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por SÉRGIO
DE SOUSA MONTALVÃO
Mestre
em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professor de História Mundial Contemporânea no MBA em Diplomacia e Negócios
Internacionais Argus/Universidade Cândido Mendes (UCAM)
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Notas
sobre uma publicação comunista independente:
a
Revista Brasiliense
Sérgio
de Sousa Montalvão
Resumo:
O presente artigo é uma pesquisa sobre a Revista Brasiliense,
publicação bimestral da área de ciências humanas e sociais,
dirigida por Elias Chaves Neto e Caio Prado Júnior, entre 1955 e
1964. O intuito deste trabalho é pensar a relação que esta
publicação, eminentemente ligada a uma reflexão de esquerda,
manteve com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), descortinando
assim as suas formas de recepção e as suas estratégias de
legitimidade.
Palavras-Chave:
Revista Brasiliense – esquerda – história das idéias.
Abstract:
The present article is a research on the Brasiliense Review, bimonthly publication of the area of social and
human sciences, directed by Elias Chaves Neto and Caio Prado Júnior,
between 1955 and 1964. The
intention of this work is to think the relation that this
publication, eminently linked to a reflection of left, kept with the
Brazilian Communist Party (PCB),
thus disclosing its forms of reception and its strategies of
legitimacy.
Key
Words:
Brasiliense Review – left – history of ideas.
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A
Revista Brasiliense surgiu em
meio às discussões de um grupo de intelectuais e militantes comunistas
da cidade de São Paulo, na primeira metade dos anos 1950, com a presença
de Álvaro de Faria, Caio Prado Júnior, Carlo Tamagni, David Rosemberg,
Elias Chaves Neto, Gastão Rachou, Paulo Alves Pinto, Roger Weiller e
Salomão Schattan. Nesse momento, o espaço
colocado à disposição dos intelectuais comunistas era restrito,
tornando-se ainda mais precário após a saída de cena da Revista
Fundamentos, em dezembro de 1955. A condição de clandestinidade do
Partido Comunista do Brasil (PCB), a partir de 1947, agravava ainda mais
essa situação. Após a cassação do seu registro eleitoral, durante o
governo Dutra, o partido teve a sua liberdade de imprensa praticamente
anulada pela ação policial. Na sua fase inicial, o períodico comunista Tribuna
Popular, editado no Rio de Janeiro, chegou a ser o jornal com a
segunda maior tiragem da cidade, atingindo o número de trinta mil
exemplares (RUBIM, 1998). Em
conseqüência dessa política repressiva, pertencente ao cenário
internacional de Guerra Fria, a tiragem
média da imprensa comunista que, na imediata conjuntura do pós - Segunda
Guerra Mundial, contava com uma extensa rede de jornais nas principais
capitais brasileiras, viu-se reduzida a uma cifra quase insignificante.
O
surgimento da Revista Brasiliense,
em setembro de 1955, representou, portanto, o nascimento de uma publicação
independente no campo da esquerda comunista, principalmente na medida em
que rompia com o controle material do PCB. Publicada pela Editora
Brasiliense, de propriedade do historiador e editor paulistano Caio Prado
Júnior, a revista beneficiou-se do fato de não precisar de recursos
provenientes de anúncios comerciais ou da chancela do Partido Comunista,
sobrevivendo com recursos próprios.
A
liberdade de atuação da Revista Brasiliense revelou-se também na escolha dos seus
colaboradores, ocorrida de maneira absolutamente informal, através de uma
rede de relacionamentos pessoais.
Para um de seus colaboradores no Rio de Janeiro, o jornalista Fernando
Segismundo, entre seus articulistas estavam pessoas oriundas de uma ampla
frente de tendências políticas e ideológicas espalhadas do centro à
esquerda. Encontravam-se entre eles até mesmo figuras desprestigiadas no
PCB, ou que ao longo de sua trajetória tiveram problemas com a direção
do partido, como Heitor Ferreira Lima e Octávio Brandão.
Nos
seus cinqüenta e um volumes, publicados bimestralmente e de modo
ininterrupto durante nove anos, a Revista Brasiliense defendeu posições nacionalistas, porém
criticando as versões oficiais, de Juscelino Kubitschek a João Goulart
(LIMA, 1986, p.172). No
"Manifesto dos Fundadores", esta publicação se apresentou como
um "centro de debates e estudos brasileiros, aberto à colaboração
de todos os que já se habituaram ou se disponham a abordar seriamente
esses assuntos". Antônio Albino Canellas Rubim, no capítulo que
redigiu para a História do Marxismo no Brasil, acentuou a originalidade
do programa político contido na revista, tendo escrito que, mesmo antes
do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956,
Caio Prado Júnior e Elias Chaves Neto organizaram "uma publicação
político-cultural orientada pelo marxismo e pelo nacionalismo,
independente e divergente das teses do PC" (RUBIM, 1998, p.320). No
mesmo sentido, Gildo Marçal Brandão enfatizou que, "sem
compromissos orgânicos com o partido", a Revista
Brasiliense obteve uma "maior incidência na vida
intelectual", tratando-se de uma publicação "aberta e
frentista" (BRANDÃO, 1997, p.214).
Pesquisas
focadas na política interna do partido e no processo de apogeu e crise do
stalinismo no PCB mantiveram essa mesma caracterização. Frederico Falcão
tratou-a como parte do processo de “desestalinização”, afirmando que
nela se "reproduziram por quase dez anos as posições de pecebistas
e de intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)
sobre o nacionalismo, tendo a revista, no entanto, contestado alguns
aspectos do pensamento nacionalista dominante” (FALCÃO, 1997, p.279).
Fernando Limongi, porém, relativizou a relação entre a Revista
Brasiliense e o ISEB, considerando-a tênue e insuficiente. Para este
autor, embora houvesse um claro distanciamento entre o núcleo dirigente
do PCB e os principais incentivadores da revista, sua proposta partiu de
um grupo de intelectuais marxistas, enquanto os principais membros do ISEB,
numa referência a Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe, que dominaram a
produção do instituto na sua primeira fase, pretendiam formular uma
teoria que superasse o marxismo. (LIMONGI, 1987, p.37).
Nas
páginas da Revista Brasiliense encontramos
uma vasta quantidade de artigos dispostos a discutir os efeitos negativos
do imperialismo, a questão da propriedade da terra e as condições de saúde
e alimentação do povo nas regiões mais distantes do Brasil. Por outro
lado, em concordância com os objetivos expostos no manifesto de fundação
da revista - criada com o propósito de apoiar "a renovação e os
progressos da cultura" - também encontramos uma grande presença de
artigos de crítica literária, estudos históricos, filosóficos e sociológicos.
Mesmo
que a Revista Brasiliense
primasse em ser uma publicação pluralista e aberta a diversas contribuições
- "prescindindo de ligações de ordem política e partidária"
-, verifica-se nela uma presença acentuada de pessoas que eram de algum
modo vinculadas ao PCB.
No entanto, enquanto era recebida com grande aceitação nos meios acadêmicos
e literários, dentro e fora de São Paulo, como se percebe na lista de
signatários do seu manifesto de fundação, a recepção da Revista
Brasiliense nos meios pecebistas, desde as primeiras conversas em
torno de sua criação, mostrou-se altamente crítica. Este clima de
estranhamento levou o escritor Afonso Schimdt, diretor de redação da Revista
Fundamentos, a desligar-se dela, em razão de uma deliberação do
Comitê Regional Paulistano do PCB.
Embora
tenham despertado a censura partidária, os responsáveis pela Revista
Brasiliense sempre evitaram qualquer espécie de confronto direto com
o PCB, mesmo que estivessem se colocado constantemente numa direção
contrária às suas teses principais. Esse ponto fica evidente pela ausência
de Caio Prado Júnior e Elias Chaves Neto no mais significativo debate
partidário da época, a controvérsia sobre o stalinismo e seu legado na
cultura política pecebista, após a divulgação do Relatório Krushev
durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).
Entre 1956 e 1957, apesar da atitude conservadora assumida pelo núcleo
dirigente do PCB, cerceando o debate em nome da "unidade do
partido", a discussão acerca do Relatório Krushev seguiu adiante
nos diversos órgãos da imprensa partidária. Até que uma intervenção
mais direta levasse à expulsão do chamado "grupo renovador",
favorável a ampliação desse debate, questionou-se o "mandonismo, o
dogmatismo e a ausência da democracia interna", como reflexos do
autoritarismo stalinista no PCB (SEGATTO, 1995, p.41). Na Revista
Brasiliense, a polêmica entre "abridistas" e "fechadistas"
sequer foi mencionada. Não houve também qualquer referência às publicações
O Nacional e Novos
Tempos, que passaram a difundir as idéias renovadoras após a saída
de seus representantes do PCB. O silêncio manteve-se entre os editoriais,
nada tendo sido publicado a esse respeito. O XX Congresso do PCUS, tema de
fundo da polêmica, recebeu um único artigo , O XX Congresso do PCUS nos
quadros do mundo atual, de Álvaro de Faria (1956), em que foi ressaltado
apenas a continuidade deste encontro em relação ao que o antecedeu, e
que seria o último presidido por Josef Stálin. Para este autor: "as
três teses que mais surpreendem neste XX Congresso - a de que a paz está
sendo imposta; a de que o mundo marcha para a coexistência entre os dois
sistemas, e a de que entramos em um período de desenvolvimento pacífico
- são apenas a atualização, num estágio mais avançado, das que haviam
sido formuladas no XIX Congresso".
Em Legalidade Socialista, Elias Chaves Neto (1956) abordou
indiretamente o assunto, tendo reafirmado a continuidade da política
externa soviética, assentada na idéia de coexistência pacífica. Em
relação aos danos causados ao socialismo pelo "culto à
personalidade", vigente nos anos de apogeu do stalinismo, considerou
que este "só não produziu males maiores porque o marxismo-leninismo
já havia penetrado suficientemente fundo nas fileiras do partido e nas
massas da população". O diretor-responsável da Revista
Brasiliense evitava assim um tratamento mais profundo acerca de um
tema que causava tanta polêmica naquele momento entre os comunistas
brasileiros.
Esse
absenteísmo pode ser entendido a partir da intenção de manter o caráter
de pluralidade e independência que acabamos de frisar, evitando-se uma
demasiada aproximação da revista com questões mais diretamente ligadas
às disputas internas do partido. Para Fernando Limongi, o distanciamento
da Revista Brasiliense em relação
às disputas internas do PCB evidenciava o isolamento político de seus
mentores, representantes de um grupo que já havia defendido teses minoritárias
em ocasiões anteriores (LIMONGI, Op. Cit., p. 28).
Consideramos,
entretanto, que numa conjuntura identificada com um intenso processo de
renovação nos quadros de dirigentes comunistas, essa atitude revelava,
antes mesmo de uma crônica fragilidade política, uma opção de
manter-se, malgrado as diferenças, no limite da participação e do
centralismo partidário. Esta atitude evidencia
os limites da crítica exercida pela revista em relação ao
partido, que pode ser entendida pelo seu pertencimento a uma cultura política
que entendia a "forma-partido" como instrumento essencial na
luta revolucionária.
A divisão da Revista
Brasiliense em quatro grandes vertentes de interesse aponta para o
seguinte resultado quanto a incidência temática dos artigos e notas
publicados: 1- Assuntos políticos: "Política Nacional" (93
artigos e notas), "Política Internacional" (52),
"Socialismo e Socialismo no Brasil" (20), "Política
Externa Brasileira" (18), "Operariado e Sindicalismo"
(16), "Nacionalismo" (12) e "Movimento Estudantil"
(6), 217 ou 28% da revista. 2 - Assuntos econômicos: Todos o artigos
e notas classificados como "Economia Nacional" (66 artigos e
notas), "Capital Estrangeiro e Imperialismo" (35),
"Petróleo e Petrobrás"
(10), "Economia Internacional" (4) e "Energia Atômica"
(2), 117 ou 15,2 % da revista. 3-
Assuntos sociais: Todos o artigos e notas classificados como
"Medicina e Alimentação" (49 artigos e notas), "Educação"
(31), "Questão Agrária" (29), "Nordeste: Análises e
notas de viagem" (11) e "Emprego e Previdência" (6), 126 ou 16,3 % da
revista.4 - Assuntos literários, acadêmicos e culturais: Todos os
artigos e notas classificados como "Literatura" (105 artigos
e notas), "História" (61), "Teatro" (28),
"Filosofia" (24), "Sociologia" (24), "Arte e
Arquitetura" (19), "Cinema" (19), "Marxismo"
(9), "Ciência" (6), "Psicologia e psiquiatria"
(5), "Antropologia" (4), "Música" (4),
"Pesquisa Científica no Brasil" (3), "Teoria Econômica"
(2) e "Esperanto" (1) e "Geografia" (1), 315 ou
40,5 % da revista.
Paulo Alves Pinto
recorda-se do assunto da seguinte maneira:"O partido não
aceitava a criação de um órgão independente em São Paulo, como nós
queríamos criar. E você sabe, uma revista não é criada da noite
para o dia. Então, desde que começamos a tratar do assunto foi uma
ciumeira muito grande. O Caio, que participava da Revista Fundamentos,
foi muito hostilizado. Um figurão do partido, eu me lembro muito bem,
me disse para não participar da revista, para não dar força ao
Caio, dizendo assim: Ele é árvore que já deu fruto”.
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Referências
bibliográficas:
LIMA,
Heitor Ferreira. Revista Brasiliense: sua época, seu programa, seus
colaboradores, suas campanhas. In: MORAES, Ricardo (Org.). Inteligência
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986.
LIMONGI,
Fernando. Marxismo, nacionalismo e cultura: Caio Prado Júnior e a Revista
Brasiliense. Revista Brasileira de
Ciências Sociais nº. 5 vol. 2. São Paulo: Vértice, 1987.
RUBIM,
Antônio Albino Canelas. Marxismo,
cultura e intelectuais no Brasil. In: Moraes
João
Quartim (Org.). História do
marxismo no Brasil, vol. 3. Campinas: Unicamp, 1998.
SEGATTO,
José Antônio. Reforma e Revolução:
as vicissitudes políticas do PCB (1954-64). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.
Documentos:
Dossiê
30-k-33 Caio Prado Júnior. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
Entrevista
de Paulo Alves Pinto ao autor. Atibaia, janeiro de 2000. |
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