por ANDRÉ CONSTANTINO YASBEK

Doutorando em Filosofia (PUC/SP)

 

 

 

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A “disputa do positivismo na sociologia alemã”: o confronto entre Karl Popper e Theodor Adorno no congresso da Sociedade de Sociologia Alemã de 1961

André Constantino Yazbek

 

Resumo: este artigo pretende apresentar os pontos capitais da discussão travada entre Karl Popper e Theodor Adorno por ocasião do congresso da Sociedade de Sociologia Alemã em 1961.

Palavra-chaves: racionalismo crítico, teoria crítica da sociedade, lógica formal e dialética.

Abstract: this paper intends to introduce the main aspects of the discussion between Karl Popper and Theodor Adorno held at the congress of the German Sociology Society in 1961.

Key-words: critical rationalism, critical theory of society, formal logic and dialectical reasoning.

 

1. – Introdução: o congresso de 1961 e a questão do positivismo.

Em 1961, em Tübinghen, o congresso da Sociedade de Sociologia Alemã promoveu um debate centrado na questão da “Lógica das Ciências Sociais”, que logo se desenvolveria sob a forma de uma querela acerca dos fundamentos epistemológicos do positivismo e da dialética. Sob a mediação de Ralf Dahrendorf, Karl Popper expôs suas teses sobre o tema do congresso[1]. Coube a Theodor Adorno, na condição de representante da Escola de Frankfurt, oferecer uma réplica às teses popperianas, tendo como ponto de partida a dialética. O resultado do confronto entre os dois grandes protagonistas deste congresso transbordou os usuais limites do interesse  acadêmico e trouxe à baila uma polêmica que, tendo como eixo fundamental o debate sobre a “lógica das ciências sociais”, envolveria alguns dos representantes mais expressivos tanto da “teoria crítica da sociedade” quanto do “racionalismo crítico” – dentre eles, dois dos mais destacados discípulos de Adorno e Popper: respectivamente, Jürgen Habermas e Hans Albert.

As singulares características de ambas as correntes mencionadas, bem como suas respectivas filiações históricas, explicam a extensão da polêmica inicial: para além dos interlocutores privilegiados do congresso, defrontavam-se naquela ocasião a chamada “filosofia analítica” – identificada por muitos, erroneamente, como aquilo que não foi senão uma de suas fases, a saber, o “positivismo” ou “neopositivismo” – e, de modo não menos equívoco, o “marxismo crítico ocidental” de raiz hegeliana, ou seja, um marxismo “crítico” que estivera desde sempre inserido na tradição metafísica das Geisteswissenschaften (Ciências do Espírito).

Note-se ainda que a controvérsia entre Adorno e Popper ficaria conhecida justamente como “o debate do positivismo” na Sociologia Alemã, o que já evidencia em grande medida que se trata do ponto de vista da “teoria crítica”, no qual o termo “positivismo” é aplicado de forma muito ampla, recobrindo tradições de pensamento que habitualmente não receberiam esta designação. Sob este perspectiva, Popper será enquadrado na moldura geral de defensor do positivismo – algo que está longe de ser evidente[2].

Na teoria crítica, o termo “positivismo” deve ser compreendido em contraposição às tentativas dos filósofos frankfurtianos de efetuar uma crítica da tendência de desenvolvimento da cultura ocidental desde o iluminismo. Neste sentido, o termo será empregado de modo difuso e com um significado mais amplo do que comumente se vê em outros autores. Sob a perspectiva frankfurtiana, ao pretenderem desencantar o mundo substituindo o mito pelo conhecimento de “bases sólidas” (que será aplicado de forma prática à tecnologia), os iluministas acabaram por preparar o caminho para o predomínio da racionalidade técnica na cultura moderna: trata-se do solapamento da Razão contra o qual Hegel lutou – criou-se assim uma forma de domínio que, a pretexto de instaurar a liberdade com relação aos mitos, acabará por engendrar a racionalidade instrumental[3]: “O que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao formalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado” (HORKHEIMER & ADORNO, 1985, p. 38). Desse modo, a postura “positivista” de Popper se manifestaria naquilo que Horkheimer chamará de a “estrutura lógica da teoria tradicional”, que faz da observância estrita aos princípios básicos da lógica formal cartesiana a condição para se assegurar a “cientificidade” e a “objetividade” do pensamento teórico.

Por outro lado, a teoria crítica é uma defesa de tradições filosóficas que, aos olhos dos positivistas lógicos, formavam em grande parte uma metafísica vazia. Não é de se surpreender, portanto, o fato de que as duas escolas se tenham mantido distantes, e sua influência mútua tenha se mantido em níveis significativamente reduzido: o positivismo lógico alimentou o sonho de afastar a filosofia das abordagens metafísicas para fundá-la em bases estritamente científicas – algo absolutamente estranho ao espírito frankfurtiano. Aliás, e por motivos diversos, trata-se de algo estranho também aos propósitos filosóficos de Karl Popper (1980c, p. 270), que fará não poucas críticas ao modo como os positivistas interpretam o chamado problema da demarcação, quer dizer, o problema de encontrar um critério que permita distinguir entre, de um lado, as ciências empíricas, e de outro a matemática, a lógica e os “sistemas metafísicos”.

Como não se dispõe neste artigo do fôlego necessário para esquadrinhar todas as posições relatadas no congresso, bem como as réplicas e tréplicas que se seguiram à discussão inicial, pretende-se tão somente apresentar o cerne das duas comunicações que iniciaram a polêmica entre Popper e Adorno, de modo a situar o leitor nas questões que movimentarão o debate entre escolas filosóficas distintas, cada qual representando um tipo diferente de razão: por um lado, a dita “razão dialética” (Adorno); por outro, a chamada “razão analítica” (Popper).  O que se pretende demonstrar é que não se pode reduzir os termos do embate ocorrido neste congresso ao plano estrito das disputas metodológicas, posto que o impulso inicial da querela entre Popper e Adorno – que de fato se apresentaria sob a forma de uma discussão meramente metodológica – colocaria em jogo e por fim cederia à confrontação global entre duas concepções bem distintas da sociologia, cujos pontos de apoio filosófico e epistemológico dificilmente seriam redutíveis a um denominador comum – prova disso, como veremos, são as diferenças de linguagem e mesmo de armação conceitual que se explicitam nas comunicações de Adorno e Popper.

2. – As 27 teses de Popper: uma defesa do racionalismo crítico.

Atendendo aos pedidos da organização do congresso, Popper elaborou um paper onde expôs e defendeu suas principais idéias relacionadas, sobretudo, à epistemologia das ciências sociais. Sua comunicação se fez sobre a forma de 27 teses enumeradas, visando facilitar a discussão. O tema escolhido para a sessão (a lógica das ciências sociais) obedecia ao explícito propósito de, na medida do possível, esclarecer o que parecia um cisma indecifrável – Dahrendorf, em suas Anotaciones a la discusión de las ponencias de Karl R. Popper y Theodor W. Adorno (1973a, p. 139), não faz segredo algum sobre o fato de existirem à época numerosas e significativas divergências entre os professores alemães universitários de sociologia, tanto na orientação das investigações quanto na posição teórica e no referencial básico de ordem moral e político.

Popper inicia a sua comunicação partindo da oposição entre conhecimento e ignorância (não-conhecimento) – estas serão as suas duas teses basilares: “conhecemos muito”, afirma Popper em sua tese primeira, “mas a nossa ignorância é ilimitada e decepcionante”, inclusive no campo da natureza, reza a tese segunda (1973b, p. 101). Ora, diz-nos o autor, basta meditar um pouco para perceber que a lógica do conhecimento deve cravar suas raízes na tensão entre o conhecimento e a ignorância, pois será justamente da tensão entre estas duas que o conhecimento será impulsionado e, conseqüentemente, virá à luz; o dito será objeto da quarta tese de Popper:

O conhecimento não começa com percepções ou observações ou com a recopilação de dados ou de fatos, senão com problemas. Não há conhecimento sem problemas – mas tampouco há problemas sem conhecimento. Quer dizer que o conhecimento começa com a tensão entre saber e não-saber (POPPER, 1973b, p. 102).

Com efeito, todo o problema surge da constatação de que algo não está em ordem em nosso presumido saber – logicamente falando: o descobrimento de uma “contradição interna” nos fatos e em nosso saber nos leva ao problema. De modo sumário, pode-se dizer que o ponto nevrálgico do surgimento do problema – condição de possibilidade para o conhecimento – se assenta no descobrimento de uma possível contradição entre o nosso saber presumível e os supostos fatos. Em seguida, o autor pontua as suas assertivas enunciando um método científico, com diversas etapas concatenadas em termos lógicos, e cuja pretensão inicial era a resolução de problemas (POPPER, 1973b, loc. cit.).

Advertindo-nos que a sua quarta tese tocou o centro do problema relativo à lógica das ciências sociais, Popper desenvolve a relação entre a importância do problema a ser investigado e a forma (ou seja, o método) através do qual deve-se conduzir a investigação. Assim sendo, segundo o autor, é o caráter e a qualidade do problema – além da audácia e originalidade da solução sugerida – que determinam o valor ou a ausência de valor de uma empresa científica:

Do mesmo modo que todas as outras ciências, também as ciências sociais se vêm acompanhadas pelo êxito e pelo fracasso, são interessantes ou triviais, frutíferas ou infrutíferas, e estão em idêntica relação com a importância ou o interesse dos problemas que entram em jogo; e, por suposto, também em idêntica relação com respeito à honestidade, a linearidade e simplicidade com que estes problemas são atacados (POPPER, 1973b, p. 103).

Eis a quinta tese, que vai a par com a consideração de que aquilo que se converte em ponto de partida do trabalho científico não é tanto o fruto da observação em si, mas sim da observação em seu significado peculiar – quer dizer, da observação geradora de problemas (POPPER, 1973b, loc. cit.).

Popper então nos anuncia aquela que será a sua tese principal, a sexta tese. O autor resume nesta sexta tese a lógica que defende não só para a investigação no campo das ciências sociais, mas igualmente para as ciências naturais. Trata-se de uma clara síntese do princípio de refutabilidade popperiano, bem como daquilo que o autor denominava de racionalismo crítico: no essencial, trata-se de colocar sucessivamente à prova, à guisa de refutação, tentativas de solução dos problemas – este colocar à prova será, grosso modo, uma crítica factual (Sachlich): o nosso saber não consiste em mais do que sugestões provisórias de solução, até que uma crítica factual refute o que até então era conhecimento; o dito implica que toda crítica se constituiria em tentativas de refutação (POPPER, 1973b, loc. cit.).

Sendo que a tensão entre conhecimento e a ignorância – entendida como o elemento que nos leva ao problema e, em conseqüência, à tentativa de solução – é algo que não pode ser superada, então se deve considerar que a única forma de justificação do nosso conhecimento não é senão algo igualmente provisório e que, portanto, deita suas raízes na crítica – não há justificativa positiva alguma para nossos conhecimentos.  A forma de justificação não é senão a resistência dos nossos ensaios de solução frente à crítica – uma crítica objetiva, posto que fundada em instrumentos lógicos. Como conseqüência, tudo o que não for acessível à crítica, tal e qual a entende o autor do paper, deve ser eliminado como não científico, mesmo que apenas provisoriamente (POPPER, 1973b, 104).

Popper abordará a questão da “objetividade” e da “neutralidade” valorativa do conhecimento científico em diversas teses da sua comunicação – em ambos os casos, os temas serão submetidos à crítica lógica. No primeiro caso, Popper negará explicitamente que a objetividade científica dependa da objetividade do cientista, quer ele se dedique às ciências naturais ou às sociais: “/.../ a chamada objetividade da ciência radica na objetividade do método crítico” (POPPER, 1973b, 104). Quer dizer:

O que pode ser qualificado de objetividade científica baseia-se única e exclusivamente na tradição crítica, esta tradição que apesar de todas as resistências permite criticar um dogma dominante. Expressando de outra forma: a objetividade da ciência não é assunto individual dos diversos cientistas, mas sim um assunto social de sua crítica recíproca, da divisão hostil-amistoso de trabalho entre os cientistas, de seu trabalho de equipe e também de seu trabalho por caminhos diferentes e, inclusive, opostos entre si (POPPER, 1973b, 110).

No caso da “neutralidade”, por seu turno, o autor afirmará que a exigência da total ausência de valores não pode ser senão um paradoxo, posto que tal exigência é um valor em si mesma. Assim, em havendo valores positivos e negativos, científicos e extra-científicos, cabe ao cientista crítico demarcar claramente quais os valores situados em um e outro espectro, impedindo deste modo que aspectos valorativos extra-científicos se confundam com as questões da ciência:

 /.../ combater a confusão de esferas de valor e, sobretudo, excluir as valorações extra-científicas dos problemas concernentes à verdade constitui uma das tarefas da crítica da discussão científica. Ocorre o mesmo que com a objetividade: não podemos privar o cientista de seu partidarismo sem privá-lo também de sua humanidade. De maneira análoga, ocorre que tampouco podemos privá-lo de seus valores ou destruí-los sem destruí-lo como homem e como cientista. /.../ O cientista objetivo e ‘livre de valores’ não é um cientista ideal. Sem paixão a coisa não anda, nem sequer na ciência pura. A expressão ‘amor à verdade’ não é uma simples metáfora (POPPER, 1973b, p. 111).

Note-se ainda que Popper dará privilégio ao procedimento dedutivo e, ao fazê-lo, se distanciará sobremaneira dos empiristas modernos – o autor dedicará várias de suas teses no congresso para atacar o “indutivismo” e defender o método “hipotético-dedutivo”: o dado empírico serviria tão somente ao cientista enquanto um possível critério de falsificabilidade de uma “teoria” ou “hipótese”, construída, como já se disse, sempre a partir de um problema. Desta perspectiva, a função mais importante da “lógica pura dedutiva” seria a de um “sistema de crítica”:

A lógica dedutiva é a teoria da validação das deduções lógicas ou da inferência lógica. Uma condição necessária e decisiva para a validade de uma inferência lógica é a seguinte: se as premissas de um raciocínio válido são verdadeiras, então a conclusão deve ser verdadeira. /.../ a lógica dedutiva é a teoria da transferência da verdade das premissas para a conclusão (POPPER, 1973b, 112).

Assim sendo, dirá Popper, a lógica dedutiva deve se tornar teoria da crítica racional, pois todo o criticismo racional toma a forma de uma tentativa de demonstrar que conclusões inaceitáveis podem ser derivadas da afirmação que se tenta criticar: se tivermos êxito em deduzir logicamente conclusões inaceitáveis, então a afirmação pode ser colocada como digna de ser recusada, ou seja, será refutada (POPPER, 1973b, 113).

Em suas teses finais, Popper manterá o foco sobre dois pontos principais: a) o “conceito de verdade”, considerado como indispensável à abordagem crítica explicitada por ele – pois não se pode apreender a idéia metodológica de que aprendemos com os nossos erros sem que haja a idéia regulativa de verdade: o erro cometido baseia-se justamente em não conseguir se alcançar, de acordo com um padrão ou critério de medida da verdade, a meta inicialmente proposta (POPPER, 1973b, p. loc. cit.); b) e a noção de explicação causal, que lhe é igualmente cara, posto que a solução tentada de um problema, ou seja, a explicação, consiste sempre em um sistema dedutivo que nos permite explicar o explicandum (aquilo que se pretende explicar) relacionando-o a outros fatos que serão chamadas de “condições iniciais” – uma explicação totalmente explícita será sempre baseada na derivação lógica (ou na derivabilidade) do explicandum a partir da teoria e das chamadas “condições iniciais”:

Cada um destes dois conceitos, o de verdade e o de explicação, cedem lugar ao desenvolvimento de conceitos que, da perspectiva da lógica do conhecimento ou da metodologia, podem ser inclusive mais importantes: o primeiro destes conceitos é o de aproximação da verdade, e o segundo, o da força explicativa ou do conteúdo explicativo de uma teoria (POPPER, 1973b, 115).

Por outro lado, Popper acrescentará à lógica formal um método que ele considera necessário às ciências sociais: trata-se da reiteração da conhecida afirmação do autor de que o objetivo das ciências sociais é a explicação da conduta por meio da “lógica situacional” da ação, ou seja, por meio da reconstituição das circunstâncias (metas e conhecimentos) sob as quais os indivíduos agem, bem como as conseqüências do seu comportamento. Estaríamos diante de uma “sociologia compreensiva” que, não obstante o qualificativo, não conservaria quaisquer resíduos de qualidades subjetivas sendo, portanto, um método puramente objetivo; enquanto tal, ele será o oposto em conteúdo (mas não em forma lógica) do método das ciências naturais. Neste ponto, o combate ao “psicologismo” joga um papel fundamental:

Vigésima terceira tese: A sociologia é autônoma no sentido de que deve e pode se tornar amplamente independente da psicologia. /.../ Vigésima quarta tese: A sociologia é autônoma também em um segundo sentido, quer dizer, no sentido de ser o que se tem chamado de ‘sociologia compreensiva’. /.../ Vigésima quinta tese: A investigação lógica dos métodos da economia política leva a um resultado aplicável a todas as ciências da sociedade. Este resultado evidencia que há um método puramente objetivo nas ciências sociais que caberia ser qualificado de método objetivamente compreensível ou de lógica da situação. Semelhante ciência social objetivamente compreensiva pode ser desenvolvida independentemente de todas as idéias subjetivas ou psicológicas (POPPER, 1973b, 117).

Portanto, a “compreensão objetiva” consistiria em considerar que a ação foi objetivamente apropriada à situação. Deste modo, a situação será analisada o bastante para que os elementos que inicialmente pareçam psicológicos (desejos, motivos, lembranças, etc.) sejam ao fim e ao cabo transformados em elementos da situação: um homem com determinados desejos, dirá Popper, tornar-se-ia um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos – assim como um homem com determinadas lembranças ou associações converter-se-ia em um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que é equipado objetivamente com outras informações e/ou teorias (POPPER, 1973b, loc. cit.). Enfim, Popper concluirá afirmando que o método da “lógica situacional” é “individualista”, mas não psicológico, e que as explicações que ele nos fornece são “reconstruções racionais e teóricas” em que precisamente o “mundo físico”, que é aquele que nos cerca e no qual agimos, é considerado.

3. – A réplica de Adorno: a contradição dialética em foco.

O debate de fato se inicia com a réplica de Adorno. Ainda que se considere as palavras de Dahrendorf (1973a, p. 140) – que não deixará de sublinhar o fato de que ambas as comunicações se mantiveram no estrito âmbito do tema proposto, de modo que as posições morais e políticas subjacentes a cada uma delas não foram de todo expressadas –, deve-se levar em conta as significativas diferenças entre os dois debatedores, a começar pelo estilo do próprio texto de cada um: para apresentar a teoria crítica e o método dialético, Adorno seguirá uma estrutura absolutamente diversa daquela do texto de Popper. À sistematização e, por assim dizer, ao “cartesianismo” do texto popperiano, irá se contrapor a “forma ensaística” típica da Escola de Frankfurt.

Ao contrário do que se poderia pensar, e em especial no que tange aos frankfurtianos, a questão do estilo e da escrita não é nenhuma questão secundária, superficial ou gratuita – de modo que já em Walter Benjamin se pode encontrar a crítica contra um “estilo de escrita” que afirma uma totalidade sistemática de um pensamento desenvolvido a partir de si mesmo, realizando-se e completando-se por uma série de deduções. Ora, insistindo nos momentos de descontinuidade, de salto, de interrupção e de lacunas, Benjamin assinala justamente a impossibilidade de apresentar a verdade de maneira sistemática, continuada e acabada (GAGNEBIN, 1999, p. 87).  Por sua vez, Adorno consagrará um texto à questão da “forma ensaística”, onde afirmará o ensaio como expressão da revolta contra a doutrina que, desde de Platão, considera o transitório como um elemento indigno da filosofia: “O ensaio não compartilha a regra do jogo da ciência e da teoria organizadas, segundo as quais /.../ a ordem das coisas seria a mesma que a das idéias” (ADORNO, 1986a, p. 174).

Destarte, Adorno procurará contestar as teses centrais de Popper, sendo bastante seletivo e concentrando-se em alguns conceitos basilares apresentados pela comunicação que o precedeu. Assim sendo, o autor retomará os conceitos de “teoria”, “crítica”, “totalidade”, “sociedade”, “verdade” e “objetividade”, tingindo-os com a conotação que lhe é peculiar – e que difere sobremaneira daquela de Popper.

É com este espírito que, logo ao início de sua exposição, Adorno se esforçará em demarcar a diferença entre a sua compreensão e a de Popper no tocante ao termo lógica, que está contido no título mesmo da comunicação do autor de Open Society. Desta feita, dirá Adorno, o termo lógica deveria ser tomado em uma conotação “mais ampla”, evocando antes os procedimentos concretos da sociologia do que as “regras genéricas” de pensamento (ADORNO, 1986b, 46). Adorno seguirá pontuando todo o seu texto com base no desenvolvimento de seus argumentos em defesa da teoria crítica, contrapondo-os ao racionalismo crítico e à lógica formal característicos da comunicação de Popper.

Partindo das duas primeiras teses de Popper, relativas ao conhecimento abundante e à ilimitável ignorância, Adorno dirá que, embora esteja de acordo com elas, considera-as insuficientemente exploradas, posto que a superação do não-conhecimento ou ignorância (ou mesmo sua incorporação à esfera do conhecimento) não ocorre do progresso da ciência e da metodologia, como quer Popper, e nem mesmo com aquilo que impropriamente denomina-se “síntese”. Referindo-se ao “objeto da sociologia”, Adorno de saída procura demarcar de modo preciso o território de seu pensamento:

O que, entretanto, se afigura em Popper como um não-conhecimento passageiro não é, no progresso da pesquisa e da metodologia, simplesmente superável por aquilo que, com um termo fatal e impróprio, denomina-se síntese. O objeto contrapõe-se à unidade simplista e sistemática de frases interligadas. /.../ o ideal de conhecimento de uma explicação unívoca, simplificada ao máximo, matematicamente elegante, fracassa quando o próprio objeto, a sociedade, não é unívoca nem simples, nem tampouco se sujeita de modo neutro ao arbítrio da formação categorial, pois difere daquilo que o sistema de categorias de lógica discursiva antecipadamente espera (ADORNO, 1986b, 47).

Adorno caracterizará o positivismo reatualizando a denúncia da natureza objetivada e da razão instrumental – afirmando com aguçada ironia que, para quem considera as contradições como anátemas, o positivismo é vítima inconsciente de uma contradição interna em sua própria orientação fundamental. Ora, sendo a sociedade contraditória em si mesma – apesar de determinável, ela se configura a um só tempo como racional e irracional, sistemática e caótica, natureza cega e mediada pela consciência –, os procedimentos sociológicos ou se curvam frente às peculiaridades de seu objeto ou então estarão fadados, por ânsia puritana contra a contradição, a embrenhar-se nas  mais desastrosas das contradições, a saber, aquela entre a estrutura do pensar sociológico e o próprio objeto de que se ocupa este  pensar: “O suposto não-saber sociológico em boa medida designa apenas a divergência entre a sociedade como objeto e o método tradicional” (ADORNO, 1986b, 47/48).

Evidentemente, Adorno não pretende se colocar a favor do “insustentável” asceticismo empirista frente à teoria – com o qual Popper também não concordaria. O que se pretende, com efeito, é a denuncia da contradição interna de um método que, em sua coloração positivista, deseja uma objetividade extrema, ou seja, purgada de toda a projeção subjetiva, sem, no entanto, hesitar em recorrer à particularidade de uma “razão instrumental” puramente subjetiva – eis o “nó górdio” que Adorno quer explicitar.

Embora concorde com a assertiva popperiana acerca da prioridade dos problemas na tensão entre saber e não-saber, Adorno considera imprescindível ir mais além, pois, sendo a sociedade em si mesma um problema em sentido enfático – já que ela se apresenta antes de tudo como um elemento não unívoco, mas sim contraditório –, deve-se atentar para o fato de que os problemas da sociologia nem sempre decorrem da constatação de que “algo no nosso pretenso saber não está em ordem” (Popper): a contradição não deixará de existir pelo simples fato de conhecermos mais, ou então porque formulamos o problema de maneira mais clara ou mesmo porque uma solução proposta foi verificada ou refutada:

A contradição não precisa ser, como Popper aqui pelo menos supõe, uma contradição meramente ‘aparente’ entre sujeito e objeto, que seria imputada somente ao sujeito como insuficiência de julgamento. Ao invés disso, a contradição pode ter seu lugar do modo mais real no objeto e de modo algum se deixar retirar do mundo por força de um aumento do conhecimento ou de uma formulação mais clara (ADORNO, 1986b, 49).

Neste sentido, o fosso que se arma entre Adorno e Popper é significativo – e o próprio frankfurtiano o reconhece ao afirmar que, para o pensamento popperiano, o problema é algo de caráter meramente epistemológico, enquanto que para ele trata-se de uma “situação problemática do mundo”, vale dizer, algo também de caráter eminentemente prático – separar os problemas reais dos problemas imanentes seria fetichizar a ciência (ADORNO, 1986b, 48/49). Assim, a “crítica”, compreendida como o princípio da negatividade, vem a ser o elemento constituinte do método e da teoria crítica na medida em que eles se fundem com um objetivo político e social a ser alcançado. Além do mais, Adorno quer demonstrar que a concepção do caráter contraditório da sociedade não sabota o conhecimento que se pode obter dela, e nem tampouco o entrega ao acaso, desde que se tenha em mente e se entenda em definitivo que a contradição é algo necessário à reflexão crítica – o que implica em ampliar a racionalidade até a contradição, entendendo-a como parte da investigação sobre a sociedade. O fosso então parece agigantar-se.

Portanto, trata-se de expressar que a preocupação fundamental da dialética e da teoria crítica não é meramente formal (como o seria para Popper), mas sim material e, em sua raiz mesma, emancipatória – por isso mesmo, a sociologia (concebida como dialética e crítica) não pode deixar de guiar-se pela perspectiva do “todo”, mesmo quando se debruça sobre um objeto em particular, posto que a totalidade social não leva uma vida própria além daquilo que ela engloba e que a compõe, sendo que a sua produção e reprodução se dá justamente através de seus momentos individuais (ADORNO, 1986b, 48).

Adorno fará algumas ponderações acerca do estabelecimento popperiano da prioridade do problema sobre as “percepções” e a “observação”. Trata-se de discutir o significado ou interesse que têm os problemas identificados pelo cientista e para os quais se devem buscar soluções. Segundo Adorno, em sua tese da prioridade do problema, Popper leva em conta (implicitamente) o fato de que os métodos não dependem do ideal metodológico, mais sim do objeto. Assim sendo, Popper constata que a qualidade do desempenho científico-social é proporcional à significação ou ao interesse que tenham os problemas tratados por ele – o que implica em conferir certo peso ao objeto. Contudo, dirá Adorno, deve-se ponderar que nem sempre é possível um julgamento a priori acerca da relevância dos assuntos do investigador; do mesmo modo que a própria exigência de relevância do problema não pode ser dogmatizada (ADORNO, 1986b, 50).

No tocante aos atributos e características que Popper julga que devam ser preenchidos para que se defina se os problemas de pesquisa são relevantes ou significativos e se as investigações entabuladas resultam, de fato e de direito, em um trabalho científico (a honestidade, a linearidade e a simplicidade), Adorno alerta para algumas precauções que devem ser tomadas. Em primeiro lugar, na “vida científica real” a honestidade em geral se identifica com o trabalho daquele que pensa o que todos pensam, o comum, que pensa o igual – de modo que a renúncia à fantasia é tomada por ethos científico; em segundo lugar, diz-nos Adorno, a linearidade e a simplicidade (objetivos que, segundo Popper, deveriam ser perseguidos pelo investigador) não são idéias inquestionáveis quando o próprio objeto se revela por demais complexo e contraditório:

As respostas do bom senso retiram suas categorias em tal escala do já estabelecido que tendem a ter o seu véu reforçado ao invés de penetrado. No que tange à linearidade, o caminho pelo qual se chega a um conhecimento dificilmente é antecipável. Em vista da situação atual da sociologia, eu atribuiria um peso maior ao arrojo e à peculiaridade da solução proposta, conforme, aliás, os critérios de Popper para a qualidade científica (ADORNO, 1986b, 50/51).

Mais adiante, e por ocasião da mesma linha argumentativa, Adorno afirmará que o primado da sociedade entendida como algo abrangente e, ademais, fechado em si mesmo em face de suas manifestações individuais, não é senão o corolário, no plano do conhecimento social, de percepções cuja origem se encontram no conceito de sociedade e que se transformam em problemas sociológicos individuais apenas através do confronto posterior do pressuposto a priori com o material particular:

Dito de forma mais genérica: as teorias do conhecimento, tais como foram desenvolvidas e transmitidas com alguma independência pela grande filosofia desde Bacon e Descartes, foram concebidas, mesmo pelos empiristas, de cima para baixo. Com freqüência, não conseguiram fazer justiça ao conhecimento conseguido efetivamente. Segundo um projeto de ciência que lhe é exterior, ele foi ajustado como contínuo indutivo ou dedutivo (ADORNO, 1986b, 51).

Para arrematar seu raciocínio, Adorno recorrerá a Bérgson para afirmar que uma das tarefas fundamentais da teoria do conhecimento seria a reflexão a respeito de como se processa o conhecimento – e não mais descrição de seu desempenho feita de antemão segundo um modelo lógico ou científico. Desta feita, Adorno contesta vigorosamente o postulado de que o método (que no caso de Popper significaria as regras da lógica formal e situacional) tenha um papel fundamental e preponderante no processo de aquisição de conhecimento. Destarte, o filósofo contesta o privilégio do método em conferir acesso à verdade e à objetividade – tal privilégio, sob a sua perspectiva, já bastaria para atribuir o qualificativo de “positivista” ao pensamento de Popper. Aliás, Adorno vai ainda mais longe, sugerindo que não é a adoção do método que garantirá a objetividade e a neutralidade da empreitada científica em busca da verdade (ADORNO, 1986b, 51/52).

A questão então se desdobrará do seguinte modo: de fato, diz Adorno, o conhecimento sociológico é crítica; não obstante, há nuances para se estabelecer o que se quer dizer com “crítica” – no caso de Popper, claro está que uma tentativa de solução não acessível a crítica factual deverá ser abandonada como não científica. Aos olhos de Adorno, no entanto, tal afirmação parece algo ambíguo. O filósofo põe o dedo na ferida ao retomar o conceito de “crítica”, alertando para o perigo de se promover uma redução do conceito aos chamados “fatos” – quer dizer, “/.../ o total resgate do pensamento através de observação /.../” (ADORNO, 1986b, loc. cit.) –, o que nivelaria o pensamento à hipótese e privaria a sociologia de seu momento essencial de “antecipação”: fatos não são o termo irredutível da sociedade, visto que eles também são mediados por ela.

Da perspectiva de Adorno, também a equiparação popperiana entre “crítica” e “tentativa de refutação” merece atenção: ao apelar para um pensamento aberto, não fixado e que, por isso mesmo, não pode ser desvinculado de um momento experimental – lúdico, dirá o frankfurtiano –, Popper acaba por equiparar diretamente o conceito de “experimento” com o lema trial and error:

No clima em que este conceito se origina há uma ambigüidade de sentido na palavra experimento; justamente este termo carrega consigo conotações físicas e vai de encontro à independência de qualquer pensamento que não se deixe testar. /.../ Se não se quiser confundir a sociologia com modelos das ciências naturais, então o conceito de experimento deverá se estender também ao pensamento que, saturado da força da experiência, ultrapassa esta mesma experiência para compreendê-la (ADORNO, 1986b, 53).

Para Adorno, longe de ser uma carência do conhecimento social, o “momento especulativo” é imprescindível – aliás, trata-se de algo que o filósofo frankfurtiano não deixará de notar em um outro texto, também dedicado à querela alemã, em que afirma que o uso da linguagem acaba por transformar o conceito de “especulativo” em seu oposto: ele não será mais, como em Hegel, interpretado no sentido de uma “auto-reflexão crítica do entendimento”, mas sim como um pensamento fútil, sem compromisso, sem auto-crítica lógica e, ademais, sem confrontação com as coisas (ADORNO, 1980a, 211/212). É preciso se desfazer desta confusão.

Ora, dirá Adorno, ao identificar a objetividade da ciência com a do método crítico, Popper acaba por elevar este último à condição de “órgão da verdade”. Nestas condições, perde-se de vista o fato de que a sociologia é ao mesmo tempo uma crítica do objeto, do qual dependem todos os momentos localizados na esfera subjetiva (que é aquela dos sujeitos submetidos a uma ciência organizada). O objeto precisa alcançar seu direito de cidadania no método segundo o seu próprio peso – caso contrário, nos dirá Adorno, mesmo o método mais refinado resultará falho. Isto implica a exigência de que a configuração do objeto apareça na configuração da teoria:

/.../ se se quer atribuir uma importância muito grande à dependência do método com relação ao objeto, como fazem algumas das determinações de Popper – a relevância e o interesse enquanto critérios para o conhecimento da sociedade –, o trabalho crítico da sociologia ficaria concebido como voltado restritamente à auto-crítica, à reflexão sobre suas proposições, teoremas, aparatos conceituais e métodos. Mas ela é ao mesmo tempo também crítica do objeto /.../ (ADORNO, 1986b, 53).

Assim, embora concorde com Popper acerca do papel da “crítica” no tocante ao conhecimento sociológico, Adorno faz notar que sua idéia acerca deste conceito não é formal – assim como o é para o racionalismo crítico apresentado por Popper, que em sua estrutura categorial faz corresponder o conceito de solução ao de problema –, mas sim material. Destarte, e se a sociologia crítica pretende que seus conceitos sejam verdadeiros, então ela deve necessariamente ser também uma crítica da sociedade: se a ciência social por um lado afirma o conceito de uma sociedade liberal em termos de liberdade e igualdade, mas, por outro, contesta por princípio o conteúdo de verdade dessas categorias sob o jugo do liberalismo, então já não se trata tão somente de meras contradições lógicas, que por ventura pudessem ser eliminadas por definições mais corretas – como se fora um problema de lógica categorial –, mas sim da conformação estruturada da sociedade enquanto tal. Neste caso, a crítica não significa tão somente a reformulação de proposições contraditórias em nome da digna univocidade do sistema de enunciados científicos, mas – e sobretudo – a crítica do próprio objeto sociológico. Eis a radicalidade que o conceito de “crítica” há de assumir em Adorno: a sociologia crítica não se reduz apenas a uma autocrítica interna de disciplina, mas estende a sua crítica ao próprio objeto de análise, vale dizer, à sociedade contemporânea e também às hipóteses, conceitos e teorias desenvolvidos para representá-la e analisá-la.

Desta feita, a crítica passa a ser o elemento que permeia todo o processo de conhecimento, e não somente o elemento que põe em questão uma hipótese explicativa, como sugere Popper. A crítica deve suscitar uma atitude de desconfiança face ao conhecimento como tal, cujos objetos e resultados devem ser permanentemente questionados.

Quanto à questão da paradoxal exigência de uma liberdade incondicional dos valores, que transparece de modo indelével na comunicação popperiana, Adorno considera que se pode extrair deste paradoxo múltiplas conseqüências teórico-científicas. Ao ressaltar que não se pode proibir ou destruir os valores de um cientista sem matá-lo como pessoa ou como cientista, Popper, no entanto, acaba por salvaguardar a separação entre “valores científicos” e “valores extra-científicos”, expressando, deste modo, um conceito objetivo de ciência enquanto tal. Ora, segundo o frankfurtiano, a separação entre comportamento com “valores científicos” e comportamento “sem valores científicos” é falsa, posto que os valores são reificados e, com isto, a própria liberdade de valores[4]. Assim, o “problema dos valores” – problema que só pôde se constituir numa fase na qual os meios e fins foram separados em prol de um domínio da natureza isento de atritos, e na qual a racionalidade dos meios progride junto com a irracionalidade dos fins – teria sido formulado de modo indevido:

Uma consciência científica da sociedade que se propõe livre de valores desperdiça o objeto do mesmo modo que uma consciência que invoca valores mais ou menos ordenados e arbitrariamente instituídos; aceitando-se a alternativa, incorrer-se-á em antinomias. /.../ Popper paga tributo à antinomia quando ele por um lado recusa a separação entre valor e conhecimento, e por outro gostaria que a auto-reflexão do conhecimento incorporasse seus valores implícitos; quer dizer, não falsificasse seu conteúdo de verdade para demonstrar algo. Ambos os desideratos são legítimos. Apenas seria o caso de que a sociologia incorporasse a consciência de sua antinomia (ADORNO, 1986b, 57).

Um comportamento isento de valores, segundo a argumentação adorniana, não é impossível apenas psicologicamente, mas sobretudo objetivamente. A sociedade, em geral, só se cristaliza em torno de uma concepção ideal de “sociedade correta” – de modo que a “sociedade correta” (ideal) não há de contrastar somente de modo abstrato com a sociedade existente, precisamente como um pretenso valor, mas surgirá da “crítica”, quer dizer, da consciência da sociedade em relação as suas contradições e necessidades.

Adorno compartilha da crítica popperiana ao psicologismo social. Não obstante, da precedência da sociedade sobre a psicologia, Adorno não deduzirá uma independência radical entre sociologia e psicologia, como a que Popper afirmou em sua comunicação. Donde resulta o seguinte: se no interior do processo global que é a sociedade os homens são abrangidos, dirigidos e formados pela objetividade, não é menos verdadeiro o fato de que eles, por seu turno, também reagem sobre ela – a visão da sociedade como totalidade implica que todos os momentos eficazes desta totalidade venham à baila e, por conseqüência, que devam penetrar na esfera do conhecimento; a fronteira entre psicologia e sociologia, como quer Adorno, é tênue em demasia (ADORNO, 1986b, 59).

Por fim, Adorno fincará seus pés com vigor na perspectiva que lhe é própria, afirmando que a experiência do caráter contraditório da realidade social não é um mero ponto de partida arbitrário, mas antes o húmus basilar que constitui a possibilidade da existência da sociologia: somente os que podem conceber a sociedade de modo diverso do que ela é podem transformá-la em um problema. Donde o fato da sociedade não encontrar seu espaço na sociologia sob forma de resultados científicos isolados: “A desistência da sociologia de uma teoria crítica da sociedade é resignada: não se atreve mais a pensar o todo porque não vê como alterá-lo” (ADORNO, 1986b, loc. cit.).

Referências bibliográficas:

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______________. O Ensaio como Forma. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Àtica, 1986a. p. 170-192.

_______________. Sobre a Lógica das Ciências Sociais. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Àtica, 1986b. p. 46-60.

DAHRENDORF, Ralf. Anotaciones a la discussión de las ponencias. In: ____________ (Ed.). La Disputa Del Positivismo a la Sociologia Alemana. Tradução de Jacob Muñoz. Barcelona-México: Grijalbo, 1973a. p. 132-145.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Da Escrita Filosófica em Walter Benjamin. In: SELLIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Fapesp / Annablume, 1999. p. 79-88.

GIDDENS, A. O positivismo e seus críticos. In: BOTTOMORE, T.; NISBET (Org.). História da Análise Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1980b. p. 344-357.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do Iluminismo. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.

POPPER, Karl. A Lógica da Investigação Científica. In: Os Pensadores, vol. XLIV. São Paulo: Abril Cultural, 1980c. cap I, p. 263-280.

_____________. La Lógica de las Ciencias Sociales. In: DAHRENDORF, Ralf (Ed.). La Disputa Del Positivismo en la Sociologia Alemana. Tradução de Jacob Muñoz. Barcelona-México: Grijalbo, 1973b. p. 101-117.

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[1] Karl Popper seria considerado por muitos como um pensador ligado aos membros do Círculo de Viena. No entanto, tal identificação não é de todo consensual, afinal, se por um lado se pode afirmar que originariamente Popper teria influenciado os membros do Círculo de Viena, não é menos verdadeiro o fato de que, por outro lado, o filósofo não era partidário da identidade entre as ciências sociais e naturais, defendendo, contra os positivistas lógicos, a especificidade do objeto de umas e outras.

[2] O próprio Popper chegou a classificar-se entre os “inimigos” do positivismo: “/.../ o fato é que durante toda a minha vida combati a epistemologia positivista, sob o nome de ‘positivismo’. Não nego, decerto, a possibilidade de ampliar o termo ‘positivista’ até que abranja qualquer pessoa que se interesse pelas Ciências Naturais, de modo a poder aplicar-se até mesmo aos adversários do positivismo, como eu. Apenas sustento que tal procedimento não é honesto nem capaz de esclarecer os problemas”. (GIDDENS, 1980b, p. 357).

[3] A racionalidade ocidental será caracterizada por Adorno e Horkeimer como a instrumentalização da própria razão, quer dizer, como um tipo de racionalidade que subordinada a Razão à função de elemento de dominação e controle tanto da Natureza (objeto do conhecimento) quanto do ser humano (sujeito do conhecimento). Nesta medida, a técnica seria a essência deste saber, que visa primordialmente à utilização funcional do trabalho.

[4] Marx usou o termo Verdinglichung (comumente traduzido por “reificação” ou “coisificação”) para se referir ao processo através do qual se produz a alienação dos frutos do trabalho. A “reificação” dos produtos do trabalho humano produz nada menos do que a “reificação” da própria atividade laboral, logo, a “coisificação” do próprio homem. Destarte, ao invés de se afirmar no trabalho, o homem se nega nele: os produtos de seu trabalho passam a comandá-lo. O produto do trabalho humano aparecerá então como algo independente do sistema de produção que lhes dá nascimento. Em Adorno e Horkheimer, a “reificação” adquire o sentido de contraparte do "fetichismo": enquanto que o primeiro será caracterizado como um fenômeno no qual aquilo que é "vivo" aparecerá com "coisa” inerte, no segundo dá-se justamente o contrário, o que é “coisa” inerte aparecerá como “elemento dinâmico”. Neste sentido, também os valores podem sofrer a sua cota de “reificação” e “fetichização”: já não serão mais os produtos do agir humano, mas sim objetos cristalizados, inertes e passivos, sem ligação com o horizonte humano – e, portanto, histórico – de sua produção e afirmação.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 16 agosto, 2006.