RESENHA:
Reis,
João José e Silva, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no
Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005
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Entre
o conflito e a negociação:
a experiência negra no Brasil escravista
Daniel
Antonio Coelho Silva
A
obra desses excelentes pesquisadores João José Reis e Eduardo Silva,
denominada Negociação e conflito,
vem ratificar uma tendência bastante saudável da historiografia
brasileira de fazer releituras do período escravocrata que buscam
desmistificar e corrigir uns
tantos equívocos produzidos a respeito da atuação dos negros durante a
vigência do regime de escravidão no Brasil. Revêem-se, assim, ao menos
em parte, inclusive formulações de autores célebres como Nina
Rodrigues, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, na medida em que não
consideraram devidamente o escravo como ator político capaz de resistir,
no dia-a-dia, ainda que a seu modo, aos desmandos e à exploração física
e psicológica a que os controladores do sistema escravista os submetiam.
A
tese central do livro é de que, muito mais do que lutarem abertamente
contra o sistema, os escravos participaram de um sem-número de negociações
com seus senhores,.ou seja, mesmo que os negros não tivessem organizado
em conjunto uma luta direta para suprimir o sistema de escravidão, eles
procuraram em diversas ocasiões negociar direitos ou condições mínimas
de sobrevivência..
Indo
além, segundo os autores de Negociação
e conflito, o período escravocrata foi marcado não somente pelo
conflito entre escravos e senhores, mas igualmente pela negociação e
muitas vezes pela acomodação entre os agentes dentro do sistema. Afinal,
não é possível que os escravos resistissem 24 horas à dominação e
muito menos era possível que os senhores pudessem empregar a força de
maneira contínua para subjugar os cativos. Em meio a idas e vindas no
processo de lutas e negociações, a chamada “brecha camponesa” foi um
artifício engenhoso que teve sua utilidade comprovada, levando os
escravos, em certos casos, a ter satisfeitas suas reivindicações, como,
por exemplo, produzirem para
si dentro dos limites das terras do senhor. Em circunstâncias de
descontentamento ostensivo, chegou-se até a pleitear a participação na
escolha de feitores, além de obterem outras conquistas para mitigar a
brutal exploração que se abatia sobre eles.
As
fugas de escravos no período colonial e durante o império eram, sem dúvida,
um recurso extremo para livrar-se do cativeiro.Elas, no entanto, não
aconteceram em grande número, quando comparadas ao imenso contingente de
escravos presentes nos país. De mais a mais, como frisam João José Reis
e Eduardo Silva, o Brasil escravocrata vivia o chamado paradigma ideológico
colonial: a simples fuga do escravo ou a alforria não o tornava um homem
livre, já que o conjunto da sociedade não o considerava como um ser
igual a qualquer homem branco.
Entre
os escravos havia diferenças de ordem étnica e de nascimento que
alimentavam rivalidades que na vida cotidiana eram utilizadas pelos
senhores para evitar uma união entre os mesmos que pudesse pôr em xeque
o poder senhorial – tal era o caso da rivalidade existente entre os
pretos mina (africanos) e os crioulos (nascidos no Brasil) – ,
porém os escravos também se aproveitavam das diferenças e das
inimizades entre os senhores para fugir, obter manumissões e negociar
direitos.
A
invasão do candomblé do Accú, descrita no capitulo 3, coloca à mostra
uma perseguição bastante comum
naquela época, ao mesmo tempo em que revela
a capacidade dos negros de conseguir apoio político entre os
brancos que divergiam daqueles que queriam acabar com os ritos de origem
africana. Este fato é
exemplar por comprovar que os escravos tiravam proveito das divisões
internas que havia entre senhores para alcançar suas conquistas, isto é,
os negros não foram somente agentes passivos dentro da lógica
escravista, mas atuaram de forma a minimizar sua situação de dominados
dentro da estrutura econômica da sociedade brasileira. Tanto não eram
meros sujeitos passivos que freqüentemente os escravos despertavam
temores junto a seus dominadores.
O
episódio do Dois de Julho, acontecido na Bahia em 1823, é bastante
significativo. Como se sabe, ele resultou da oposição e do
desentendimento entre brancos nascidos na província baiana e os
portugueses que lá moravam. A elite baiana, enquanto lutava para afastar
os portugueses dos negócios e do poder político na província, temia que
os negros adicionassem à causa em questão o fim da escravidão. O que
ela pretendia era uma “revolução” que não interferisse e nem
modificasse o que lhe parecia fundamental, o regime de escravidão.
Portanto, se fazia necessário desmobilizar o “partido negro” e sua
pretensão de instituição da liberdade dos cativos, juntamente com a
libertação da dominação portuguesa. Nesse sentido, a Bahia, foi
pioneira no que poucos meses mais tarde iria se tornar a independência
brasileira: uma solução de compromisso que não modificou o principal
pilar da economia do Brasil na época, o modo de produção escravista.
Já
o último capítulo do livro aborda o levante do malês ocorrido na Bahia
em 1835. Este acontecimento histórico evidencia a luta empreendida por
escravos africanos de religiosidade mulçumana que demonstraram capacidade
de organização para impulsionar seu projeto de superação da sua condição
escrava.
João
José Reis e Eduardo Silva sustentam que a revolta do malês, ao contrário
do que pensadores e intelectuais como Nina Rodrigues diziam, está
relacionada com a luta pelo fim da escravidão, ou seja, a revolta
que se deu na Bahia não foi simplesmente um conflito de cunho
religioso, mas uma rebelião escrava que procurou derrotar a classe
senhorial e o domínio por ela exercida.
Logo
se vê que a experiência negra, tal qual emerge nessa obra, não é algo
que possa ser enquadrado numa forma. Ela comporta muitas dimensões, que vão
além da acomodação dos negros, do assassinato de feitores e senhores,
passando pela negociação no interior das fazendas e pela fuga, seguida
ou não da formação de quilombos, onde também despontaram ex-escravos
escravizando negros.
Afinal,
a análise dos autores busca construir uma visão dialética a respeito
das relações entre escravos e senhores, procurando simultaneamente fugir
dos dogmatismos e das visões parciais e estanques dos fenômenos históricos.
Nisso consiste sua contribuição, o que não é pouco, muito pelo contrário.