
“Falsa
e profundamente lesiva”, comentou um professor de geologia de Cambridge
sobre uma idéia formulada por um ex-aluno dedicado ao estudo das ciências
naturais. Esse aluno era Charles Darwin e a tal idéia – chamada evolução
– afirmava perigosamente a mutabilidade das espécies. Darwin, à época
com 49 anos de idade, havia passado cinco anos numa expedição que
percorrera regiões do mundo inteiro – onde coletara amostras de
animais, plantas, solos, fósseis, etc. – e outros mais de vinte anos
analisando o material coletado, até culminar na formulação de uma
teoria que explicava de forma simplória, mas ao mesmo tempo satisfatória,
a dinâmica da vida na Terra. Tratava-se de uma tese perigosamente
maravilhosa, que “unificava os reinos da vida, seu significado e propósito,
com os reinos do espaço e do tempo, causa e efeito, mecanismo e lei física”
(R. HUTTON in ZIIMER, 2004, p.20).
A
Europa de meados do século XIX recebeu estarrecida as afirmações do notável
cientista de que as espécies eram mutáveis - contrária à mística
popular que concebe a vida terrena como um domínio estático, tendo como
fulcro a conjectura bíblica do fixismo – e filogeneticamente
relacionadas, ou seja, as espécies têm a mesma descendência,
compartilhando ancestrais, pressuposto que inclui a própria casta humana.
O ano era
1859,
e, Darwin, no antológico livro A origem das espécies, forjara a
teoria da evolução biológica, a qual encorpava as afirmações feitas
pelo naturalista. Darwin em muito contradizia as convenções tradicionais
– até então tidas como verdades irrestritas – alterando
drasticamente a forma como os seres humanos passaram a conceber-se a si próprios,
expondo, roto e diafanamente, a sua inerente “superioridade”,
argumento defendido ferrenhamente pelos adeptos do infértil segmento
criacionista-bíblico ou criacionista-religioso
- notadamente os cristãos (protestantes, católicos, etc.),
desdobramentos da tradição judaica - que, norteados pelo
livro sagrado do Gênesis,
concebem a origem do mundo como sendo há menos de seis milênios, com um
Deus onipotente criando todas as espécies, dentre as quais a espécie
humana fora criada à imagem e semelhança do próprio Criador.
A
origem das espécies
fora duramente atacado por diversas vertentes religiosas – notadamente o
segmento criacionista-religioso dentro da própria comunidade científica
européia – que consideravam extremamente levianas afirmações daquela
natureza, desdizendo valores que representavam a base da estrutura social
estabelecida. Nietzsche (2004) entende que tudo que é próprio da
natureza humana transformou-se em abominável aos olhos dos
tradicionalistas, uma vez que passou a significar um contraponto à
perspectiva da criação divina. Ao
justificar o surgimento das espécies como um processo natural, Darwin
fatalmente abalava pressupostos religiosos fundamentais, gerando
questionamentos ontogênicos do tipo “se o homem é só um macaco avançado,
e não filho de Adão e Eva, então a Bíblia está errada! ... não há
pecado, nem céu e inferno... não há porque crer em Deus!”. Todavia,
ainda que o evolucionismo tenha trazido tanto desconforto para a
sociedade tradicional, por volta do início do século XX, a evolução,
dada a sua argumentação consistente, já era reconhecida como uma teoria
eminentemente sólida, firmando-se definitivamente como paradigma no meio
científico.
2.
Evolucionismo acadêmico
No
início do século XX, a evolução já era reconhecida como uma brilhante
teoria[3],
firmando-se decisivamente como paradigma científico, passando a
representar o eixo norteador de qualquer estudo acerca das manifestações
da vida em geral. Tanto que ainda em 1925, os adeptos do darwinismo,
reivindicaram o direito acadêmico de ensinar a teoria da evolução nas
escolas públicas. Primeiramente em alguns estados dos Estados Unidos e
logo em seguida em diversos outros países, a evolução foi agregada ao
conteúdo curricular do ensino de biologia e ciências em geral.
2.1
“Guerra Santa” da ignorância
A
medida tomada por gestões educacionais em vários países descontentou inúmeros
grupos religiosos, que reagiram imediatamente exigindo a anulação da
medida tomada por algumas escolas, por considerarem aquele um gesto
indevido. Amiúde, à luz do misticismo e fundamentalismo, tudo o que
representa renovação, que se contrapõe aos paradigmas antropocêntricos
ou que alude à inferioridade por trás da pseudo-superioridade humana
é indevido.
Considerando
que, como sublinha Rousseau
(1989, p.153), historicamente todos os estados são fundados sobre os
alicerces religiosos, fora deflagrado um confronto que
marcou os últimos oitenta
anos perpassados pela intolerância e rispidez com que grupos religiosos
encaram a teoria evolucionista. Nas últimas oito décadas, o ensino da
teoria da evolução nas escolas vem sendo marcado pela relação
conflituosa com os dogmas sócio-culturais fundamentados no criacionismo.
Em
1925 – primeiro ano que se tem registro de adoção do ensino acadêmico
da teoria evolucionista – John Scopes, professor do Estado do
Tennesse/Estados Unidos (EUA), foi condenado à prisão, acusado de
ensinar sobre evolucionismo, desobedecendo a uma lei estadual que proibia
tal prática. Em 1968, nos EUA, contrária ao fato de que alguns estados
norte-americanos quiseram incluir o criacionismo no currículo escolar, a
União das Liberdades Civis (ULC) moveu ações na Justiça argüindo
o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, obtendo êxito
mediante a proibição da abordagem formal da teoria criacionista por
parte das escolas. Em 1987, outra pendência judicial deu-se no mesmo
sentido, com nova vitória da ULC, que, dessa vez, teve que recorrer à
Suprema Corte norte-americana.
2.1.1
Inquisição Moderna
Atualmente
a controvérsia mantém-se ainda intensa, sendo comum a veiculação de
embates judiciais entre organizações religiosas e científicas relativos
ao ensino da evolução nas escolas. Como entende Rousseau
(1989, p.159), são correspondentes e inseparáveis as intolerâncias
civil e teológica.
É
notório que, nos Estados Unidos, uma
coluna de “inquisidores modernos” marcha rumo ao “enforcamento público”
de Charles Darwin, tido convencionalmente como ímpio ainda nos dias
atuais, há mais de um século da forja da teoria evolucionista. Em
Minnesota e Novo México, o projeto inteligente[4]
já divide espaço com a teoria da evolução nas aulas de ciência. Segundo
França (2004), em 1999,
no estado do Kansas, fora decidido pelo Conselho de Educação que o
itinerário da teoria evolucionista deveria ser extinto do circuito
escolar, entretanto, em 2001, pressionado pela opinião pública, o
Conselho voltou atrás – aliás, como pensa Rousseau (1989, p.147) em
qualquer cultura a opinião consensual dirige os homens, decidindo mesmo
sobre seus próprios prazeres. Em vinte outros estados norte-americanos
foram enviados às assembléias locais projetos de lei que reivindicam o
ensino do criacionismo durante as aulas de ciências, incluindo os estados
de Nova York e Massachussetts, tidos como mais intelectualizados. Cerca de
quarenta iniciativas já foram tomadas por Conselhos Escolares dos EUA no
sentido de incluir ressalvas nos textos escolares, advertindo de que a
teoria evolucionista não tem “comprovação”. Celestino (2004) afirma
que há uma discussão estabelecida nos meios acadêmico e científico
norte-americanos, em que professores e pesquisadores de ciência
preocupam-se com a aparentemente inofensiva reivindicação no sentido da
abordagem da explicação criacionista nas aulas, considerando que tal prática
representa um retrocesso intelectual, uma vez que atribuir status de
teoria fundamentada ao projeto inteligente, colocando-o ao nível
de uma explicação cientificamente embasada – como o é a evolução
biológica – representa um gesto claramente estabanado.
Vogt
(2004) salienta que em alguns países europeus a bandeira do retrocesso
levantada pelo movimento criacionista vem aos poucos sendo introduzida nas
políticas educacionais, enquanto em outros países a influência de
grupos que defendem a tese da criação divina já está plenamente
solidificada. O mesmo autor afirma que, na Inglaterra, a política
nacional de educação determina que os currículos escolares devem conter
o evolucionismo, mas permite que o criacionismo também seja ensinado. Na
Itália – país fortemente católico – o programa do ensino médio
publicado em 2004 pelo Ministério da Educação extinguiu o evolucionismo
do currículo escolar, o que gerou uma grande mobilização dos cientistas
italianos que protestaram contra a decisão, levando o governo a rever a
decisão. Espanha e Alemanha também vivem a controvérsia do ensino acadêmico
da evolução.

2.1.2 Controvérsia nacional
No
Brasil, a controvérsia em torno do ensino do evolucionismo biológico nas
escolas não tomara grande projeção como se observa em outros países.
Contudo, um fato isolado indica uma afinidade entre gestão pública e
religião: o caso Rosinha, no Rio de Janeiro.
A governadora Rosinha Matheus, presbiteriana, eleita com amplo apoio das
igrejas evangélicas, instituiu, em 2004, aulas de religião em caráter
catequético, em que os professores recebem a orientação de exporem seus
pontos de vistas de acordo com as crenças que professam. Rosinha – que,
segundo França (2004), declara abertamente a sua descrença em relação
à teoria da evolução das espécies – contratou cerca de 800
professores (mais de 90% cristãos) para apresentarem aos alunos explicações
místicas que pessoalmente crêem, como a origem do homem a partir do pó
e da mulher a partir da costela de Adão, entre outras. Em 2000, Anthony
Garotinho (marido de Rosinha e, à época, governador do estado) sancionou
uma lei que previa o ensino religioso confessional (ou seja, dogmático).
Em 2003, a
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALRJ) aprovou uma lei que
previa que o ensino religioso na rede pública deveria ter caráter histórico
– numa abordagem que considere a religião como fenômeno cultural –
sem diferenciação de credos. Ocorreu então que a governadora Garotinha[5]
vetou a proposta apresentada pela ALRJ, e autorizou, em 2004, a realização
de concurso público visando a contratação de professores para ensinar
religião na perspectiva confessional.
2.1.2.1
Discussão acalorada
A
Secretaria de Educação do Rio de Janeiro definiu, em 2004, que o tema
anual para as aulas de religião na rede pública será “criação” e
que o criacionismo será discutido de forma superficial, o que não
esconde a tendência eminente a negligenciar a explicação
cientificamente embasada oferecida pela teoria evolucionista. A posição
de Rosinha Matheus incomodou a comunidade científica brasileira, de onde
partiram críticas de cientistas de renome, como Ennio Candoti, físico e
presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que
afirma (apud FRANÇA, 2004):
A
teoria criacionista, em contraponto ao evolucionismo, não se sustenta.
Pode até gerar confusão na cabeça do aluno. É uma propaganda enganosa.
É uma instrumentalização pouco ética de usar o poder político para
impor tendências, induzir à propagação de crenças ou leituras
particulares de textos tradicionalmente sagrados.
Para
Cosme Freire Marins (apud PARISI, 2004), professor de História do
ensino fundamental e médio na cidade do Rio de Janeiro, é preocupante a
influência da religião sobre a política educacional. Diz ele:
O
Estado está separado da Igreja, não se deve misturar a teologia com a
educação. Eu não posso tomar partido de uma ‘verdade’ absoluta.
Como eu posso afirmar que Deus criou Adão e Eva para uma criança que é
umbandista ou budista? (...) Sou da opinião que à Igreja cabe ensinar
seus adeptos as verdades religiosas; não se imiscuir no Estado para impor
seus conceitos religiosos.
Um
adepto da Igreja Presbiteriana, o filósofo, teólogo e pedagogo Mário
Fava, quando questionado sobre um suposto desgaste que a imagem da Igreja
sofreria em decorrência da superexposição advinda com a polêmica
“carioca” em torno do ensino da religião e da evolução, afirma que
não se pode categoricamente dizer que o impasse lese a figura da igreja.
Para Fava (apud PARISI, 2004), o que desgasta a imagem da igreja
“é o fato de líderes evangélicos explorarem as políticas
educacionais, tornando a escola um ambiente de catequese ou evangelização”.
Marcelo
Gleiser, astrofísico, escritor, professor e um dos mais respeitados
cientistas brasileiros compara as condutas tendenciosas do governo do Rio
de Janeiro e dos Estados Unidos da América. Para ele, “Bush foi eleito
pela direita religiosa, hoje quem está no poder é Deus. Infelizmente
parece que, no Rio, a senhora Garotinho, com sua grande iluminação
intelectual, está tentando a mesma coisa” (in BRUM, 2005a). Boa
parte do eleitorado “urbano” que elegeu Rosinha mora na cidade com os
maiores índices de violência do país, uma gente fragilizada pelo caos
de grande metrópole, que se apega ao “último fio” de esperança em
dias melhores: a religião. A gente humilde é certamente a mais susceptível
ao discurso massificante.
Na
visão de Maurício Vieira Martins (in BRUM, 2005c), professor de
sociologia e direito da Universidade Federal Fluminense, um estado que
toma medidas nos moldes da manobra feita pela governadora não está
preocupado em formar cidadãos de verdade, com capacidade crítica e
intelectual, mas pessoas alienadas e passíveis de manipulação por parte
de demagogos.
2.1.2.2
Aspectos regulamentares: a força “legal” do “rebanhismo[6]”
A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB ou Lei 9.394/96) dispõe que
o ensino religioso, no Brasil, é de matrícula facultativa e sem ônus
para os cofres públicos. Formulada pelo antropólogo e senador Darcy
Ribeiro, a LDB contempla o ensino das religiões sob uma abordagem
fenomenológica e antropológica, e não em caráter confessional/doutrinário.
Entretanto, cedendo a pressões de interesses diversos, o Congresso
Nacional aprovou em 25 de julho de 1997 a primeira emenda a LDB que
alterava justamente o artigo 33, referente ao ensino religioso nas
escolas. Proposta pelo senador Nelson Marchezan e relatada pelo deputado
Padre Roque, a alteração do texto original contido no artigo 33 da LDB
deu-se através da Lei 9.475/97. Esta, além de instituir a remuneração
dos professores de religião por parte do estado, a este concede o direito
de decidir como gerir a forma e o conteúdo da disciplina
religião, o que, deixa
claro, “o processo de laicização da educação brasileira”, e
ainda instaura um empasse em que “é de se questionar como assegurar uma
linha de equilíbrio dos conteúdos, sem cair, de um lado, numa espécie
de niilismo religioso e, de outro, no indesejável proselitismo”
(CARNEIRO, 1998). A lei 9.475/97 estabelece que “o ensino religioso é
parte integrante da formação básica do cidadão”. Entretanto, é
preciso ater-se quanto a uma certa distorção do conceito de ensino
religioso, transmutado em ensino doutrinário ou catequético.
Após
a LDB e a Lei 9.475/97, a educação nacional ficou organizada de forma
que a União coordena a política nacional de educação sem, contudo,
centralizar em si a organização dos conteúdos. Dessa forma, fica a
cargo do estado decidir sobre aspectos inerentes ao ensino, especialmente
em relação às disciplinas não obrigatórias, como no caso da religião.
Com isso, considerando a autonomia das gestões estaduais em decidir sobre
o caráter das aulas de religião que as escolas ofertarão, é presumível
que o ensino religioso no Brasil seja algo bastante relativo e dependente
das concepções ideológicas dos administradores públicos, e, por
conseguinte, parece razoável supor que o evolucionismo esteja à mercê
desse jogo de interesses.
Nessas
condições, é elementar a suposição de que o evolucionismo sofre em
meio às trevas do obscurantismo. Negligenciada, atacada, distorcida, a
evolução amarga infortúnios por não corroborar com a retórica
manipuladora dos grupos socialmente influentes, por não colaborar com a
soberba implícita nos instrumentos sociais de massificação, notadamente
as tradições judaica-cristãs.
A
influência aziaga dos preceitos ortodoxos pode ser traduzida em números.
Uma pesquisa nacional realizada pelo Ibope BUS em dezembro de 2004, com
pessoas com idade acima de 15 anos, a pedido da revista Época (apud BRUM,
2005b), revelou o quanto o pensamento da população brasileira se
encontra atrelado a pressupostos dogmáticos e mitológicos. Questionadas
quanto à criação e o “desenvolvimento” do homem, 31% das pessoas
disseram acreditar que Deus criou o ser humano - já na forma que este
hoje tem – dando-se isso há cerca de 10 mil, enquanto que 54% crêem
que o homem vem se desenvolvendo ao longo de milhões de anos – porém,
existe um planejamento divino por trás dessa trajetória – e apenas 9%
das pessoas ouvidas não acredita que há um Deus envolvido na criação e
desenvolvimento do homem. No tocante à tese criacionista, 89% das pessoas
entrevistadas acha que a mesma deve ser ensinada nas escolas, com 75%
sugerindo que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas no lugar do
evolucionismo.
3.
A Evolução como Revolução
A
teoria da evolução trouxe consigo muito mais do que um aglomerado de
dados articulados de forma a constituírem uma tese científica, a idéia
de Darwin representa uma perturbação para a estrutura social
conservadora. Aceitar que a evolução encerra todo o dinamismo da vida
terrena notoriamente não consiste num gesto irracional, afinal, é presumível
que fatos, evidências e comprovações tenham alguma relevância numa
reflexão crítico-racional sobre qualquer tema. Entretanto, quando o que
está em questão é a contestação do arquétipo taciturno configurado
pelas relações místicas, os adeptos do obscurantismo tendem a ignorar o
que se mostra fato, uma vez que, como Nietzsche (2004) observa, as pessoas
que julgam serem portadoras de missões ‘sagradas’ – como os
sacerdotes e outros que se incumbem de promover a ‘purificação’ de
homens – comungam de uma perspectiva maniqueísta que supostamente
coloca-os acima de qualquer coisa, inclusive da razão. Inusitadamente,
Rousseau (1989, p.157), acareando-se com essa idéia, entende que os cristãos
genuínos nascem com propensão a serem escravizados.
A
grande dificuldade da aceitação definitiva do evolucionismo está na
necessidade de despir-se de mitos e preconceitos para entendê-lo em toda
a sua abrangência, em todo o seu desdobramento filosófico. Dawkins
(1979), na sua perspicácia atípica, entende que a teoria da evolução
biológica é tão profundamente conexa quanto explicações científicas
consagradas – e poderíamos citar inúmeras, como o heliocentrismo de
Copérnico e Galileu, as leis da física newtonianas, as leis da genética
forjadas por Mendel – entretanto, a real dimensão que a revolução
darwiniana tomará em relação às conseqüências para a humanidade
ainda é imprevisível.
A
evolução, em primeira instância, não passa de um mecanismo natural
como tantos outros descritos através de leis científicas, entretanto, o
peso filosófico que essa teoria engendrara no debate ontológico que
perenemente marca a história humana desde as mais primitivas civilizações
é algo jamais descrito desde a gênese da humanidade. A evolução,
enquanto corpo argumentativo científico, nunca volveu os olhos para
discussões de cunho metafísico sobre a origem do mundo e de todas as
coisas a ele ligadas, mas ao justificar a vida como decorrente de
processos estritamente dirigidos pela natureza, Darwin acabava contestando
– ainda que não como proposta primária de sua obra, uma vez que por
muito tempo mostrou-se um homem martirizado por refutar omissões que ele
próprio acomodava, herdadas da educação familiar – concepções
seculares, redimensionando o arranjo em que se relacionavam homem e mundo,
estabelecendo impiedosamente a prevalência da visão dinâmica da vida
terrena sobre a perspectiva estática ortodoxa, invertendo a posição
ocupada pelo homem no contesto de mundo (derrubando o antropocentrismo), a
desmistificação ontológica, o “assassínio” de Adão, entre outras.
A evolução fora certamente um golpe certeiro na “cara” do
tradicionalismo.
3.1
Involução Criacionista
Futuyama
(2002) considera que os que se opõem ao evolucionismo normalmente
defendem pontos de vista absolutamente desprovidos de lógica e razão,
sustentados apenas por pressupostos emotivos e metafísicos. Enquanto, por
influência de grupos religiosos, a explicação cientificamente
embasada oferecida pela teoria evolucionista vai aos poucos sendo
negligenciada, impera o misticismo em locais onde presumivelmente esse
deveria ser banido, como o ambiente acadêmico, por exemplo, em que
deveria reinar a razão. Como Kant (1985, p.58) bem observa, o único
elemento capaz de exterminar preceitos como o fanatismo, a superstição,
e até mesmo o ateísmo (que o autor considera uma displicência do
pensar) e o ceticismo, é o exercício da crítica.
É
obviamente discrepante submeter ao julgamento, com pesos iguais, o
criacionismo (em todas as suas formas de desdobramento, como o próprio projeto
inteligente,
por exemplo) e a teoria da evolução. Para Amabis (2005), tal julgamento
negligencia fundamentos científicos basilares, como, por exemplo, os
componentes de uma lei: evidência, empirismo, etc. Nietzsche
(2004) salienta que
figuras devaneadoras, como os sacerdotes cristãos, concebem-se como
auto-suficientes de conhecimento (divino) para julgar quaisquer questões,
subjugando toda e qualquer noção advinda de instituições relativamente
não dogmatizadas, como o intelecto, os sentidos, a ciência, entre
outras. Futuyama (2002) entende que o sentido primordial da evolução é mudança,
e, como tal, trata-se de um significado de amplo alcance, razão pela
qual acredita que o evolucionismo traz à tona tanta controvérsia. A
humanidade é sedentária, e a idéia de caminhar lhe faz pulular a alma
medrosa. Para Albert Camus (apud ALENCAR, 2003, p.106),
“o homem é o único ser vivente que se recusa a ser o que é”.
3.2
Prejuízo ao processo formativo
Com
todos os contrapontos que enfrenta para se manter, o ensino acadêmico da
teoria da evolução das espécies acaba ficando condicionado a ser
negligenciado. O evolucionismo – temática que representa o elo entre
todas as áreas atuantes no âmbito das ciências biológicas –
fatalmente acaba por assumir um papel secundário dentro do ensino de
biologia, sem que lhe seja atribuída a devida relevância conquistada
através de um histórico de firmações que culminaram no estabelecimento
definitivo da evolução biológica como paradigma científico. Em conseqüência
disso, o evolucionismo presumivelmente tenderá a ser pouco compreendido
pelos alunos, o que, por sua vez, comprometerá o estabelecimento de uma
visão holística sobre a ciência e, por conseguinte, corroborará para a
pouca compreensão dos demais conteúdos estudados em biologia, uma vez
que, como sugere o Ministério da Educação (apud VOGT, 2004), a
teoria evolucionista deve ser concebida como a ponte que liga os diversos
campos das ciências biológicas.
4.
Considerações finais
Num
clima conflituoso o evolucionismo vem se mantendo como um argumento sólido
e, até agora, irretorquível. A controvérsia marca a história de afirmação
da teoria, chegando inclusive ao campo acadêmico. Contudo, apesar da polêmica
em torno do seu ensino acadêmico, a evolução, enquanto explicação
científica, contempla satisfatoriamente todos os aspectos inerentes ao
desenvolvimento da vida na Terra, o que imputa à idéia de Darwin a condição
atual de paradigma no meio científico, o que representa indubitavelmente
o triunfo do pensamento evolucionista, apesar de toda a controvérsia que
marcou seu histórico de ascensão. Hoje a evolução é concebida dentro
do meio científico como uma das mais sólidas teorias e indubitavelmente
como a mais importante contribuição para o entendimento da vida terrena,
em suas mais diversas formas de manifestações. Todavia, dado que o
conhecimento não é um domínio estático, séssil, e que a aprendizagem
é uma ação continuamente retomada – e, como diz Alencar (2003,
p.111), “todo conhecimento
autêntico é renovável, perenemente superável” – não há explicação
que não deva ser diafanamente argüida. O que se espera do educador é
que tenha lucidez para dirigir a prática educativa. Por se tratar de
especulações – ainda que tão sobriamente tecidas – o conhecimento
provindo do despir da diligente vida na terra promovido por Darwin não
pode ser ostentado como um corpo argumentativo impassível de contestações.
Contudo, submetidas ao crivo racional, as teses que justificam a dinâmica
da vida terráquea ruem-se efemeramente, sendo a evolução biológica
a única conjectura que se mantém inabalada. A evolução não deve ser
assimilada como uma corrente doutrinária como tantas outras
“amansadoras” de homens, mas é inquestionável que, do ponto de vista
analítico, a tese de Darwin varre avassaladoramente o obscurantismo que
encontra pelo caminho.
Aos
profissionais do ensino de ciências incumbe perpetuar o pensamento científico,
em sua mais profunda independência e racionalidade, conquistadas ao longo
de milênios de “avanços” intelectuais. Os homens de ciência não
podem meramente flertar com a razão, assumindo a postura covarde que
Nietzsche (2004) denunciara, sendo desapegados às questões humanas. O
professor – não só o cientista, mas o docente de qualquer área –
deve ser um semeador da razão, o que implica no repúdio a qualquer forma
de pensamento tendenciosamente alienante. Para Marx (2004), numa busca
científica, o investigador não deve ter medo dos resultados que poderá
alcançar. Educar implica em revolucionar, uma vez que “preparar para o
mundo” consiste em expor a estrutura social na qual o educando se
encontra inserido: as tendências ideológicas estagnantes, a repressão
intelectual, enfim, uma conjuntura de fatores que tendem à supressão da
racionalidade e autonomia. A docência é uma ferramenta libertadora; não
deve ser exercida à luz de pressupostos sociais ultrapassados. O processo
educativo deve ser renovador, recriador, e não mantenedor.
Ao
professor que ensina ciência cabe fazê-lo com independência, investido
de uma postura racional que o coloque alheio a qualquer forma de manipulação
ideológica, notadamente um fator inviabilizante do “despertar” crítico-racional
do educando, pressuposto fundamental que move a prática educativa. Nesse
âmbito, Freire (1996) entende a prática educativa como um processo de
produção e não de cessão do conhecimento.
A
evolução das espécies é eminentemente uma questão híspida que
transcende o discurso científico, chegando ao campo filosófico, quando
toca as “feridas” da natureza humana, deflagrando a reavaliação de
paradigmas seculares, agredindo a face obscura do antropocentrismo e o
misticismo ramificado por toda a alma humana. Como considera Stephen J.
Gould (in ZIMMER, 2004, p.12), a revolução detonada pela teoria
evolucionista não tem precedentes históricos, no que diz respeito à
perturbação de entendimentos milenarmente estabelecidos. Para Dawkins
(1979), a inegável relevância da evolução biológica transcende o
plano acadêmico, uma vez que alcança aspectos sociais significativos,
abrangendo pontos obscuros do nosso comportamento social, como os nossos
gestos generosos e gananciosos, amorosos e odiosos, fraternos ou
eminentemente egoístas. A evolução incide sobre a face mais pútrida do
homem: a sua pseudoelevação.
Quiçá
um dia possamos falar de uma educação que seja eminentemente renovadora
e não mantenedora de valores, que seja um processo de “autonomização”
do ser formando, que seja verdadeiramente um acréscimo de idéias e não
meramente a reprodução das que já se encontram estabelecidas desde os
primórdios da nossa “moderna” sociedade. Oxalá que um dia venhamos a
“formar e não domesticar” (FREIRE, 1996, p.57), que a educação não
se abstenha alojando uma pseudodemocracia que, em essência, cultua
omissões, ilusões e inverdades acerca da procedência e da natureza
insubordinada do homem.
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