por CAIO GONÇALVES DIAS

Graduando em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e bolsista de iniciação científica do CNPq sob orientação do Professor Dr. Luiz Augusto Rodrigues.

 

 

 

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Do castigo real ao império do tráfico: 

um suplício contemporâneo?

 

Caio Gonçalves Dias

 

Resumo : O presente trabalho, a partir da definição de suplício proposta por Foucault em Vigiar e Punir (1977), procura estabelecer relações dessa prática com as punições aplicadas pelo tráfico nos morros cariocas. Para isso, toma como paradigmas os suplícios cometidos nos Séculos XVII e XVIII, quando a prática dava sinais de desgaste, e o caso de execução realizado por traficantes em represália ao ataque ao ônibus 350, em 2005. Por fim, busca-se compreender as implicações sociais do ato supliciante mais atual.

Palavras-chave: Violência, Suplício, Tráfico, Comunidade.

Abstract: This work, based upon the definition of scaffold proposed by Foucault in Discipline and Punish (1977), aims to identify the relations of this practice with the punishment used by the traffic in the slums of Rio de Janeiro. So as to do it, the scaffolds committed in the 17th and 18th centuries, when the practice started its decline, and case of execution put into practice by the drug traffic in order to protest over the attack of a Buss, the 350 line, are taken as paradigms. After what, an understanding of the implications of the most recent one is searched.

Key words: Violence, Scaffold, Traffic, Community.

 

Introdução

“(...) foi esquartejado e seu corpo, queimado no local. Ao lado da cova havia sinais de uma fogueira e uma pedra com marcas de machadadas. ‘O corpo estava totalmente cortado. Os ossos estão muito fragmentados. Houve um sacrifício brutal’(...) (MORAIS, 2005)”

A descrição acima poderia facilmente ser relacionada a uma cena do século XVII. Em Vigiar e Punir, de Michel Foucault, por exemplo, podem ser encontrados inúmeros suplícios do mesmo tipo. O que a torna um tanto surpreendente, porém, é sua atualidade: trata-se de uma ‘punição’ sofrida pelo jornalista Tim Lopes após ter sido descoberto pelo traficante Elias Maluco enquanto realizava uma investigação na favela Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Práticas como essas vêm se mostrando comuns em favelas cariocas. Na região da Grota, por exemplo, onde foi encontrada a ossada do jornalista, funcionava uma espécie de cemitério, onde inimigos do Tráfico eram torturados até a morte. Uma característica importante desse tipo de prática merece atenção: ela é conhecida pela comunidade. E ainda, pode ser utilizada também contra membros comunitários quando considerado necessário por algum traficante de influência.

As implicações deste fato, no entanto, podem não ser tão claras quanto parecem a princípio. Qual é o objetivo, por exemplo, de um traficante quando suplicia o corpo de um inimigo de forma declarada para determinada comunidade? Seria uma simples demonstração de força? Um ato que comprove sua indiferença com relação às autoridades do asfalto? Ou, ainda, uma distração despretensiosa proporcionada pelo Poder incondicional?

Este trabalho tem por objetivo, partindo do levantamento dos suplícios e suas implicações sociológicas realizado por Foucault na primeira parte de Vigiar e Punir, buscar relações entre os suplícios cometidos nas favelas do Rio de Janeiro e os praticados nos séculos XVII e XVIII na Europa.

Para isso, será tomado como paradigma o recente caso do ônibus 350, incendiado no dia 29 de Novembro de 2005, no qual parte do grupo que cometeu o crime foi assassinada, por traficantes do Comando Vermelho, em represália ao que foi definido por alguns veículos de comunicação como Terrorismo.

A primeira parte deste artigo busca definir o suplício, passando, em seguida, para as relações estabelecidas entre o povo, que exercia com fervor o seu direito de participação nas cerimônias do gênero no passado, o governante absoluto e o ato violento propriamente dito. Segue-se, então, para o caso do ônibus 350, buscando explicações para o ato dos traficantes quando assassinam os responsáveis pelo incêndio e sua implicação social, principalmente no que diz respeito às comunidades dominadas pelas facções. Por último, procura-se estabelecer relações entre os suplícios cometidos nos séculos XVII e XVIII e o atual.

I

O Dicionário Barsa da Língua Portuguesa define suplício como: “1. Grave punição corporal imposta por sentença judicial. 2. Sofrimento físico ou psicológico imposto a alguém como forma de punição, intimidação, coerção ou ainda para extrair confissões ou obter informações; tortura. 3. Pena de morte. 4. Execução dessa pena.”(2004, p. 993). Pode-se associar, mesmo partindo de um conhecimento enciclopédico e superficial, esse tipo de imposição física a inúmeros momentos da história humana: desde a punição de escravos em regimes escravocratas, existente já na Antiguidade Egípcia; passando por processos de mutilação ou crucificação praticados tanto na época Romana quanto na Idade Média; chegando, finalmente, a Idade Moderna, que se em fase inicial fazia uso de castigos corporais severos, mesmo após ter passado por uma moralização que pedia o abandono dessas práticas, sofre ainda com esse tipo de castigo, vide as ainda recentes ditaduras militares latino-americanas que fizeram da tortura prática de controle social.

Foucault, em Vigiar e Punir, vai além, chegando a um refinamento que permite uma reflexão mais profunda com relação aos suplícios; para ele:

O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação – que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício – até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’(...). O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento (FOUCAULT, 1977, p.34).

O autor ressalta, ainda, que se trata de uma prática não só regulamentada, como também baseada em uma série de formalidades, tanto na legislação quanto na severidade da pena aplicada; ou seja,

O suplício faz correlacionar o tipo de sofrimento físico, a quantidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: números de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo da agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios ou línguas furados) (Op. Cit., p.34).

Trata-se de um ritual; feito para ter continuidade tanto na cicatriz do mutilado, quanto na memória dos que assistem às cerimônias. Seu objetivo é o de punir, não o de conciliar o problema possibilitando um confortável esquecimento. É importante, também, que o suplício possa ser acompanhado por todos, que seja um acontecimento com pompa, “por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível” (Op. Cit., p.35).

Outro ponto importante do suplício é a questão da confissão: primeiro, pela possibilidade de ser o fator definitivo de condenação; e em segundo, por ser feita pelo condenado logo antes do cumprimento da pena. É o momento em que a justiça se afirma; o ato ilegal admitido pelo próprio supliciado faz com que todo o processo de julgamento, e conseqüente pena, se legitime. Existem, também, registros de confissões, não se sabe ao certo se manipuladas ou não, que serviam explicitamente de exemplo para que os mesmos erros não fossem cometidos. Bom exemplo é o caso de Marion Le Goff, que logo antes de sua execução disse:

Pai e mãe que me ouvem, guardai e ensinai bem vossos filhos; fui em minha infância mentirosa e preguiçosa; comecei roubando uma faquinha de seis réis... depois assaltei mascates, mercadores de gado; enfim comandei uma quadrilha de ladrões e por isso estou aqui. Dizei isso a vossos filhos e que ao menos lhes sirva de exemplo (apud FOUCAULT, 1977, p. 59).

Com a confissão, então, é iniciado o processo; o supliciado é “encarregado, de algum modo de proclamá-la e dessa maneira de atestar a verdade do que lhe foi reprovado: passeio pelas ruas, cartaz que lhe é pendurado nas costas, no peito ou na cabeça para lembrar a sentença; paradas em vários cruzamentos, leitura do documento de condenação, confissão pública à porta das igrejas, durante a qual o condenado reconhece solenemente seu crime” (FOUCAULT, 1977, p.42).

Em seguida, com o início da execução propriamente dita, é pronunciada a confissão pública que faz do suplício “o momento da verdade” (Op. Cit., p.42); onde não estavam excluídas novas revelações de última hora. “Um suplício bem sucedido justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do condenado. (...) A cerimônia penal, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, tem a eficácia de uma longa confissão pública” (Op. Cit., p. 42-3).

Ao mesmo tempo, está previsto no suplício uma ligação íntima com o crime cometido. Pode-se, por exemplo, executar o condenado (ou expor o cadáver) no próprio local onde o crime foi cometido; há, também, casos em que a execução ganha ares ainda mais eloqüentes de ritual: ocorrendo “às vezes a reprodução quase teatral do crime na execução do culpado: mesmos instrumentos, mesmos gestos. Aos olhos de todos, a justiça faz os suplícios repetirem o crime, publicando-o em sua verdade e anulando-o ao mesmo tempo na morte do culpado” (Op. Cit., p. 43)..

Por fim, todo o ritual do suplício representa a prova derradeira; “o ponto de junção do julgamento dos homens com o de Deus” (Op. Cit., p. 43-4). Afinal, caso a condenação não fosse da vontade de Deus, Ele poderia intervir a favor do supliciado. Não foram raros os caso, por exemplo, em que, após um sinal supostamente divino, a execução foi suspensa e o condenado absolvido.

II

O papel do povo nas cerimônias de suplício é crucial: para ter credibilidade, um suplício deveria ter o maior número possível de espectadores. Execuções às escondidas eram postas sob suspeita; afinal, nem sempre havia garantias de que o executado teria sido efetivamente o condenado.

Os suplícios eram oportunidades de demonstração de Poder por parte do governo absoluto. Mostrava-se que o menor desrespeito a lei, e conseqüentemente a honra do Rei ou Príncipe, poderia ser exemplarmente punido. Essas cenas, por toda a crueldade envolvida, serviam para aterrorizar os súditos e, dessa forma, mantê-los controlados diante da imensidão da força real.

Ao mesmo tempo, o povo é convocado como testemunha dos suplícios. Eles são a garantia de que a lei está sendo respeitada e cumprida; eles devem, de alguma maneira, tomar parte nas cerimônias ao passo que eles são parte do Rei, e uma ofensa a ele, deve ser entendida, até certo ponto, como ofensa ao próprio povo. O Rei é escolhido por Deus para representar o povo, e como tal, deve ser honrado e respeitado.

Na vingança do soberano, a do povo era chamado a se insinuar. Não que este seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira traduzir a vindita do povo; é antes o povo que deve trazer sua participação ao Rei quando este vai se ‘vingar de seus inimigos’, até e principalmente quando esses inimigos estão no meio do povo. Há um tal qual ‘serviço de cadafalso’ que o povo deve à vingança do rei (Op. Cit., p. 53-4).

Assim, não foram raras as vezes em que o povo participou ativamente dos suplícios, gritando e atirando pedras aos condenados. Tratava-se de uma concessão do soberano: manifestações concedidas momentaneamente e, logo em seguida, reprimidas. “Ora é nesse ponto que o povo, atraído pelo espetáculo feito para aterrorizá-lo, pode precipitar sua recusa do poder punitivo, e às vezes sua revolta” (Op. Cit., p. 54).

Cada vez mais, portanto, começaram a acontecer revoltas bem sucedidas, nas quais o povo conseguia impedir acusações que considerassem injustas. A participação mais ativa da população, acabou por gerar insegurança com relação ao uso de suplícios. Para além de manifestações a favor dos direitos humanos, “houve de todo modo, de parte do poder, um medo político diante do efeito desses rituais ambíguos” (Op. Cit., p.58).

A partir desse momento, começou a haver uma identificação com a vítima; o que acabou por fazer com que a função de controle do suplício deixasse de ser completamente efetiva. Assim, com o objetivo de se manterem no poder, os soberanos começaram a investir em formas de punição mais “econômicas” politicamente e que, conseqüentemente, proporcionavam menos desgaste da autoridade. Com isso, foram surgindo os códigos nacionais e ocorreu a substituição da pena supliciante pela pena da prisão.

Trata-se, portanto, de um momento específico da história européia de passagem de regime de penas para outro; comprovando que as penalidades são também históricas e variam de acordo com o entendimento que as sociedades têm da norma e sua manutenção.

III

Na noite de 29 de novembro de 2005, um ônibus que fazia a linha 350 (Passeio-Irajá) foi parado, no bairro de Brás de Pina, por três jovens que, supostamente, seriam passageiros comuns. Quando estacionou, um grupo de homens tirou o motorista do veículo, e um deles, após pular a catraca, começou a jogar gasolina no chão e nos passageiros, e, em seguida, ateou fogo sem que a porta de trás fosse aberta, fazendo, então, com que não houvesse possibilidade de que as pessoas se livrassem das chamas: 14 pessoas ficaram feridas e 5 morreram no incidente.

Apesar de não se poder considerar as investigações definitivas, tudo indica que o crime foi cometido por um grupo de traficantes, a mando de “Lorde”, em represália ao assassinato de um membro do grupo, Eduardo Braga, de 22 anos, por policias militares. A motivação para o assassinato teria sido o pagamento de um valor inferior de uma propina previamente combinada com os PM’s.

Dois dias após o ataque ao ônibus, a DRE (Delegacia de Repressão a Entorpecentes) recebeu um telefone de um traficante avisando que quatro participantes do crime teriam sido assassinados e indicando a localização dos corpos:

Com base nas informações passadas pelo bandido na ligação anônima, PMs encontraram os quatro corpos, por volta de 1h, dentro do Meriva prata LTN-0402, na Rua Bento Cardoso, em frente ao número 110. Um dos corpos estava no banco de trás e os outros três no porta-malas do carro, que foi roubado de um médico no dia 9 de novembro na área da 27ª DP (Vicente de Carvalho).

Os quatro tinham marcas de tortura. No banco da frente foi deixado um cartaz com a seguinte frase: “Taí os quatro que queimaram o ônibus. Nós do CVRL [Comando Vermelho Rogério Lemgruber] não aceitamos atos de terrorismo. CVRL lado certo da vida errada... Fé em Deus... só falta o safado do pela-saco do Lorde” (O Globo, 02/12/2005a).

Tanto o incêndio do ônibus como a suposta justiça feita pelos traficantes geraram grande repercussão. Chama atenção a frieza com que o primeiro crime foi cometido; e ao mesmo tempo, a certeza de impunidade dos bandidos que se atribuem poder de polícia, e decidem fazer “justiça”.

Esse crime, portanto, mostra uma prática comum nas favelas cariocas: traficantes que se tornam mensageiros e executores de uma espécie de lei compartilhada entre eles, fato ressaltado por Angelina Peralva quando afirma que a favela é “um espaço físico que obedece a regras próprias, distintas das que têm curso fora de suas fronteiras. A presença de estranhos só é admitida à medida que conheçam essas regras e obedeçam a certos imperativos” (PERALVA, 2000, p. 131). O que este caso traz de novo, no entanto, é que essa justiça acabou por transbordar as fronteiras dos morros e chegou a uma realidade bem maior.

Foram inúmeras as explicações para o ato de justiça dos bandidos: desde pensamentos que procuram identificar organização ou vontade política no fato, como a pesquisadora da Universidade Cândido Mendes, Leonarda Musumeci:

Primeiro eles disseram que podem aterrorizar e impor o caos. E, depois, que eles tomam conta da segurança da área e que são mais eficazes do que a polícia. Os recados mostram a impotência do estado. É assustador (O Globo, 02/12/2005b).

até explicações que vêem no ato uma espécie de isenção de responsabilidade de traficantes não estavam envolvidos com o ataque ao ônibus 350. É o que pensa o sociólogo do IUPERJ, Gláucio Soares:

O ataque é profundamente burro. O que os bandidos fizeram depois foi corrigir a burrice à maneira deles. Dizendo: “Não venham para cima, porque eu não faço parte disso” (O Globo, 02/12/2005b).

Ao mesmo tempo, é preciso entender que esse tipo de justiça é a comum nas favelas cariocas. Trata-se de um espaço sitiado, onde a polícia militar, quando chega, é personagem de conflitos que muitas vezes acabam por fazer vítimas civis das comunidades. Assim, “uma violência policial cega, dirigida contra o conjunto dos favelados, contribui para que se atenue as fronteiras simbólicas dos traficantes daqueles que não o são” (PERALVA, 2000, p. 130 ).

Na medida em que o poder público se afasta das favelas, esse tipo ação dos traficantes acaba, portanto, por ser legitimado pelos próprios habitantes das comunidades: sem ter a quem recorrer, o traficante muitas vezes se torna o amparo que a comunidade carente não encontra nas autoridades oficiais.

Essa ajuda, porém, tem como preço uma fidelidade que, se quase nunca se expressa numa participação efetiva no crime – a pesquisadora Alba Zaluar chama a atenção para “o percentual baixo de pobres entre os pobres que optam pela carreira criminosa, calculados em menos de 1% em relação ao total da população de um bairro pobre pesquisado” (ZALUAR, 1996, p. 107) –, gera um acobertamento das atitudes ilícitas do tráfico que é essencial para a manutenção de sua lógica de funcionamento.

O caso do assassinato dos incendiários do ônibus 350, portanto, serve de confirmação dessa lógica; e mais, dá provas de seu funcionamento: a relação de dominação estabelecida nas comunidades é tão eficiente, que criou uma espécie de segurança do próprio poder por parte dos traficantes, que agora aplicam esta lógica até mesmo fora dos morros.

Considerações finais

O ato praticado pelos traficantes do CVRL pode, definitivamente, ser classificado como um suplício. Primeiro, pela violência com que os assassinatos foram cometidos: uma das vítimas, além de sinais de tortura, foi morta com mais de 20 tiros. Segundo, porque se trata de uma aplicação de uma pena após um julgamento, por mais unilateral e fora das tradições penais que seja.

Partindo da definição de Foucault, essa possibilidade fica ainda mais clara: é utilizada uma espécie de técnica que determina a violência da execução de acordo com a atrocidade do crime. Esse julgamento do tráfico, que pode até ser ilegítimo, é baseado numa espécie de ética (que tem valor de lei), ficando determinado, assim, crimes toleráveis ou não na esfera comunitária.

Como nos suplícios dos séculos XVII e XVIII, o papel do povo é importante: ele é chamado a participar, testemunhar o poder do tráfico em oposição à ineficiência da polícia oficial do Estado. Essa característica se confirma no telefonema dos bandidos para a DRE comunicando a execução: fica clara a intenção de que essa informação chegue a mídia e, ao mesmo tempo, a rapidez da investigação do tráfico quando comparada a da polícia propriamente dita.

A placa exposta no lugar onde os corpos foram encontrados, além da semelhança clara com as que eram penduradas nos supliciados denunciando os crimes cometidos, serve para determinar/identificar os culpados, selando um julgamento bem feito.

O crime cometido contra os incendiários do ônibus 350 pode, portanto, ser classificado como suplício. Trata-se da afirmação de um poder absoluto, o do tráfico. O que esse caso tem de novo, porém, são os subordinados. Até hoje, atos como esse que ganhavam projeção fora das comunidades eram bem poucos e isolados. Esse suplício, no entanto, entrega os condenados, como numa prestação de contas da justiça bem aplicada, a toda a população carioca. Resta saber, entretanto, quais serão os preços cobrados por essa espécie de favor prestado às avessas.

É importante, ao mesmo tempo, levar em conta que casos como esse precisam ser entendidos como reflexão de um arranjo social mais amplo. Portanto,

Deve-se também buscar o reconhecimento de uma clara articulação entre violência e cultura. Ou seja, revela-se como de vital importância uma compreensão do papel e do sentido que tem a violência, ou suas formas de manifestação, do ponto de vista do conjunto da dinâmica cultural de uma dada sociedade, especialmente quando se trata da análise de sociedades contemporâneas (PEREIRA, 2000, p.13).

No mesmo sentido, é preciso ter consciência de fatos que acontecem em esferas comunitárias acabam por se refletir de alguma maneira em um contexto global. É o ressalta Giddens ao tratar da formação da identidade: “ao forjar suas auto-identidades, independente de quão locais sejam os contextos específicos da ação, os indivíduos contribuem para (e promovem diretamente) as influências sociais que são globais em suas conseqüências e implicações” (GIDDENS, 2002, p. 9).

Longe de um fim, portanto, os suplícios ainda estão presentes na sociedade atual, com uma aceitação diferente, de fato, mas ainda com muitas características que chegam a possibilitar, mais do que comparações, lapsos temporais. Tamanha é a semelhança.

__________

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

PERALVA, Angelina. Violência e Democracia: O Paradoxo Brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

PEREIRA, A. et al. (Orgs.). Linguagem da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

ZALUAR, Alba. Da Revolta ao Crime S.A. São Paulo: Moderna, 1996.

Obras de Referência

Dicionário Barsa da Língua Portuguesa. São Paulo: Barsa Planeta Internacional, 2004, 2 volumes.

Jornais

A guerra do Rio: especialistas discutem o assassinato de quatro autores do incêndio de ônibus em Brás de Pina in O Globo On-line. Disponível em: http://www.oglobo.com.br/rio. Acesso em 02 de dezembro de 2005a.

A guerra do Rio in O Globo On-line. Disponível em: http://www.oglobo.com.br/rio. Acesso em: 02 de dezembro de 2005b.

Morais, Rodrigo. Polícia anuncia ter achado corpo de Tim Lopes in O Estado de S. Paulo, 12/06/02. Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp190620025.htm. Acesso em: 8 de Outubro de 2006.

 

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Publicada em 21.12.06 - Última atualização: 20 dezembro, 2006.