por MICHEL SILVA

Graduando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina

 

 

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O cinema expressionista alemão

Michel Silva

 

Resumo: Pretende-se aqui analisar a produção do cinema expressionista alemão, no início do século XX, localizando historicamente a corrente artística expressionista, analisando sua visão de arte e, ao expor sua contribuição ao cinema, defender a existência de um cinema expressionista.

Palavras-chave: Expressionismo; Cinema expressionista; Cinema alemão.

Abstract: This article is intended to analyze the German’s expressionist cinema production at beginning of 20th century, placing historically the expressionist artistic current, analyzing its art conception; and, as present its contribution to cinema, it is also intended to defend being of expressionist cinema.

Keywords: Expressionism; Expressionist cinema; German’s cinema.

 

Edvard Munch (1863-1944): O GritoAs mudanças políticas ocorridas no final do século XIX, particularmente a fundação do Segundo Reich Alemão (1871), foram o pano de fundo no qual surgiram as Secessões, grupos artísticos associados à origem do expressionismo. A unificação dos 25 estados, em torno à Prússia e sob o poder do seu rei (Guilherme I), foi acompanhada da impossibilidade do recém-fundado império em exercer um controle absoluto sobre a política cultural de todas as regiões. Com isso, os estados mantiveram uma relativa independência no que se refere à arte que se produzia. Entretanto, na década de 1880 foi institucionalmente oficializada a pintura que glorificasse a dinastia do imperador Guilherme I, principalmente pela presença junto a este de Anton von Werner (1843-1915), representante de uma linguagem artística voltada à representação de temas históricos.

Diante dessa medida autoritária, surgiram as Secessões, grupos artísticos independentes nos quais estavam os germes do expressionismo, principalmente Die Brücke (A Ponte), fundado em Dresden, em 1905, e Der blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), fundado em Munique, por volta de 1911. O circulo de A ponte foi especialmente influenciado pelo avanço das artes gráficas, daí seus primeiros experimentos terem sido, além da pintura, a xilogravura. O contraste claro-escuro e a “violência” contra a madeira são elementos que fizeram desta técnica uma das mais usadas pelos expressionistas. Já O Cavaleiro Azul caracterizava-se pela ênfase no aspecto espiritual, distante das provocações dos artistas de A Ponte, que caracterizavam como exageradas. O representante mais conhecido de O Cavaleiro Azul foi Wassily Kandisky (1866-1944), para o qual as artes plásticas não deveriam mais ter como objetivo a ênfase nos valores de uma sociedade “morta pelo materialismo”.

O fato de o expressionismo ter surgido às vésperas da Primeira Guerra Mundial não foi mero acaso. O seu surgimento acontece quando o império alemão, acompanhando toda a Europa, caminhava para a “fase superior do capitalismo”, o imperialismo[1], época de crises e revoluções, contra o qual já se pronunciavam escritores como Heinrich Mann e Karl Kraus. Era uma sociedade dominada pela grande burguesia, militares e nobres, que na arte encontrava sua representação em uma estética autoritária, acadêmica e oficializada. A partir disso, toda uma geração de artista começou a se rebelar contra os valores herdados por um século que, no seu entender, já havia acabado, atitude antiburguesa que na Alemanha detonou o expressionismo.

Os artistas expressionistas eram mais simpáticos aos marginais da sociedade burguesa (prostitutas, ladrões, mendigos etc.) do que propriamente ao proletariado. Os expressionistas se aproximavam da classe trabalhadora à medida avançava a revolução no mundo, cujo principal momento se deu na Rússia (1917), onde foi vitoriosa, seguida pela Alemanha (1918-9) e Hungria (1919). Nas jornadas revolucionárias ocorridas na Alemanha, alguns expressionistas participaram das lutas ao lado dos trabalhadores.

Teles (1978, p. 99) divide o expressionismo em três fases, identificando suas primeiras manifestações na literatura e nas artes plásticas. A primeira fase, entre 1910 e 1914, chamada “expressionismo precoce”, foi a que pretendeu romper com os modelos estéticos e de pensamento anteriores, por isso também chamada de fase do “destrucionismo”. A segunda fase, entre 1914 e 1918 (o “alto-expressionismo”), ocorrida exatamente durante a guerra, é considerada uma fase de maturidade e auge de criação, sendo uma época fortemente marcada pela busca de alternativas e saídas para a humanidade. A terceira fase (1918-25), chamada de “expressionismo tardio”, quando o expressionismo chegou a outras artes, é  considerada a de mais difícil periodização por conta da diversidade que marcou essa época

O expressionismo chegou ao cinema em 1919, ou seja, de forma tardia se comparada às demais artes. Praticamente surgido na República de Weimar (1919-33), quando a literatura expressionista estava em declínio, o cinema acabaria falando de temas comuns aos seus antecessores, como a morte, a angústia da grande cidade e o conflito de gerações. O aspecto mais importante a se destacar, no entanto, se refere à inovação estética. Seus atores e diretores, a maioria oriundos do teatro, passaram a utilizar técnicas já desenvolvidas no palco, como o jogo de luzes e holofotes, presentes na maioria dos filmes. Em vez de movimentos de câmera, a iluminação de um detalhe, a aparência fantástica das sombras ou a máscara nas lentes da câmera compunham os efeitos mais freqüentes. Os espelhos foram outro recurso importante (usado, por exemplo, para deformar rostos).

Depois de 1925, em diferentes tipos de arte, com destaque para o cinema, foram produzidas obras que mantinham ainda características expressionistas. Porém, o ano de 1933, com ascensão do nazismo ao poder na Alemanha, de certa forma marca o final do expressionismo.

Visão

Falar do expressionismo acaba sendo um grande desafio, em função da escassez de textos que esclareçam de forma mais sistemática e completa as bases teóricas desta corrente artística que dominou, na Alemanha do início do século XX, o teatro, a música, as artes plásticas, o cinema e a literatura. Existem alguns documentos, manifestos e ensaios acadêmicos, contemporâneos e posteriores ao expressionismo, que esclarecem alguns elementos, mas nenhum sistematiza uma teoria mais precisa da concepção expressionista.

Um primeiro trabalho onde aponta algum caminho para compreender essa questão é a tese de doutorado, escrita em 1907, do historiador Wilhelm Worringer (1881-1965), que parte da idéia de que a abstração “nasce da grande inquietação que experimenta o homem aterrorizado pelos fenômenos que constata ao seu redor e dos quais é incapaz de decifrar as relações, os mistérios contrapostos” (Eisner, 1985, p. 21). Essa agonia provoca no homem o desejo de arrancar os objetos de seu contexto natural no mundo exterior. Para Worringer “a subjetividade é a base da arte e a intuição é o elemento fundamental da criação” (Nazário, 1999, p. 151).

Talvez o mais importante texto sobre o expressionismo seja o manifesto Expressionismo na poesia, publicado em 1918 pelo escritor Kasimir Edschmid (1890-1966). Neste manifesto, que busca explicar o expressionismo, são discutidas algumas das características da concepção expressionista, declarando que o expressionismo é uma reação ao impressionismo, que

reflete as cintilações equívocas da natureza, sua diversidade inquietante, suas nuanças efêmeras; [o expressionismo] luta, ao mesmo tempo, contra a decalcomania burguesa do naturalismo e contra o objetivo mesquinho que este persegue: fotografar a natureza ou a vida cotidiana. O mundo aí está, seria absurdo reproduzi-lo tal qual, pura e simplesmente. (Eisner, 1985, p. 18)

Edschmid afirma:

A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu. Temos que olhar para ela de tal forma que chegue até nós sem deformação. Ninguém duvida de que a essência das coisas não seja a sua realidade exterior. A realidade tem que ser criada por nós. A significação do assunto deve ser sentida. Os fatos acreditados, imaginados, anotados não são o suficiente; pelo contrário, a imagem do mundo tem de ser espelhada puramente e não falsificada. Mas isso está apenas dentro de nós mesmos. (1978, p. 105)

Para Edschmid, há uma realidade, um mundo exterior, do qual o artista faz parte e pelo qual é influenciado. Esta realidade, que é pelo artista percebida através dos sentidos, causa o que iremos chamar de “impressões” (sentimentos, estados de espírito, reflexões, idéias, etc.), sendo a arte expressionista a expressão dessas impressões, a vazão em forma de arte da subjetividade do artista. “Edschmid proclama a ditadura do espírito, o qual tem a missão de moldar a matéria” (Eisner, 1985, p. 20). Os fatos, o mundo exterior, deixam de ser algo em si, meros objeto, tendo perscrutada profundamente sua essência, permitindo o conhecimento de sua forma verdadeira, libertando-se da pressão de uma “falsa realidade”. A realidade não é criada “diretamente da realidade observada, mas de reações interpretativas que pretendem ir para além das aparências óbvias e primárias do real” (Calheiros, 1996).

Segundo Eisner, “o expressionista já não vê: tem ‘visões’” (1985, p. 19). Essas visões são de aspectos trágicos do mundo exterior, imagens cruas e exageradas, destruindo o realismo, a harmonia, a serenidade, aumentando a expressividade. O expressionismo distorce, deforma a realidade propositadamente. O mundo apresentado em suas obras nunca é mostrado de forma naturalista, como se fosse uma realidade objetiva e imutável. O artista expressionista expressa em suas obras a realidade que percebe, marcada de ilusões, angústias, paixões, crises pessoais, dúvidas etc. Proclama Edschmid: “Agora não existe mais a cadeia dos fatos: fábricas, casas, doenças, prostitutas, gritaria e fome. Agora existe a visão disso. Os fatos têm significado somente até o ponto em que a mão do artista o atravessa para agarrar o que se encontra além deles” (1978, p. 105).

O precursor mais próximo do expressionismo, que de alguma forma inaugurou essa visão, é o pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944). Em seu quadro O grito, de 1893, uma figura esquelética, de sexo indefinido, deformada pelo próprio grito, expressa em seu corpo uma angústia que envolve a paisagem. Ao fundo, dois homens de fraque e cartola afastam-se, indiferentes, como se nada estivesse acontecendo. O grito mostra, de forma bastante clara, a visão de composição estética das obras do expressionismo – captando impressões do mundo exterior e expressando-as de forma deformada.

O quadro também demonstra bastante bem o estado de espírito vivido na época em que foi realizado. Nesse momento, o capitalismo começava a entrar em seu momento de decadência, a humanidade entrava em uma fase de angústias, de medos, de indefinições, de crises econômicas e sociais – e de busca de soluções radicais para esses problemas. É nessa época que irão surgir importantes correntes estéticas, como o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo, o cubismo. Estas correntes surgem como forma de tentar responder, no campo da arte, a essa época de crise e decomposição dos sistemas econômico capitalista.

Numa sociedade em decadência, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir também a decadência. Mas, a menos que ela queira ser infiel à sua função social, a arte precisa mostrar o mundo como passível de ser mudado. E ajudar a mudá-lo. (Fischer, 1977, p. 58)

Assim como as revoluções que ocorrem nas primeiras décadas do século XX, essas correntes que se colocam na busca de uma saída para a humanidade são uma espécie de grito, envolvendo e deformando a realidade. Munch teria dito sobre O grito:

Eu caminhava com dois amigos – o sol se pôs, o céu tornou-se vermelho-sangue – eu ressenti como que um sopro de melancolia. Parei, apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e do fiorde, de uma azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo: meus amigos continuaram seu caminho – eu fiquei no lugar, tremendo de angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito, da natureza. (citado em Nazário, 1999, p. 151)

Munch não foi exatamente um pintor expressionista, mas muito de sua técnica e visão da arte e do mundo se assemelham às do expressionismo, como fica demonstrado por esse seu quadro e pelas angústias e sentimentos do qual são produtos. Inclusive essa citação feita por Nazário nos faz perceber que há semelhança entre Munch e os expressionistas na visão que tem da vida humana, na medida que, para Edschmid, a vida do homem ultrapassa o indivíduo, participando de forma ativa da vida do mundo exterior. O homem não é mais um indivíduo preso a um dever, a uma moral, a uma família, a uma sociedade, escapando a qualquer lógica ou força da causalidade.

Liberto de todo remorso burguês, não admitindo senão o prodigioso barômetro de sua sensibilidade, ele se abandona a seus impulsos. A imagem do mundo nele se reflete em sua pureza primitiva, a realidade é criada por nós, a imagem do mundo só existe em nós. (Eisner, 1985, p. 19)

Percebe-se aí uma importante contradição. De um lado, temos um subjetivismo levado às últimas conseqüências, o individualismo, quase a alienação. De outro, temos o indivíduo enquanto agente de construção e transformação da realidade. Dessa contradição surgirá, ainda por volta de 1910, a divisão dos expressionistas em duas grandes correntes. A primeira, em torno da revista Ação, dirigida por Franz Pfemfert, se orientava por objetivos sociais e políticos antiburgueses. A segunda corrente era encabeçada por Herwart Walden, girando em torno da revista Tempestade, o qual se contrapunha a uma prática social, centrado sua ação e programa nas questões artísticas. Na primeira, um absoluto intelectualismo, na segunda, o dogma de que as visões tomam o corpo. Pfemfert e Walden se tornaram os principais porta-vozes da geração expressionista mais jovem.

Não iremos aqui julgar os erros e acertos de nenhuma dessas duas correntes, mas achamos necessário tecer alguns comentários sobre essa polêmica. Entendemos que cabe ao artista a participação nos eventos políticos e sociais de sua época. Enquanto ser que faz parte de uma sociedade, que é produto e reflexo dela, não há razão para que se abstenha desses processos. “Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. (Fischer, 1977, p. 17)”.

Entendemos que a arte – o que claro inclui o expressionismo – é um reflexo, ainda que deformado, do mundo exterior, produto de sua época social. Mas a arte não surge mecanicamente desse reflexo; ela é filtrada pelas idéias, sentimentos, experiências, dúvidas, angústias do artista, assumindo uma forma artística.

A criação artística, evidentemente, não é delírio. Mas é, igualmente, uma alteração, uma deformação, uma transformação da realidade, segundo as leis particulares da arte. A arte, por mais fantástica que seja, não dispõe de nenhum outro material além daquele que lhe fornecem o mundo de três dimensões e o mundo mais estreito da sociedade de classes. Mesmo quando o artista cria o céu ou cria o inferno, ele simplesmente transforma a experiência de sua própria vida em fantasmagorias, até inclusive a conta não-paga do aluguel. (Trotski, 1969, p. 153-4)

Entendemos que a arte não é a própria realidade, assim como a imagem de uma pessoa no espelho não é a própria pessoa. Pode até ser uma cópia semelhante, mas nunca será o objeto original nem poderá tomar seu lugar.

Por último, achamos de fundamental importância estudar a seguinte afirmação de Edschmid, comentando a visão expressionista: “Esse tipo de expressão não é alemão nem francês. Ele é supranacional. Ele não é somente assunto da arte. É exigência do espírito. Não é programa do estilo. É um problema da alma. Uma coisa da humanidade. (1978, p. 106)”.

Nesse sentido, Teles analisa:

Tanto por suas referências exteriores contra o positivismo e contra o naturalismo, como pela dimensão da problemática interior na busca de soluções metafísicas, o movimento expressionista correspondeu a um estado de espírito culturalmente alemão. (...) O homem alemão, tal como o europeu, de um modo geral, já não se contentava com a realidade objetiva e queria encontrar na vida interior os elementos de sua salvação. (1978, p. 99)

Segundo Nazário,

como movimento estético, o expressionismo floresceu na Alemanha do começo do século XX por uma série com condições propícias. Como o país industrializava-se rapidamente dentro de estruturas sociais muito conservadoras, os jovens artistas reagiam pelo exagero e a deformação contra os códigos morais anacrônicos e repressivos. A ordem do mundo afigurava-se diabólica aos artistas mais sensíveis. (Nazário, 1999, p. 150)

Dessas afirmações entendemos que pode-se apreender dois aspectos fundamentais do expressionismo. O primeiro, seu forte vínculo com a cultura e diferentes tradições alemãs, sofrendo uma forte influência da metafísica e de um misticismo exagerado. O segundo, seu forte vínculo ao estado de espírito da Europa de sua época, dado por uma situação econômica e social específica. Deste, como acima analisamos, teremos que o expressionismo é expressão artística, um grito de toda uma geração de artista, buscando uma alternativa ao caos que se vivia. “Vê-se assim incitada a eterna atração pelo que é obscuro e indeterminado, pela reflexão especulativa (...) que resulta na doutrina apocalíptica do expressionismo” (Eisner, 1985, p. 17).

Neste sentido, o que se pode concluir é que a “visão expressionista” é a expressão (refletida e distorcida) de uma profunda crise econômica, política e social, sendo tal visão fortemente influenciada pela busca de tradições místicas germânicas, criando uma arte com características particulares e bastante especiais. Nada disso quer dizer, no entanto, que não se exclui a possibilidade de haver artes com estética expressionista em outros países e épocas, obras que expressem uma sociedade em crise e a distorçam, apresentando no entanto características peculiares, próprias. Além disso, a “crise da humanidade” acaba por se expressar em outras correntes estéticas, como é o caso do surrealismo e do futurismo.

Cinema

As primeiras pesquisas estéticas do cinema expressionista aconteceram na Dinamarca, nas primeiras décadas do século XX. Nessa época, muitos cineastas deste país abordaram em suas obras o tema da angústia, da loucura e outros mais místicos, envolvendo bruxaria. Nas cenas de alucinação eram exigidos certos efeitos, cuja realização obrigava os cineastas a recorrerem a técnicas fotográficas novas, bem como a cenários simplificados que permitissem o jogo de luzes sobre ângulos vivos e volumes claros.

Na Alemanha, o filme O estudante de Praga (1913), protagonizados pelo ator teatral Paul Wegener (1874-1948), foi inspirado nessas produções dinamarquesas, tendo sido o primeiro filme alemão a ser vendido para o mercado externo. Foi realizado pelo diretor sueco Stellan Rye (1880-1914) e produzido pela Union Film (depois Decla Bioscop), reunindo diversos temas da literatura fantástica, como o pacto do diabo de Fausto, a corrupção da imagem de Dorian Gray e a idéia do duplo dos contos de Edgar Allan Poe e E. T. A. Hoffmann.

No filme, o jovem Baldwin, considerado o melhor espadachim de Praga, está arrasado pela falta de dinheiro. Rejeitando os avisos de uma cigana, aceita fazer acordo com o misterioso mago Scapinelli para obter fortuna e conquistar sua amada, a condessa Magritt. O acordo assinado por Baldwin permite que, em troca de uma fonte inesgotável de moedas de ouro, o mago possa tirar qualquer coisa de seu quarto. Scapinelli escolhe retirar o reflexo do estudante no espelho.

Baldwin passa a freqüentar a alta sociedade de Praga e a cortejar, clandestinamente, a condessa. Um de seu seus encontros é marcado no cemitério judeu, onde, pela primeira vez, o espectro de Baldwin começa a aterrorizar o casal. Chamado a um duelo pelo Barão, pretendente de Magritt, Baldwin promete ao pai da condessa que não matará seu adversário, mas o espectro se adianta e mata o Barão. Desesperado, Baldwin volta para casa e lá encontra o fantasma. Atira nele, recuperando seu reflexo, mas descobre que o tiro atingira seu próprio coração. Depois, Scapinelli vai ao quarto de Baldwin e rasga o contrato sobre seu cadáver. No final, vê-se o espectro empoleirado sobre o túmulo do estudante.

Segunda Cánepa (2003), este ainda não é, no entanto, um filme expressionista no sentido exato da palavra, mas significou a procura de uma forma de expressão que pudesse incluir na obra recursos pictórios e plásticos do expressionismo. Outros filmes recorreram ao insólito que impregna a natureza ou certos ambientes reais – como um velho cemitério, ruas tortuosas e sombrias do gueto –, tentando obter uma expressão mais ou menos simbólica.

É, no entanto, o filme O Gabinete do Dr. Caligari (1919), dirigido por Robert Wiene (1880-1938), a primeira tentativa de produzir um cinema estritamente expressionista. Nos filmes produzidos após Caligari houve uma integração bastante especial entre os efeitos de luz, os atores, a decoração, a maquiagem, os vestuários, os cenários, formando um conjunto plástico bastante exagerado. Essa estilização de todos os elementos causava a impressão de que uma pintura expressionista havia adquirido vida e começado a se mover, efeito este que foi chamada de caligarismo. O filme de Wiene trazia uma história de horror vivida por personagens sem qualquer ligação com a realidade e cujos sentimentos apareciam traduzidos com um drama plástico repleto de simbolismos.

O filme conta a história de um hipnotizador, o Dr. Caligari, que chega à pequena cidade de Holstenwall com um espetáculo em que seu assistente, o sonâmbulo César, adivinha o futuro das pessoas. Em seguida à chegada de Caligari, começa a acontecer uma série de crimes, fazendo com que as suspeitas se voltem para o sonâmbulo. O jovem Francis acaba descobrindo que o mandante dos crimes é o próprio Caligari.

Todas as formas no filme fazem referência à situação das personagens. O cenário assimétrico mostra ruas tortas, casas tombadas, contrates exagerados de sombra e luz. César, símbolo da agressividade inconsciente, está associado aos triângulos (seus olhos são sombreados e pintados com triângulos brancos). A jovem filha do burgomestre está associada a formas verticais e graciosas. Seu quarto é amplo e agradável, quase vazio, com as janelas abertas mostrando o céu.

Neste filme, as linhas suaves ou desproporcionais, volumes e luzes, traduzem a mentalidade das personagens, seus estados de alma, suas intenções. As formas  mais aptas a simbolizar o drama são acentuadas intencionalmente, orientando o espírito do espectador ruma à idéia do que se pretende sugerir.

Cria-se, no filme, uma atmosfera de pesadelo, que teria sido impossível criar sem um suporte da concepção estética expressionista. As linhas e planos tortuosos, oblíquos e abruptos do cenário provocam no público um efeito muito diferente do que teria se conseguido por uma composição visual harmônica. Os planos são inclinados, janelas são mais largas na parte de cima do que na base. Todas essas imagens somadas representam um mundo interior, uma construção mental que nega a realidade objetiva.

A visão de perspectivas falseadas e imprevisíveis, de formas distorcidas, a consciente intenção de evitar linhas verticais e horizontais despertam no espectador os sentimentos de insegurança, inquietude e desconforto. As casas apenas esboçadas no viés de uma ruela parecem de fato sacudidas por uma extraordinária vida interior.

A Caligari seguiram vários filmes inovadores estética e tecnicamente, comprometidos com uma estética de influência expressionista. No entanto, depois de 1924 poucos ou mesmo nenhum filme iria se comprometer tão fielmente com o estilo expressionista, apesar de muitos continuaram mostrando, seja pela expressividade do cenário, seja no tratamento da luz, seja na morbidez dos temas, a influência destas primeiras experiências expressionistas. Entre esses filmes, não podemos deixar de destacar M – O vampiro de Düsseldorf (1931), de Fritz Lang (1890-1976), sem dúvida uma das maiores obras-primas da história do cinema.

Cánepa (2003) defende que não houve uma escola de cinema expressionista, pois não havia uma corrente cinematográfica que buscasse traduzir os princípios daquele movimento de vanguarda. Para Cánepa, houve sim alguns filmes com traços da arte expressionista que ajudaram a construir um mito sobre sua existência. Entendemos, no entanto, que no caso de serem levados em consideração tais critérios nessa análise, chegaremos à conclusão de que não houve qualquer expressionismo em qualquer outra arte e mesmo qualquer corrente artística em qualquer arte.

Entendemos que ao falarmos em expressionismo falamos de uma corrente que busca expressar através de distorções as impressões que o mundo exterior causa no artista. É uma forma de expressão de uma época específica, a qual reflete de forma decisiva o estado de espírito dos artistas. A partir desses critérios, entre outros que a ele se submetem, podemos entender que o referencial fantástico, a deformação expressiva, o isolamento e a monstruosidade, a maldade como personagem e herói, identificados inclusive por Cánepa (2003), são as características estéticas centrais deste cinema, e que é a partir da análise destes aspectos que se pode definir, primeiro, que existiu de fato um cinema expressionista e, segundo, que outros filmes apenas apresentam traços expressionistas, como acima salientamos.

Conclusão

Entendemos que o expressionismo foi manifestação cultural de uma situação histórica específica, marcada pela crise do sistema capitalista. Nessa época de crise econômica, política e social, os jovens artistas, direta ou indiretamente, expressaram seu descontentamento e críticas em suas obras e, ainda que de forma gradativa e inconsciente, se aproximaram de uma alternativa política, alternativa essa materializada na revolução alemã de 1918-19, contra a burguesia e o governo dos principais partidos da esquerda[2] daquele país, lutando pelo socialismo, pela igualdade, pela justiça, pelo poder dos conselhos de trabalhadores que iam surgindo em todo país. Alguns artistas inclusive estiveram próximos da pequena Liga Spartakus, dirigida por Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht. Contudo, a repressão e a ausência de uma direção política, de um partido revolucionário que desse conta de organizar o conjunto dos trabalhadores, permitiram a recomposição do regime, através da Assembléia Constituinte e da acima referenciada República de Weimar.

Diante disso, acreditamos ser preciso fazer duas importantes reflexões. Primeiro, que o artista precisa fazer passar por suas veias o sentido e as paixões de sua época, expressando, ainda que não diretamente, esse sentimento em suas obras de arte. Ele deve estar engajado politicamente, deve fazer parte de sua época e, se forem essas suas convicções, lutar quotidianamente por uma nova sociedade. Sua arte, de alguma forma, irá expressar seu engajamento, suas idéias e ações.

A segunda reflexão se refere à necessidade de se buscar um projeto comum, uma identidade coletiva, como o fizeram, ainda que de forma descompassada e bastante fragmentada, os expressionistas. Com isso eles conseguiram fazer com que o passar dos anos e a ascensão do nazismo não apagassem a imagem do que é expressionismo (ainda que em muitos casos distorcida pelas diferentes interpretações).

Isso quer dizer que somos contrários a qualquer visão que se proponha a dizer que não houve um cinema expressionista, ainda que essa seja questão difícil e polêmica. Dizer que não houve um cinema expressionista é o mesmo que dizer que não houve qualquer arte expressionista. Assim como os futuristas russos e os surrealistas franceses, os expressionistas procuraram deixar, ainda que de forma fragmentada, algumas considerações sobre seu pensamento, sua estética, sua visão do mundo e da arte. Não foram, porém, sistemáticos nem muito menos buscaram pensar no domínio de todas as artes. Entendemos que o fato de ter havido uma arte que tenha características expressionistas, e que vários artistas se propusessem a utilizá-las no cinema, é motivo suficiente para que se possa falar em um cinema expressionista e não apenas em um cinema com traços expressionistas.

 

Referências bibliográficas

CALHEIROS, Luis. As vésperas do expressionismo. Disponível em: <www.ipv.pt/millenium/16_pers2.htm>. Acesso em: 3 novembro 2003.

CÁNEPA, Laura. Houve de fato um cinema expressionista?. Disponível em <www.gothic.art.br/anfiguri/anfiguri2/2_cinema_expressionista.htm>. Acesso em: 24 de março de 2003.

EDSCHMID, Kasimir. Expressionismo na poesia. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1978.

EISNER, Lotte. A tela demoníaca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, fase superior do capitalismo [1916]. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou-Lisboa: Progresso-Avante, t. 2, 1984.

NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1978.

TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

Filmes

O estudante de Praga (Der Student von Prag, Alemanha, 1913), dirigido por Stellan Rye.

O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, Alemanha, 1920), dirigido por Robert Wiene.

M – O vampiro de Düsseldorf (M, Alemanha, 1931), dirigido por Fritz Lang.

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[1] “Se fosse necessário dar uma definição o mais breve possível do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo. Essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolista fundidos com o capital das associações monopolistas dos industriais, e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da política colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para a política colonial de posse monopolista dos territórios do globo já inteiramente repartido” (Lenin, 1984, p. 367).

[2] Desde novembro de 1918, após a queda do chanceler do imperial, o príncipe Max von Banden, o Partido Social-Democrata (SPD) e o Partido Social-Democrata Independente (USPD) formavam um governo por eles próprios chamado Conselhos dos Comissários do Povo. Diferente de que se possa supor, tal governo nada tinha de semelhante com o governo bolchevique na Rússia, tendo sido construído pelo SPD e pelo USPD em acordo com a burguesia do país e com setores do governo anterior. Paralelo a isso, em todo o país, a partir de conselhos de trabalhadores, surgia a República Socialista Livre da Alemanha, proclamada por Karl Liebknecht em 9 de novembro de 1918, como umas das expressões do processo revolucionário que atravessa o país. Na disputa entre os dois governos, o primeiro, que tinha o aparato estatal policial e militar nas mãos, acabou vencendo e esmagando a rebelião dos trabalhadores alemães. Nesse processo, Rosa Luxemburg foi assassinada a mando do governo do antigo partido.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 17 agosto, 2006.