por JANE MEYRE SILVA COSTA

Bacharela em Serviço Social e mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará.

 

 

 

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A Cultura em Simmel:

um estudo sobre o Movimento Cabaçal

Jane Meyre Silva Costa

 

Resumo: Este presente artigo tem o objetivo de discutir a relação entre um movimento artístico cultural no campo da música na Modernidade, denominado Movimento Cabaçal, que teve sua origem no estado do Ceará, com as teorias simmelianas sobre cultura.

Palavras-chave: Cultura, música e identidade nordestina

Abstract: This present article has the objective to argue the relation enters cultural an artistic movement in the field of music in the Modernity, called Cabaçal Movement, that had its origin in the state of the Ceará, with the simmelianas theories on culture.

Word-key: culture, music and identity northeastern

 

Movimento CabaçalIntrodução

Neste presente artigo, pretendo realizar uma discussão sobre a teoria sobre cultura em Simmel, relacionando-o ao meu objeto de estudo, os Jovens envolvidos no Movimento Cabaçal.

Inicialmente procurei realizar uma exposição das idéias estudadas relacionadas à Simmel, através de suas influências e objeto de estudo, posteriormente faço uma breve discussão sobre as temáticas fundamentais abordadas no decorrer das aulas que se referem ao conflito como força integradora nas idéias do autor, sociação, além de temáticas como o dinheiro e divisão do trabalho, essenciais para o entendimento da transformação da sociedade e formação da cultura atual.

A “identidade” será outro ponto abordado, onde na ótica de alguns autores deve ser substituída pelo termo identificação, com isso pretendo facilitar o entendimento da teoria simmeliana sobre cultura.

Por fim, realizo um paralelo da compreensão do termo cultura para SIMMEL e para os jovens envolvidos no Movimento Cabaçal.

  1. Teoria simmeliana

Georg SIMMEL desenvolve na Alemanha seu pensamento baseado numa racionalidade científica, concentrou-se em três abordagens principais para seu estudo: a filosófica, a pesquisa sociológica e a estética.

Tinha como objeto de estudo a relação entre indivíduo e sociedade, e sua inter-relação, acreditava que tanto o indivíduo como a sociedade seriam importantes, e não um sobreposto ao outro, apesar de sua influência junto ao Positivismo e DURKHEIM, superando-o neste sentido.

Realizou um estudo sobre a teoria do conflito, onde afirmava que o mesmo designava–se como elemento estruturador da vida social, e transformador. Segundo SIMMEL, todos os grupos carregam para si, a síntese de vários elementos conflitivos, através do mesmo, o autor irá afirmar, que a luta será uma forma de socialização e que terá uma importância sociológica para modificar as organizações, segundo ele, a sociedade necessita de antagonismos para chegar a uma unidade (1986,56), o antagonismo irá incitar a consciência.

Dentro deste contexto, SIMMEL irá utilizar o termo sociação para referir-se as formas que originarão os grupos de homens, unidos para viver uns ao lado de outros, ou uns para os outros, ou então uns contra os outros. Daí SIMMEL irá retirar seu conceito de sociedade,

Por sociedade não entendo apenas o conjunto complexo de indivíduos e dos grupos unidos numa mesma unidade política. Vejo uma sociedade em toda parte onde os homens se encontram em reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou passageira. (SIMMEL, 1983, p. 48)

Percebendo sociedade como relação de indivíduos, SIMMEL irá preferir então o conceito de sociação para designar a constante interação entre os sujeitos, do que o termo sociedade, pos conseguir expor de uma melhor forma sua concepção indivíduo/sociedade.

Como se pode perceber, SIMMEL irá descrever a importância na estruturação da sociedade da interação entre os indivíduos, e esta irá surgir através de relações mútuas produzidas por certos motivos e interesses, e será por meio destes interesses que se constituirão as unidades. Para o autor, (...) a unidade de um todo complexo não significa outra coisa senão a coesão dos elementos , e essa coesão só pode ser obtida através do concurso mútuo de forças presentes. (SIMMEL, 1983, p. 50)

Com isso, SIMMEL estruturará toda sua teoria através do estudo do conflito como meio de transformação da sociedade, segundo ele não irá existir relação se não houver conflito, pois a hostilidade é algo do instinto natural do ser humano. Para SIMMEL, caso não haja integração não será conflito apenas violência.

O conflito então será a base para formação da sociedade, pois será a partir dele que os sujeitos entrarão em sociação, e posteriormente formarão uma unidade e integração da sociedade. O conflito torna-se algo necessário para a dinâmica de sociedade, para ele, (...) as sociedades têm interesse em que a paz e a guerra se alternem conforme uma espécie de ritmo. (1983, p. 55).

Para nosso estudo será interessante compreendermos alguns conceitos principais de SIMMEL relacionados à cultura para relacionarmos ao movimento em estudo.

O surgimento da cultura

SIMMEL irá trabalhar inicialmente com elementos de criação que se constituirão em três, os quais: alma, espírito e cultura. A conceitualização de cultura para SIMMEL será entendida como um processo dual entre sujeito e objeto, a cultura será um processo de produção da vida, isto é, todas as formas de perceber e produzir o mundo.

Poderemos entender com maior precisão este conceito através da análise inicial de SIMMEL sobre o dinheiro e conseqüentemente a divisão do trabalho, pois ele irá utilizar a economia monetária para analisar a cultura da sociedade moderna.

Inicialmente, o autor irá referir-se sobre as implicações que o dinheiro trouxe para a modernidade, onde o mesmo levou o indivíduo a uma maior “libertação”. No passado a relação era do indivíduo com o senhor feudal, essa unidade segundo SIMMEL, foi destruída pela modernidade, gerando ao indivíduo autonomia e personalidade ás relações, mas por outro lado confere um caráter impessoal nas mesmas, isto é, divide e une ao mesmo tempo. O dinheiro traz um sentido abstrato ás relações, pois agora é posto um valor (abstrato) por aquela atividade.

No mesmo sentido na origem do dinheiro, nasce conseqüentemente à divisão do trabalho, a especialização deste trará conseqüências essenciais para entendermos o que irá representar o termo cultura para SIMMEL.

O que se pode perceber, é que através desta individualização que o dinheiro irá causar, e conseqüentemente a divisão do trabalho, irá originar um caráter objetivo às relações, pois a partir desta especialização o homem, cada vez mais se distancia de seu objeto, segundo ele,

Na medida em que o próprio trabalho seu objeto imediato pertencem a pessoas distintas, o caráter objetivo destes objetos é extraordinária e agudamente acentuado na consciência do trabalhador.(1998, p. 42)

Neste momento irá ocasionar na conceitualização de cultura, tanto um caráter objetivo (divisão do trabalho) como subjetivo (dinheiro) para SIMMEL. A cultura aparece para o autor como algo que será cultivado, se origina para além da vida natural, SIMMEL chamará cultura como natureza cultivada, segundo ele:

Os bens materiais de cultura - móveis e plantas de cultura, obra de arte e máquinas, aparelhos e livros, em cujas formas as matérias naturais podem, de fato, se desenvolver, mas nunca pelas suas próprias forças - são a nossa própria vontade e sentimento desdobrado por idéias. (1998, p. 42)

SIMMEL irá no decorrer de seu pensamento demonstrar que o conceito de cultura será a junção da cultura subjetiva e objetiva. Por cultura objetiva o autor irá descrever,

Assim como nossa vida exterior é envolta por um número crescente de objetos, cujo espírito objetivo empregado em seus processos de produção não examinamos a fundo, de uma maneira distanciada, também a nossa vida íntima e social é preenchida por construções tornadas simbólicas , nas quais uma espiritualidade abrangente é armazenada – o espírito individual, no entanto aproveita-se minimamente delas. Esta discrepância entre a cultura tornada objetiva e a subjetiva parece expandir-se permanentemente. (1998, p. 45)

Nesta citação, pode-se observar o que o autor compreende por cultura objetiva, que seria o conhecimento adquirido pelo indivíduo no decorrer dos anos, sendo que este acervo aumenta diariamente, já a cultura subjetiva é algo que está em uma aceleração contida, pois, ela representa algo que existe independente do homem.

Através dessa análise observa-se que a formação da cultura representa uma construção onde, existe uma cultura subjetiva anterior ao homem e esta se junta, com todo o conhecimento carregado pelo indivíduo no decorrer das gerações, originando finalmente, o espírito tornado objetivo. Essas especificidades culturais referentes a cada homem, que conferirá ao indivíduo o que SIMMEL irá chamar de “seu mundo”.

Neste contexto, SIMMEL irá se referir aos dois outros elementos de criação que já havia me referido inicialmente, a alma e o espírito. O espírito para SIMMEL irá representar o conteúdo lógico-objetivo do pensamento, a alma irá apresentar-se como o espírito vive para nós. Segundo o autor, na divisão do trabalho, estes dois elementos aumentam a distância entre eles na medida em que o objeto é produzido por uma ação conjunta, influenciando assim, na formação cultural de cada indivíduo.

A idéia de cultura então irá originar-se para SIMMEL através dessa concepção entre alma subjetiva e espírito objetivo, da interação destes elementos, sendo a alma a primeira determinação da cultura. O autor denomina alma como,

Não é simplesmente um laço formal que abrange o desenvolvimento de suas forças específicas de um modo sempre igual. Antes, por meio destas forças específicas, num desenvolvimento desta unidade da alma como totalidade é sustentado.E o objetivo de um refinamento – para o qual todo aquele potencial e aquelas perfeições constituem um meio – precede anteriormente o desenvolvimento da totalidade. (1998, pp. 80-81)

O que realmente resume o pensamento de SIMMEL na sua concepção em torno de cultura é sua afirmação Cultura é o caminho que sai de uma unidade fechada, passando pela pluralidade desenvolvida, chegando á unidade desenvolvida.(1998, p. 81) Através dessa afirmação pode-se perceber a importância que SIMMEL oferece tanto ao espírito (objetivado) quanto à alma (natureza) dando origem enfim ao espírito objetivado que, segundo o autor, este deve abandonar sua subjetividade, mas não sua espiritualidade. Caso haja o abandono dessa essência se originará o que SIMMEL irá denominar a Tragédia da Cultura.

  1. Discutindo “identidade” para compreender cultura

Através da conceitualização de cultura objetiva podemos, relacioná-la ao termo identidade. O conceito de identidade propagado para exprimir uma junção de características para identificar um determinado povo, uma região ou uma nação, vem sendo bastante discutido por alguns autores por compreender que este termo representa algo estático. Para eles, este designação não consegue dar conta da real definição que se propõe, pois não representa algo linear ou cartesiano e sim um processo histórico.

Segundo BEZERRA DE MENEZES (2004), a identidade é um termo que merece relevância apenas no pensamento da lógica e das matemáticas (p. 04). O autor irá abordar que o termo identificação, conseguirá dar conta da definição, por significar algo que está num constante processo histórico, segundo ele, este termo se reconstrói de modo infindo (p. 04).

Essa discussão representa uma das bases para entendermos a formação da cultura, para o autor a construção deste termo representa uma invenção e está em constante construção, não existe uma identidade fixa, determinada e sim um constante processo de modificação, de acordo com o espaço, tempo e povos analisados.

A identidade não ultrapassa a tautologia e os limites de validade dos sistemas em apreço. Quando passamos ao domínio do comportamento humano, sobretudo o coletivo, deparamo-nos com um universo axiológico e semiótico que se elabora historicamente em incessante construção e cuja interpretação exige outros instrumentos hermenêuticos variados e até contraditórios ou ambíguos, porque são assim caminhos da existência social. (BEZERRA DE MENEZES, 2004, p. 04)

Segundo o autor, estamos envolvidos num intenso processo histórico onde ocorre uma constante transformação, temos assim a necessidade de apreender a realidade que está em permanente mutação. Para ele:

Além disso, já que a lógica formal é excludente e só opera no espaço da racionalidade analítica, em sua abstrata universalidade, penso que a lógica do real, vivido e sofrido existencial e histórico, é aquela implícita á modalidade de consciência capaz de apreender a realidade mutante, não propriamente por meio de categorias conceptuais, mas pela incorporação do jogo sutil e sinuoso de conflitos, dos contrários, das contradições, como dimensão intrínseca e fundante da contextura ôntica do mundo dos homens. (BEZERRA DE MENEZES, 2004, p. 03)

Stuart HALL (2005) abordará também esta discussão, para ele, a identidade é algo construída com o tempo através de um processo, e não algo inato ao indivíduo. Para ele a melhor definição deste termo será identificação,

Assim, em vez de falar identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto como um processo em plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2005, p. 39)

O autor irá discutir sobre a modificação da “identidade” na pós-modernidade, que a mesma, estará sendo fragmentada, ou seja, haverá uma “crise de identidade” do indivíduo onde haverá uma descentração do sujeito. Com a “globalização”, haverá um processo de mudança na “identidade” cultural, como a sociedade participa de uma mudança constante a “identidade” também estará neste processo de mutação.

A época moderna traz consigo uma nova forma de individualismo, uma nova forma de ver o sujeito individual e sua “identidade”, pois com a modernidade haverá uma maior socialização entre os sujeitos, não será mais o sujeito e sim indivíduo e a sociedade O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós. (HALL, p. 41)

Para HALL (2005), a “identidade” é na realidade, representação cultural compostas por símbolos instituídos culturalmente através de um discurso, sentidos com os quais podemos nos identificar, construindo assim, a chamada “identidade”. Irá descrever sobre a cultura nacional que permanecem numa tensão de retorno a um passado e tentando restaurar uma identidade passada.

Da mesma forma que BEZERRA DE MENEZES, HALL refere-se ao termo identidade como algo construído simbolicamente, uma invenção instituída.

A identidade está profundamente envolvida no processo de representação. Assim, a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma com as identidades são colocadas e representadas. (HALL, 2005, p. 71)

HALL (2005) irá descrever que, o objetivo principal deste termo “identidade” será unificar o povo não importando classe, gênero ou raça numa grande família nacional. Para o autor, as nações modernas são todas híbridas culturalmente.

As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferenças e não estão livres do jogo do poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. (...) devemos ter em mente a forma pela qual, as culturas nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única identidade. (HALL, 2005, p. 75)

Segundo o autor, na medida em que a cultura relaciona-se com as influências externas torna-se cada vez mais difícil, impedir que elas se tornem enfraquecidas pelo “bombardeamento e infiltração cultural”. Através deste conceito podemos relacioná-lo ao significado de cultura objetiva para SIMMEL.

A cultura objetiva citada por SIMMEL, da mesma forma que a identidade representa uma construção que, ao entrar em contato com o mundo externo absorve suas especificidades e se modifica.

Segundo HALL, nascemos com a “identidade”, porém, esta é transformada com o decorrer do tempo no interior da representação (p. 48) e está sendo modificada também pelo processo de globalização, Benedict ANDERSON (apud Hall, 2005, p. 57) resumirá esta afirmação “a identidade nacional é uma comunidade imaginada.”

Para o autor a globalização não representa um processo atual, segundo GIDDENS A modernidade é inerentemente globalizante (GIDDENS, 1990, p. 63 apud  HALL, 2005, p. 68), com isso, esta dita identidade vem transformando-se desde os tempos antigos, e continua em constante modificação.

Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas unificadas ou trans-históricas. (HALL, 2005, p. 87)

ALBUQUERQUE JÚNIOR (2001) também descreverá sobre a identidade, no caso a nordestina, e esta suposta invenção de uma “identidade” regional. Os estereótipos formados, as imagens expandidas, as principais temáticas abordadas para determinar esta região como saudade, o bucólico, o messianismo, a seca, o cangaço, todas estas construções são utilizadas para determinar esta dita “identidade” nordestina.

O autor passa pela música, pelos romances, e pela pintura para exemplificar que os próprios artistas da época, levavam esta imagem do Nordeste como algo peculiar e singular.

É importante, pois, acompanhar não apenas a institucionalização do Nordeste, feita pelo discurso de seus sociólogos e historiadores, ou pelo contraponto com o olhar dos intelectuais de outras áreas do país, mas também acompanhar o trabalho dos artistas e romancistas que produziram esta elaboração imagético-discursiva regional de real poder de impregnação e de reatualização. O Nordeste espaço de saudade, da tradição, foi também inventado pelo romance, pela música, pela pintura, pela poesia, pelo teatro etc. (ALBUQUERQUE JÚNIOR,2001, p. 106)

O retorno a um passado, acreditando ser uma construção histórica e não natural como muitos descrevem, segundo o autor, esta identidade nordestina surge como uma reação conservadora ao processo de globalização, a “identidade Nordestina” é criada por uma dominação da elite paulista.

O perigo do discurso identitário é, exatamente, o de rebaixar o histórico ao natural, reificando determinados elementos e aspectos da vida sócia, desconhecendo que cada gesto humano, cada forma de usar seus sentidos, cada fibra de sua musculatura, cada calo em suas mãos conta uma história, assim como cada sentimento, cada paixão, cada medo, cada sonho recolhe elementos desta historicidade. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 120)

Para ALBUQUERQUE JÚNIOR (2001) a imagem deste Nordeste apresentado deve ser desconstruída para que, sejam construídas novas idéias e formas de ver não o Nordeste, mas o ser humano que vive nesta região, que este, está em constante transformação que, essa identidade construída não representa algo estático, pois o “nordestino” também entrou em contato com o meio externo e modernidade, e se modificou com o tempo.

A criação desta identidade nordestina, deste retorno ao passado ás tradições, além de ALBUQUERQUE JÚNIOR (2001), Hobsbawm, citado por Hall (2005) também descreverá sobre este aspecto:

Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas... (...) Tradição inventada significa um conjunto de práticas...de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual automaticamente, implica continuidade, com um passado histórico adequado (Hobsbawm e Ranger, 1983, p. 1)

  1. Tragédia da cultura e o Movimento Cabaçal

Movimento CabaçalSIMMEL irá descrever também sobre a formação da tragédia da cultura, esta virá através da separação do sujeito/objeto, onde se realizará o distanciamento da real origem e da finalidade que a cultura havia sido concebida. Pode-se perceber então, que a tragédia vem com a autonomia que o sujeito adquire do objeto o qual fora originado.

Uma vez que certos motivos iniciais do direito da arte, e da moral são criados – talvez segundo a nossa espontaneidade mais peculiar e interior – já não controlamos mais para que tipo de formação específica eles se desenvolvem (..) (SIMMEL, 1998: 95)

Com isso podemos perceber, que a tragédia da cultura irá originar-se quando, existe uma espontaneidade do nosso espírito, não há controle ou limite para sua formação.

A cultura acaba se impondo por não conseguir assimilar a todos individualmente, pois no espírito objetivo há ausência de limites, adquirindo assim um rumo próprio e afastando-se da finalidade e a razão de ser, em que a cultura foi produzida. Esta será sua tragédia.

Através de toda a descrição sobre o pensamento de Simmel até chegar num dos objetos fundamentais de seu pensamento, a cultura, buscarei agora associar um pouco desta teoria ao que acho compreensível para o estudo do Movimento Cabaçal.

Inicialmente explicarei em que concerne este objeto de estudo, este se dá através do estudo de jovens residentes na zona urbana do Ceará participantes de um Movimento Cultural iniciado em 2001, com o nome de Movimento Cabaçal[1], por quatro bandas principais intituladas SoulZé, Jumentaparida, D.Zefinha e Dr.Raiz, originárias de Fortaleza, Itapipoca e Juazeiro do Norte. O repertório dessas bandas contempla, além dos ritmos, músicas e instrumentos típicos da cultura pop rock (guitarras, baixos e baterias) instrumentos, ritmos e músicas do universo das bandas cabaçais[2] (pífanos, zabumbas, alfaias, rabecas e triângulos), e de expressões artísticas típicas da chamada cultura popular nordestina. Realizando assim uma fusão de ritmos e estética musical.

Através das letras podemos perceber a busca destes jovens por um suposto retorno e valorização da cultura nordestina, presenciado também no ritmo de suas músicas e indumentárias, além de temáticas referentes ao sertão nordestino, sua história e religiosidade,

Lá se vais fiéis amigos, a santa procissão

Por entre olhares tristes da pobreza e aflição

Juazeiro terra santa, muita fé e oração

Sofrimento, muita reza e penitência

Pra encontrar a salvação

 

Penei, rezei até me afobar

Tanta reza nunca me ajudou

Subia e descia o horto todo dia

Mas minha paciência agora se esgota

Sofrimento, muita e penitência

Fanatismo, hipocrisia e miséria

É verdade ainda dizem que o paraíso

Se consegue sendo pobre sofredô

E desse jeito vivi a vida reprimido

Pensando estar certo meu sinhô.

 

(Borboletas Azuis, Dr. Raiz)

 

Quando pela porta da cozinha

Eu vi bela menina

E quis correr

Sopra um suspiro agoniado

Desce no peito calado

Um bem querer

 

Vem cá

Pra junto deu

Que o desejo despertou

Sei lá o que pode ser

O futuro desse amor

 

Romance (D.Zefinha) Orlângelo Leal

Sou do Nordeste

Da praia do Sertão, da capital

Cabra da peste

Riqueza cultural de Norte a Sul

De Lesta a Oeste

Eu tô aqui para dizer

 

Eu sou da terra da embolada

Da rabeca bem tocada

E do pandeiro

Que é mais veloz

                                                                              

Que o tiro do cangaceiro 

Valente e conhecido

Pelo mundo inteiro

Daqui pra frente

Misturo rock com a levada do repente

Mostrando que o nordeste é muito diferente

Da imagem pobre que é passada pra você

Na TV

 

(Sou do Nordeste, Jumenta Parida)

 

Cyber Cangaceiro

Ascende no meio dia

Na reta da calçada

Contencioso da situação

Cyber cangaceiro

Com seu alforge prata

Da palma sente falta

Por essa gente, indignação

 

Meu Pedro é pedreiro

Não se engana com a cilada

No seu discurso, a armada

Seu pensamento é munição

 

(Cyber Cangaceiro, Soulzé)

O interesse em pesquisar o envolvimento das juventudes em movimentos artísticos-culturais que se propõem a um diálogo com a cultura popular tradicional nordestina emergiu a partir da identificação de sua presença no cenário contemporâneo das cidades, sobretudo após a visibilidade adquirida pelo Manguebeat na década de 90. É a partir desta década que uma série de bandas identificadas com essa proposta começou a fazer sucesso entre o público jovem nas principais cidades do nordeste, e do Brasil. Percebeu-se, portanto, a emergência de um discurso e de iniciativas culturais e estéticas com uma sensibilidade voltada para um suposto resgate das “raízes nordestinas” em meio ao clima de globalização sócio-cultural, ao qual atribui-se a perspectiva de uma homogeneização cultural, na direção de uma massificação de valores, costumes e consumo em termos midiático e metropolitano.

O que é buscado por esses jovens? Nessa era moderna e global um suposto “retorno às origens” como muitos se referem, à valorização desta cultura nordestina tão comentada em suas músicas é colocada como objetivo principal e como proposta desse movimento. Sendo que ao mesmo tempo, misturam elementos da cultura nordestina que receberam em sua formação, aliando-a a elementos da cultura moderna, advindos de seu atual momento e influência, originando assim um novo modelo estético-musical.

O que pude perceber, tentando aliar o estudo de Simmel sobre cultura com o objeto ao qual descrevi acima, é sua referência à cultura objetiva e subjetiva e seu produto final, o espírito objetivado.

Inicialmente vejo a cultura nordestina como representante, segundo a teoria de Simmel da alma subjetiva, posto que se encontra num estágio anterior ao sujeito, mas a alma não percorre um caminho de si para si mesmo, ele necessita passar por estações, para que o sujeito alcance o valor próprio da cultura. Essas estações seriam as normas sociais, a arte em contato com o mundo moderno, em que estes jovens estão inseridos.

As transformações ocorridas durantes o decorrer das gerações, fizeram com que esta cultura nordestina se reconfigurasse através do contato com a realidade adquirida dos jovens da atualidade, da cultura urbana o qual estão inseridos.

O espírito que representa as heranças e impressões do indivíduo, representam a formação destes jovens, que em contato com o mundo urbano em que vivem, se junta à alma subjetiva (cultura nordestina) originando assim um novo produto que seria o espírito objetivado, isto, é uma nova configuração da cultura nordestina exposta no referido movimento.

Esta unidade fechada, que sai do sujeito, passando pela pluralidade desenvolvida e chegando a unidade desenvolvida revela muito bem a transformação ocorrida junto aos jovens envolvidos neste movimento, a cultura nordestina que apesar de não ser “morta” estava pré-estabelecida na concepção de muitos destes jovens através de suas origens familiares, junta-se com os valores adquiridos na modernidade e resulta em algo individual e modificado através do “mundo de cada um”, como diria Simmel.

As referências que estes jovens tinham através de gerações são ressignificadas e darão origem a um novo objeto, e assim a cultura na concepção de Simmel. O que acontece, é que esta cultura também poderá ter um fim trágico, pois a finalidade em que ela foi constituída pode ser eliminada através da forma que ela for expandida. Os jovens que compõem estas bandas e as instituições em que eles estarão vinculados poderá originar algo impositivo para aceitação e expansão desta cultura originada, isto é, uma opressão cultural, levando elementos gerais onde não atingirá aos anseios individuais de seu público, e com isso distanciando-se da sua essência, e do fim em que ela foi criada. Daí originando num fim trágico para essa cultura. 

Considerações finais

Através desta compreensão, podemos perceber como a teoria simmeliana está presente nos dias atuais. Através do estudo de um movimento composto na atualidade, podemos realizar um paralelo sobre o que representa cultura para o autor e para estes jovens.

SIMMEL irá constituir toda sua teoria a partir de uma cultura que se modifica com o decorrer do tempo, que está em constante mutação. Através dessa concepção, podemos observar o entendimento de alguns autores que também estudam este eixo temático, porém utilizando o termo identidade, sendo este um aspecto cultural.

A identidade como um aspecto estático, substiuindo-o por um termo mais dinâmico, a identificação. Com isso, observamos que esta característica condiz com toda essa movimentação dos jovens em busca de um movimento em que contemple em sua estrutura, algo modificado ou fundido, não apenas o “tradicional” é abordado em suas músicas, mas também o “moderno” é incluído em seu desempenho musical.

A cultura para SIMMEL representa bem essa constante mutação abordada, através dessa junção do objetivo e subjetivo, isto é, o conhecimento destes jovens adquiridos no decorrer de suas vidas, aliado a algo que existe independente dos mesmos. A observação da proposta desse movimento artístico-cultural demonstra como a cultura simmeliana se enquadra na estruturação e objetivo deste.

__________

[1] Este nome originou-se devido as bandas cabaçais, principalmente a mais característica do Ceará a dos Irmãos Aniceto. Originada do Crato, tem sua origem perdida no tempo, descendente direta dos índios Cariri, é tradição oral perpetuada pelas diferentes gerações da família dos Lourenço da Silva. Não se limitam a tocar os hinos aos santos da igreja, aos mirabolantes arranjos de pífaros e zabumbas de couro como é peculiar das bandas cabaçais, mas são atores que desempenham uma performance única, e que mescla o passo matreiro e intuitivo de cada um com modos ancestrais de dançar e imitar animais aprendidos com as gerações velhas da família. Disponível no site http://geocities.yahoo.com.br/well_ce/anicetos.htm

[2] Também chamada Banda de Couro, é o conjunto musical mais típico do interior cearense, especialmente na região do Cariri. Originou-se no meio dos escravos africanos, mas se desenvolveu e adquiriu peculiaridades próprias entre o povo do Cariri. Há também uma influência indígena, devido ao uso de instrumentos de características indígenas (pífanos e pífaros). A banda compõe-se de 4 elementos tocando zabumba, pífaros e uma caixa. A mais conhecida é a Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, localizada no Crato. Toca quase toda espécie de música popular: antiga, regional, religiosa e carnavalesca. O ritmo é o baião, característico dos pés-de-serra do Cariri. Apresenta-se, em geral, em festividades de cunho cultural, artístico e religioso. Disponível no site http://www.turismo.ce.gov.br/atrativos_folclore.htm 

Bibliografia

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2001.

BEZERRA DE MENEZES, Eduardo Diatahy. A cultura brasileira “descobre” o Brasil, ou “Que país é este?” - uma pergunta à cata de resposta. Fortaleza, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade / Stuart Hall; tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro - 10 edição- Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

SIMMEL, Georg. Simmel e a Modernidade / Georg Simmel, Jessé Souza e Berthold Oelze (org.); Jessé Souza ... (et. Al.) Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

_______. Georg Simmel: Sociologia / organizador Evaristo de Moraes Filho: tradução de Carlos Alberto Pavanelli...et. al.- São Paulo: Ática, 1983.

 

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Publicada em 21.12.06 - Última atualização: 19 dezembro, 2006.