por THIAGO LEMOS SILVA

Graduando do Curso de História do UNIPAM – Centro Universitário de Patos de Minas

 

 

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Revolucionário ou reformista?

Prós e contra do sindicato segundo Errico Malatesta

 

Thiago Lemos

 

Resumo: O presente artigo objeta discutir, através da perspectiva malatestiana, até que ponto a adesão aos métodos e estratégias de Ação Direta que o sindicato promoveu, poderiam ajudar ou atrapalhar a revolução e a realização do projeto libertário.

Palavras chave: Malatesta. Anarquismo. Sindicato.

Abstract: The present objective article discuss, across of the perspective malatestian, to that point the adhesion to the approaches and strategies of straight action that the union promoted, helped or became an impediment for the revolution and the achievement of the libertarian project.

Key words: Malatesta. Anarchism. Union.

 

Errico Malatesta (Fonte: http://www.anarchy-movement.org/images/anarchists/malatesta_errico.jpg)Errico Malatesta (Fonte: http://marxists.anu.edu.au/glossary/people/m/pics/malatesta-errico.jpg)Errico Malatesta[1] nasceu em 14 de dezembro de 1853 na cidade de Santa Maria Cápua Vetere na Itália. Suas atividades de cunho polêmico e contestatório datam já de sua adolescência, quando, aos 14 anos de idade, envia uma carta ao Rei Vittorio Emmanuelle, protestando contra as arbitrariedades e injustiças locais do seu governo, o que lhe rendeu na época o cárcere por alguns dias. Na mocidade sua rebeldia só fez aflorar: tornou-se republicano e constantemente se encontrava envolvido em protestos e manifestações, foi novamente preso e suspenso por um ano da Universidade de Nápoles, onde cursava Medicina. Em 1871, depois de abandonar o ideário republicano, adere, aos 17 anos, à Associação Internacional dos trabalhadores, o que fará também com que abandone a Faculdade de Medicina. Foi também quando conheceu o agitador e revolucionário russo Mickail Bakunin tornando-se um anarquista, sob sua influência.

Até o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, Malatesta percorre quase toda a Europa, visita o Egito, os Estados Unidos e até a Argentina. Em quase todos esses lugares é deportado ou ameaçado de deportação, em virtude de suas atividades subversivas.

Já em 1919 volta à Itália, onde é recebido com pompas e glórias da multidão que o aclama. Empreende esforços para organizar ali um movimento anarquista; funda o jornal Humanita Nuova e se aproxima da U.S.I. União Sindical Italiana, central operária de tendência anarquista, que coordenava grandes manifestações, greves e ocupações de fábricas.

Já no início de 1920 o fascismo, com o apoio da burguesia e do governo italiano, avança consideravelmente. Em outubro de 1922 acontece a marcha sobre Roma. Na Praça de Cavour os “camisas negras” queimam o retrato de Malatesta . Em seguida o Humanita Nuova é proibido de circular. Malatesta é constantemente vigiado pela polícia fascista. Em 27 de julho de 1932, em virtude de seus problemas brônquios-pulmonares morre.

Maurício Tragtenberg (1983), ao relembrar Malatesta o aproximou de Robespierre, argumentando que os elogios que os historiadores comumente endereçam ao jacobino poderiam também ser dirigidos ao anarquista, pois este, tal qual o primeiro nunca se atemorizou, nunca transigiu, jamais se corrompeu. Foi um exemplo de integração entre a teoria e a prática, algo raro nos dias de hoje.

Todavia, o intento aqui não é o de traçar exaustivamente o perfil biográfico de Malatesta, bem como o de dar um relato pormenorizado de suas atividades enquanto teórico e militante do anarquismo. O objetivo que ora se propõe nesse artigo é menos ambicioso, e se restringe a discutir o caráter dual que o sindicato assumiu na perspectiva malatestiana, oscilando constantemente entre qualitativas de ordem revolucionária e/ou reformista.

Nesse sentido, pode-se perceber que a posição de Malatesta no que tange à adesão parcial ou integral por parte dos anarquistas aos métodos e estratégias de Ação Direta[2] que o sindicato trouxe, tais como o boicote, a sabotagem, a greve parcial e a geral, se insere dentro de um contraponto crítico em relação a duas outras correntes de pensamento que, ainda em fins do século XIX e início do século XX, integravam e constituíam o movimento anarquista: a comunista libertária e a anarcossindicalista.[3]

No findar do século XIX, logo após a destruição da Comuna de Paris em 1871 e o fechamento da 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1876, a burguesia desencadeou uma feroz e sistemática perseguição ao movimento operário, reprimindo violentamente qualquer tipo de manifestação contestatória aos poderes instituídos. O movimento anarquista também sentiu na pele tais perseguições; várias de suas lideranças foram presas, muitas de suas organizações foram fechadas e os seus jornais proibidos de circular. Aos poucos, o campo de atividades a serem realizadas pelos libertários foi minguando, reduzindo-se a atos criminosos, tais como roubos e assassinatos. Foi nessa época que os chamados anarquistas individualistas, com a propaganda pelo fato ganharam fama e visibilidade. Mas em linhas gerais, não tinham um programa bem claro e definido, e seus atos violentos e terroristas pareciam mais impressionar artistas e poetas que de alguma forma ou outra desagradavam da moral burguesa, do que contribuir para a criação de uma nova sociedade. No interior do movimento, os comunistas libertários ou anarco-comunistas, como alguns preferem grafar, criticavam os anarquistas individualistas, argumentando que a propaganda pelo fato não contribuía de forma alguma à causa ácrata e que os atos violentos realizados pelos adeptos dessa corrente desmoralizavam o anarquismo, e contribuía para que para que preconceitos e mal entendidos acerca da doutrina continuassem vigorando. Entretanto os comunistas libertários, a despeito de todo seu militantismo, também não conseguiram atrair largas parcelas do proletariado para a sua causa, e foi aos poucos se distanciando destes. Cada vez mais longe do movimento operário, tais militantes começam então a se organizar em círculos intelectuais fechados, transformando o ideal libertário em uma teoria abstrata, cujo vínculo com a prática era bastante exíguo. As teorias de Kropotkin[4], que figurava à época como o maior expoente dessa corrente, são uma prova ilustrativa acerca de tal afirmativa.

Percebendo que o anarquismo não se restringia apenas à mera concepção de uma sociedade livre, Kropotkin (1987), almejando conferir uma base científica[5] ao pensamento libertário, procurava mostrar que ele é parte de toda uma filosofia social, a qual deveria ser desenvolvida, utilizando-se não os métodos metafísicos e dialéticos, mas sim os métodos empregados pelas ciências naturais, que serviriam como paradigma para estudar tanto a natureza animal, quanto às sociedades humanas. A citação abaixo subscrita pode confirmar isso:

Para nós, a natureza é um todo do qual o homem e a sociedade fazem parte... Nosso método é o das ciências naturais exatas... de forma a englobar toda a natureza e todos os efeitos de ordem social em um a mesma unidade de idéias sem, no entanto, cair nos mesmos excessos de Augusto Comte e de Herbert Spencer em suas tentativas do mesmo gênero.... A anarquia ... possui sua base filosófica na compreensão materialista, mecânica  da Natureza, na qual o homem sua vida psíquica e sua vida societária são compreendidos como fatos da história natural. (KROPOTKIN apud SEIXAS, 1995, p.142-143).

Analisando as condições de vida e/ou sobrevivência entre os animais, Kropotkin observa a luta que as espécies devem travar contra a natureza desapiedada e inclemente. Entretanto, notifica não ter encontrado:

Nenhum sinal de luta cruel pelos meios de subsistência, entre os animais pertencentes a uma mesma espécie, fenômeno que a maioria dos darwinistas considera o traço dominante e característico da luta pela vida e a principal força ativa do desenvolvimento gradual no mundo dos animais (KROPOTKIN apud LUIZETO, 1987, p.35).

Muito pelo contrário, em suas observações diretas Kropotkin percebeu que a garantia da sobrevivência e evolução das espécies animais se encontra na prática da ajuda mútua. Posteriormente, ao estudar as sociedades humanas não pôde acatar, de maneira aceite e concorde, a máxima corrente entre muitos pensadores, em especial os burgueses, que depreendia ser a luta entre as pessoas uma lei natural.

Mediante os estudos que promoveu, chegou a conclusões totalmente diferentes ou adversas: sempre que houve algum desenvolvimento progressivo nas sociedades humanas, ao longo da História, é porque as lutas cessaram ao máximo possível e em seu lugar atuaram os princípios da ajuda mútua. Assim, Kropotkin conclui que, “na ampla difusão desses princípios estava a melhor garantia de uma evolução mais elevada do gênero humano”. (KROPOTKIN apud LUIZETO, 1987, p. 36).

Segundo Kropotkin, tal qual na natureza, na sociedade existem leis genéricas e universais que determinam o caminho que os homens devem percorrer. A revolução anarquista não contraria essas leis, mas sim se insere dentro delas, entendendo o processo revolucionário como uma exigência natural e insubstituível, ditada por uma espécie de necessidade histórica. Argüido da crença otimista de que a revolução libertária estaria fadada a se realizar, o geógrafo russo cria que o papel dos intelectuais anarquistas nesse período pré-revolucionário se reduziria à propaganda política, levada por meio de jornais e outros veículos alternativos de comunicação. A conscientização através da propaganda política seria suficiente para que o proletariado entrasse no caminho certo, tomasse ciência do papel revolucionário que deveria desempenhar no processo sublevatório que daria fim ao capitalismo e por extensão ao Estado burguês. Depois da revolução, os trabalhadores reorganizariam a sociedade segundo os critérios políticos e econômicos do comunismo libertário. Mas isso não deveria, num primeiro momento se converter em preocupação, pois os trabalhadores, uma vez livres das travas coatoras da sociedade burguesa, e guiados pelos seus instintos naturais de solidariedade e ajuda mútua, saberiam, melhor do que qualquer outro grupo, reorganizar a sociedade.[6]

Conforme explicita Jacy Alves de Seixas, o intento de Kropotkin ao inscrever “o homem e a sociedade dentro da totalidade representada pela natureza” (SEIXAS, 1995, p.142) exprime o seu desejo de “fazer da Historia social um reflexo mais ou menos límpido da Historia natural. Ambas são consideradas inelutáveis, determinadas em sua trajetória por leis especificas que prefiguram o sentido a ser percorrido”. (SEIXAS, 1995, p.142).

Os anarquistas, que de acordo com os dizeres de Max Netlau (2003), se filiam à corrente realista e refletida do anarquismo, dentre os quais o maior professador é Malatesta, irão construir, nesse contexto, as suas críticas aos comunistas libertários.

Para Malatesta, a revolução social não deveria ser concebida como o fruto de uma atitude natural e instintiva, cuja necessidade demandaria de um hipotético princípio universal agindo no processo histórico e conduzindo toda a humanidade para um dado fim. Para ele, a revolução social, será produto da ação e da vontade dos homens, em consonância, é claro, com as especificidades do tempo e lugar onde essas transformações se processariam. Nesse sentido, atesta que:

Temos querido afirmar o poder da vontade contra todas as teorias essencialmente fatalistas que, ou são teorias vãs sem efeito prático, e então são um estorvo lógico que debilita todo o raciocínio... então tendem a extinguir todo entusiasmo e a paralisar toda atividade (MALATESTA apud RAGO, 2001, p. 67)

Como se sabe, por meio do panorama que foi parcialmente esboçado no início do artigo, as dificuldades encontradas pelos militantes anarquistas em organizar e articular o movimento nos últimos decênios do século XIX são imensas, os motivos são de ordem diversa, e se traduzem em problemas econômicos, políticos e principalmente ideológicos. Margareth Rago menciona que para além das dificuldades econômicas e políticas, que na época não eram poucas, ainda mais se levarmos em consideração que os libertários ainda estão sofrendo com a forte perseguição e repressão da burguesia em virtude dos eventos da Comuna de Paris em 1871, existiam também os problemas ideológicos. De acordo com Rago, a desorganização do movimento era resultado também “do impacto das concepções libertárias antiorganizativas, estimuladas, por sua vez pelas idéias deterministas de Kropotkin”. (RAGO, 2001, p. 30).

Os comunistas libertários percebiam o seu afastamento frente às “massas”, mas se negavam a trabalhar diretamente nas organizações operárias, com o subterfúgio de que isso era, além de desnecessário, nocivo; pois os anarquistas poderiam cair na tentação de querer liderá-las ou dirigi-las, entrando assim em contradição com os ideais primitivos que regem o anarquismo.

A respeito do assunto, o anarquista italiano comenta que:

Ainda que reconhecendo a necessidade de organização na sociedade futura... (alguns anarquistas) são hostis a qualquer organização que não tenha objetivo direto a anarquia e não siga os métodos anarquistas. E alguns se afastaram de todas as associações operárias que propunham a resistência e a melhoria das condições na ordem atual das coisas, ou se associaram com o objetivo de desorganizá-las Para esses camaradas, todas as forças organizadas em um objetivo que não fosse radicalmente revolucionário, seriam talvez subtraídos a revolução. Acreditamos, ao contrário e a experiência já nos mostrou isso muito bem, que seu método condenaria o movimento anarquista a uma perpétua esterilidade. (MALATESTA, 1989, p.54)

Rejeitando essa concepção mecânica e fatalista da revolução, e, portanto o espontaneísmo, que é uma conseqüência lógica de tal teoria, Malatesta insistia na necessidade de organização dos trabalhadores e dos grupos anarquistas para a efetivação dos projetos libertários. E ademais, para que a revolução libertária fosse de fato “levada a cabo”, seria necessário estar no meio do povo e não fechados em gabinetes, fazendo especulações e teorizando sobre o mundo sem estabelecer contato com a realidade.[7] A seu ver, não existiria melhor lugar que as associações operárias, em especial os sindicatos, para que houvesse mudanças substanciais e significativas. Segundo ele, nos sindicatos, os trabalhadores encontram seus companheiros e aprendem a cooperar com os outros em prol dos interesses de sua classe. As lutas por reformas e melhorias imediatas, realizadas por meio de greves, tanto as parciais quanto as gerais, fariam com que os trabalhadores adquirissem gradativamente a consciência dos antagonismos existentes dentro das relações capital/ trabalho, da verdadeira função do Estado e conseqüentemente do papel revolucionário a ser desempenhado na sociedade capitalista.

Uma pequena melhoria, arrancada pela força autônoma, vale mais por causa dos seus efeitos morais e, a longo prazo, mesmo os seus efeitos materiais, do que uma grande reforma concedida pelo governo e pelos capitalistas com finalidades enganadoras, ou mesmo por pura e simples gentileza. (MALATESTA, 89, p.104).

Essa “ginástica revolucionária” prepararia e concederia a experiência necessária para que o proletariado realizasse a revolução. Iniciadas por amplas greves, estas se generalizariam por toda a sociedade, sendo procedidas por atos insurrecionais, que integrariam no processo revolucionário outros setores sociais, como por exemplo, os camponeses e os soldados. No seu desenrolar a burguesia seria expropriada dos seus bens, os meios de produção seriam socializados e diretamente administrados pelos trabalhadores através de órgãos e associações voluntárias, tais como  comitês de fábrica e  conselhos operários, que, livremente federados, se articulariam com a finalidade de substituir o Estado, que depois da revolução, seria destruído e desalojado da tarefa de gerir o corpo social. Todavia pedia que:

... Os sindicatos não adotem um programa anarquista e que sejam compostos só por anarquistas, neste caso, eles seriam inúteis, porque seriam a repetição dos agrupamentos anarquistas, e não teriam mais a qualidade que os tornam tão caros aos anarquistas, ou seja, a de ser um campo de propaganda hoje, e  um meio, amanhã, de levar a massa a rua e fazê-la assumir o controle da posse das riquezas e da organização da produção para a coletividade. (MALATESTA, 1989, p. 112)

A proposta de Malatesta foi, com o passar do tempo, gradativamente se consumando em realidade. Como precisa George Woodcock (2002), o movimento sindical, sobretudo na França, começou a se regenerar a partir de 1884, quando o governo francês adotou uma cláusula na sua nova Constituição, que permitia ao movimento operário criar organizações para a defesa de seus interesses econômicos. É claro que o objetivo visado pelo governo era tentar seduzir os trabalhadores. Mas ocorreu que a medida causou um efeito contrário e o sindicato acabou ganhando um caráter reivindicatório e francamente combativo. Isso só se tornou possível a partir do momento em que os anarquistas entraram maciçamente nos sindicatos e começaram a fazer propaganda do ideal ácrata.[8]

No entanto, não se deve deixar enganar quanto à importância que Malatesta outorga ao sindicato, pois é parcial e restrita. Ele mesmo chega a dizer que o sindicato figura como uma “faca de dois gumes”, que pode tanto ajudar quanto atrapalhar o processo revolucionário e a realização do projeto libertário. Para que sua posição seja mais bem entendida, são às palavras do próprio Malatesta que se deve reportar:

Seria uma ilusão funesta acreditar, como muitos o fazem, que o movimento operário resultará por si mesmo, em virtude de sua própria natureza, em tal revolução. Bem ao contrário: todos movimentos fundados sobre interesses materiais e imediatos... tendem fatalmente a se adaptar às circunstâncias, engendram o espírito conservador, o temor pelas mudanças naqueles que conseguem obter melhorias. (MALATESTA, 1989, p. 86)

Toda classe, independente da sua inserção na estrutura social, está submetida à lei geral do antagonismo que rege o sistema capitalista. Assim, dependendo das circunstâncias, os interesses de um ramo ou categoria que compõem o operariado divergem. Em razão disso, vemos algumas categorias, em virtude dos ganhos e vitórias obtidos mediante as greves, melhorar o seu nível de vida e se elevar socialmente, então esquecem as antigas reivindicações da classe, se afastam dos demais trabalhadores e acabam se transformando, no interior do próprio proletariado, em uma espécie de nova classe privilegiada.

Na época em que Malatesta viveu e militou (fim do século XIX e início do século XX) os sindicatos eram mais radicais e menos integrados ao capitalismo, no entanto, a sua intuição a respeito da tendência reformista ( e conservadora ) que se desenvolvia no interior das associações sindicais parece ter se concretizado. Portanto, na direção de tais preocupações, seria interessante sublinhar o nível de atualidade de seus  comentários, que, em larga medida, precedem e confluem com a análise já clássica de Maurício Tragtenberg a respeito do papel dos sindicatos na sociedade capitalista. Para Tragtenberg:

A luta por reivindicações salariais acaba beneficiando o setor II da economia (bens de consumo)... Por meio do capitalismo sindical, o capitalismo moderno se redimensiona: o capitalista cuida das máquinas, o sindicato cuida da disciplina da mão de obra... É o caso de Israel, com a sua Central Operária Histraud; da Alemanha dominada pela DGB; da Escandinávia, cujo sindicato possui legitimamente um parque industrial e explora mais-valia dos trabalhadores. A Central Sindical de Israel possui grandes empresas de construção civil, e o segundo maior banco do país também é de sua propriedade. A DGB possui empresas, bancos, redes de lojas e opera no mercado financeiro. (TRAGTENBERG, 1986, p. 74)

Apenas vislumbrando uma transformação total da sociedade capitalista que é os operários podem realmente se unir e se solidarizar. Daí a demanda da existência de organizações propriamente libertárias que, agindo dentro e fora dos sindicatos, atuam como a sua consciência revolucionária, impedindo assim que os trabalhadores, devido aos ganhos conseguidos com as lutas por reformas imediatas, se integrem à sociedade capitalista e desistam do ideal de transformação social.

Essas colocações colaboram no sentido de tornar inteligível o seu posicionamento em relação ao sindicato e também em relação aos anarcossindicalistas. Monatte, representante dessa corrente, com quem Malatesta irá protagonizar no Congresso Anarquista de Amsterdã[9] (Holanda, 1907) um grande debate, acreditava que o “sindicalismo basta a si próprio” (MONATTE, 1985, p. 206). Com isso Monatte queria dizer que: “tendo atingido a maioridade, a classe operária esta decidida a manter a sua independência e a não confiar a mais ninguém a tarefa de promover a sua emancipação” (MONATTE, 1985, p. 206). Neno Vasco, anarquista cujas idéias se aproximam das de Malatesta, define por sua vez, com precisão, a essência do anarcosindicalismo: “Esses sindicalistas confiam inteiramente nas virtudes intrínsecas do sindicato: este, para eles conduz automaticamente, fatalmente, à revolução social e a uma sociedade de produtores livres e iguais”. (VASCO, 1984, p. 95). Depois o sindicato se converteria na célula mater a partir da qual a sociedade seria reestruturada.

Malatesta defendeu ardorosamente o seu ponto de vista, afirmando que, embora reconhecesse a importância do sindicato na revolução e no processo de emancipação dos trabalhadores, sozinho não poderia ir muito longe. Para além dos eventuais inconvenientes trazidos pelo sindicato, comentados anteriormente nesse artigo, Malatesta acresceu ainda que as greves gerais, caso não fossem seguidas de um ato insurrecional propriamente dito (que teria o poder de mobilizar outros setores sociais, que não se restringissem ao proletariado industrial), só causariam a paralisação das fábricas, o que destruiria em pouco tempo a dinâmica do processo revolucionário. Outro aspecto importante que é digno de nota: os sindicatos não podem, na futura sociedade pós-revolucionária, se configurar em núcleos a partir dos quais essa mesma sociedade se reergueria.

Os quadros das organizações operárias atuais correspondem às condições contemporâneas da vida econômica resultante da evolução histórica da sociedade e da imposição do capitalismo. Os operários estão hoje agrupados segundo as profissões que exercem, as indústrias às quais pertencem, segundo os patrões contra os quais devem lutar, ou o comércio a que estão ligados. Para que servirão esses agrupamentos após a supressão do patronato... para citar um exemplo entre mil, as organizações dos trabalhadores de mármore de Carrara, quando for necessário que eles partam para cultivar a terra, para aumentar a produção alimentícia, deixando para o futuro a construção dos monumentos e dos palácios de mármore. (MALATESTA, 1989, p. 103).

Segundo o anarquista italiano, a nova sociedade só pode ser edificada com a destruição dos quadros atuais e a criação de novos organismos condizentes com os objetivos a serem alcançados.

Recorrendo a Neno Vasco, João Freire aponta como resolução para o problema entre anarquismo e sindicato, a fusão entre agrupamentos de idéias e agrupamentos de interesses. O sindicato, “escola de novas aprendizagens sociais e de associação de resistência ao status quo burguês” (FREIRE, 1984, p. 16), deveria ser o espaço propício para os anarquistas lançarem suas novas idéias.

A título de consideração final, gostaria de retomar, ainda que de maneira breve e assistemática, alguns pontos que foram discutidos e analisados ao longo do artigo, e a partir daí sinalizar para algumas conclusões parciais a respeito da temática aqui elencada. Em um primeiro momento, foi vista a crítica que Malatesta endereçou aos comunistas libertários, por terem se distanciado do movimento operário, não percebendo o quão eram importantes as táticas e estratégias de Ação Direta que o sindicato trouxe e, conseqüentemente, a sua contribuição para a revolução e a realização do projeto libertário. Num segundo momento, foi analisada a opinião do libertário italiano, frente aos  anarcossindicalistas, de quem discordava, por acreditarem que o sindicalismo bastava a si mesmo e que não havia necessidade de nenhuma organização propriamente anarquista, agindo dentro e fora do sindicato.

Enfim, para Malatesta os sindicatos, “apesar de todos os seus méritos e toda a sua potencialidade” (MALATESTA, 1989, p. 100) não podem ir muito longe, e para que de fato possam servir a um verdadeiro ideal de mudança social, precisam do “fermento, do empurrão... dos homens de idéias que combatem e se sacrificam com vistas a um futuro ideal.”(MALATESTA, 1989, p. 86).

__________

[1] Os dados biográficos de Malatesta foram extraídos de Coelho in: Malatesta (1989).

[2] O conceito de Ação Direta para os anarquistas assume um papel fucral dentro do seu sistema filosófico. De com Christina da Silva Roquette Lopreato: “a estratégia de ação direta contrapõe-se não só ao parlamentarismo, mas a qualquer outra forma de representação política. A ação direta expressa a crença de que o proletariado só se libertará quando confiar na influencia de sua própria ação, direta e autônoma, prescindindo de intermediários no conflito capital/trabalho. Isso significa que a classe trabalhadora nada deve esperar de forças externas a ela mesma. É ela que deve criar suas próprias condições de luta e os seus meios de ação”.

A ação direta se caracteriza pela cultura da autonomia, a exaltação da individualidade, o impulso da iniciativa, da qual é a levedura. Funciona como um antídoto à resignação e a passividade. Desperta no trabalhador o sentido do seu valor e de sua força e desenvolve a capacidade de autodeterminar as decisões. Tem, portanto, um valor educativo: ensina-lhe a refletir, a decidir e agir por conta própria. A exaltação do individuo enquanto soberano de si não está, no entanto, em contradição com a solidariedade, outro principio fundante do anarquismo. Na filosofia política anarquista, a independência e atividade do individuo só podem florescer em esplendor e intensidade quando se submergem a suas raízes no solo fecundo da entente solidária. Nesse sentido, a ação direta é concebida como um princípio político de dignidade coletiva”. (LOPREATO, 1999, p. 80-81).

[3] Por comunista libertário ou anarco-comunista, entenda-se aqui apenas aqueles militantes que se simpatizavam ou se filiavam diretamente às idéias de Kropotkin. Malatesta também foi definido como um comunista libertário, mas devido as suas divergências com Kropotkin, que, aliás, não são poucas, como se pode evidenciar ao longo do artigo, acreditou-se que seria melhor não identificá-lo enquanto tal. O historiador anarquista Max Netlau tratando das diferenças existentes no interior da corrente comunista libertária, mais especificamente entre Kropotkin e Malatesta, afirma que o primeiro se filia ao seu seguimento harmonista e espontaneísta, ao passo que o segundo se filiaria à sua linha realista e refletida. Para uma análise mais detalhada e acuida desse assunto veja Netlau (2003). Por outro lado não se deve deixar enganar. A crítica à Kropotkin e a inclusão do sindicato nos planos revolucionários empreendidos por Malatesta, não lhe valem o epíteto de anarcosindicalista.

[4] A esse respeito veja: Woodcock (2002).

[5] Sobre o impacto do ideário cientificista dentro da obra de Kropotkin veja Seixas (1995).

[6] Embora Malatesta reconhecesse a importância de Kropotkin para o pensamento libertário, não deixou de criticar a sua concepção do anarquismo como: “concepción que yo encuentro demasiado optimista, demasiado fácil y confiada em las armonías naturales” (MALATESTA, 1988, p.24).

[7] Cumpre aqui retomar as palavras do próprio Malatesta que define tal situação dentro dos seguintes termos: “É preciso conceder que eu jamais fui daqueles intelectuais anarquistas que quando, da dissolução da Internacional, retirou-se benevolentemente para uma torre de marfim, entregando-se as reflexões filosóficas, e reconhecer que, onde quer que eu me encontrasse, fosse na Itália, França, Inglaterra ou qualquer outro lugar, jamais deixei de combater essa atitude de isolacionismo altivo” (MALATESTA, 1985, p.207)

[8] Aqui nesse ponto se delineia e posteriormente define a clivagem entre Malatesta e os anarcossindicalistas. Enquanto Malatesta acreditava que os anarquistas deveriam entrar para o sindicato apenas para fazer propaganda do anarquismo, lhe reservando o direito de ser independente e autônomo em relação aos grupos libertários, os sindicalistas puros pregavam que os militantes anarquistas deveriam ingressar nos sindicatos e tomar a direção dos seus cargos de chefia, tornado-o assim anarquista . Sobre as diferentes opiniões a respeito do papel dos anarquistas nos sindicatos veja: Malatesta (1989) e Monatte (1985).

[9] Sobre o Congresso Anarquista de Amsterdã consultar: Woodcock (2002).

Referências

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LUIZETO, Flavio. Utopias Anarquistas. São Paulo: Brasiliense. 1987.

MALATESTA, Enrrico. Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário. 1989.

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Publicada em 21.12.06 - Última atualização: 22 janeiro, 2007.