por FRANCISCO EDILBERTO M. MACHADO NETO

Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará (UFC)

 

 

versão para imprimir [arquivo PDF]
Clique e cadastre-se para receber os informes de atualização da Revista Urutágua

 

Reflexões acerca do liberalismo em Locke e Rousseau

Francisco Edilberto M. Machado Neto

 

Resumo:Este texto tem a pretensão de apresentar um pouco da influência do pensamento político de John Locke e Jean-Jacques Rousseau para o Liberalismo. Os dois autores citados acreditam que o homem é naturalmente livre, sendo essa liberdade um direito inalienável, bem como o direito à propriedade privada. Ao tratarem a fundo de assuntos como “Direito Natural”, “Direito de Propriedade” e a formação do Estado (a passagem do “Estado de Natureza” para o “Estado de Sociedade”), eles lançaram as bases daquilo que conhecemos por Liberalismo (ideal de racionalidade iluminista, defesa dos direitos individuais inalienáveis, defesa da propriedade e da liberdade). Além disso, investiga-se também a contribuição de cada autor para o ideal de democracia.

Palavras-Chave: Locke, Rousseau, Liberalismo.

Abstract: This text has the pretension to present a little of the influence of the thought politician of John Locke and Jean-Jacques Rousseau for Liberalism. The two cited authors believe that the man is of course free, being this freedom an inalienable right, as well as the right to the private property. When dealing with the deep one subjects as "Natural law", "Right of Property" and the formation of the State (the change of the "State of Nature" for the "State of Society"), they had launched the bases of that we know for Liberalism (ideal of rationality, defense of the inalienable individual rights, defense of the property and the freedom). Moreover, the contribution of each author for the democracy ideal is also investigated.

Keywords: Locke, Rousseau, Liberalism.

 

John Locke  - fonte: http://www.libraries.psu.edu/tas/locke/images/locke-kneller.gifIntrodução

Em seu Dicionário de Filosofia (1998), Abbagnano define liberalismo como “doutrina que tomou para si a defesa e a realização da liberdade no campo político” (ABBAGNANO, ibid.: 604). Outra definição, mais completa e melhor explicada, nos oferece Holanda (2001):

Como expressão de uma visão de mundo, [o liberalismo] está alicerçado no princípio de liberdade individual e fundamentado na racionalidade iluminista que representa o rompimento com a idéia de revelação e providência divina. E parte do pressuposto de que o homem é totalmente livre para objetivar-se por si só. Como modo de vida e como teoria do Estado, estabelece normas de proteção aos cidadãos (proprietários) contra perturbações alheias ao cumprimento da lei (HOLANDA, ibid.: 16, colchetes meus).

Essa ênfase na liberdade individual e na racionalidade vai, segundo Oliveira (1993), representar uma ruptura com a noção de revelação e providência divinas, paradigma de pensamento vigente até então, que fora inspirado pelos gregos. Para estes, somente a pólis poderia efetivar o homem como tal.

A polis é livre enquanto autônoma, enquanto comunidade capaz de regrar sua convivência através de leis criadas pelos cidadãos, cuja finalidade é exatamente a “vida boa”, isto é, a consecução, a efetivação da essência humana dentro das especificidades próprias a esta comunidade. A liberdade do indivíduo significa sua participação nessa comunidade livre, de tal modo que liberdade é aqui sinônimo de “vida política” (OLIVEIRA, ibid.: 15).

No pensamento liberal, como já dito, o eixo muda: a razão torna-se o instrumento de emancipação humana. Ao invés da participação política na pólis ou de qualquer outra coisa, a razão torna-se o meio de efetivar o homem enquanto tal. Ele passa a ser visto como indivíduo, não apenas como membro de um corpo social ou político. Nesse sentido, ele passa a ter uma existência pré-social e pré-política (OLIVEIRA, ibid.: 18-20). Numa tal situação, chamada por Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, entre outros, de “estado de natureza”, o homem possui direitos naturais, que precisam ser respeitados mesmo quando abandona este estado, ou seja, quando passa a fazer parte de alguma comunidade política. E a implantação de um estado de sociedade, em contraponto ao estado de natureza, dá-se essencialmente, no pensamento dos autores liberais, pelo consentimento entre os homens.

Quais seriam, então, as contribuições de John Locke e J.-J. Rousseau ao Liberalismo? Tomando-se inicialmente o primeiro, em sua obra Segundo Tratado Sobre o Governo (2005): neste livro, Locke vai expor suas idéias sobre o estado de natureza, a formação e condução do corpo político. Para Locke, o homem nasceu sob o “estado natural” ou “de natureza”: não existia poder comum ou lei estabelecida, exceto a lei natural, que é a razão humana.

O estado natural tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses (LOCKE, ibid.: 24).

Além disso, é preciso que existam executores para essa lei da natureza. E eles existem: os próprios homens. Cada indivíduo tem o direito de castigar o ofensor da lei – buscando assim a preservação própria e/ou a de outro, se for o caso – e de buscar reparação para os danos que forem causados por esta ofensa.

No estado de natureza imaginado por Locke, o direito de propriedade existe e tem um fundamento lógico: sendo o indivíduo senhor de seu corpo, é, logicamente, igualmente proprietário dos frutos de seu trabalho. Ao modificar a natureza, um bem que é comum a todos, pelo trabalho de seu corpo, é direito do homem a propriedade sobre aquilo que modificou: seja uma maçã que ele apanhou do pé, seja um animal que ele caçou, seja um pedaço de terra que ele preparou e plantou. Esta mesma lei também regulamenta e limita a propriedade: o homem só tem direito sobre aquilo que pode usufruir. Se alguém colher muitas frutas – além das necessárias à sua sobrevivência – e elas se estragarem, este homem deve ser punido, porque o excedente ultrapassou a parte que lhe cabia e pertencia, assim, aos outros.

Ainda que Locke afirme que a lei da natureza permite uma vivência “perfeita” para os homens, ela não dispõe de mecanismos para resolver controvérsias (um juiz reconhecido por todos, por exemplo); não tem um poder maior que efetive a sentença, quando esta for justa. Além disso tudo, há outro motivo:

Se, como disse, o homem no estado de natureza é tão livre, dono e senhor da sua própria pessoa e de suas posses e a ninguém sujeito, por que abriria mão dessa liberdade, por que abdicaria ao seu império para se sujeitar ao domínio e controle de outro poder?A resposta óbvia é que, embora o estado de natureza lhe dê tais direitos, sua fruição é muito incerta e constantemente sujeita a invasões porque, sendo os outros tão reis quanto ele, todos iguais a ele, e na sua maioria pouco observadores da eqüidade e da justiça, o desfrute da propriedade que possui nessa condição é muito insegura e arriscada. Tais circunstâncias forçam o homem a abandonar uma condição que, embora livre, atemoriza e é cheia de perigos constantes (LOCKE, ibid.: 92).

Os homens, visando à fundação de um corpo político e a criação do estado civil ou de sociedade, precisariam, de acordo com Locke, abdicar de parte de seu poder original em favor da regulamentação dos poderes da sociedade. No estado de natureza, eram direitos do homem, como já referidos, agir em favor da preservação própria ou de outro e de buscar reparação pelas injúrias recebidas. No estado de sociedade, os homens abdicam desses dois poderes em favor do poder legislativo (que estabelece a utilização da força para a preservação dos membros da comunidade, por meio das leis, e que, portanto, é o poder supremo daquela) e do poder executivo, que é responsável por executar as leis em vigor e, conseqüentemente, punir os infratores.

Essas são as contribuições principais do pensamento de Locke para o Liberalismo: a idéia de indivíduo pré-social, pré-político e livre para unir-se a outros em um pacto, que definiria um poder superior e comum, respeitado por todos. Esse poder, derivado da vontade da maioria, seria o poder legislativo de cada sociedade, cujo objetivo seria a preservação de cada membro, da liberdade e da propriedade. Além disso, em Locke o indivíduo efetiva-se por si só, mesmo no estado de natureza: ele é livre, capaz de efetivar suas propriedades a partir de seu trabalho.

Para Locke, o poder legislativo poderia ser delegado pelo povo a alguns homens, de modo que estes desenvolvam as atividades pertinentes, mas sem a pretensão de governarem por meio de decretos arbitrários ou de buscarem outro fim que não o bem geral. O autor ainda ressalta que o povo pode, se os legisladores não estiverem agradando, trocá-los e até modificar a forma de organização deste poder. Desse modo, a comunidade configurar-se-ia como o verdadeiro poder supremo, embora este só se manifestasse quando o governo fosse destituído ou modificado.

Essas colocações nos permitem vislumbrar uma forma primeira (para não dizer “primitiva”, termo carregado de conotações pejorativas) de democracia representativa: a comunidade, por meio da escolha da maioria, elegeria representantes para atuarem como legisladores. Estes poderiam, contudo, ser destituídos e o próprio modelo do poder legislativo poderia ser transformado de acordo com os interesses da comunidade. Além disso, seria também delegado um poder executivo, para fazer valer as leis. Este poder executivo, sendo subordinado ao poder legislativo, estaria, em última instância, igualmente dependente da comunidade, tal como nas democracias representativas que conhecemos.

Jean-Jacques RousseauSe as contribuições de Locke para o liberalismo parecem ser maiores do que para a democracia, ao falar de Rousseau temos exatamente a impressão contrária. Partindo dos mesmos pressupostos do autor inglês, Rousseau também fala do estado de natureza e do pacto social, que chama de “contrato social”. Contudo, ele é muito menos “individualista” do que Locke, o que faz com que alguns lhe classifiquem de “antiliberal”.

Para Rousseau, os homens também surgiram sob o estado de natureza e, quando chegaram a um ponto “(...) em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam (...) as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado”, eles precisaram deixá-lo para não perecerem (ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1999).

O verniz liberal de Rousseau aparece nitidamente para tentar resolver a seguinte questão:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim  tão livre quanto antes (ROUSSEAU, ibid.: 70).

A preocupação do autor, como se vê, é articular a vida em comum, sob um poder superior – o estado de sociedade – sem, contudo, fazer com que o indivíduo perca sua liberdade. Liberdade é um valor muito importante para o autor: “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres”. Segundo ele, destituir-se da liberdade é também jogar fora a moralidade (ROUSSEAU, ibid.: 62). Por isso, é importante uma reposta àquela questão, que para ele consiste no contrato social: todos e cada membro da comunidade se “alienaria” – abdicaria de todos os seus direitos – totalmente em favor daquela. Sendo a condição igual para todos, ninguém estaria mais ou menos prejudicado. Além disso, sendo a alienação total, a união torna-se perfeita e ninguém pode reclamar de nada.

Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem (ROUSSEAU, ibid.: 70-71)

Em termos sintéticos, o Contrato Social quer dizer: cada um se dá totalmente, em favor da vontade geral, que será a dirigente suprema da comunidade. Rousseau concebe que o Contrato faz nascer um “corpo moral e coletivo”, constituído por todos os membros da sociedade em questão. Esse corpo ganha o nome de corpo político, e Rousseau estabelece importantes conceitos: esse corpo político recebe o nome de soberano quando ativo; estado quando passivo; e potência quando comparado a outros. Portanto, em Rousseau, a soberania é exercida pelo corpo político, o corpo “moral e coletivo”, os homens reunidos. O soberano constitui a reunião de todos os particulares que, reunidos, tornam-se o público e os detentores da vontade geral.

A proposta de Rousseau é a seguinte: os homens, reunidos, formam o soberano, que também deve ser o detentor do poder legislativo. As leis – formuladas por um Legislador e necessariamente sancionadas pelo soberano, consistindo, portanto, em atos da vontade geral – devem garantir principalmente a liberdade e a propriedade. Os cidadãos, tendo a liberdade garantida dentro do estado de sociedade, também precisam ter as desigualdades suprimidas ou diminuídas. Para o autor, “o estado social só é vantajoso aos homens quando todos eles têm alguma coisa, e nenhum tem demais” (ROUSSEAU, ibid.: 81, nota 4).

O poder legislativo deve ser exercido pelo soberano. E o executivo? Segundo o autor, não deve ser por ele também exercido, porque “(...) esse poder só consiste em atos particulares que não são em absoluto da alçada da Lei, nem consequentemente da do soberano, cujos atos todos só podem ser Leis” (ROUSSEAU, ibid.: 136). Como isso se resolve? Segundo Rousseau, o detentor do poder executivo deve ser o Governo, um corpo encarregado de executar as leis e manter a liberdade. Dependendo de muitas variáveis, tais como o clima, as condições geográficas, o tamanho do território e o número de habitantes, o poder executivo (o Governo) deve ser monárquico, aristocrático ou propriamente democrático. O autor afirma também que pode haver formas mistas de governo (em verdade, ele assume que não existem governos puramente simples, mas que todos são mistos ou complexos).

A identificação do poder legislativo com o soberano tem uma implicação muito grande: para que o soberano legisle, ele precisa reunir-se. De acordo com o autor, a soberania não é delegável: o soberano só pode ser representado por si mesmo. Também ela não é divisível: ou representa a vontade geral ou não. Assim, surge um grande problema: em comunidades muitos grandes, com vasto número de habitantes, seria virtualmente impossível essa reunião de todos os homens. O próprio Rousseau confessa que sua proposta só é viável em pequenas comunidades (ibid.: 189).

O fato de alguns classificarem Rousseau como “antiliberal” vem exatamente desta característica: ao dar muito mais valor ao corpo político (soberano) em sua totalidade do que aos indivíduos, afirmando que a liberdade e a propriedade só realmente se efetivam no estado de sociedade, sob o Contrato Social (ROUSSEAU, ibid.: 77-78), Rousseau se distancia um pouco daquilo que Locke defendeu. Contudo, os valores fundamentais do liberalismo estão presentes na obra daquele autor, como a concepção de indivíduo e a importância do consenso e da liberdade dentro da organização social e do estabelecimento do contrato.

O fato de Rousseau usar a palavra “Contrato”, ao invés de “pacto”, como usada por Locke, já enuncia distinções: segundo o Miniaurélio Século XXI (FERREIRA: 2001), “contrato” significa “acordo de duas ou mais pessoas, empresas, etc., que entre si transferem direito ou se sujeitam a uma obrigação” (FERREIRA, ibid.: 194, grifos meus). Já “pacto” tem o seguinte significado: “ajuste, acordo entre Estados ou particulares” (IDEM, ibid.: 541). Pode-se vislumbrar que o termo e a proposta de Rousseau prenunciavam um envolvimento muito maior por parte dos contratantes.

Voltando ao cerne da argumentação, as contribuições de Rousseau para a democracia foram muito grandes, embora não ele concordasse com o que hoje chamamos “democracia representativa”. Ele sistematizou e formulou com todas as palavras a idéia de que o poder vem do povo. Muito mais do que em Locke, o povo para Rousseau tem o poder em suas mãos para fazer e aprovar as leis. A soberania é exercida pelo povo, diretamente, sem delegados ou representantes. Esses, para o autor, são inclusive frutos de uma degeneração dentro do Estado, causada pela “(...) confusão do comércio e das artes, é o ávido interesse pelo ganho, é a frouxidão e o amor à comodidade (...)” (ROUSSEAU, ibid.: 185).

Para Rousseau, portanto, a democracia deveria dar-se de maneira direta, como acontecia entre os gregos, que são muitos citados na obra dele. Tido como grande influência intelectual para a Revolução Francesa, a defesa “intransigente” da liberdade e da igualdade em Rousseau o tornam um grande representante das teorias liberais e igualmente grande defensor da democracia.

Referências bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

FERREIRA, Aurélio Buarque de H. Miniaurélio Século XXI. 5ª ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

HOLANDA, Francisco Uribam X. de. Do Liberalismo ao Neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente. 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2005.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

©Copyright 2001/2006 - Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar
 Centro de Estudos Sobre Intolerância - Maurício Tragtenberg

Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá/PR - Brasil - Email: rev-urutagua@uem.br 

Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 16 agosto, 2006.