemos
a “William Wilson”. No clímax do conto, Wilson tem o embate
derradeiro com seu sósia. Num momento dramático, desfere-lhe golpe
mortal. Sua atenção é desviada por um instante e quando se volta, ao
invés de se deparar com seu duplo, tem a nítida impressão de olhar para
um espelho. Diante daquele reflexo, idêntico a si em tudo, exceto pelo
sangue, ouve as trágicas palavras: “¾
Você venceu e eu me rendo. Todavia, doravante você também estará morto
(...) Era em mim que você existia – e, na minha morte, veja por esta
imagem, que também é a sua, quão completamente você assassinou a si
mesmo” (POE, 2003, p. 145).
Essa
história é claramente uma alegoria para o encontro do homem com a sua
consciência. Quando pensava-se diante de seu algoz, Wilson enfrentava, na
verdade, a própria consciência de si e dos atos que engendrava na vida.
Penso que isso é exatamente o que acontece com o professor que se
defronta com o computador. Ao invés de encará-lo como antagonista, como
criatura desalmada que almeja substitui-lo, deveria perceber que, em
verdade, encontra-se frente a uma oportunidade de repensar sua prática.
No encontro com seu duplo tecnológico, o professor deve se admirar no
“espelho de Wilson”, isto é, voltar seus pensamentos para si,
valorizar sua consciência. Analisar o mundo de possibilidades que está
se lhe descortinando e focar a atenção nas categorias de pensamento que
lhe propiciarão o autodesenvolvimento. Vislumbrar na virtualidade
o desafio embutido de desenvolver seu potencial criativo na concretização
de um aprendizado real. Compreender que o ensino é composto de momentos,
onde a interação se faz essencial para, através de relações
interpessoais efetivas, incrementar as situações de aprendizagem.
Entender a importância da simulação
como instrumental capaz de resignificar o conhecimento, bem como
desenvolver um novo modelo cognitivo. E enfim, embora certamente longe de
esgotar o universo conceitual, adotar o círculo
de potência como momento decisivo de enriquecimento do processo de
ensino.
Destarte,
o professor necessita concentrar seus esforços na concretização desse
novo modelo de formação humana. Entender que a mudança de paradigma
implica na mudança do professor, na sua forma de ser e de agir no mundo.
O professor deve assumir um papel ativo, promovendo, pela instrumentalização
dos recursos tecnológicos disponíveis, um ensino que permita ao
estudante manusear de forma articulada os saberes construídos na escola,
levando esse aprendizado para a vida.