Introdução
“(...)
foi esquartejado e seu corpo, queimado no local. Ao lado da cova havia
sinais de uma fogueira e uma pedra com marcas de machadadas. ‘O corpo
estava totalmente cortado. Os ossos estão muito fragmentados. Houve um
sacrifício brutal’(...) (MORAIS, 2005)”
A
descrição acima poderia facilmente ser relacionada a uma cena do século
XVII. Em Vigiar e Punir, de Michel Foucault, por exemplo, podem ser
encontrados inúmeros suplícios do mesmo tipo. O que a torna um tanto
surpreendente, porém, é sua atualidade: trata-se de uma ‘punição’
sofrida pelo jornalista Tim Lopes após ter sido descoberto pelo
traficante Elias Maluco enquanto realizava uma investigação na favela
Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Práticas
como essas vêm se mostrando comuns em favelas cariocas. Na região da
Grota, por exemplo, onde foi encontrada a ossada do jornalista, funcionava
uma espécie de cemitério, onde inimigos do Tráfico eram torturados até
a morte. Uma característica importante desse tipo de prática merece atenção:
ela é conhecida pela comunidade. E ainda, pode ser utilizada também
contra membros comunitários quando considerado necessário por algum
traficante de influência.
As
implicações deste fato, no entanto, podem não ser tão claras quanto
parecem a princípio. Qual é o objetivo, por exemplo, de um traficante
quando suplicia o corpo de um inimigo de forma declarada para determinada
comunidade? Seria uma simples demonstração de força? Um ato que
comprove sua indiferença com relação às autoridades do asfalto? Ou,
ainda, uma distração despretensiosa proporcionada pelo Poder
incondicional?
Este
trabalho tem por objetivo, partindo do levantamento dos suplícios e suas
implicações sociológicas realizado por Foucault na primeira parte de Vigiar
e Punir, buscar relações entre os suplícios cometidos nas favelas
do Rio de Janeiro e os praticados nos séculos XVII e XVIII na Europa.
Para
isso, será tomado como paradigma o recente caso do ônibus 350,
incendiado no dia 29 de Novembro de 2005, no qual parte do grupo que
cometeu o crime foi assassinada, por traficantes do Comando Vermelho, em
represália ao que foi definido por alguns veículos de comunicação como
Terrorismo.
A
primeira parte deste artigo busca definir o suplício, passando, em
seguida, para as relações estabelecidas entre o povo, que exercia com
fervor o seu direito de participação nas cerimônias do gênero no
passado, o governante absoluto e o ato violento propriamente dito.
Segue-se, então, para o caso do ônibus 350, buscando explicações para
o ato dos traficantes quando assassinam os responsáveis pelo incêndio e
sua implicação social, principalmente no que diz respeito às
comunidades dominadas pelas facções. Por último, procura-se estabelecer
relações entre os suplícios cometidos nos séculos XVII e XVIII e o
atual.
I
O
Dicionário Barsa da Língua Portuguesa define suplício como: “1. Grave
punição corporal imposta por sentença judicial. 2. Sofrimento físico
ou psicológico imposto a alguém como forma de punição, intimidação,
coerção ou ainda para extrair confissões ou obter informações;
tortura. 3. Pena de morte. 4. Execução dessa pena.”(2004, p. 993).
Pode-se associar, mesmo partindo de um conhecimento enciclopédico e
superficial, esse tipo de imposição física a inúmeros momentos da história
humana: desde a punição de escravos em regimes escravocratas, existente
já na Antiguidade Egípcia; passando por processos de mutilação ou
crucificação praticados tanto na época Romana quanto na Idade Média;
chegando, finalmente, a Idade Moderna, que se em fase inicial fazia uso de
castigos corporais severos, mesmo após ter passado por uma moralização
que pedia o abandono dessas práticas, sofre ainda com esse tipo de
castigo, vide as ainda recentes ditaduras militares latino-americanas que
fizeram da tortura prática de controle social.
Foucault,
em Vigiar e Punir, vai além, chegando a um refinamento que permite
uma reflexão mais profunda com relação aos suplícios; para ele:
O
suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma
raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios
principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento
que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e
hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é
simplesmente privação do direito de viver, mas ocasião e o termo final
de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação – que
reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero
do suplício – até o esquartejamento que os leva quase ao infinito,
através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito
tempo; a morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento,
subdividindo-a em ‘mil mortes’(...). O suplício repousa na arte
quantitativa do sofrimento (FOUCAULT, 1977, p.34).
O
autor ressalta, ainda, que se trata de uma prática não só
regulamentada, como também baseada em uma série de formalidades, tanto
na legislação quanto na severidade da pena aplicada; ou seja,
O
suplício faz correlacionar o tipo de sofrimento físico, a quantidade, a
intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do
criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da
dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso
ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: números de
golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo da agonia na
fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o
paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto
tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão
decepada, lábios ou línguas furados) (Op. Cit., p.34).
Trata-se
de um ritual; feito para ter continuidade tanto na cicatriz do mutilado,
quanto na memória dos que assistem às cerimônias. Seu objetivo é o de
punir, não o de conciliar o problema possibilitando um confortável
esquecimento. É importante, também, que o suplício possa ser
acompanhado por todos, que seja um acontecimento com pompa, “por isso
sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres
queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos
à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer
sofrimento possível” (Op. Cit., p.35).
Outro
ponto importante do suplício é a questão da confissão: primeiro, pela
possibilidade de ser o fator definitivo de condenação; e em segundo, por
ser feita pelo condenado logo antes do cumprimento da pena. É o momento
em que a justiça se afirma; o ato ilegal admitido pelo próprio
supliciado faz com que todo o processo de julgamento, e conseqüente pena,
se legitime. Existem, também, registros de confissões, não se sabe ao
certo se manipuladas ou não, que serviam explicitamente de exemplo para
que os mesmos erros não fossem cometidos. Bom exemplo é o caso de Marion
Le Goff, que logo antes de sua execução disse:
Pai
e mãe que me ouvem, guardai e ensinai bem vossos filhos; fui em minha infância
mentirosa e preguiçosa; comecei roubando uma faquinha de seis réis...
depois assaltei mascates, mercadores de gado; enfim comandei uma quadrilha
de ladrões e por isso estou aqui. Dizei isso a vossos filhos e que ao
menos lhes sirva de exemplo (apud FOUCAULT, 1977, p. 59).
Com
a confissão, então, é iniciado o processo; o supliciado é
“encarregado, de algum modo de proclamá-la e dessa maneira de atestar a
verdade do que lhe foi reprovado: passeio pelas ruas, cartaz que lhe é
pendurado nas costas, no peito ou na cabeça para lembrar a sentença;
paradas em vários cruzamentos, leitura do documento de condenação,
confissão pública à porta das igrejas, durante a qual o condenado
reconhece solenemente seu crime” (FOUCAULT, 1977, p.42).
Em
seguida, com o início da execução propriamente dita, é pronunciada a
confissão pública que faz do suplício “o momento da verdade” (Op.
Cit., p.42); onde não estavam excluídas novas revelações de última
hora. “Um suplício bem sucedido justifica a justiça, na medida em que
publica a verdade do crime no próprio corpo do condenado. (...) A cerimônia
penal, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, tem a eficácia de
uma longa confissão pública” (Op. Cit., p. 42-3).
Ao
mesmo tempo, está previsto no suplício uma ligação íntima com o crime
cometido. Pode-se, por exemplo, executar o condenado (ou expor o cadáver)
no próprio local onde o crime foi cometido; há, também, casos em que a
execução ganha ares ainda mais eloqüentes de ritual: ocorrendo “às
vezes a reprodução quase teatral do crime na execução do culpado:
mesmos instrumentos, mesmos gestos. Aos olhos de todos, a justiça faz os
suplícios repetirem o crime, publicando-o em sua verdade e anulando-o ao
mesmo tempo na morte do culpado” (Op. Cit., p. 43)..
Por
fim, todo o ritual do suplício representa a prova derradeira; “o ponto
de junção do julgamento dos homens com o de Deus” (Op. Cit., p. 43-4).
Afinal, caso a condenação não fosse da vontade de Deus, Ele poderia
intervir a favor do supliciado. Não foram raros os caso, por exemplo, em
que, após um sinal supostamente divino, a execução foi suspensa e o
condenado absolvido.
II
O
papel do povo nas cerimônias de suplício é crucial: para ter
credibilidade, um suplício deveria ter o maior número possível de
espectadores. Execuções às escondidas eram postas sob suspeita; afinal,
nem sempre havia garantias de que o executado teria sido efetivamente o
condenado.
Os
suplícios eram oportunidades de demonstração de Poder por parte do
governo absoluto. Mostrava-se que o menor desrespeito a lei, e conseqüentemente
a honra do Rei ou Príncipe, poderia ser exemplarmente punido. Essas
cenas, por toda a crueldade envolvida, serviam para aterrorizar os súditos
e, dessa forma, mantê-los controlados diante da imensidão da força
real.
Ao
mesmo tempo, o povo é convocado como testemunha dos suplícios. Eles são
a garantia de que a lei está sendo respeitada e cumprida; eles devem, de
alguma maneira, tomar parte nas cerimônias ao passo que eles são parte
do Rei, e uma ofensa a ele, deve ser entendida, até certo ponto, como
ofensa ao próprio povo. O Rei é escolhido por Deus para representar o
povo, e como tal, deve ser honrado e respeitado.
Na
vingança do soberano, a do povo era chamado a se insinuar. Não que este
seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira traduzir a
vindita do povo; é antes o povo que deve trazer sua participação ao Rei
quando este vai se ‘vingar de seus inimigos’, até e principalmente
quando esses inimigos estão no meio do povo. Há um tal qual ‘serviço
de cadafalso’ que o povo deve à vingança do rei (Op. Cit., p. 53-4).
Assim,
não foram raras as vezes em que o povo participou ativamente dos suplícios,
gritando e atirando pedras aos condenados. Tratava-se de uma concessão do
soberano: manifestações concedidas momentaneamente e, logo em seguida,
reprimidas. “Ora é nesse ponto que o povo, atraído pelo espetáculo
feito para aterrorizá-lo, pode precipitar sua recusa do poder punitivo, e
às vezes sua revolta” (Op. Cit., p. 54).
Cada
vez mais, portanto, começaram a acontecer revoltas bem sucedidas, nas
quais o povo conseguia impedir acusações que considerassem injustas. A
participação mais ativa da população, acabou por gerar insegurança
com relação ao uso de suplícios. Para além de manifestações a favor
dos direitos humanos, “houve de todo modo, de parte do poder, um medo
político diante do efeito desses rituais ambíguos” (Op. Cit., p.58).
A
partir desse momento, começou a haver uma identificação com a vítima;
o que acabou por fazer com que a função de controle do suplício
deixasse de ser completamente efetiva. Assim, com o objetivo de se
manterem no poder, os soberanos começaram a investir em formas de punição
mais “econômicas” politicamente e que, conseqüentemente,
proporcionavam menos desgaste da autoridade. Com isso, foram surgindo os códigos
nacionais e ocorreu a substituição da pena supliciante pela pena da prisão.
Trata-se,
portanto, de um momento específico da história européia de passagem de
regime de penas para outro; comprovando que as penalidades são também
históricas e variam de acordo com o entendimento que as sociedades têm
da norma e sua manutenção.
III
Na
noite de 29 de novembro de 2005, um ônibus que fazia a linha 350 (Passeio-Irajá)
foi parado, no bairro de Brás de Pina, por três jovens que,
supostamente, seriam passageiros comuns. Quando estacionou, um grupo de
homens tirou o motorista do veículo, e um deles, após pular a catraca,
começou a jogar gasolina no chão e nos passageiros, e, em seguida, ateou
fogo sem que a porta de trás fosse aberta, fazendo, então, com que não
houvesse possibilidade de que as pessoas se livrassem das chamas: 14
pessoas ficaram feridas e 5 morreram no incidente.
Apesar
de não se poder considerar as investigações definitivas, tudo indica
que o crime foi cometido por um grupo de traficantes, a mando de
“Lorde”, em represália ao assassinato de um membro do grupo, Eduardo
Braga, de 22 anos, por policias militares. A motivação para o
assassinato teria sido o pagamento de um valor inferior de uma propina
previamente combinada com os PM’s.
Dois
dias após o ataque ao ônibus, a DRE (Delegacia
de Repressão a Entorpecentes) recebeu um telefone de um traficante
avisando que quatro participantes do crime teriam sido assassinados e
indicando a localização dos corpos:
Com
base nas informações passadas pelo bandido na ligação anônima, PMs
encontraram os quatro corpos, por volta de 1h, dentro do Meriva prata
LTN-0402, na Rua Bento Cardoso, em frente ao número 110. Um dos corpos
estava no banco de trás e os outros três no porta-malas do carro, que
foi roubado de um médico no dia 9 de novembro na área da 27ª DP
(Vicente de Carvalho).
Os
quatro tinham marcas de tortura. No banco da frente foi deixado um cartaz
com a seguinte frase: “Taí os quatro que queimaram o ônibus. Nós do
CVRL [Comando Vermelho Rogério Lemgruber] não aceitamos atos de
terrorismo. CVRL lado certo da vida errada... Fé em Deus... só falta o
safado do pela-saco do Lorde” (O Globo, 02/12/2005a).
Tanto
o incêndio do ônibus como a suposta justiça feita pelos traficantes
geraram grande repercussão. Chama atenção a frieza com que o primeiro
crime foi cometido; e ao mesmo tempo, a certeza de impunidade dos bandidos
que se atribuem poder de polícia, e decidem fazer “justiça”.
Esse
crime, portanto, mostra uma prática comum nas favelas cariocas:
traficantes que se tornam mensageiros e executores de uma espécie de lei
compartilhada entre eles, fato ressaltado por Angelina Peralva quando
afirma que a favela é “um espaço físico que obedece a regras próprias,
distintas das que têm curso fora de suas fronteiras. A presença de
estranhos só é admitida à medida que conheçam essas regras e obedeçam
a certos imperativos” (PERALVA, 2000, p. 131). O que este caso traz de
novo, no entanto, é que essa justiça acabou por transbordar as
fronteiras dos morros e chegou a uma realidade bem maior.
Foram
inúmeras as explicações para o ato de justiça dos bandidos: desde
pensamentos que procuram identificar organização ou vontade política no
fato, como a pesquisadora da Universidade Cândido Mendes, Leonarda
Musumeci:
Primeiro
eles disseram que podem aterrorizar e impor o caos. E, depois, que eles
tomam conta da segurança da área e que são mais eficazes do que a polícia.
Os recados mostram a impotência do estado. É assustador (O Globo,
02/12/2005b).
até
explicações que vêem no ato uma espécie de isenção de
responsabilidade de traficantes não estavam envolvidos com o ataque ao ônibus
350. É o que pensa o sociólogo do IUPERJ, Gláucio Soares:
O
ataque é profundamente burro. O que os bandidos fizeram depois foi
corrigir a burrice à maneira deles. Dizendo: “Não venham para cima,
porque eu não faço parte disso” (O Globo, 02/12/2005b).
Ao
mesmo tempo, é preciso entender que esse tipo de justiça é a comum nas
favelas cariocas. Trata-se de um espaço sitiado, onde a polícia militar,
quando chega, é personagem de conflitos que muitas vezes acabam por fazer
vítimas civis das comunidades. Assim, “uma violência policial cega,
dirigida contra o conjunto dos favelados, contribui para que se atenue as
fronteiras simbólicas dos traficantes daqueles que não o são” (PERALVA,
2000, p. 130 ).
Na
medida em que o poder público se afasta das favelas, esse tipo ação dos
traficantes acaba, portanto, por ser legitimado pelos próprios habitantes
das comunidades: sem ter a quem recorrer, o traficante muitas vezes se
torna o amparo que a comunidade carente não encontra nas autoridades
oficiais.
Essa
ajuda, porém, tem como preço uma fidelidade que, se quase nunca se
expressa numa participação efetiva no crime – a pesquisadora Alba
Zaluar chama a atenção para “o percentual baixo de pobres entre os
pobres que optam pela carreira criminosa, calculados em menos de 1% em
relação ao total da população de um bairro pobre pesquisado” (ZALUAR,
1996, p. 107) –, gera um acobertamento das atitudes ilícitas do tráfico
que é essencial para a manutenção de sua lógica de funcionamento.
O
caso do assassinato dos incendiários do ônibus 350, portanto, serve de
confirmação dessa lógica; e mais, dá provas de seu funcionamento: a
relação de dominação estabelecida nas comunidades é tão eficiente,
que criou uma espécie de segurança do próprio poder por parte dos
traficantes, que agora aplicam esta lógica até mesmo fora dos morros.
Considerações
finais
O
ato praticado pelos traficantes do CVRL pode, definitivamente, ser
classificado como um suplício. Primeiro, pela violência com que os
assassinatos foram cometidos: uma das vítimas, além de sinais de
tortura, foi morta com mais de 20 tiros. Segundo, porque se trata de uma
aplicação de uma pena após um julgamento, por mais unilateral e fora
das tradições penais que seja.
Partindo
da definição de Foucault, essa possibilidade fica ainda mais clara: é
utilizada uma espécie de técnica que determina a violência da execução
de acordo com a atrocidade do crime. Esse julgamento do tráfico, que pode
até ser ilegítimo, é baseado numa espécie de ética (que tem valor de
lei), ficando determinado, assim, crimes toleráveis ou não na esfera
comunitária.
Como
nos suplícios dos séculos XVII e XVIII, o papel do povo é importante:
ele é chamado a participar, testemunhar o poder do tráfico em oposição
à ineficiência da polícia oficial do Estado. Essa característica se
confirma no telefonema dos bandidos para a DRE comunicando a execução:
fica clara a intenção de que essa informação chegue a mídia e, ao
mesmo tempo, a rapidez da investigação do tráfico quando comparada a da
polícia propriamente dita.
A
placa exposta no lugar onde os corpos foram encontrados, além da semelhança
clara com as que eram penduradas nos supliciados denunciando os crimes
cometidos, serve para determinar/identificar os culpados, selando um
julgamento bem feito.
O
crime cometido contra os incendiários do ônibus 350 pode, portanto, ser
classificado como suplício. Trata-se da afirmação de um poder absoluto,
o do tráfico. O que esse caso tem de novo, porém, são os subordinados.
Até hoje, atos como esse que ganhavam projeção fora das comunidades
eram bem poucos e isolados. Esse suplício, no entanto, entrega os
condenados, como numa prestação de contas da justiça bem aplicada, a
toda a população carioca. Resta saber, entretanto, quais serão os preços
cobrados por essa espécie de favor prestado às avessas.
É
importante, ao mesmo tempo, levar em conta que casos como esse precisam
ser entendidos como reflexão de um arranjo social mais amplo. Portanto,
Deve-se
também buscar o reconhecimento de uma clara articulação entre violência
e cultura. Ou seja, revela-se como de vital importância uma compreensão
do papel e do sentido que tem a violência, ou suas formas de manifestação,
do ponto de vista do conjunto da dinâmica cultural de uma dada sociedade,
especialmente quando se trata da análise de sociedades contemporâneas
(PEREIRA, 2000, p.13).
No
mesmo sentido, é preciso ter consciência de fatos que acontecem em
esferas comunitárias acabam por se refletir de alguma maneira em um
contexto global. É o ressalta Giddens ao tratar da formação da
identidade: “ao forjar suas auto-identidades, independente de quão
locais sejam os contextos específicos da ação, os indivíduos
contribuem para (e promovem diretamente) as influências sociais que são
globais em suas conseqüências e implicações” (GIDDENS, 2002, p. 9).
Longe
de um fim, portanto, os suplícios ainda estão presentes na sociedade
atual, com uma aceitação diferente, de fato, mas ainda com muitas
características que chegam a possibilitar, mais do que comparações,
lapsos temporais. Tamanha é a semelhança.
__________
Referências
Obras
de Referência
Morais,
Rodrigo. Polícia anuncia
ter achado corpo de Tim Lopes in O
Estado de S. Paulo, 12/06/02. Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp190620025.htm.
Acesso em: 8 de Outubro de 2006.