Introdução:
Há,
em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do escritor português José
Saramago, uma fonte vasta de inquietantes questões e este trabalho
destina-se à problematização de algumas delas, como: A literatura
humaniza o Divino ou diviniza o homem? Os textos bíblicos são ditames
santos ou literatura santificada? Seria a palavra responsável por tudo o
que é tido como real/certo, ficcional/incerto? Esta obra saramaguiana nos
faz pensar na veracidade do que lemos, muitos escritos proclamados como
verdades absolutas, na aceitação de atitudes ou na falta delas e em nós
como um todo com quantidade expressiva de uma fé que nem questionamos
como ou por quê.
Baseando-se
no romance de José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e
na teoria filosófica de Friedrich Wilhelm Nietzsche, este artigo tenciona
evidenciar o Divino humanizado de Saramago e fazer notar a delícia –
com perdão da expressão – que são as idéias desses dois pensadores,
como se interagem – mesmo não sendo contemporâneos – e como
ocasionam questionamentos a quem se predispõe a lê-los sem o pré-conceito
medievo que ainda habita em nós. Para tanto, dividimos em duas partes o
estudo sugerido: na primeira parte, O
homem em Deus, tratamos da humanização do Divino em José Saramago e
nos apoiamos nos pensamentos do filósofo alemão Nietzsche. Em E se fez palavra, e a Palavra o todo faz, segunda parte deste
trabalho de pesquisa, explicitamos o poder proveniente do discurso
persuasivo, da Palavra e da possível criação de Deus pelo homem por
meio desse poder.
Para
estudiosos e apaixonados em literatura, essa proposta parece ser atraente.
Então, não busca, esse trabalho, respostas absolutas e nem resposta
alguma, pretende, isso sim, levantar questões que acareiem
o que é crença absoluta com o que poderia ser, ou seja:
tratamento literário dispensado a tais verdades; conjeturar sobre crenças
que podem parecer (ser) crendices e/ou vice-versa. Ao realizarmos essa
pesquisa estaremos estudando a desconstrução da perfeição Divina na
literatura, especificamente em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de
José Saramago e evidenciando a importância primordial da Palavra.
1
– O Homem em Deus
O
primeiro capítulo do livro de José Saramago, O evangelho segundo
Jesus Cristo, trata da descrição interpretativa de uma gravura da série
“A Grande Paixão”, de Albrecht Dürer (1471-1528), considerado o
grande artista do renascimento alemão. A crucificação é mostrada por
meio da gravura, não apenas por descrição, mas também como uma
interpretação da imagem pintada pelo artista. Mesmo que não conheçamos
a obra de Dürer, é possível concluir que estamos diante de uma imagem
construída por palavras, que se refere à outra, uma vez que o narrador
nos mostra esse fato ao usar expressões como: o que temos diante de nós
é papel e tinta, mais nada – podendo ser uma referência tanto à
gravura quanto ao próprio livro. Assim, percebemos que o romance começa
com a crucificação de Cristo, o que nos leva a pensar na inversão em
relação ao texto bíblico, que segue uma certa ordem cronológica dos
acontecimentos: nascimento, ministério, paixão e morte de Jesus. O
evangelho segundo Jesus Cristo modifica essa ordem, sendo um claro
indicativo para o leitor do teor subversivo que contém. A visão impar de
José Saramago, sobre uma já tão conhecida história, não agride o
ponto central das crenças, a santidade de Jesus, mas dá sentimentos
humanos normais a Ele, a Deus, ao Demônio e a todas as outras
personagens. Em um texto que sempre nos soa como temperado com boa pitada
de ironia, por vezes até engraçado e sempre muito reflexivo, Saramago
carrega essas personagens com grande peso de suas impressões pessoais do
homem, da igreja e da sociedade.
Os
Seres Divinos, em O evangelho segundo Jesus Cristo, são todos eles
repletos de humanidade e o autor, com o uso da paródia: “[...] Deus,
nas empíricas alturas, respira, comprazido, os odores da carnagem” (SARAMAGO,
2003, p. 249) e da carnavalização: “Se por um atraso nas comunicações
ou enguiço da tradução simultânea, ainda não chegou ao céu notícia
de tais ordens, muito admirado deverá estar o Senhor Deus [...]”
(SARAMAGO, 2003, p. 249 e 53), que permitem recriações livres e críticas,
contraria fatos consumados da História Sagrada, como o dogma da
virgindade de Maria; Saramago descreve o ato sexual ocorrido entre José e
Maria, que deu origem a Jesus, com – se nos permite o paradoxo –
divinal humanidade:
A
manhã subia, expandia-se, e em verdade era uma visão de beleza quase
insuportável [...] Um sopro de vento ali mesmo nascido bateu na cara de
José [...] não era mais do que o aturdimento causado por uma súbita
turbulência do sangue, o arrepio sinuoso que lhe estava percorrendo o
dorso como um dedo de fogo, sinal de uma outra e mais insistente urgência.
Maria,
deitada de costas, estava acordada e atenta [...] José aproximou-se e
afastou devagar o lençol que a cobria [...] e Maria, entretanto, abrira
as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho [...] Deus, que está em
toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não
podia ver como a pele de um tocava a do outro, como a carne dele penetrou
a carne dela (SARAMAGO, 2003, p. 26-7)
Com
a quebra da virgindade de Maria, Saramago prepara outra mudança em outro
fato; Jesus é o primogênito de nove filhos tidos pelo casal, sendo eles:
Jesus, Tiago, Lísia, José, Judas, Simão, Lídia, Justo e Samuel.
Moema
de Castro e Silva Olival, além do ponto acima tratado, ainda cita outras
releituras do texto bíblico em O evangelho segundo Jesus Cristo,
como:
[...]
a visita dos três reis magos, aqui transformados em três pastores [...]
só que um deles, o que simula, na capa de pastor, o Pastor-Demônio,
incumbido por Deus de ‘abrir os olhos de Jesus’ [...] essa personagem,
variação parodística da tentação de Jesus no deserto, terá
significativa presença na formação de Jesus.
[...]
a morte de José, por crucificação, aos 33 anos, dados da morte de
Jesus, segundo a história sagrada, é uma antecipação sugestiva, simbólica,
na pessoa do pai (ser humano), do destino do filho (também ser humano)
[...] O sonho que, em vida, atormentou José, após sua morte, atormentará
seu filho. (OLIVAL p. 89 – 90).
Estas
e outras citações de Olival podem ser vistas como ratificações da idéia
sobre a humanização do Divino em José Saramago. Essa visão humana dos
Seres Celestiais é, até mesmo, óbvia na obra aqui estudada, mas, a
poeticidade com que o autor constrói esse Divino humano compreensível,
palpável, é merecedora de uma atenção especial. Nos trechos acima,
transcritos de O espaço da crítica, Moema ressalta a
espiritualidade do ser humano, alude ao que é passado de pai para filho
e, com isso, mostra que Saramago dá a José a paternidade de Jesus,
fazendo d’Ele mais homem do que santo. O Pastor-Demônio, que é o
responsável por mostrar a Jesus as trivialidades da vida humana,
rotuladas como pecados, acompanha-O desde a concepção – é ele quem
diz a Maria que ela está grávida – até o encontro de Jesus com Deus,
que mais à frente trataremos. Podemos sugerir que no Pastor-Demônio é
perceptível outra ironia de José Saramago: se ele mostra a Jesus o que a
humanidade pratica e ele é Satanás, é possível ler que tais práticas
sejam coisas do Demônio. Mas, nesta visão, o Demônio é de Deus,
como veremos mais à frente.
Ao
prover Jesus de uma concepção comum, de uma gama de sentimentos
inerentes ao homem, Saramago O faz apaixonadamente humano. Jesus é o
advogado da humanidade, é seu defensor, identifica-Se com o homem, ou
melhor, é o homem, enfrenta Deus, tenta enganá-Lo em prol da humanidade.
“A relevância do humano se realçará no desenrolar da trama e, nesse
Evangelho, seus desejos, paixões, pensamentos, falas e sofrimentos se
erguerão em tom de contraponto à vontade e poder divinos”
(OLIVAL,1998, p. 83). Jesus não quer os sofrimentos, as mortes dos homens
em nome Dele e de Deus.
Em
O Anticristo, lemos que: “Quando não se coloca o peso da vida na
própria vida, mas sim no ‘além’, no nada, então se retira da vida
toda sua importância” (NIETZSCHE, 1992, p. 65); podemos entender
que, como no pensamento saramaguiano, expressado por Jesus, em O
evangelho segundo Jesus Cristo, Nietzsche defende que a vida é
terrena, desprezando qualquer possibilidade de existência de um Éden. O
romancista e o filósofo parecem compartilhar a idéia de que a vida
post mortem
é um artifício do cristianismo para dominação do povo e, com isso,
mais uma vez valorizam o ser humano e o colocam como criador, talvez até
mesmo de Deus, movido pelo poder, pela ganância, por medo, necessidade de
explicar e a constante auto-exigência de superação, comum a quase
totalidade da humanidade.
Em
O evangelho segundo Jesus Cristo, Jesus é o centro da narrativa, o
núcleo onde estão ligados todos os acontecimentos, no decorrer da história
o autor retrata n’Ele todas as fases por que passam os seres humanos
durante sua formação. Jesus é um adolescente carregado de todas as dúvidas
inerentes à idade e, ainda, com impetuosidade e rebeldia. Observáveis,
também, quando Ele sabe da morte das crianças, conseqüência de Seu
nascimento.
Antes
disso, porém, abriremos um necessário espaço para comentarmos o sonho
de José, decorrente da culpa que lhe pesou por não ter avisado aos
outros vinte e cinco pais, de Belém, da vinda dos soldados romanos para o
extermínio das crianças menores de três anos. Sonho esse que passa, após
sua morte, a Jesus. A narrativa trata com grande emoção e sentimentos
humanos os acontecimentos que provocaram a culpa em José, trecho que vale
ser aqui transcrito, também para maior compreensão do sonho de José
herdado por Jesus:
Bom,
tenho que ir, e nesse momento ouviu vozes que vinham de um caminho abaixo
do local onde se encontrava, e, inclinando-se sobre o muro de pedra que o
separava dele, viu que eram três soldados [...] dois deles, com o coto da
lança no chão, escutavam o terceiro [...] E a que horas vai ser isso
[...] Ao principio da hora terça, quando já toda a gente está recolhida
[...] E então a ordem é matá-los todos, A todos não, só aqueles que
tiverem menos de três anos [...] E isso vai dar quantos [...] Pelo senso,
disse o chefe que devem ser aí uns vinte e cinco.
[...]
um
clamor de novos gritos e prantos encheu a atmosfera, eram os homens
enlouquecendo debaixo de um céu vazio.
[...] Que gritos são aqueles, perguntou, mas o marido não lhe respondeu
[...] José respondeu [...] Estão a matar gente. [...] Crianças, por
ordem de Herodes [...]
[...]A
meio da noite, José teve um sonho. Cavalgava por uma estrada que descia
em direção a uma aldeia de que já se avistavam as primeiras casas, ia
de uniforme e com todos os petrechos militares em cima, armado de espada,
lança e punhal, soldado entre soldados, e o comandante perguntava-lhe, Tu
aonde vais, ó carpinteiro, ao que ele respondia [...] Vou a Belém matar
o meu filho, e quando o disse despertou com um ronco abominável, o corpo
crispado, torcido de terror. (SARAMAGO, p. 106-7; 112; 118-9)
É
possível, ao observarmos e interpretarmos as citações acima, medrar a
atitude de José pelo sentimento paterno de proteção imediata à cria e,
com o distanciamento do perigo, o nascer da culpa por seu “egoísmo”.
Um egoísmo, se assim acharmos conveniente dizer, mais culposo para Deus,
por seus desígnios, tal observação é passível de corroboração no
grifo da citação da página 112; se “debaixo de um céu vazio”, então
pode haver a ausência de compaixão por parte do Divino.
Bem,
o sonho de José passa ao filho e, com isso, podemos notar que José e
Jesus estão unidos pelo mesmo, e Jesus está ligado a Deus por filiação,
que é por Jesus questionada.
Em
Nietzsche:
Esse
‘mensageiro feliz’ morreu como viveu [...] não para ‘salvar
homens’, mas para mostrar como se deve viver. [...] seu comportamento
perante os juizes, os verdugos, entre os acusados e diante de toda sorte
de difamação e escárnio, sua atitude na cruz. Não opõe resistência,
não invoca seus direitos [...] E ele suplica, sofre, ama com aqueles que
lhe causaram mal [...] Não se defender, não ter raiva, não atribuir
responsabilidade... (NIETZSCHE, 1992, p. 57-8).
O
Jesus apresentado por Saramago é um adolescente “comum”, que julga
seus pais severamente, que abandona sua casa. Esta construção de Jesus
vai de encontro ao Jesus que Nietzsche, ironicamente, trata no ponto
citado acima. O “mensageiro feliz” é o Divino como representação
dos dominantes, é o que esperam do povo: não se opor, não lutar. Há
aqui um paradoxo entre o Cristo saramaguiano e a ironia de Nietzsche.
Mas,
esse Jesus, o de Saramago, humano a ponto de ter dificuldades em aceitar
sua condição de filho de Deus, ganha a admiração do leitor, que se
reconhece em suas atitudes. Jesus que conhece o amor carnal, com Maria de
Magdala (Madalena) – uma bela humanização do divino, de Saramago –,
é um Divino com maior possibilidade de ser, por nós, compreendido e de
compreender-nos.
Não
tenha medo, disse Maria de Magdala. [...] deita-te, eu volto já. [...] e
Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara
[...] Maria parou ao lado da cama [...] e disse, És belo, mas para seres
perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os [..]
soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão,
As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo uma taça
arredondada [...] quando Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos
[...] as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo [...] então sentiu
que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de
fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro,
como um peixe agitando-se (SARAMAGO, 2003, p. 282-3).
Nesse
emocionante amor, uma criação ficcional, de Saramago, entre Jesus e
Maria de Magdala, a humanidade dela atua, além de mostrar a fragilidade
emocional do ser humano, como compensador ao que de tirânico Jesus tem de
sua parcela Divina; é o divino que tem de ser dessacralizado.
Decidimos por essa citação para, mais uma vez, exemplificar a dicotomia
entre o humano e o Divino do Jesus saramaguiano e por acreditarmos ser tal
passagem carregada de beleza e lirismo. Assim, vemos que José Saramago,
em O evangelho segundo Jesus Cristo, não vulgariza o humano – ao
contrário, o supervaloriza – e, portanto, nem o Divino.
Em
O Anticristo, Nietzsche afirma que:
(...)
a personalidade psicológica do redentor só chegou até nós de uma forma
bastante deturpada. Essa deturpação é muito verossímil: por muitas razões
uma tal personalidade psicológica não poderia permanecer pura, inteira,
livre de marcas externas. Tanto o meio em que se movia essa figura
estranha quanto a história e o destino da primeira comunidade cristã,
estes mais fortemente devem tê-la marcado; retroativamente, sua
personalidade foi acrescida de traços desse destino que só vieram a ser
compreendidos em conseqüência da guerra e do seu uso como propagandista.
(NIETZSCHE, 1992, p. 53).
A
visão nietzscheana de um Jesus moldado para satisfazer os
interesses de controle das massas e de enriquecimento do cristianismo do
dominante, nos faz pensar na visão humanizada do Cristo, construída por
Saramago; ora, um ser Divinal que erra, tem raiva, dúvidas, desejos
sexuais e sofre de todas as mazelas a que homens e mulheres estão
sujeitos, não poderia ser usado como meio de dominação pelo medo, como
fez o cristianismo na Idade Média, e que esta e várias outras religiões
ainda fazem, por isso nos parece que Nietzsche alude a mudança psicológica
imposta a Cristo e Saramago nos faz concluir que esse Cristo humanizado,
de sua obra, é, para ele, talvez, o Cristo sem influências ditatoriais,
um homem que é como todos os homens de seu povo e diferenciado dele pelo
dom do discernimento, da religiosidade. Um dom, digamos, Divino.
1.1.
O humano no Senhor Deus
Trabalharemos,
a partir deste ponto, a personagem que nos parece ser a maior representação
da humanização do Divino escrita por Saramago, em O evangelho segundo
Jesus Cristo, a personalidade de Deus. Uma personalidade irônica,
aparentemente sádica e que sempre deixa que suas vontades, por díspares
que pareçam, sejam as únicas verdades, nos leva a pensar que Deus é o
antagonista da humanidade por fazer dela apenas o meio para satisfação
de seu id, ego e superego. Mas, se nos lembrarmos dos
pensamentos de Nietzsche, veremos que esse Deus é o Deus necessário à
satisfação humana por não ser um ente perfeito,
e sim um Ser que age em conformidade com a mais pura natureza humana; a
que não se envergonha de seu orgulho, a que se impõe pela força física
e/ou intelectual, aquela que almeja o mais alto poder.
Bem,
Saramago retrata um Deus que parece conceder um livre-arbítrio com cartas
marcadas, deixando que a humanidade acredite que pode e está
caminhando segundo sua própria vontade, mas até esse sentimento de
liberdade é criado por Ele; exemplificamos isso com Jesus tentando enganá-Lo
para frustrar Seus planos e poupar as dores à humanidade que deles
decorreram:
Que
ajudeis a minha morte a poupar as vidas dos que hão de vir, Não podes ir
contra a vontade de Deus, Não, mas o meu dever é tentar, Tu estás salvo
porque és filho de Deus, mas nós perderemos a nossa alma, Não, se
decidirdes obedecer-me, é ainda a Deus que estareis obedecendo. (...) O
filho de Deus deverá morrer na cruz para que assim se cumpra a vontade do
Pai (...) Um simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado a
si mesmo rei dos Judeus (...) (SARAMAGO, 2003, p. 436).
Jesus
acredita estar sendo, fazendo-se ser condenado como rei dos judeus ao invés
de filho de Deus, heterodoxo aos planos do Senhor. Acredita que isso
evitará as atrocidades e desgraças cometidas pelos homens em nome dos
Espíritos Celestiais, tais como: martírios, flagelações, as Cruzadas
ou Guerras Santas, a Santa Inquisição e tantos outros infortúnios
impingidos aos homens pelo homem em nome do Divino. Saramago, em O
evangelho segundo Jesus Cristo, usa cinco páginas, da 381 a 385, para
citar nomes de mártires e, mesmo com tantos lembrados, ainda outros nos vêm
a memória. Então, pode nos ficar a dúvida sobre a origem de Deus,
parecendo sermos levados a crer que, assim como a leitura de que todos os
seres humanos podem ser apenas joguetes de Deus, pode, o que nos parece
ainda pior, como prega Nietzsche, ser esse Deus a ferramenta de poucos
para que conquistem a vassalagem de muitos.
O
Deus da obra de José Saramago é, talvez, o mesmo Deus que Nietzsche
defende e diz ser o primeiro, o que atende às necessidades de um povo,
que não exige atos e ações contrárias à natureza humana.
Um
povo que ainda acredita em si, também possui ainda seu próprio Deus.
Venera no Deus as condições graças as quais ele se afirma, suas próprias
virtudes; projeta seu prazer em si mesmo, seu sentimento de poder num ser
a quem se pode agradecer por tudo isso. Quem é rico quer dar; um povo
orgulhoso precisa de um Deus para fazer sacrifícios [...] O homem é
agradecido por ser homem: só por isso precisa de um Deus. Um deus assim
deve ser útil e prejudicial, saber ser amigo e inimigo. Ele é admirado
no bem como no mal. A castração antinatural de um Deus que se torna
apenas um Deus do bem está totalmente fora do nosso ideal. O Deus bom é
tão necessário quanto o mau [...] Que importância teria um Deus que não
conhecesse raiva, vingança inveja, escárnio, astúcia, violência? que não
conhecesse nem os encantadores ardores da vitória nem os da destruição?
Um Deus assim seria incompreensível: para que tê-lo? (NIETZSCHE, 1992,
p. 37-8).
Este
Divino de Nietzsche parece ser a base do Deus saramaguiano, que é um Deus
que aglutina todas as qualidades, segundo Nietzsche, necessárias a um
Deus para a satisfação do povo que o criou e adora. Para o filósofo a
transformação desse Deus em um Deus só do bem coloca-O em um ponto
distante da realidade humana. Saramago parece evidenciar o Senhor Deus
mais próximo do homem e da mulher, satisfazendo, com isso, cremos, uma
grande parcela da população hodierna que busca um Deus feito a sua
imagem e semelhança e não o contrário.
Outra
significativa, e neste estudo indispensável, recriação de Saramago é o
Pastor-Diabo, que parece ser uma personagem coadjuvante de Deus ou, ainda
e mais provável, parte de Deus. O Pastor-Diabo não comete as esperadas
maldades legadas a Satanás pelo imaginário popular, que é fartamente
regado pelos textos bíblicos, isso sim, comporta-se com ética; tem
consciência de seu dever e, por isso, é servidor das vontades d’Ele.
Podemos observar entre as personagens Deus e Diabo a presença do
dualismo, que normalmente tem o Bem representado pelo claro, pela luz, por
Deus e o Mal pelo escuro, pelas trevas, pelo Demônio. Em O Evangelho
Segundo Jesus Cristo, Saramago nos leva a pensar em uma inversão de
valores, já que o Pastor-Diabo propõe seu arrependimento e subserviência
a Deus e este recusa-se a aceitar para que não caia no esquecimento.
E,
talvez, trabalhado o conceito do Uno que seria Deus: se Uno ele for, o
Diabo também, obrigatoriamente, Ele teria que ser, Saramago humaniza
definitivamente o Senhor – dá a Ele a condição imperialista que
habita nos homens e que em muitos manifesta-se, decorrendo dessa
necessidade de poder absoluto Deus torna-se mesquinho, soberbo, egocêntrico
etc, mostrando a nós o que carregamos em nós mesmos – e, mais uma vez,
afirma-se no pensamento de Nietzsche:
Quando
as premissas da vida ascendem, quando tudo que é força, coragem, dominação,
orgulho forem eliminados do conceito divino [...] quando se tornar o
Deus-dos-pobres-diabos, o Deus-dos-pecadores, o Deus-dos-doentes por excelência,
como pode o predicado ‘salvador’, ‘redentor’ permanecer como sendo
um atributo divino? O que quer dizer uma tal metamorfose, uma tal redução
do divino? [...] transformando-se então numa coisa cada vez mais pálida
e menos substancial, tornando-se ‘ideal’, ‘puro espírito’, ‘absolutum’,
‘coisa em si’... Decaída de um Deus: Deus torna-se ‘coisa em
si’... (NIETZSCHE, 1992, p. 39).
O
filósofo defende, em sua obra O Anticristo, o Deus que é
sentimentalmente semelhante à humanidade e, assim, pode ser o que a ela
serve, já que para tal foi, por ela, criado. O Deus metamorfoseado em espírito
de perfeição soa inatingível ao homem e, então, cerceia seus
instintos, o faz medíocre. Saramago retrata o Deus nitzscheano, ainda
mais carregado de predicados rotulados como não bem quistos pelos
conceitos modernos de homem e de Divino. Deus é sedento de sangue e
poder, como exposto num diálogo com Jesus:
O
único Deus sou eu, eu sou o Senhor [...] Morrerão milhares. Centenas de
Milhares. Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra
encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos
queimados cobrirá o sol, a gordura deles reclinará sobre as brasas, o
cheiro agoniará, e tudo isso será por minha culpa. [...] Pai, afasta de
mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória,
Não quero essa glória, Mas eu quero esse poder. [...] Então o Diabo
disse: É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue. (SARAMAGO,
2003, p. 391).
Este
Deus que pode nos parecer, se humanizado, humanizado com os mais pérfidos
sentimentos – ainda por mostrar-se um e ser outro – se nos despirmos
das máscaras e conseguirmos analisar, mesmo que de forma
superficial, a realidade das emoções que são partes, por vezes
desconhecidas, dos seres humanos, assemelhar-se-á, o humano Deus de
Saramago, a ditadores, poderosos dominantes e, mais próximo ainda, aos
nossos pensamentos escusos e sombrios. Há, em cada homem ou mulher, um
tanto desse Deus ou há um tanto de cada mulher ou homem, em Deus.
Na
passagem de O evangelho segundo Jesus Cristo, em que estão em um
barco, rodeados por impenetrável nevoeiro, Jesus, Deus e o Pastor-Diabo,
a conversar por 40 dias – Deus contando o que irá acontecer após a
crucificação de Jesus e outras coisas que não nos interessam agora –
ao buscarmos a simbologia do numeral 40 encontramos que “quarenta é o número
da espera, da preparação, da provação ou do castigo (...) Pode-se
dizer que os escritores bíblicos marcam a história da salvação,
dotando os acontecimentos principais com esse número; ele caracteriza
assim as intervenções sucessivas de Deus” (CHEVALIER
e GHEERBRANT, 2002, p. 757) e nevoeiro:
é
símbolo do indeterminado, de uma fase de evolução: quando as formas não
se distinguem ainda, ou quando as formas antigas que estão desaparecendo
ainda não foram substituídas por formas novas precisas. Símbolo
igualmente de uma mescla de água e de fogo, que precede toda consistência,
como o caos das origens, antes da criação dos seis dias e da fixação
das espécies (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 634).
Por
meio destas simbologias, sugerimos que o autor pode ter comparado essa
passagem – paródia da tentação de Cristo no deserto – à criação
de uma nova crença que prega a vinda de Jesus como o começo de tudo
– nevoeiro – e ainda mais se somarmos a isso os quarenta dias
significando intervenções de Deus. Pode ser, portanto, o momento da criação
do novo Deus, o do Bem Supremo, o Espírito de Luz, que se instala
e aniquila o antigo.
A
humanização do Divino em O evangelho segundo Jesus Cristo, de José
Saramago, é um assunto explícito, facilmente verificável com a leitura,
ainda que leiga, dessa obra. Mas, mesmo assim, pode ser, esse tema, uma
pesquisa, simultaneamente aprazível e inquietante; já que a observação
do pensamento nietzscheano, como aparente suporte às construções das
personalidades Divinais de Saramago, promove especulações fascinantes,
que nos conduzem à conjeturas a respeito de nossas crenças e verdades
absolutas: teriam sido arraigadas em nós? seriam ranços de uma postura
de obediência cega? Quantos outros deuses perfeitamente bons estaríamos,
ou estamos, nós absorvendo sem ao menos dar-nos o direito da dúvida?
Muitos outros questionamentos são estimulados em nós por Nietzsche e
Saramago; quão beneficamente irresolutos nos podem deixar suas obras: O
Anticristo e O evangelho segundo Jesus Cristo, respectivamente.
2
– E se fez palavra, e a palavra o todo faz
Neste
terceiro capítulo pretendemos explorar a força da Palavra.
Força que, em nosso entendimento, quem sabe seja a responsável por
mentiras e verdades ou, ainda e simplesmente, somente pelas mentiras se
adotado for que verdades são mentiras que deram certo.
A
obra O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, poderia,
talvez, ser hoje uma verdade absoluta se fosse contemporânea a um dos
quatro Evangelhos bíblicos, que são tidos como escrituras absolutamente
verazes. Imaginemos as várias alterações que, provavelmente, sofreu
cada Evangelho ao longo do tempo; sabedores que somos da simplicidade dos
seguidores de Jesus e que a educação e a escrita eram, na época, privilégio
de poucos e ainda em posições especiais, supomos que os primeiros
registros da passagem do Messias por esse mundo tenham sido pequenos,
toscos até. E por isso ao tentarmos “[...] reconstruir a história a
partir dos dados presentes na Bíblia, temos que ter em mente que o texto
não caiu pronto do céu. Ele é fruto de um longo processo de elaboração,
passando por muitas mãos [...]” (SCHLAEPFER; OROFINO; MAZZAROLO, 2004,
p.32). Com o passar do tempo tais escritos devem ter sofrido alterações
em virtude das várias traduções, de interesses, da retórica de cada
período – e porque quem relata algo que viu ou ouviu, relata-o com
interferência de pontos pessoais – e vários outros fatores que, se
fossemos aqui enumerar teríamos um estudo histórico e não metalinguístico.
Em
Nietzsche, tentando bravamente esquecer a conotação sócio política, o
grifo que fizemos pode nos levar a confirmação de que a Palavra é a
responsável pelo que acreditamos:
[...]
Leiam os Evangelhos como o livro da sedução usando a moral como recurso:
a moral foi coberta com uma capa por essa gentinha, eles conhecem a importância
da moral! Através da moral conduz-se a humanidade mais facilmente pelo
bico! [...] colocaram definitivamente a ‘comunidade’, os ‘bons’ e
os ‘justos’, de um só lado, do lado da ‘verdade’, e o resto, o
‘mundo’, do outro lado [...] uma pequena multidão disforme de hipócritas
e mentirosos começou a monopolizar os conceitos de ‘Deus’,
‘verdade’, ‘luz’, ‘espírito’, ‘amor’, ‘sabedoria’,
‘vida’, como se fossem seus sinônimos, para com isso delimitar o
‘mundo’
[...] (NIETZSCHE, 1992, p. 67).
O
que é dito, e se adotado por uma minoria, torna-se lei nesse círculo e
se verídico para muitos será uma máxima, quase que intocável. As várias
interpretações de uma mesma Palavra sugerem a influência de arquétipos
internalizados por pessoa, grupo ou comunidade. Influência que,
provavelmente, ocorreu na moldagem de Deus, até a forma adotada na
atualidade.
Assim,
ao lermos no texto bíblico:
[...]
pois o papel criador não cabe ao Espírito e sim à palavra divina [...]
(GÊNESIS, um, 2)
No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus
[...]
[O
Verbo] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem.
Estava no mundo e o mundo não o conheceu.
[...]
E
o Verbo se fez carne e habitou entre nós [...] (EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO,
1, 1-2, 9, 14)
Baseados
em uma interpretação que direciona à sugestão de que é a Palavra o
cerne de toda criação, nos é permitido, pelo ângulo do estudo aqui
proposto, supor que o homem fez Deus, como Ser onisciente, sabedor e usuário
do poder da Palavra, fazendo-Se adorado por meio de seu poder. Em várias
passagens do Antigo Testamento encontramos alusões aos ímpios (povos pagãos),
ora, se Deus criou um casal e esse casal teve dois filhos, um foi morto,
etc. Então, de onde surgiram os ímpios, os que não criam? Podemos
entender que esses já existiam, independentemente da vontade Divina. Se
assim foi, pensamos que os pios criaram Deus e o impingiram aos ímpios,
aparentemente, com isso aumentando seu poderio de dominação por meio da
unificação da crença e, para tanto, muniram-se do convencimento pela
Palavra.
Sem
as Escrituras as noções do Divino que imperam no mundo, por suposto, não
seriam as mesmas, pois teriam como suporte a oralidade e a Palavra falada
é mais facilmente adulterada e, por isso, não é tão crível quanto a
escrita. O homem descobriu que a Palavra, talvez, instigue a humanidade a
acreditar, a sublimar, a destruir, a relevar, a desprezar e tantas outras
leituras e releituras de ética, de dogmas, de pecados etc, que constituem
as verdades de uma sociedade ou seja: o discurso persuasivo
institucionaliza conceitos e condutas, a Palavra cria mandamentos.
[...]
idéia acerca do discurso persuasivo: ele se dota de signos marcados pela
superposição. São signos que, colocados como expressões de ‘uma
verdade’, querem fazer-se passar por sinônimos de ‘toda a verdade’.
Nessa medida, não é difícil depreender que o discurso persuasivo se
dota de recursos retóricos objetivando o fim último de convencer ou
alterar atitudes e comportamentos já estabelecidos.
[...]
o discurso persuasivo é sempre expressão de um discurso institucional.
As instituições falam através dos signos fechados, monossêmicos, dos
discursos de convencimento. Tanto as instituições maiores – o judiciário,
a igreja, a escola, as forças militares, o executivo etc. – quanto as
microinstituições – a unidade familiar, a sala de aula, a sociedade de
amigos do bairro etc. (CITELLI, 2000, p. 32).
Vimos
que não é válido a qualquer pessoa dar redenção dos pecados, mas só,
e tão somente, é dado esse poder aos que se investem da autoridade de
direito, ao sacerdote, por exemplo. Essa, digamos, autorização foi
instituída e tornou-se uma verdade absoluta e essa verdade absoluta se
concretizou por meio da Palavra. Diária e constantemente nos deparamos
com tais conformidades e é raro quando as notamos, então, mais uma vez,
insistimos na possibilidade de ser o Divino procedente da Palavra, já que
esta é o cerne do discurso e o discurso que persuade torna-se, em nosso
entendimento, na maioria das vezes, irrefutável. Uma idéia surge,
alastra-se, passa à verossimilhança e, depois de entranhada no imaginário
coletivo, transforma-se em dogma, quando a Palavra é usada
convenientemente e pela instituição e/ou pessoa apropriada. Para uma
constatação do poder da Palavra apelaremos, novamente, a Nietzsche:
“Poder-se-ia com alguma condescendência chamar Jesus de ‘espírito
livre’: ele não dá importância a nada que seja firme: a palavra mata,
tudo que é firme mata” (NIETZSCHE, 1992, p. 55). Sugerimos que o filósofo
compartilha do poder da Palavra; se a Palavra mata é porque,
provavelmente, faz nascer. É constante em O Anticristo a
afirmação da mudança imposta à humanidade na forma de como encarar
Deus, mudança essa que O transformou em ‘espírito de luz’, o ‘todo
bom’, o ‘nada’, por meio do discurso da igreja.
Ainda
segundo Friedrich W. Nietzsche:
Dessa
vez desejo colocar a pergunta decisiva: existe propriamente um antagonismo
entre convicção e mentira? O mundo inteiro acredita nisso; mas no que não
acredita o mundo inteiro! Cada convicção possui sua história, suas
formas preliminares, suas tentativas e erros: torna-se convicção na
medida em que não era, na medida em que ainda quase não é. Como? a
mentira não estaria também contida nessas formas embrionárias de convicção?
Às vezes basta uma simples troca de pessoas: no filho torna-se convicção
o que ainda era mentira ao pai” (NIETZSCHE, 1992, p. 80-1).
Mais
uma vez encontramos, nesse filósofo, ratificação para nossas idéias.
As convicções parecem ser, antes de instituídas como verdades, criações
aleatórias. Porém, basta que elas sejam adotadas por indivíduos
como verdadeiras para tornarem-se incondicionais. Talvez seja de
responsabilidade do uso persuasivo da Palavra as crenças que herdamos e,
portanto, como herança, não as questionamos e, ainda, como herança as
passaremos adiante; como a provável veracidade dos Seres Celestiais.
Na
obra de José Saramago aqui estudada, há a alusão a esse poder de criar
e destruir que a Palavra possui. Na parte da história, já mencionada
anteriormente para outros fins, em que estão em um barco Jesus, Deus e o
Pastor-Diabo, envoltos por denso nevoeiro, por quarenta dias, acontece a
seguinte conversa:
Parece-me
claro e óbvio que não tens culpa, e, quanto ao temor de que te atirem
com as responsabilidades, responderás que Diabo, sendo mentira, nunca
poderia criar a verdade que Deus é, Mas então, perguntou Pastor, quem
vai criar o Deus inimigo. Jesus não sabia responder, Deus, se calado
estava, calado ficou, porém do nevoeiro desceu uma voz que disse, Talvez
este Deus e o que há de vir
não sejam mais do que heterônimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa,
outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ter sido,
Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não
tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum
é assim, une facilmente as diferenças. (SARAMAGO, 2003, p. 389-90)
Podemos
notar, nesse trecho, a interferência direta do escritor: “[...] Talvez
esse Deus e o que há de vir [...]”, que dialoga com o narrador:
“[...] De quem, de quê [...]” e é ouvido pelas personagens. Seguindo
esta sugestão podemos dizer que Saramago coloca-se como o verdadeiro
Deus, já que o universo do livro é regido por ele e as personagens Deus,
Jesus e o Pastor-Diabo ouvem a voz, que seria a dele, e calam-se
assustados, ora, se Deus está no barco e ouve as vozes, podemos imaginar
que para Ele tais vozes têm o mesmo efeito que Sua voz teria para um
simples mortal, ou seja: Deus, mais uma vez, é colocado como criação
humana e, por isso, carrega em si os humores de seu criador. O narrador, a
outra voz, pode ser uma releitura dos Evangelistas; é ele quem conta a
história desse evangelho e é ele quem, ao que parece, mantém contato
com o ser supremo, neste caso Deus in Saramago. Bem, então
Saramago retrata o que viemos frisando neste trabalho e, especialmente,
neste capítulo: que as crenças são fundadas na Palavra e a Palavra é
arma humana. Portanto, a leitura possível é uma crítica à Bíblia;
assim como ele, Saramago, escreve o que quer, da forma como imagina, o que
impede que dessa maneira também tenha sido escrita a Bíblia? Se
deixarmos um pouco de lado o temor de injúrias – também exemplos da
persuasão do discurso, em nós – veremos que os Evangelhos são
considerados verazes por já serem divulgados por, aproximadamente, dois
mil anos e por uma instituição poderosa, temida no passado e respeitada
atualmente.
Como
embasamento a tais idéias lemos que:
[...]
ficamos chocados quando descobrimos que muitos livros bíblicos,
considerados como históricos, na verdade são narrativas míticas
contando as origens maravilhosas do povo de Israel. A história presente
na Bíblia não veio de livros didáticos, mas surgiu nas rodas de
conversa, à noite, ao pé do fogo, relembrando os feitos antigos de gente
que lutou pela liberdade do povo. Nestas rodas não importavam tanto as
datas precisas, mesmo porque o calendário naquela época não era muito
preciso. O mais importante era que os feitos mais importantes fossem
transmitidos de geração em geração, para que não se perdesse a memória
dos fatos e dos personagens antigos. A grande preocupação do povo de
Deus era a fidelidade a Deus e aos antepassados chamados por Deus. (SCHLAEPFER;
OROFINO; MAZZAROLO, 2004, P. 31)
Se
as histórias que a Bíblia concentra foram por muito tempo passadas de
boca a ouvidos, sucessivamente, como era o costume da época para manter vivo
um conhecimento, então é certo afirmar que até serem registradas
sofreram alterações por influência da interpretação dada a elas por
cada contador e, mais tarde, por cada tradutor ou copiador dos textos
escritos, tanto por inspiração dos próprios, quanto por ordens
superiores, atendendo à necessidade de condução do rebanho, quem
sabe. Será pertinente, então, dizer que os Evangelhos, criados e
escritos pelo homem, contêm a história do Divino, também uma possível
criação humana. E por não ter como saber, esse homem, da realidade
espiritual dos Seres Celestiais, os fez a sua imagem e semelhança, dentro
do seu imaginário do que seria o Celeste.
Com
a liberdade de criação dada pela Palavra ou à Palavra, pela Literatura,
José Saramago escreve seu evangelho e faz, nele, uma alusão ao poeta
português Fernando Pessoa. Quando a voz – do autor ou do Deus in
Saramago “De quem, de quê,
perguntou, curiosa, outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também
podia ter sido, Da Pessoa” (SARAMAGO,
2003, p. 389) – diz “De Pessoa”, é possível que esteja
referindo-se aos vários heterônimos criados pelo poeta. Se Pessoa pode
dar vida a tantos usando, para isso, a Palavra, o que impediria o homem de
criar, apropriando-se da mesma matéria prima, o Divino? Pois: “A grande
verdade é a que está à minha altura e a que possa alcançar. Nenhuma
indicação de verdades maiores. E nem saberei o que fazer com elas”
(GUIMARÃES, 1971, p. 28). O ser humano parece fazer sua a verdade que o
apraz e essa torna-se a única, para que possamos saber, quase sempre, o
que fazer com elas.
Portanto,
a Palavra aparenta ser o meio, ter a força para a construção dos nortes
necessários à humanidade para que essa possa existir e coexistir em si.
Em O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos assusta
quando nos deixa saber o quão persuadidos fomos e somos. E, com uma prova
do poder da Palavra , da valorização do homem e da mulher e da humanização
do Divino, termina seu evangelho:
[...]
Jesus morre, morre [...] de súbito o céu [...] se abre de par em par e
Deus aparece [...] e sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és meu
Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus
compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício
[...] e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do
seu lado irá nascer e alargar toda a terra, chamou para o céu aberto
onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.
Depois foi morrendo no meio de um sonho (SARAMAGO, 2003, p. 444).
Na
oração, que constitui as últimas palavras do Jesus de Saramago na condição
humana, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez, há,
mais uma vez, a valorização explícita do homem, Jesus coloca-se contrário
a atitude de Deus; deixa subentendida, nesse pedido de desculpas, como que
uma profecia do futuro reservado à humanidade quando da adoração
unificada de Deus. E, ao analisarmos o Deus saramaguiano, notamos sua
personalidade tirânica; Jesus, o do O evangelho segundo Jesus Cristo,
é uma dicotomia entre o despotismo do ser Divino e a variada gama de
humores do ser humano. Se aprofundarmos um pouco mais nossa filosofia
analítica, sugeriremos que Deus pode ser o estereotipo de uma maneira
de comportamento humano, o que, como já, exaustivamente, foi dito nessa
pesquisa, é dominante e sedento de poder; enquanto Jesus pode ser o
vassalo indignado com a nobreza e, ainda, lutando contra a sedução do
domínio. São tão complexos quanto humanos os Divinos de O evangelho
segundo Jesus Cristo, de José Saramago.
Considerações
finais
Este
estudo da humanização do Divino, que em um primeiro contato nos pareceu
óbvio, já que isso é totalmente explicitado por Saramago em seu livro O
evangelho segundo Jesus Cristo, desvelou-se apaixonante e
surpreendente.
A
visão dos Seres Celestiais com qualidades e defeitos inerentes ao homem,
pode levar ao questionamento de nossas crenças; isso por meio da percepção
da valorização do que é natural a homens e mulheres, em detrimento as
normas impostas à humanidade durante todos esses séculos por meio da
persuasão com que a Igreja medieval dominou o mundo, dito, civilizado. A
consciência de uma possível indução a pensamentos que podem levar a
servidão é observável na obra de Friedrich W. Nietzsche; O
Anticristo; as idéias desse filósofo sobre a transformação do Deus
que sentia como os que o adoravam, em um Deus de supremo primor e,
portanto, impossível de ser alcançado, faz do homem, assim, um ser em
frustração constante por almejar algo que lhe é impossível: a perfeição.
As
visões de José Saramago vão ao encontro das idéias de Nietzsche quanto
a forma de encarar a concepção moderna de Deus. Os autores são contrários
ao uso das Divindades para a diminuição da auto-estima, como proclamação
de que a subserviência é o caminho para a glória eterna,
dividem, ainda, o descontentamento com o prêmio instituído a quem não
comete ou tenta não cometer as infrações conclamadas, o Paraíso.
O filósofo afirma que essa crença é infundada, que a vida é terrena e
que se nos fosse dado, no pós-morte, o que é prometido, seria apenas
necessário esperar a morte, sem preocupações, vivendo pacata e
bucolicamente. Parece-nos ser José Saramago simpatizante, também, de tal
pensamento e então, com a liberdade oferecida pela Literatura, o escritor
português refaz, reescreve, o Evangelho e, em seu evangelho, trata de
assuntos variados como, por exemplo, os opostos Imperialismo X Socialismo
– tema já muito estudado – representados por Deus e Jesus,
respectivamente; alude à tirania causada pelo poder; descreve com
personagens aparentemente comuns os sentimentos que formam o homem e a
mulher e, para expressar essas e outras nuances da humanidade, utiliza-se
da humanização do Divino aparentemente embasado na filosofia de
Nietzsche.
Ainda
sobre o poder da Literatura, observamos que a criação de um deus pode
ser obra da palavra. Nossos estudos nos levam a crer que o homem
condiciona e é condicionado, institui suas verdades, que permanecem
verdadeiras até que suas necessidades as tornem esquecidas ou as façam
retornar ao que eram: imaginação. A palavra é, para tal, um meio muito
eficaz quando utilizada pela indústria correta. Assim, sugerimos
que as mudanças na personalidade Divina – que ainda hoje ocorrem sutil
e constantemente – são vinculadas aos quereres de dominantes, aqueles
que carregam em si o poder da verdade, aqueles que têm palavras tão
fortes a ponto de criarem verdades absolutas. Este estudo deve nos levar a
reflexão sobre essa capacidade de influência e alcance da Literatura
quando esta é escrita de forma instigante. Instigante a ponto de, mesmo
nos chocando por arranhar ou quebrar paradigmas, fazer-nos envolvidos por
uma visão do Divino que, até em O evangelho segundo Jesus Cristo,
nos seria impossível, sequer, imaginar sem que sofrêssemos pruridos na
consciência.
Após
a descoberta de uma possível inverdade quanto às origens Divinas,
podemos seguir por duas das muitas alternativas de interpretação que se
abrem com a leitura dos dois autores aqui estudados: para a primeira
continuaremos a obedecer as verdades implantadas de que o homem é criação
de Deus, feito a Sua imagem e semelhança, e de que Deus é o Bem supremo,
a mais completa encarnação da perfeição, o inatingível. Para a
segunda evoluiremos com alguma certeza de que o Divino é obra racional do
homem, criado a sua imagem e semelhança e é constituído da mais vasta
gama de sentimentos, humores, podendo ser, por isso, compreendido pela
humanidade.
Portanto,
a humanização do Divino, em O evangelho segundo Jesus Cristo, de
José Saramago, somado ao O Anticristo, de Friedrich Wilhelm
Nietzsche, obras, entre outras, que pudemos tratar aqui, além de
propiciarem o prazer único que provém da boa leitura, nos levam ao
questionamento de muito do que temos como exato, de como isso nos foi
impingido como veraz no decorrer da história, de como as aceitamos, passíveis.
Então, seguindo as alternativas de resposta destas e de outras perguntas
mais, chegaremos a um ponto de convergência: na descoberta de que
utilizaram e utilizam, seja que linha for, independente da origem, a
persuasão do discurso para instituir-se ou para ser instituída. Ou seja;
o poder maior, aparentemente, é a força da Palavra e o emprego deste
poder para a implantação das verdades.