por ROGERIO CAETANO DE FARIA

Graduando em Ciências Biológicas (licenciatura) – FAC-GAMA/DF

 

 

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Inquisição Moderna: 

a influência do segmento criacionista-religioso na tentativa de suprimir o ensino do evolucionismo

 

Rogerio Caetano de Faria

 

Resumo: Cunhada pelo cientista Charles Darwin, a evolução é uma teoria que afiança a mutabilidade e a filogenia entre as espécies vivas. Tal afirmação coloca em questão a antropocêntrica “superioridade” humana em relação aos demais seres vivos, o que motiva reações de intolerância por parte do segmento criacionista-religioso. Desde 1925, quando passou a ser instruído nas escolas, o evolucionismo tem sido centro de uma controvérsia, recorrente a batalhas jurídicas, que envolve grupos religiosos ortodoxos e comunidades científicas. À mercê de muitos interesses, a evolução – conceito unificador de todos os ramos da biologia – vai sendo negligenciada, deixando de contribuir na formação do educando, que depende do conhecimento agregado para compreender ativamente o mundo.

Palavras-chave: Evolucionismo; criacionismo; controvérsia; ensino; razão.

Abstract: Brother-in-law for the scientist Charles Darwin, the evolution is a theory that warrants to the changeability and the phylogeny between the alive species. Such affirmation places in question the anthropocentric “superiority” human being in relation to the too much beings livings creature, what it motivates reactions of intolerance on the part of the creationist-religious segment. Since 1925, when it passed to be instructed in the schools, the evolutionism has been center of a controversy, recurrent the legal battles, that involve orthodox religious groups and scientific communities. At the mercy of many interests, the evolution - unifying concept of all the branches of biology - goes being neglected, leaving to contribute in the formation of educating, that it depends on the added knowledge to understand the world actively.

Word-key: Evolutionism; creationism; controversy; shock; reason.

 

Darwin, jovem, retratado em pintura do século XIX. - Fonte: <http://charles-darwin.navajo.cz/charles-darwin-4.jpg>.

“Falsa e profundamente lesiva”, comentou um professor de geologia de Cambridge sobre uma idéia formulada por um ex-aluno dedicado ao estudo das ciências naturais. Esse aluno era Charles Darwin e a tal idéia – chamada evolução – afirmava perigosamente a mutabilidade das espécies. Darwin, à época com 49 anos de idade, havia passado cinco anos numa expedição que percorrera regiões do mundo inteiro – onde coletara amostras de animais, plantas, solos, fósseis, etc. – e outros mais de vinte anos analisando o material coletado, até culminar na formulação de uma teoria que explicava de forma simplória, mas ao mesmo tempo satisfatória, a dinâmica da vida na Terra. Tratava-se de uma tese perigosamente maravilhosa, que “unificava os reinos da vida, seu significado e propósito, com os reinos do espaço e do tempo, causa e efeito, mecanismo e lei física” (R. HUTTON in ZIIMER, 2004, p.20).

A Europa de meados do século XIX recebeu estarrecida as afirmações do notável cientista de que as espécies eram mutáveis - contrária à mística popular que concebe a vida terrena como um domínio estático, tendo como fulcro a conjectura bíblica do fixismo – e filogeneticamente relacionadas, ou seja, as espécies têm a mesma descendência, compartilhando ancestrais, pressuposto que inclui a própria casta humana. O ano era "A origem das espécies", do ano de 1959, obra célebre de Darwin, na qual o cientista - imbuído de conhecimentos lapidados por mais de 20 anos de pesquisa esmerada - apresenta a mais consistente de todas as teses para o desenvolvimento das espécies de seres vivos: a evolução. - Fonte: <http://www.mercadolivre.com.br/jm/img?s=MLB&f=40923791_7782.jpg&v=P>.1859, e, Darwin, no antológico livro A origem das espécies, forjara a teoria da evolução biológica, a qual encorpava as afirmações feitas pelo naturalista. Darwin em muito contradizia as convenções tradicionais – até então tidas como verdades irrestritas – alterando drasticamente a forma como os seres humanos passaram a conceber-se a si próprios, expondo, roto e diafanamente, a sua inerente “superioridade”, argumento defendido ferrenhamente pelos adeptos do infértil segmento criacionista-bíblico ou criacionista-religioso[1] - notadamente os cristãos (protestantes, católicos, etc.), desdobramentos da tradição judaica[2] - que, norteados pelo livro sagrado do Gênesis, concebem a origem do mundo como sendo há menos de seis milênios, com um Deus onipotente criando todas as espécies, dentre as quais a espécie humana fora criada à imagem e semelhança do próprio Criador.

Charles Darwin: naturalista, autor da polêmica teoria da evolução biológica. - Fonte: <http://www.victorianweb.org/science/darwin/darwin_beard.gif>.A origem das espécies fora duramente atacado por diversas vertentes religiosas – notadamente o segmento criacionista-religioso dentro da própria comunidade científica européia – que consideravam extremamente levianas afirmações daquela natureza, desdizendo valores que representavam a base da estrutura social estabelecida. Nietzsche (2004) entende que tudo que é próprio da natureza humana transformou-se em abominável aos olhos dos tradicionalistas, uma vez que passou a significar um contraponto à perspectiva da criação divina. Ao justificar o surgimento das espécies como um processo natural, Darwin fatalmente abalava pressupostos religiosos fundamentais, gerando questionamentos ontogênicos do tipo “se o homem é só um macaco avançado, e não filho de Adão e Eva, então a Bíblia está errada! ... não há pecado, nem céu e inferno... não há porque crer em Deus!”. Todavia, ainda que o evolucionismo tenha trazido tanto desconforto para a sociedade tradicional, por volta do início do século XX, a evolução, dada a sua argumentação consistente, já era reconhecida como uma teoria eminentemente sólida, firmando-se definitivamente como paradigma no meio científico.

2. Evolucionismo acadêmico

No início do século XX, a evolução já era reconhecida como uma brilhante teoria[3], firmando-se decisivamente como paradigma científico, passando a representar o eixo norteador de qualquer estudo acerca das manifestações da vida em geral. Tanto que ainda em 1925, os adeptos do darwinismo, reivindicaram o direito acadêmico de ensinar a teoria da evolução nas escolas públicas. Primeiramente em alguns estados dos Estados Unidos e logo em seguida em diversos outros países, a evolução foi agregada ao conteúdo curricular do ensino de biologia e ciências em geral.

Charge de um jornal londrino, ironizando a tese da filogenia entre seres humanos e símios, à época, recém-proposta por Darwin. - Fonte: <http://www.girafamania.com.br/artistas/charles-darwin.jpg>. 2.1 “Guerra Santa” da ignorância

A medida tomada por gestões educacionais em vários países descontentou inúmeros grupos religiosos, que reagiram imediatamente exigindo a anulação da medida tomada por algumas escolas, por considerarem aquele um gesto indevido. Amiúde, à luz do misticismo e fundamentalismo, tudo o que representa renovação, que se contrapõe aos paradigmas antropocêntricos ou que alude à inferioridade por trás da pseudo-superioridade humana é indevido.

Considerando que, como sublinha Rousseau (1989, p.153), historicamente todos os estados são fundados sobre os alicerces religiosos, fora deflagrado um confronto que marcou os últimos oitenta anos perpassados pela intolerância e rispidez com que grupos religiosos encaram a teoria evolucionista. Nas últimas oito décadas, o ensino da teoria da evolução nas escolas vem sendo marcado pela relação conflituosa com os dogmas sócio-culturais fundamentados no criacionismo.

Em 1925 – primeiro ano que se tem registro de adoção do ensino acadêmico da teoria evolucionista – John Scopes, professor do Estado do Tennesse/Estados Unidos (EUA), foi condenado à prisão, acusado de ensinar sobre evolucionismo, desobedecendo a uma lei estadual que proibia tal prática. Em 1968, nos EUA, contrária ao fato de que alguns estados norte-americanos quiseram incluir o criacionismo no currículo escolar, a União das Liberdades Civis (ULC) moveu ações na Justiça argüindo o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, obtendo êxito mediante a proibição da abordagem formal da teoria criacionista por parte das escolas. Em 1987, outra pendência judicial deu-se no mesmo sentido, com nova vitória da ULC, que, dessa vez, teve que recorrer à Suprema Corte norte-americana.

"A criação de Adão", quadro do pintor Michelangelo, inspirado na criação do homem segundo o livro do Gênesis. - Fonte: <http://www.cursoarte.hpg.ig.com.br/aulas/imagens/michelangelo_14.jpg>.2.1.1 Inquisição Moderna

Atualmente a controvérsia mantém-se ainda intensa, sendo comum a veiculação de embates judiciais entre organizações religiosas e científicas relativos ao ensino da evolução nas escolas. Como entende Rousseau (1989, p.159), são correspondentes e inseparáveis as intolerâncias civil e teológica.

É notório que, nos Estados Unidos, uma coluna de “inquisidores modernos” marcha rumo ao “enforcamento público” de Charles Darwin, tido convencionalmente como ímpio ainda nos dias atuais, há mais de um século da forja da teoria evolucionista. Em Minnesota e Novo México, o projeto inteligente[4] já divide espaço com a teoria da evolução nas aulas de ciência. Segundo França (2004), em 1999, no estado do Kansas, fora decidido pelo Conselho de Educação que o itinerário da teoria evolucionista deveria ser extinto do circuito escolar, entretanto, em 2001, pressionado pela opinião pública, o Conselho voltou atrás – aliás, como pensa Rousseau (1989, p.147) em qualquer cultura a opinião consensual dirige os homens, decidindo mesmo sobre seus próprios prazeres. Em vinte outros estados norte-americanos foram enviados às assembléias locais projetos de lei que reivindicam o ensino do criacionismo durante as aulas de ciências, incluindo os estados de Nova York e Massachussetts, tidos como mais intelectualizados. Cerca de quarenta iniciativas já foram tomadas por Conselhos Escolares dos EUA no sentido de incluir ressalvas nos textos escolares, advertindo de que a teoria evolucionista não tem “comprovação”. Celestino (2004) afirma que há uma discussão estabelecida nos meios acadêmico e científico norte-americanos, em que professores e pesquisadores de ciência preocupam-se com a aparentemente inofensiva reivindicação no sentido da abordagem da explicação criacionista nas aulas, considerando que tal prática representa um retrocesso intelectual, uma vez que atribuir status de teoria fundamentada ao projeto inteligente, colocando-o ao nível de uma explicação cientificamente embasada – como o é a evolução biológica – representa um gesto claramente estabanado.

Vogt (2004) salienta que em alguns países europeus a bandeira do retrocesso levantada pelo movimento criacionista vem aos poucos sendo introduzida nas políticas educacionais, enquanto em outros países a influência de grupos que defendem a tese da criação divina já está plenamente solidificada. O mesmo autor afirma que, na Inglaterra, a política nacional de educação determina que os currículos escolares devem conter o evolucionismo, mas permite que o criacionismo também seja ensinado. Na Itália – país fortemente católico – o programa do ensino médio publicado em 2004 pelo Ministério da Educação extinguiu o evolucionismo do currículo escolar, o que gerou uma grande mobilização dos cientistas italianos que protestaram contra a decisão, levando o governo a rever a decisão. Espanha e Alemanha também vivem a controvérsia do ensino acadêmico da evolução.

O evolucionismo enfrenta a oposição dos adeptos do criacionismo-religioso em países de todo o mundo. No Brasil, entre os público-opositores à evolução está a ex-governadora do Rio de Janeiro, a protestante Rosinha Matheus. - Fonte: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT731549-1664-1,00.htmlhnte>. O evolucionismo enfrenta a oposição dos adeptos do criacionismo-religioso em países de todo o mundo. No Brasil, entre os público-opositores à evolução está a ex-governadora do Rio de Janeiro, a protestante Rosinha Matheus. - Fonte: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT731549-1664-1,00.htmlhnte>. 2.1.2 Controvérsia nacional

No Brasil, a controvérsia em torno do ensino do evolucionismo biológico nas escolas não tomara grande projeção como se observa em outros países. Contudo, um fato isolado indica uma afinidade entre gestão pública e religião: o caso Rosinha, no Rio de Janeiro. A governadora Rosinha Matheus, presbiteriana, eleita com amplo apoio das igrejas evangélicas, instituiu, em 2004, aulas de religião em caráter catequético, em que os professores recebem a orientação de exporem seus pontos de vistas de acordo com as crenças que professam. Rosinha – que, segundo França (2004), declara abertamente a sua descrença em relação à teoria da evolução das espécies – contratou cerca de 800 professores (mais de 90% cristãos) para apresentarem aos alunos explicações místicas que pessoalmente crêem, como a origem do homem a partir do pó e da mulher a partir da costela de Adão, entre outras. Em 2000, Anthony Garotinho (marido de Rosinha e, à época, governador do estado) sancionou uma lei que previa o ensino religioso confessional (ou seja, dogmático). Em 2003, a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALRJ) aprovou uma lei que previa que o ensino religioso na rede pública deveria ter caráter histórico – numa abordagem que considere a religião como fenômeno cultural – sem diferenciação de credos. Ocorreu então que a governadora Garotinha[5] vetou a proposta apresentada pela ALRJ, e autorizou, em 2004, a realização de concurso público visando a contratação de professores para ensinar religião na perspectiva confessional.

2.1.2.1 Discussão acalorada

A Secretaria de Educação do Rio de Janeiro definiu, em 2004, que o tema anual para as aulas de religião na rede pública será “criação” e que o criacionismo será discutido de forma superficial, o que não esconde a tendência eminente a negligenciar a explicação cientificamente embasada oferecida pela teoria evolucionista. A posição de Rosinha Matheus incomodou a comunidade científica brasileira, de onde partiram críticas de cientistas de renome, como Ennio Candoti, físico e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que afirma (apud FRANÇA, 2004):

A teoria criacionista, em contraponto ao evolucionismo, não se sustenta. Pode até gerar confusão na cabeça do aluno. É uma propaganda enganosa. É uma instrumentalização pouco ética de usar o poder político para impor tendências, induzir à propagação de crenças ou leituras particulares de textos tradicionalmente sagrados.

Para Cosme Freire Marins (apud PARISI, 2004), professor de História do ensino fundamental e médio na cidade do Rio de Janeiro, é preocupante a influência da religião sobre a política educacional. Diz ele:

O Estado está separado da Igreja, não se deve misturar a teologia com a educação. Eu não posso tomar partido de uma ‘verdade’ absoluta. Como eu posso afirmar que Deus criou Adão e Eva para uma criança que é umbandista ou budista? (...) Sou da opinião que à Igreja cabe ensinar seus adeptos as verdades religiosas; não se imiscuir no Estado para impor seus conceitos religiosos.

Um adepto da Igreja Presbiteriana, o filósofo, teólogo e pedagogo Mário Fava, quando questionado sobre um suposto desgaste que a imagem da Igreja sofreria em decorrência da superexposição advinda com a polêmica “carioca” em torno do ensino da religião e da evolução, afirma que não se pode categoricamente dizer que o impasse lese a figura da igreja. Para Fava (apud PARISI, 2004), o que desgasta a imagem da igreja “é o fato de líderes evangélicos explorarem as políticas educacionais, tornando a escola um ambiente de catequese ou evangelização”.

Marcelo Gleiser, astrofísico, escritor, professor e um dos mais respeitados cientistas brasileiros compara as condutas tendenciosas do governo do Rio de Janeiro e dos Estados Unidos da América. Para ele, “Bush foi eleito pela direita religiosa, hoje quem está no poder é Deus. Infelizmente parece que, no Rio, a senhora Garotinho, com sua grande iluminação intelectual, está tentando a mesma coisa” (in BRUM, 2005a). Boa parte do eleitorado “urbano” que elegeu Rosinha mora na cidade com os maiores índices de violência do país, uma gente fragilizada pelo caos de grande metrópole, que se apega ao “último fio” de esperança em dias melhores: a religião. A gente humilde é certamente a mais susceptível ao discurso massificante.

Na visão de Maurício Vieira Martins (in BRUM, 2005c), professor de sociologia e direito da Universidade Federal Fluminense, um estado que toma medidas nos moldes da manobra feita pela governadora não está preocupado em formar cidadãos de verdade, com capacidade crítica e intelectual, mas pessoas alienadas e passíveis de manipulação por parte de demagogos.

2.1.2.2 Aspectos regulamentares: a força “legal” do “rebanhismo[6]

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB ou Lei 9.394/96) dispõe que o ensino religioso, no Brasil, é de matrícula facultativa e sem ônus para os cofres públicos. Formulada pelo antropólogo e senador Darcy Ribeiro, a LDB contempla o ensino das religiões sob uma abordagem fenomenológica e antropológica, e não em caráter confessional/doutrinário. Entretanto, cedendo a pressões de interesses diversos, o Congresso Nacional aprovou em 25 de julho de 1997 a primeira emenda a LDB que alterava justamente o artigo 33, referente ao ensino religioso nas escolas. Proposta pelo senador Nelson Marchezan e relatada pelo deputado Padre Roque, a alteração do texto original contido no artigo 33 da LDB deu-se através da Lei 9.475/97. Esta, além de instituir a remuneração dos professores de religião por parte do estado, a este concede o direito de decidir como gerir a forma e o conteúdo da disciplina religião, o que, deixa claro, “o processo de laicização da educação brasileira”, e ainda instaura um empasse em que “é de se questionar como assegurar uma linha de equilíbrio dos conteúdos, sem cair, de um lado, numa espécie de niilismo religioso e, de outro, no indesejável proselitismo” (CARNEIRO, 1998). A lei 9.475/97 estabelece que “o ensino religioso é parte integrante da formação básica do cidadão”. Entretanto, é preciso ater-se quanto a uma certa distorção do conceito de ensino religioso, transmutado em ensino doutrinário ou catequético.

Após a LDB e a Lei 9.475/97, a educação nacional ficou organizada de forma que a União coordena a política nacional de educação sem, contudo, centralizar em si a organização dos conteúdos. Dessa forma, fica a cargo do estado decidir sobre aspectos inerentes ao ensino, especialmente em relação às disciplinas não obrigatórias, como no caso da religião. Com isso, considerando a autonomia das gestões estaduais em decidir sobre o caráter das aulas de religião que as escolas ofertarão, é presumível que o ensino religioso no Brasil seja algo bastante relativo e dependente das concepções ideológicas dos administradores públicos, e, por conseguinte, parece razoável supor que o evolucionismo esteja à mercê desse jogo de interesses.

Nessas condições, é elementar a suposição de que o evolucionismo sofre em meio às trevas do obscurantismo. Negligenciada, atacada, distorcida, a evolução amarga infortúnios por não corroborar com a retórica manipuladora dos grupos socialmente influentes, por não colaborar com a soberba implícita nos instrumentos sociais de massificação, notadamente as tradições judaica-cristãs.

A influência aziaga dos preceitos ortodoxos pode ser traduzida em números. Uma pesquisa nacional realizada pelo Ibope BUS em dezembro de 2004, com pessoas com idade acima de 15 anos, a pedido da revista Época (apud BRUM, 2005b), revelou o quanto o pensamento da população brasileira se encontra atrelado a pressupostos dogmáticos e mitológicos. Questionadas quanto à criação e o “desenvolvimento” do homem, 31% das pessoas disseram acreditar que Deus criou o ser humano - já na forma que este hoje tem – dando-se isso há cerca de 10 mil, enquanto que 54% crêem que o homem vem se desenvolvendo ao longo de milhões de anos – porém, existe um planejamento divino por trás dessa trajetória – e apenas 9% das pessoas ouvidas não acredita que há um Deus envolvido na criação e desenvolvimento do homem. No tocante à tese criacionista, 89% das pessoas entrevistadas acha que a mesma deve ser ensinada nas escolas, com 75% sugerindo que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas no lugar do evolucionismo.

Apesar da controvérsia que marca seu trajeto de afirmações, a evolução segue como um sólido argumento para a elucidação da trajetória da vida no planeta, principalmente no que diz respeito ao percurso do homem até os dias atuais. - Fonte: http://www.infonet.com.br/biologia/biologia.htm3. A Evolução como Revolução

A teoria da evolução trouxe consigo muito mais do que um aglomerado de dados articulados de forma a constituírem uma tese científica, a idéia de Darwin representa uma perturbação para a estrutura social conservadora. Aceitar que a evolução encerra todo o dinamismo da vida terrena notoriamente não consiste num gesto irracional, afinal, é presumível que fatos, evidências e comprovações tenham alguma relevância numa reflexão crítico-racional sobre qualquer tema. Entretanto, quando o que está em questão é a contestação do arquétipo taciturno configurado pelas relações místicas, os adeptos do obscurantismo tendem a ignorar o que se mostra fato, uma vez que, como Nietzsche (2004) observa, as pessoas que julgam serem portadoras de missões ‘sagradas’ – como os sacerdotes e outros que se incumbem de promover a ‘purificação’ de homens – comungam de uma perspectiva maniqueísta que supostamente coloca-os acima de qualquer coisa, inclusive da razão. Inusitadamente, Rousseau (1989, p.157), acareando-se com essa idéia, entende que os cristãos genuínos nascem com propensão a serem escravizados.

A grande dificuldade da aceitação definitiva do evolucionismo está na necessidade de despir-se de mitos e preconceitos para entendê-lo em toda a sua abrangência, em todo o seu desdobramento filosófico. Dawkins (1979), na sua perspicácia atípica, entende que a teoria da evolução biológica é tão profundamente conexa quanto explicações científicas consagradas – e poderíamos citar inúmeras, como o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, as leis da física newtonianas, as leis da genética forjadas por Mendel – entretanto, a real dimensão que a revolução darwiniana tomará em relação às conseqüências para a humanidade ainda é imprevisível.

A evolução, em primeira instância, não passa de um mecanismo natural como tantos outros descritos através de leis científicas, entretanto, o peso filosófico que essa teoria engendrara no debate ontológico que perenemente marca a história humana desde as mais primitivas civilizações é algo jamais descrito desde a gênese da humanidade. A evolução, enquanto corpo argumentativo científico, nunca volveu os olhos para discussões de cunho metafísico sobre a origem do mundo e de todas as coisas a ele ligadas, mas ao justificar a vida como decorrente de processos estritamente dirigidos pela natureza, Darwin acabava contestando – ainda que não como proposta primária de sua obra, uma vez que por muito tempo mostrou-se um homem martirizado por refutar omissões que ele próprio acomodava, herdadas da educação familiar – concepções seculares, redimensionando o arranjo em que se relacionavam homem e mundo, estabelecendo impiedosamente a prevalência da visão dinâmica da vida terrena sobre a perspectiva estática ortodoxa, invertendo a posição ocupada pelo homem no contesto de mundo (derrubando o antropocentrismo), a desmistificação ontológica, o “assassínio” de Adão, entre outras. A evolução fora certamente um golpe certeiro na “cara” do tradicionalismo.

3.1 Involução Criacionista

Futuyama (2002) considera que os que se opõem ao evolucionismo normalmente defendem pontos de vista absolutamente desprovidos de lógica e razão, sustentados apenas por pressupostos emotivos e metafísicos. Enquanto, por influência de grupos religiosos, a explicação cientificamente embasada oferecida pela teoria evolucionista vai aos poucos sendo negligenciada, impera o misticismo em locais onde presumivelmente esse deveria ser banido, como o ambiente acadêmico, por exemplo, em que deveria reinar a razão. Como Kant (1985, p.58) bem observa, o único elemento capaz de exterminar preceitos como o fanatismo, a superstição, e até mesmo o ateísmo (que o autor considera uma displicência do pensar) e o ceticismo, é o exercício da crítica.

É obviamente discrepante submeter ao julgamento, com pesos iguais, o criacionismo (em todas as suas formas de desdobramento, como o próprio projeto inteligente, por exemplo) e a teoria da evolução. Para Amabis (2005), tal julgamento negligencia fundamentos científicos basilares, como, por exemplo, os componentes de uma lei: evidência, empirismo, etc. Nietzsche (2004) salienta que figuras devaneadoras, como os sacerdotes cristãos, concebem-se como auto-suficientes de conhecimento (divino) para julgar quaisquer questões, subjugando toda e qualquer noção advinda de instituições relativamente não dogmatizadas, como o intelecto, os sentidos, a ciência, entre outras. Futuyama (2002) entende que o sentido primordial da evolução é mudança, e, como tal, trata-se de um significado de amplo alcance, razão pela qual acredita que o evolucionismo traz à tona tanta controvérsia. A humanidade é sedentária, e a idéia de caminhar lhe faz pulular a alma medrosa. Para Albert Camus (apud ALENCAR, 2003, p.106), “o homem é o único ser vivente que se recusa a ser o que é”.

3.2 Prejuízo ao processo formativo

Com todos os contrapontos que enfrenta para se manter, o ensino acadêmico da teoria da evolução das espécies acaba ficando condicionado a ser negligenciado. O evolucionismo – temática que representa o elo entre todas as áreas atuantes no âmbito das ciências biológicas – fatalmente acaba por assumir um papel secundário dentro do ensino de biologia, sem que lhe seja atribuída a devida relevância conquistada através de um histórico de firmações que culminaram no estabelecimento definitivo da evolução biológica como paradigma científico. Em conseqüência disso, o evolucionismo presumivelmente tenderá a ser pouco compreendido pelos alunos, o que, por sua vez, comprometerá o estabelecimento de uma visão holística sobre a ciência e, por conseguinte, corroborará para a pouca compreensão dos demais conteúdos estudados em biologia, uma vez que, como sugere o Ministério da Educação (apud VOGT, 2004), a teoria evolucionista deve ser concebida como a ponte que liga os diversos campos das ciências biológicas.

4. Considerações finais

Num clima conflituoso o evolucionismo vem se mantendo como um argumento sólido e, até agora, irretorquível. A controvérsia marca a história de afirmação da teoria, chegando inclusive ao campo acadêmico. Contudo, apesar da polêmica em torno do seu ensino acadêmico, a evolução, enquanto explicação científica, contempla satisfatoriamente todos os aspectos inerentes ao desenvolvimento da vida na Terra, o que imputa à idéia de Darwin a condição atual de paradigma no meio científico, o que representa indubitavelmente o triunfo do pensamento evolucionista, apesar de toda a controvérsia que marcou seu histórico de ascensão. Hoje a evolução é concebida dentro do meio científico como uma das mais sólidas teorias e indubitavelmente como a mais importante contribuição para o entendimento da vida terrena, em suas mais diversas formas de manifestações. Todavia, dado que o conhecimento não é um domínio estático, séssil, e que a aprendizagem é uma ação continuamente retomada – e, como diz Alencar (2003, p.111), “todo conhecimento autêntico é renovável, perenemente superável” – não há explicação que não deva ser diafanamente argüida. O que se espera do educador é que tenha lucidez para dirigir a prática educativa. Por se tratar de especulações – ainda que tão sobriamente tecidas – o conhecimento provindo do despir da diligente vida na terra promovido por Darwin não pode ser ostentado como um corpo argumentativo impassível de contestações. Contudo, submetidas ao crivo racional, as teses que justificam a dinâmica da vida terráquea ruem-se efemeramente, sendo a evolução biológica a única conjectura que se mantém inabalada. A evolução não deve ser assimilada como uma corrente doutrinária como tantas outras “amansadoras” de homens, mas é inquestionável que, do ponto de vista analítico, a tese de Darwin varre avassaladoramente o obscurantismo que encontra pelo caminho.

Aos profissionais do ensino de ciências incumbe perpetuar o pensamento científico, em sua mais profunda independência e racionalidade, conquistadas ao longo de milênios de “avanços” intelectuais. Os homens de ciência não podem meramente flertar com a razão, assumindo a postura covarde que Nietzsche (2004) denunciara, sendo desapegados às questões humanas. O professor – não só o cientista, mas o docente de qualquer área – deve ser um semeador da razão, o que implica no repúdio a qualquer forma de pensamento tendenciosamente alienante. Para Marx (2004), numa busca científica, o investigador não deve ter medo dos resultados que poderá alcançar. Educar implica em revolucionar, uma vez que “preparar para o mundo” consiste em expor a estrutura social na qual o educando se encontra inserido: as tendências ideológicas estagnantes, a repressão intelectual, enfim, uma conjuntura de fatores que tendem à supressão da racionalidade e autonomia. A docência é uma ferramenta libertadora; não deve ser exercida à luz de pressupostos sociais ultrapassados. O processo educativo deve ser renovador, recriador, e não mantenedor.

Ao professor que ensina ciência cabe fazê-lo com independência, investido de uma postura racional que o coloque alheio a qualquer forma de manipulação ideológica, notadamente um fator inviabilizante do “despertar” crítico-racional do educando, pressuposto fundamental que move a prática educativa. Nesse âmbito, Freire (1996) entende a prática educativa como um processo de produção e não de cessão do conhecimento.

A evolução das espécies é eminentemente uma questão híspida que transcende o discurso científico, chegando ao campo filosófico, quando toca as “feridas” da natureza humana, deflagrando a reavaliação de paradigmas seculares, agredindo a face obscura do antropocentrismo e o misticismo ramificado por toda a alma humana. Como considera Stephen J. Gould (in ZIMMER, 2004, p.12), a revolução detonada pela teoria evolucionista não tem precedentes históricos, no que diz respeito à perturbação de entendimentos milenarmente estabelecidos. Para Dawkins (1979), a inegável relevância da evolução biológica transcende o plano acadêmico, uma vez que alcança aspectos sociais significativos, abrangendo pontos obscuros do nosso comportamento social, como os nossos gestos generosos e gananciosos, amorosos e odiosos, fraternos ou eminentemente egoístas. A evolução incide sobre a face mais pútrida do homem: a sua pseudoelevação.

Quiçá um dia possamos falar de uma educação que seja eminentemente renovadora e não mantenedora de valores, que seja um processo de “autonomização” do ser formando, que seja verdadeiramente um acréscimo de idéias e não meramente a reprodução das que já se encontram estabelecidas desde os primórdios da nossa “moderna” sociedade. Oxalá que um dia venhamos a “formar e não domesticar” (FREIRE, 1996, p.57), que a educação não se abstenha alojando uma pseudodemocracia que, em essência, cultua omissões, ilusões e inverdades acerca da procedência e da natureza insubordinada do homem.

 

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Referencial bibliográfico

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[1] O fundamentalismo dessa vertente religiosa está baseado em duas teses capitais:

Todas as coisas do mundo – inclusive os seres humanos - são frutos de uma criação divina;

O itinerário da ação divina de criação do universo corresponde ao que os livros sagrados – a bíblia católica, a torá judaica, etc. – trazem escrito.

[2] Abordar-se-á estritamente a contraposição ao evolucionismo defendida por parte dos adeptos do criacionismo bíblico. Salienta-se, contudo, que a tese bíblico-criacionista é apenas uma entre as múltiplas explicações que reinam em diferentes culturas. 

[3] De certa forma clareando com a luz da razão as verdades que se subjugava serem incompreensíveis, enquanto escondidas em meio às trevas no abismo infinito da trajetória da humanidade.

[4] Argumento defendido por religiosos que comungam do pressuposto de que somente uma força criadora inteligente poderia originar um ser tão “superior” como o homem.

[5] Alusão à gafe cometida pelo Presidente da República, Luiz Inácio “Lula” da Silva, que, em dado cerimonial acontecido no Rio de Janeiro, atribuiu à mulher de Garotinho o termo feminilizado do apelido do marido.

[6] Chico Alencar (2003, p.102), em análise sobre o fenômeno da globalização, diz que o “rebanhismo pentecostal, derivado do fundamentalismo que prolifera no mundo, é também, reação regressista à modernização autoritária excludente”.

 

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Publicada em 21.12.06 - Última atualização: 22 dezembro, 2006.