por INTY SCOSS MENDOZA

Graduando em Pedagogia na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, orientando da Prof. Dra. Flávia Inês Schilling e bolsista de iniciação científica do Programa Institucional FEUSP/FAFE

 

 

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A China e o Governo das Águas: 

a administração dos rios e o pensamento político na formação da China imperial

Inty Scoss Mendoza

 

Resumo: O presente artigo aborda, em uma perspectiva da sociologia histórica, a relação entre a civilização chinesa e o “governo das águas” e suas possíveis implicações no pensamento político chinês, por meio de um diálogo entre os textos clássicos e a moderna historiografia chinesa, as análises ocidentais de Max Weber e Joseph Needham, e o desafio ambiental da China moderna, que trouxe o tema de volta ao centro do cenário político.

Palavras-chave: China: administração dos rios, pensamento político, formação do Império, questão ambiental da China moderna.

Abstract: The current article approaches, in a historical perspective of sociology, the relationship between the Chinese civilization and the “government of the waters”, and their possible implications in the Chinese politics thoughts, by means of a dialogue between the classical texts and the modern Chinese historiography, the occidental analysis of Max Weber and Joseph Needham, and the environmental challenge of Modern China, that brought back the subject to the political scenario.

Keywords: China: river management, political thought, formation of the Empire, environmental issue of the Modern China

 

O presente artigo tem a intenção de analisar de forma sucinta a presença de um tema recorrente na história chinesa, o qual a tradição chamou de zhi shui 治水, o “governar as águas”,[1] e suas implicações na formação do pensamento político chinês. Obviamente a tradução desse termo poderia, priorizando um sentido mais técnico, ser: “controlar a água”, entretanto, como procurarei esboçar aqui, tal controle tem muitas implicações, entre elas a política, que justifica a abrangência do termo “governo”.

O Grande Yu abrindo as cadeias de montanhasA expressão zhi shui aparece na história chinesa relacionada ao Grande Yu 大禹, fundador da dinastia Xia (2000? a 1520 a.c.), que por dezesseis anos trabalhou para resolver as terríveis enchentes na região da bacia do Huanghe 黄河 – o rio Amarelo –, berço da civilização chinesa, continuando o trabalho iniciado por seu pai. As histórias e lendas em torno de Yu fazem parte das tradições transmitidas às crianças como exemplo de dedicação e sacrifício, pois em suas viagens para “governar as águas” por três vezes ele passou em frente à própria casa e não entrou sequer quando ouviu o choro de seu filho, para não se desviar de seu firme propósito de beneficiar o povo. [2] O Livro das Escrituras – Shu Jing 书经, os registros das primeiras dinastias compilado provavelmente entre os séculos XI e VI a.C. (CHAI e CHAI, 1973, p. 10) – apresenta seus trabalhos de abertura de canais a fim de que as águas pudessem escoar para o rio Amarelo e depois para o mar, que quando finalizados: Os quatro cantos se tornaram habitáveis. Nos nove montes se abriram estradas. As fontes dos nove rios foram limpas. Fizeram-se barragens nos nove lagos. Os quatro mares se uniram (III, 2ª parte, 14). [3]

As escrituras prosseguem descrevendo a divisão das terras, após o sucesso de Yu, em cinco tipos de domínios: imperiais, principados, de pacificação (ou proteção), [4] de influência e não desbravados (idem, 18 a 22). Essa constituição modelar do estado persistiu, de acordo com Confúcio (Analectos II, 23), até a dinastia Zhou (), 900 anos depois, onde se consolidou um sistema de hierarquia político-administrativa baseada nos rituais, o “governo pelos rituais”, que envolvia tanto a prática cerimonial quanto um regime político.[5]

O governo das águas instituiu um governo dos homens, pois o grande desafio de controlar as enchentes que assolavam aquela região foi um dos principais fatores de organização política (e burocrática) da civilização chinesa. Max Weber estabelece um paralelo entre a civilização chinesa e a egípcia por terem fundado estruturas burocráticas governamentais para administrar os rios, os “regimes da água” (WEBER, 1951, p.20). Entretanto, a relação peculiar entre as águas e a política chinesa revela-se em muitos valores fundadores do pensamento chinês. Em primeiro lugar, está o fato de que aquela não era uma região desértica e o desafio não era o de irrigar o solo, mas drenar a água das enchentes. O governo não assumiu, por isso, um caráter criador que faria jorrar do chão “leite e mel” no meio do deserto (diferença apontada por Weber em sua comparação da noção de divindade chinesa e a do oriente médio) (idem p. 21). O caráter assumido era o de regulador, o que a história do pensamento político chinês subseqüente apresenta em várias nuances, com todos os desenvolvimentos e desdobramentos do clássico conceito de Tao (dao ).[6] Tal relação entre a prática governamental de administração constante do nível dos rios – e posteriormente os canais abertos para integrar as diferentes regiões do Império –, e o desenvolvimento do pensamento político da China Imperial, em seus desdobramentos e conflitos nos períodos de disputas no processo de consolidação desse regime, podem ser tratados como expressões complementares de um mesmo contexto fundador: a tarefa civilizacional chinesa de regular, canalizar e articular as águas de seus rios.

Em sua análise da civilização chinesa, Weber abordou esse princípio para fundamentar alguns elementos de sua sociologia das religiões chinesas (confucionismo e taoísmo), e Joseph Needham, em um longo estudo (dez volumes em chinês) intitulado “Civilização e Ciência da China”, apresenta em seu resumo introdutório da história chinesa (o primeiro volume da coleção) a tese de que as unificações e fragmentações políticas da China estavam diretamente relacionadas à construção dos canais de irrigação e transporte iniciados na dinastia Zhou (séc. 11 a 7 a.C.) e levados a termo pela dinastia Sui (581 a 618 d.C.), com o “Grande Canal”. Pretendo neste artigo contribuir com outro enfoque dessa relação: comparar a forma específica como se deu o desenvolvimento da base teórica do pensamento político chinês, que genericamente é chamada de “confucionismo” no Ocidente, a esse longo processo de constituição de um aparato administrativo capaz de empreender a administração dos rios e realizar, com isso, as ambições dos governantes chineses. Em um último momento do artigo, abordarei o “governo das águas” na imprensa chinesa dos dias de hoje, resgatado frente ao grave problema ambiental, para evidenciar o caráter de permanência do tema no debate político da China.

A especificidade do pensamento político chinês pode ser ilustrada, simbolicamente, no “governo das águas” do Grande Yu, venerado não somente como a resolução do problema das enchentes, mas também por conter uma sabedoria específica, uma engenhosidade própria que se expressa quando seu trabalho é comparado ao de seu pai. Ao contrário desse, que tentava impedir o avanço das águas erguendo barragens, Yu abriu canais. O Livro das Escrituras descreve detalhadamente tais caminhos (Escrituras de Xia, “Os trabalhos de Yu”) que, em conformidade com um princípio de não-oposição à força da água, drenou-a e permitiu a plena ocupação humana do território. Outra característica da obra de Yu foi sua capacidade de interligar os rios de forma a criar um sistema que permitia uma complexa auto-regulação. Estas duas características, circulação e articulação, e a necessidade de regulação de ambas, são questões fundamentais no pensamento chinês, tanto em matéria de política quanto de filosofia. Poder-se-ia dizer que os rituais de Zhou, o zhou li 周礼, considerados por Confúcio a máxima expressão da sabedoria de governar, são uma manifestação extremamente refinada desse princípio no campo político ao aplicar às relações sociais uma complexa articulação para uma melhor circulação dos interesses. Isso não quer dizer que o problema, tanto das águas quando da política, se resolveu. A história posterior da China foi constante testemunha desse “retorno do recalcado”.

O desenvolvimento social e político nos estertores da dinastia Zhou, períodos chamados de Primavera e Outono (722 a 480 a.C.) e Estados Combatentes (480 a 221 a.C.), conduziu a um fortalecimento cada vez maior dos príncipes em detrimento do poder imperial, processo esse impulsionado também pelo desenvolvimento da metalurgia e seus usos na agricultura e na guerra. Entretanto, um fator desempenhava um papel particularmente importante: a falta de integração entre as diferentes regiões do Império por questões de interesse econômico imediato, diferenças culturais e étnicas, e também pelas dificuldades de transporte, fato que traduzido em termos do princípio do “governo das águas” seria uma falta de regulação, de articulação. Em relação a essa “falta”, esse período da história chinesa foi pródigo em produção intelectual, pois é a época da “Disputa das Cem Escolas”, momento em que foram lançados os princípios de ação política que se alternaram e se combinaram ao longo dos mais de dois milênios seguintes. Dessas “Cem Escolas”, uma fonte antiga, o Lunliujia yaozhi 论六家要旨 [Discurso do princípio das Seis Escolas] de Simatan 司马谈 (cerca de 140 a 110 a.C.), registrou seis escolas, e outra, o Hanshu yiwenzhi 汉书艺文志 [Coletânea de arte e literatura das Escrituras de Han] de Bangu 班固 (32 a 92 d.C.), registrou dez escolas (YANG 1995, I p.114). Dentre elas, as que geraram mais antagonismo político no período, dadas as radicais diferenças de princípios de condução do governo, são as quatro escolas consideradas principais: os eruditos (confucionismorujia儒家), o taoísmo (daojia 道家), o legismo[7] (fa jia 法家) e o moísmo (mojia 墨家). As outras escolas citadas por Bangu talvez não tenham tido tanta atenção posterior por estarem de certa forma unidas à filosofia própria de determinadas funções dentro da estrutura do Império, como a Escola da Agricultura (nongjia 农家), Escola dos Diplomatas (zonghengjia 纵横家)[8] e a Escola do Exército (bingjia 兵家),[9] ou ainda unidas à questões com fortes implicações metafísicas, como a Escola de Yin e Yang (yinyangjia 阴阳家) e Escola dos Nomes (mingjia 名家),[10] estando seus percursos de desenvolvimento mais sujeitos que agentes da posterior organização política imperial (ressalvas feitas à Escola do Exército), ou ainda contribuindo com procedimentos metodológicos e cosmo visões que foram adotados pelas escolas principais[11].

As fronteiras entre essas linhas de pensamento são muito mais fluidas que sua separação em “escolas”, e a partir de sua disputa surge, com o passar do tempo, orientações políticas que fundiram idéias e princípios pertencentes a campos opostos desse cenário em uma manifestação do espírito articulador das águas do Grande Yu, sendo esse um dos procedimentos mais característicos do pensamento chinês (qualquer semelhança com o “socialismo de mercado” de Deng Xiaoping não é mera coincidência). Como veremos na breve abordagem dessas linhas de pensamento e suas relações, diretas ou indiretas, com a administração dos rios e a formação do Império chinês, tal característica articuladora não significa uma tendência à paz, à conciliação, pelo contrário, a fusão das linhas de pensamento ocorre na China da mesma forma como se abriram os canais: à força.  

Caso priorizemos o aspecto do desenvolvimento econômico em nossa análise da crise do período de Primavera e Outono, a necessidade pungente para a continuidade de qualquer governo naquela situação seria a integração territorial, ou seja, ampliação dos canais de irrigação e transporte já insuficientes para a população da época, e o estabelecimento de um governo racional em termos de uso do solo, coleta de impostos e administração do exército. Tal análise pode parecer anacrônica, entretanto, era essa a leitura que os legistas fizeram de sua época. Para atingir tal fim, o que eles propunham era uma fórmula igualmente “moderna”: a centralização de poder.

Tais pensadores e estrategistas não chegaram a reunirem-se em torno de um representante, como os eruditos de Confúcio, no entanto, compartilhavam uma visão extremamente pragmática de lidar com os assuntos do Estado. Em um contexto de disputa militar em que os diferentes reinos buscavam a supremacia, os legistas mais famosos encontravam-se nas cortes desses príncipes combatentes, como Li Kui李悝 no reino de Wei, Wuqi 吴起no reino de Chu, Shenbuhai 申不害no reino de Han, Shendao 慎到no reino de Qi e Shangyang 商鞅no reino de Qin, levando a termo o tipo de administração que os uniu ideologicamente na busca dos objetivos mencionados acima: a reforma das leis, bianfa 变法 (YANG 1995 vol.1, p. 124). Esses conselheiros acreditavam que o poder coercitivo altamente centralizado era o instrumento mais eficaz para a concretização de qualquer aspiração de um governante – sintetizado na expressão “severas penas, lei rigorosa” 严刑峻法 – e identificavam como os maiores obstáculos para o fortalecimento dos estados a divisão do território imperial em concessões de domínios feitas aos nobres da corte e nos complexos rituais de ordenamento dessa hierarquia político-administrativa (idem, ibidem). Suas reformas baseavam-se em “enriquecer o reino por meio da agricultura e controlar o inimigo com exércitos” (Hanfeizi,[12] citado em YANG p. 125), o que implicava também em um controle sobre o comércio, que crescia com as especulações típicas de períodos de guerra. Em termos de política administrativa suas idéias eram: “sem mérito não há recompensa, sem crime não há pena”, “o primeiro-ministro deve ser escolhido entre os administradores de províncias e os generais, nas fileiras do exército” (idem), ou ainda, “sem distinção entre parentes próximos e distantes, sem prioridade entre nobres e humildes, julgar todos pela mesma lei” (Shiji, idem), todas elas destinadas a derrubar a prática de imunidade fiscal e penal dos nobres.

Ao aproximar as práticas legistas ao conceito de articulação e regulação herdado da administração dos rios e canais poderíamos considerar essa conduta política baseada na visão de que a capacidade de um Estado de enfrentar seus desafios militares e econômicos está toda condensada no conceito de “força” (“Hoje se guerreia pela força” Hanfeizi), e não na “virtude”, o que significa dizer que o governo é uma ação humana e voluntária (e não celestial e divinamente determinada, como diria um erudito chinês), ou seja, a realização de uma organização humana baseada no poder de utilizar o conjunto da força produtiva e bélica de uma sociedade. A dimensão metafísica da política legista é um grande louvor ao espírito guerreiro, conceito esse que não é desconhecido dos primórdios da civilização chinesa, pelo contrário, é tão fundador quanto o espírito de regulação das águas.

Quem planta a virtude, cuida de a regar; e quem arranca o vício, vai à raiz. Por isso mesmo, eu, na minha modéstia, tomei a iniciativa, com todos vós, meus soldados, de arrancar e extirpar vosso inimigo. Espero que vós todos, meus soldados, avanceis com intrepidez, para alçar o vosso Príncipe. Para grande serviço, grande recompensa. Mas quem não avançar, há de passar por uma pública vergonha (Livro das Escrituras, 5, 1/3, o rei Wu 武王 fundador da dinastia Zhou convocando seus exércitos para a “Grande Missão”)

Entretanto, essa ética guerreira chinesa, como em tantos outros lugares do mundo, portadora de um sentido de nobreza individual do guerreiro, estava associada a um contrapeso coletivo, a burocracia de administração dos rios, e por isso não se desenvolveu em uma ordem social individualista (Weber 1951, pp. 24 e 25). Os legistas, de certa forma, uniram a tradição guerreira à experiência de administração burocrática dos rios, não só de forma metafórica, isto é, “canalizar” a força de uma sociedade para o fim da centralização do poder político e econômico, como de maneira direta, empreendendo conquistas territoriais por meio da abertura de canais de transporte fluvial, como veremos adiante. São eles, com seu “governo das leis”, o oposto conceitual da visão confucionista de “governo pelo ritual”.

ConfúcioNo caso da proposta política de Confúcio, a crise que cingia a sociedade de sua época devia-se a uma perda do que a dinastia Zhou havia realizado de mais sublime, o “governo pelos rituais”. Em seus ensinamentos, o poder é decorrência da virtude do governante, proposição essa baseada na visão característica da dinastia Zhou de que o Imperador é “filho do Céu”. Apesar de seu caráter conservador (ao contrário dos legistas, que propunham a ruptura com a tradição administrativa dos Zhou), Confúcio opera uma mudança de foco no seio dessa tradição, pois ao invés de pregar estritamente o culto ao Imperador, passou a propor aos governantes o cultivo da virtude da “humanidade” como meio de restituir o equilíbrio social perdido e conquistar as benesses celestiais. Talvez tenha sido esse o principal motivo de seu fracasso no campo da política. Outra característica de seu pensamento é o enfoque na importância da educação na arte de governar, no que se refere à questão da instituição da ética baseada no amor filial, na lealdade ao governante, no respeito aos mais velhos e na obediência ao marido (um adendo às mulheres), sendo essas as bases para a preparação dos homens capazes de governar. Para Confúcio, a “articulação” perdida deve ser resgatada pelo cultivo das virtudes, os grandes “canais” vivos do Império.

A outra escola de pensamento surgida na crise das disputas pela centralização de poder é o taoísmo de Laozi 老子 (Lao-tsé). Ao contrário dos legistas e dos eruditos, o pensamento taoísta pregava o mínimo de interferência possível na vida social, sendo tal conceito resumido no princípio de “não-ação”, contrário tanto às leis quanto aos rituais. O taoísmo tem suas raízes em uma cosmo visão de que a natureza está originalmente em equilíbrio e, portanto, a ação humana sobre ela é artificial e desequilibradora. Não há nos clássicos taoístas qualquer menção direta à administração dos rios (o mesmo ocorre no confucionismo), entretanto a água surge como a principal metáfora do ato de governar: “O Grande Reino é como um curso descendente [...] Se um grande reino fica abaixo do pequeno, então o grande conquista o pequeno [...] Se o pequeno fica abaixo do grande, então o pequeno conquista o grande” (Daodejing, 61), “Os rios e mares podem governar os cem vales por saberem ficar abaixo deles” (idem, 61).[13] Transparece, portanto, a relevância da experiência chinesa de lidar com esse elemento, pois aplica ao bom governo a sabedoria que permitiu o surgimento dessa civilização, chegando mesmo a comparar o Dao com a água, pois “a bondade suprema é como a água, que beneficia os dez mil seres sem se opor a eles, habita os lugares que os homens abominam” (idem, 8).[14]

O pensamento de Laozi tem grande aceitação no Ocidente (tenho conhecimento de oito traduções do Tao Te King – o daodejing – em português) e acredito que isso se deve também ao fato de que ele contém, em alguns aspectos, uma profunda aversão à regulação burocrática da vida, às tecnologias do poder – “Perdido o Dao, surge a bondade e a justiça [...] Desarmônica a família, surgem os deveres filiais e parentais [...] Caóticas as nações e as famílias, surgem os ministros leais” (idem, 18) –, que são abundantes na moderna sociedade ocidental, o que sugere, por outro lado, que a China da época era, à sua maneira, também pródiga nessa questão. A face objetiva da administração dos rios surge, portanto, de forma indireta no discurso taoísta, pois esse é um protesto contra uma burocracia formada primordialmente para “governar as águas”, incorporando somente a face metafórica da natureza da água e suas aplicações no campo do pensamento e da política.

O moísmo, praticamente desconhecido no ocidente, tem afinidade com o taoísmo nessa questão, pois seu fundador Mozi (cerca de 479 a 381 a.C.) rejeitava tanto o governo das leis quanto o dos rituais, sendo um porta-voz dos pequenos agricultores, artesãos e comerciantes sobrecarregados de todas as formas, pois arcavam com o ônus dos tributos destinados a manter a burocracia e eram também os soldados e trabalhadores das obras do Império (dentre elas as fluviais). O princípio norteador de sua política baseava-se em um conceito de amor amplo e indistinto, em contrapartida ao hierarquicamente determinado do confucionismo, sendo sintetizado em: “Dar de comer aos que tem fome, roupa aos que tem frio e descanso aos que trabalham” (YANG 1995, I pp. 120 e 121). É importante lembrar que as disputas entre as escolas ocorriam nas cortes (idem p. 115), sendo, portanto, um luta na qual setores da sociedade tentavam fazer valer seus interesses em uma situação de indefinição política. Colocações do próprio Mozi como: “Caso tenha capacidade, uma pessoa pode ser nomeada para servir o reino mesmo sendo agricultor, artesão ou comerciante”, ou ainda, “A nobreza não é eterna, assim como a inferioridade não é sem-fim” (idem), revelam a intenção de ocupar um lugar dentro da estrutura política, e não revolucionariamente derrubá-la. Mesmo sendo pouco abordado na formação do pensamento político chinês, o moísmo representa uma face igualmente ancestral da visão política chinesa, que se deduz de passagens como a do livro das Escrituras de Zhou (V, 1/1, 3) em que “o soberano é pai e mãe do povo”.

Dentre essas escolas de pensamento, a que venceu a batalha foi a dos ultra pragmáticos legistas, pois o Império foi centralizado sob a espada do imperador Shihuangdi 秦始皇 (259 a 210 a.C.) – tendo sido Lisi 李斯o legista que o serviu na sua corte – e cujas medidas, ao conquistar o poder, foram unificar a escrita, a moeda e os pesos e medidas.[15] Weber aponta o fracasso dessa tentativa de unificação monetária que visava substituir as conchas, seda, estanho, pérolas e pedras preciosas que eram usados como meio de troca e pagamento de tributos por moedas de cobre e ouro (WEBER 1951 p.4). Apesar disso, a consolidação de um império centralizado foi levada a termo e os trabalhos com as águas foram retomados. A integração entre norte e sul da China já representava uma questão política crucial e a solução adotada foi a ampliação da rede de canais para transporte entre o rio Amarelo e o Changjiang 长江 (Yang-tsé kiang), iniciados já sob a dinastia Zhou. Como aponta Needham, a grande expansão territorial (anexação das atuais províncias de Fujian 福建, Guangdong 广东e Guangxi广西) empreendida pelo Imperador Qin deveu-se aos canais abertos nas bacias do Changjiang e Xijiang (NEEDHAM 1971 p. 191). Mesmo sendo essa uma obra relevante para a história da China, a dinastia Qin ficou mais famosa por iniciar uma outra obra: a Grande Muralha.

A construção dos canais, da Muralha e dos palácios de Shihuangdi, somados à crise gerada por um longo período de guerra, agravaram mais a instabilidade política e as revoltas camponesas surgiam por toda parte. Quando o fraco sucessor de Shihuandi assumiu, a dinastia que duraria para todo o sempre se esfacelou após 14 anos de existência (221 a 207 a.C.). Um dos líderes revoltosos de origem humilde, Liubang (256 a 195 a.C.), chega ao poder e inicia a dinastia que se tornou a grande sistematizadora do pensamento político do Império chinês, a dinastia Han (Han do oeste, 206 a.C a 25 d.C., e Han do leste, 25 a 220 d.C.). Tal processo de sistematização iniciou-se com a análise da pungente questão: “Por que a dinastia Qin durou tão pouco apesar de seu inegável poder?”.

As medidas legistas são consideradas o motivo da “destruição de Qin”, pois o excesso de severidade de suas leis trazia “sofrimento ao povo” (YANG 1995, II p. 59). Entretanto, a unificação empreendida por eles havia proporcionado a estrutura de todo o desenvolvimento do que passou a ser chamado de China, isto é, o território e a cultura onde se espalhou a principal etnia da China hoje, denominada justamente etnia han, fato reconhecido tanto pelos conselheiros desta dinastia quanto pelos chineses de hoje.[16] Nesse início da dinastia Han do oeste, as “Cem Escolas” voltaram a disputar seu espaço, pois durante o reinado de Shihuangdi a supremacia legista fez com que livros fossem queimados e eruditos enterrados vivos e, portanto, rechaçou qualquer divergência no campo do pensamento. Surge então as grandes articulações entre as diferentes escolas.

A corte de Han valorizava o ritual como recurso na administração imperial, o que significa dizer que parte da visão legista de que o governo só pode ser exercido pela coerção foi substituída pela visão erudita de que cada funcionário imperial deve reconhecer sua posição na hierarquia como sendo o seu quinhão de virtude a ser cultivado. Entretanto, apesar desse espírito erudito-confucionista, o início dessa dinastia é marcado pelo taoísmo na vertente de um movimento filosófico chamado “ensinamentos de Huang Lao”, fazendo referência ao Imperador Amarelo (Huangdi黄帝), figura lendária do taoísmo, e a Laozi. Começa a ser aplicado o governo da “não-ação”(wuwei 无为), o que do ponto de vista administrativo implicava em redução dos gastos da corte ao promover as idéias de “sem desejos surge a tranqüilidade, assim o mundo naturalmente se pacifica” (DaoDejing, cap. 37), “sem desejos pode-se governar o mundo” (DaoYuan), buscando com isso diminuir os impostos e conseqüentemente as revoltas camponesas que derrubaram Qin (idem p. 68).

Essa filosofia de Huang-Lao é, de acordo com a “História Geral da Filosofia Chinesa”, organizada por Yang Xianbang (primeira edição de 1988), uma fusão de princípios legistas, eruditos e taoístas, pois as primeiras medidas de Liubang, no início da dinastia Han, foram a promulgação das “Três Leis de Controle” (“Quem matar será morto, quem ferir ou roubar terá a pena de ressarcir o mal cometido”) e da “Lei de Controle dos Impostos Imperiais” (“Reduzir o imposto sobre a terra cultivada, recolher uma parte de cada quinze”) (idem p. 58), o que denota uma forma de governo baseada na eficácia da lei. A característica legista dessa promulgação de Liubang é o fato de que, na visão dos eruditos, as leis não deviam ser de conhecimento público, pois as conhecendo “o povo não mais respeitaria os governantes”, enquanto os legistas pensavam em torná-las públicas justamente para que fossem temidas. O governo pela “não-ação” do início da dinastia Han era a combinação de controle do povo, da cobiça dos funcionários imperiais e dos gastos do Império através de uma política tributária e de um rígido código penal legista, juntamente com a instituição de escolas onde eram professados os preceitos ritualísticos dos eruditos. É possível perceber ainda a idéia central do moísmo, a de amor ao povo (agricultores, artesãos e comerciantes), na política desse período, pois os primeiros imperadores han governaram para deixar o povo “descansar” depois de tantas guerras (idem pp.60 e 75).

Enfim, dentro de um universo conceitual posto pela disputa das Cem Escolas, os governantes passaram a articular políticas para concretizar o ideal de eternidade de toda a dinastia. Contudo, mesmo com toda a sabedoria prática e a grande capacidade de adaptação do pensamento chinês, existia ainda um terrível paradoxo: ampliação e melhoria da rede de canais só era realizável por um governo centralizador, de “ação” (Needham 1971, p. 216), no entanto um governo assim provocaria sua própria destruição dado o custo – em tributos, vidas humanas e coesão social – de uma obra dessa magnitude. Os governantes tomaram diferentes posturas frente a esse paradoxo, sendo alguns mais e outros menos centralizadores, ocasionando uma dialética de centralização-desmembramento do Império que, segundo Needham, acompanhou os trabalhos de abertura dos canais. O grande apogeu cultural do medievo chinês, a dinastia Tang (618 a 907 d.C.), marcou também o término da construção do Grande Canal, integrando o norte e o sul da China, e retirando assim essa pressão específica na sociedade chinesa. Hoje ela retornou, não mais como uma necessidade urgente de construção de canais e regulação dos rios, mas de controle da poluição e preservação da água. Os tempos mudaram, mas parece que o elemento não.

Outros exemplos de articulação dos diferentes pensamentos políticos da China Imperial poderiam ser citados, como Lushi Cunqiu, os registros históricos compilados em 213 a.C. por Lubuwei不韦, principal representante do que foi chamado “Escola Mista” e que construiu uma síntese entre confucionismo e taoísmo; ou os escritos de Huinanzi (179 a 122 a.C.), neto de Liubang e príncipe do reino de Huinan, que invocou os princípios de “não-ação” taoísta para limitar o poder central e condenar determinadas “ações” imperiais (leia-se restrição ou apropriação dos tributos), pois apesar do Império marcar uma centralização e ruptura com o sistema de príncipes “confederados” da dinastia Zhou, a prática de concessões de terras para as famílias nobres continuou e, com ela, os príncipes insatisfeitos e rebeldes. O eixo de tensão entre governo imperial e governantes locais é a pedra de toque do pensamento político chinês desse período.

Dong Zhongshu (179 a 104 a.C.).Há ainda os desenvolvimentos próprios de cada escola que também já davam indícios de se influenciarem mutuamente, sendo que é também desse período a adoção do confucionismo como ideologia oficial do estado por obra do Imperador Wudi 武帝e empreendida por seu ministro Dong Zhongshu 董仲舒(179 a 104 a.C.). Entretanto, por mais confucionista (para ser fiel ao chinês, deveríamos dizer “erudito”) que fosse Dong Zhongshu, seu pensamento buscou construir uma hierarquia dos valores conflitantes das várias escolas sem eliminar o alto grau de sincretismo daquele período. A estrutura do seu pensamento carrega sem dúvida a assinatura confuciana ao priorizar o estudo dos clássicos – particularmente os registros históricos de Confúcio, os “Anais da Primavera e Outono” – e o cultivo cavalheiresco da virtude como precondição para o exercício das funções do Império, contudo, quando nos defrontamos com colocações como: “Educação é a raiz do governo, e as prisões o seu limite; mesmo estando em pontos distantes, ambas tem uma só função”, ou ainda “Recompensar e distribuir honrarias para promover o cultivo da virtude; punir e castigar para tornar solene seu poder” (idem p.92), nos perguntamos se Confúcio se identificaria com essa filosofia de “legista em pele de erudito”. Nesse sentido Dong Zhongshu foi um continuador de outro ministro imperial da dinastia Han, Jiayi (200 a 168 a.C.),[17] que propunha a articulação necessária entre a “política da virtude” e a “política de opressão”. A primeira significava tanto o estímulo da virtude pela educação quanto afrouxar a política tributária e penal – a “não-ação” taoísta dos governantes – e a segunda era a já consagrada fórmula legista. Para regular esses opostos, Dong Zhongshu estabeleceu a virtude como sendo a mais importante das duas políticas e priorizou a questão da educação nos clássicos eruditos como formação dos futuros funcionários imperiais. Está, então, sistematizada a base do mandarinato chinês.

Após as duas dinastias Han ocorre então um primeiro desmembramento do Império no período dos Três Estados 三国 (221 a 265 d.C.), que correspondem a três regiões econômicas chave do Império (Needham 1971, p. 214), internamente integradas, mas devido à insuficiência da rede de canais de transporte fluvial não permitiam um unidade política eficiente. Uma segunda centralização, sob a dinastia Jin do oeste (265 a 317 d.C.), marca o surgimento da filosofia do Xuanxue 玄学 o estudo do “mistério”, do “insondável” –, na qual as questões metafísicas do “vazio”,[18] das relações sutis entre o ser humano e o universo, são discutidas em reuniões de pensadores de várias escolas, sendo esse período considerado um momento de libertação em que as Cem Escolas voltaram a brilhar após os anos de ortodoxia dos clássicos eruditos. O Xuanxue tem como característica principal uma fusão ainda mais profunda entre taoísmo e confucionismo (YANG 1995, II pp. 147 e 148). É desse período também o crescimento de um outro importante ator no cenário do pensamento político chinês: o budismo,[19] cujo profundo refinamento descritivo do mundo interior do ser humano encontrou no misticismo chinês dessa época um interlocutor à altura.

O pensamento budista – e o futuro poder econômico e político dos seus monastérios – foi um dos vértices, juntamente com o confucionismo e o taoísmo, do triângulo político da posterior dinastia Tang, representando essa dinastia não só a maturidade cultural e artística do Império chinês, mas também a coroação do procedimento articulador dos pensadores imperiais. Se os canais das águas foram construídos com a intenção de unificar o território, os canais do pensamento foram construídos para unificar a mente.

Segue-se à dinastia Jin a fragmentação das dinastias do norte e do sul 南北朝 (479 a 581 d.C.), causada pelo desenvolvimento econômico do sul e pelos movimentos de independência dos nobres governantes locais que viviam sob um governo central distante – por motivos objetivos e terrenos, isto é, a dificuldade de deslocar tropas – e fraco – por motivos filosóficos e celestiais, ou seja, a necessidade de  concessões de privilégios e recompensas para pregar a virtude, como rezava, convenientemente, a cartilha erudita.

A terceira centralização sob a dinastia Sui (581 a 618 d.C.) foi um marco na questão do “governo das águas”, pois o segundo imperador dessa dinastia, Yangdi 炀帝, acelerou a construção do Grande Canal, entre o rio Amarelo e o Changjiang, para superar a falta de integração entre norte e sul (que Needham considera mais apropriado chamar de centro e leste da China). A porção oriental do Changjiang havia se tornado um importante centro produtor, mas seu afluente, o rio Huaihe 淮河, não chegava suficientemente até o norte, onde estava o centro do poder imperial. A atenção de Yangdi dividiu-se entre a interligação entre Huaihe e o norte, região essa que é o campo de batalha mais tradicional da China, utilizando o canal para transportar suprimentos e tropas para combater as invasões do norte, e a abertura de canais ao sul do Changjiang até a cidade de Hangzou 杭州, integrando-se esse importante centro econômico ao resto do Império. Em 609, a grande rede é finalizada contando com aproximadamente 1800 quilômetros de canais.

Contudo, repetiu-se o que ocorrera com a dinastia Qin: os excessos do governo para recrutar mão-de-obra à força e recolher os impostos necessários à construção do Grande Canal conduziram a mais levantes populares. Esse fato alimentou ainda mais a intensa reflexão sobre os possíveis benefícios de um governo despótico. Um exemplo são as palavras de Yu Senxing 于慎行 (1545 a 1607), escritor da dinastia Ming:

Não sabemos quantos anos do poder do Imperador Yangdi escoaram, perdidos, pelo Canal. Entretanto mais dez mil gerações não substituiriam seus benefícios para a posteridade. Ele não realizou um governo de bondade, mas seus méritos são grandiosos como o Céu. (citado por NEEDHAM, p. 230)

O custo humano e material necessário para construir essa integração entre o norte governante e o sul produtor foram incalculáveis, mas o pensamento político chinês continuou a lidar com esse tema de forma a pensar o custo como um sacrifício necessário, como mostra o trecho acima. A sabedoria de “governo das águas” do Grande Yu envolvia o talento de perceber o fluxo natural dos rios e orientá-los para evitar a catástrofe das enchentes. Os pensadores políticos chineses aplicaram tal talento para operar a articulação de propostas antagônicas de governo, lidando com os movimentos da sociedade como se estes fossem o fluxo das águas. Essa não é uma prova de harmonia e respeito à natureza e ao homem no campo da política, pois a intenção era de que a força da sociedade servisse à integração e unificação do Império, assim como os canais abertos na terra. É a longa tradição chinesa de grandes programas governamentais.

Grande CanalA dinastia que realmente colheu os frutos do Grande Canal foi a dinastia Tang, a época de ouro da história chinesa. A economia nesse período cresceu intensamente impulsionada pelo comércio dentro e fora do Império devido à melhoria dos transportes fluviais, reforçando muitas das complexas relações, enfocadas por Weber em sua análise da economia chinesa, entre governo imperial e os grupos de parentesco[20] (BENDIX 1986, pp. 111 a 114). A questão da pressão do governo imperial para a realização de seus projetos hidráulicos pode ser considerada ao analisar o enfoque weberiano da aparente fraqueza do governo central na vida das aldeias e sua impotência em muitas áreas da vida social, principalmente aquelas cuja prerrogativa era detida pelos grupos de parentesco. O pensamento político imperial chinês considerou que centralização excessiva era o início da perda do poder e que, portanto, deveria ser exercido de formas sutis (fluidas como água, talvez), seja pela educação, seja pelo comércio de favores. Tal “sabedoria” chinesa foi citada por Montesquieu: “É uma perpétua observação dos autores chineses que, quanto mais se via aumentar os suplícios em seu império, mais próxima estava a revolução” (MONTESQUIEU 2005, p. 122).

Segue-se à dinastia Tang uma terceira descentralização nas Cinco dinastias 五代 (907 a 960 d.C.), que na análise de Needham, baseando-se em Yi Caoding翼朝鼎, deveu-se à falta de atenção que os últimos imperadores da dinastia Tang dedicaram às obras hidráulicas. Talvez esse seja um posicionamento um tanto restrito, pois a questão das diferentes regiões da China, do ponto de vista econômico e cultural e seu status frente ao governo central é, de certa forma, o grande motivo do talento articulador chinês no campo do pensamento político, o que toca questões além das abordadas aqui, como a intersecção entre culto aos antepassados e sua identidade familiar e regional e a máquina administrativa conduzida por mandarins enviados da capital. Apesar disso, pode-se analisar essa terceira descentralização através da perspectiva de que os canais construídos por Shihuangdi, para a unificação, e ampliados na dinastia Sui, para a integração do Império, tiveram o inesperado efeito de fortalecimento das ditas regiões econômicas chave que pleitearam sua independência mais uma vez (NEEDHAM pp. 248 e 249).

No entanto, a partir da dinastia Tang pode-se dizer que o Império, do ponto de vista do pensamento político e da formação do quadro administrativo (o concurso público para os cargos na burocracia imperial foi consolidado nesse período), estava estabelecido, e como sinteticamente abordado até aqui, em tal processo esteve presente a arte de regular e articular as “águas do poder”. Apresento abaixo a presença dos trabalhos de administração dos rios nas dinastias seguintes, de acordo com Needham, que se restringiram basicamente à manutenção dos canais, e com isso estabelecer a linha histórica que nos levará ao atual “governo das águas” e sua nova face.

Seguiu-se uma quarta centralização, e última para Needham, com a dinastia Song do norte 北宋 e, após a invasão mongol, com a Song do sul 南宋 (960 a 1279 d.C.), que ao longo de seu governo realizou 496 obras relativas a transporte fluvial e represamento de lagos e rios para agricultura, as quais comparadas às 91 obras da dinastia Tang oferecem um parâmetro do interesse dos mandarins da dinastia Song em “governar a água”. No final do séc. XIII os mongóis invadiram os territórios da dinastia Song e iniciaram sua dinastia Yuan (1260 a 1368 d.C.), e mesmo sendo um povo “estrangeiro” em terras chinesas mantiveram a tradição burocrática de atenção à administração dos rios (idem p. 267). A dinastia Ming (1368 a 1644 d.C.), que sucedeu os mongóis, melhorou e aprofundou o leito dos canais, além de realizar inúmeras obras governamentais como: estradas, parques, templos, cemitérios; e chegou a contar com uma burocracia estatal de mais de 100 mil funcionários imperiais (os militares contavam 80 mil) (idem p. 272). A tradição de extensa burocracia imperial prosseguiu com os manchus da dinastia Qing (1644 a 1911).

A República da China (1912 a 1949) e República Popular da China (1949 aos dias atuais) sem dúvida representaram rupturas e ressignificações da tradição política chinesa, pois estava derrubado o Império. Entretanto, excetuados os processos de transição dinástica e revoluções republicana e comunista, a China manteve sua integridade territorial básica entre norte e sul. Um argumento para justificar essa unidade do estado chinês após a dinastia Song, mesmo passando por três dinastias – Yuan, Ming e Qing – e as repúblicas do século XX, é o fato de que o Grande Canal possibilitou uma real e efetiva integração, podendo ser descrito como um segundo “governo das águas” depois do Grande Yu.

Hoje o “governo das águas” aparece no discurso das autoridades chinesas com um significado muito diferente. Não é mais o excesso, como nas enchentes de Yu, é a escassez. Não é mais abertura de canais, é a própria água que está em falta.

Levantar a questão do “governo das águas” é relevante pelo fato de que o  discurso atual, oficial ou não-oficial, sobre o problema dos recursos hídricos utiliza esse mesmo termo: zhi shui 治水, o que confere ao atual desafio chinês uma aura de continuidade dos grandes empreendimentos do passado. Deixando de lado o fato de que a língua chinesa é excelente para a criação de slogans, dada a característica de ser concisa e ao mesmo tempo abrangente, o zhi shui moderno é um grande programa chinês relacionado às obras hidráulicas e de saneamento, controle da poluição, regulamentações do uso e economia do consumo da água tendo em vista a situação crítica na qual a China se encontra, e que precisa legitimar-se frente à população, mesmo desafiando frontalmente a “menina-dos-olhos” da China moderna: o desenvolvimento econômico.

O uso da água na China (disponibilidade de 2800 km³/ano, que corresponde a 6,9% da água mundial, e é utilizado 16%)[21] se divide da seguinte forma: 6% para uso doméstico, 7% para indústria e 87% para agricultura[22] (GNADINGLER 2004, p.8). O uso maciço da água do rio Amarelo na agricultura começou nas décadas de 1960 e 1970, quando cada governador de província precisava garantir a produção de um saco de arroz ou de trigo por pessoa ao ano. Caso não conseguisse, tinha de renunciar (idem, p. 2). Resultou que no ano de 1972 esse rio, berço da civilização chinesa, deixou de chegar ao mar por 15 dias. A visão do leito seco do rio retornou alternadamente até 1985, e em 1997 não chegou ao mar por 226 dias (BROWN 2001). A situação é complexa, pois a agricultura chinesa tem a difícil missão de alimentar 1 bilhão e 300 milhões de pessoas (adiciona-se a isso a tradição e o orgulho de auto-suficiência em grãos) e a indústria precisa empregar a porção economicamente ativa desse contingente. A opção tem sido o desvio da água da agricultura para a indústria – gerando grandes déficits na produção de grãos –, pois mil toneladas de água produzem uma tonelada de trigo a um valor de US$ 200,00, e essa mesma quantidade aplicada à indústria aumentaria a sua produção em US$ 1.200,00 (idem). Para uma economia que busca intensamente o crescimento econômico, essa é uma conta muito atraente.

O dilema “economia versus meio ambiente” foi abordado da seguinte forma por um importante jornal chinês, o zhong guo ri bao 中国日报, em um artigo de 05 de abril de 2005, publicado originalmente no semanário “Novo Século”, xin shi ji 新世纪:

Por que o resultado de mais de dez anos de saneamento do Huaihe não é visível? Por que a erosão em Fengshan Yulin (província de Hebei) piora cada vez mais? Por que os órgãos de proteção ambiental não conseguem deter a poluição industrial? Especialistas apontam: esse é o resultado da desequilibrada batalha entre os emergentes centros industriais e as fontes naturais!

O artigo toca ainda em uma questão de honra: as metas relativas ao meio ambiente do décimo plano qüinqüenal aprovado pela Nona Assembléia Popular Nacional em 15 de março de 2001, a serem atingidas em pouco menos de um ano na época em que o artigo foi publicado. Em seu quarto capítulo, artigos 13, 14 e 15, o plano trata do tema “população, recursos e meio-ambiente”, estabelecendo pesadas ações de engenharia e gestão ambiental em regiões-chave, como as bacias dos rios Amarelo e Changjiang, da Mongólia interior, além de rigoroso controle da poluição dos rios e lagos. A nova legislação da água, xin shui fa 新水法, seria promulgada em outubro do ano seguinte. Mas o repórter do citado artigo, Wang Quanbao 王全宝,apontou que restava ao menos um terço das ações governamentais ainda por fazer, pois a China ainda estava longe de atender a necessidade de retirar as 58 milhões de toneladas de poluentes de seus rios e investir o total de 120 bilhões de yuan (US$ 15 bilhões) em infra-estrutura de tratamento de esgoto urbano, previstos para a concretização das metas. Em tempo, o nome do artigo é: “A dificuldade de ‘governar a água’ (zhi shui) em meio à batalha entre economia e meio-ambiente”.[23]

Nos debates que antecederam ao plano qüinqüenal foi publicado um artigo, assinado pelo renomado engenheiro Zhang Yue张岳, no jornal do Exército da Libertação Chinês (22/11/2000) comentando uma orientação do Comitê Central do Partido Comunista Chinês relativa à questão ambiental a ser incluída no plano qüinqüenal. Suas palavras iniciais dão o tom do simbolismo desse tema no cenário político atual ao citar um antigo provérbio: “Para governar um país deve-se primeiro governar a água. Somente governando a água, o país ficará em paz.”, e completa: “...essa é a lição que a história nos mostra”.[24]

Muitos outros artigos, campanhas, programas governamentais poderiam ser citados, todos utilizando o “governo das águas” como ponto central. Limitei-me às duas citações acima por considerá-las suficientemente elucidativas do seu retorno ao cenário político, no qual aquele espírito articulador do Grande Yu está sendo duramente desafiado a lidar com o que foi sua metáfora fundadora: a água. A civilização chinesa é essencialmente ligada à água, cuja maleabilidade e ação constante foram fonte de inspiração para muitos pensadores e poetas ao longo de sua história. A formação do pensamento político pode ser descrita igualmente por essa metáfora, no entanto, mesmo com tantos usos filosóficos e práticos, a água não resistiu aos continuados abusos característicos do desenvolvimento moderno. A capacidade de articulação dos pensadores políticos chineses está sendo testada no equilíbrio entre economia e meio-ambiente, seja no ponto de vista das idéias quanto no da ação, e o presente artigo tem como objetivo apresentar a perspectiva histórica que a contextualiza.

Vale lembrar que o ideograma chinês “governo”, zhi , é formado pelo radical “água” – shui –, e pelo ideograma tai que tem os significados de: plataforma, terraço, fortaleza, eminente, respeitável, ou seja, o conceito original de governo foi representado pelo poder – eminente e respeitável – de controlar a água. Poder-se-ia dizer, então, que na própria formação da língua chinesa “água” e “governo” estiveram unidos, sendo o “governo das águas” etimologicamente uma redundância.

 

Referências bibliográficas:

BENDIX, Reinhard. Max Weber, um perfil intelectual. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.

BROWN, Lester. Escassez de Água Contribui para Déficit na Colheita Mundial de Grãos. Disponível em: <http://www.wwiuma.org.br/artigos/004.html>. Acesso em: 1 jun. 2006.

_____________ Lençóis Freáticos em Declínio na China poderão brevemente causar elevação mundial nos preços dos alimentos. Disponível em: <http://www.wwiuma.org.br/artigos/008.html>. Acesso em: 1 jun. 2006.

CHAI, Ch’u e CHAI, Wimberg. Confucionism. New York: Barron’s Educational Series, 1973.

DICIONÁRIO DE CHINÊS-PORTUGUÊS. Hong Kong: Guangyuan.

GNADINGLER, João. Impressões e lições da Oficina Internacional de Captação e Manejo de Água de Chuva em Landzou, China, de 16 de julho 2004 a 31 de agosto de 2004. Disponível em: <http://www.abcmac.org.br/docs/relatchina.pdf>. Acesso em: 28 maio 2006.

GUERRA, Joaquim Antonio. Escrituras Selectas. Macau: Jesuítas Portugueses, 1980.

LAO-ZI. Escritos do Curso e sua Virtude. São Paulo: Mandruvá, 1997.

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

NAN, Huai Jing. 论语别裁 [Nova abordagem dos Analectos]. Taibei: Lao Gu Culture Foundation, 1993.

NEEDHAM, Joseph. 中国之科学与文明[Ciência e civilização da China]. Taibei: 商务[Assuntos Comerciais]1971.

WEBER, Max. The Religion of China. Glencoe: The Free Press, 1951.

YANG, Xianbang org. 中国哲学通史 [História Geral da Filosofia Chinesa]. Beijing: Universidade Popular da China, 1995.

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[1] Utilizarei as expressões “governo da(s) água(s)” ou “governar a água” dependendo do contexto, mesmo sabendo das diferentes conotações possíveis em português, pois o termo original em chinês pode ter tanto a primeira como a segunda acepção.

[2] Em uma mistura de tradição e modernidade tipicamente chinesa, um site dedicado ao Grande Yu (www.tw.pte.sh.cn/jicengtjwy/luochuanxx/zp/dy.htm) produzido por um grupo de jovens da Associação Educativa do Comitê dos Trabalhadores do bairro de Putuo em Shanghai, contêm a seguinte enquete: “Foi Yu um bom pai?”. Pode-se votar nas seguintes opções: “sim”, “não”, “mesmo sendo um mau pai, foi também um bom pai” e “não sei”.

[3] Mantive os números “nove” e “quatro” por sua simbologia, sendo que o primeiro simboliza “vários” e o segundo simboliza “toda a extensão”. Joaquim A. Guerra traduz “os quatro mares” por “toda a vastidão do Império”. Mantive os “mares” pois trato aqui da água e suas implicações sociais e políticas.

[4] É interessante frisar que nos 500 li (um li corresponde a 0,5 km) quadrados do domínio de pacificação (todos tinham essa mesma área), 300 são dedicados à educação e os outros 200 ao treino militar.

[5] A historiografia chinesa hoje descreve essa primeira estrutura social como “sociedade escravista”, diferente da “sociedade feudal” surgida progressivamente a partir do Império com a primeira unificação da dinastia Qin (221 a 206 a.C.).

[6]Justiça seja feita aos textos de outras escolas que não a taoísta que apresentam o Tao como relativo ao governo, sendo tanto a capacidade como a ação do governante. Os clássicos utilizam esse termo para fazer menção às ordens imperiais. Obviamente tal aproximação do Tao com o governo não elimina sua conotação de princípio universal, espiritual, transcendente, pois a cultura chinesa antiga era basicamente uma união de cosmologia e política. A transliteração oficial, o Pinying, grafa esse ideograma com “d” ao invés de “t”. Nas referências seguintes usarei, portanto, essa transliteração.

[7]A literatura sobre a história chinesa antiga, em português, geralmente opta pela tradução “legalista”, mas, para evitar confusões com o significado desse termo na história do Ocidente, optei pelo “legismo” de fontes portuguesas como: MARTINS, Dora. Os princípios confucionistas da ideologia chinesa actual. In: Estudos sobre a China VI. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2004.

[8]Zong quer dizer vertical, ou eixo norte-sul, e heng, horizontal, ou leste-oeste, e está relacionado aos alinhamentos políticos-militares entre os reinos do período de Primavera e Outono, conduzidos por “diplomatas” das diferentes cortes. Os seis reinos fracos do eixo norte-sul se uniram para atacar o poderoso reino de Qin, a oeste, formando a “união vertical”, hezong合纵. Entretanto, por ação de Zhangyi张仪, do reino de Qin, cada um desses reinos procurou se aliar de forma independente a esse único reino poderoso, as “alianças horizontais” lianheng 连横, com a garantia, não cumprida posteriormente, de não serem invadidos. Não é preciso dizer que a “união vertical” não sobreviveu, assim como nenhum dos seis reinos, sendo a primeira unificação da história chinesa realizada pelo Shihuangdi de Qin. A Escola dos “diplomatas” que atavam e desatavam tais alianças se caracteriza pelo cultivo da retórica e por um senso de pragmatismo que os coloca em oposição aos eruditos, e em certa afinidade com a realpolitik dos legistas e militares.

[9] A “Arte da Guerra”, de Sunzi, é a grande obra dessa escola.

[10] Tais pensadores se preocupavam com a difícil relação entre os nomes e as coisas. A expressão “corrigir os nomes” citada por Confúcio, e por outros pensadores da época, ou ainda “o nome que pode ser nomeado, não é o nome verdadeiro” do início do Daodejing (Tao Te King) de Laozi (Lao-tsé), são reflexos dessa intensa discussão do período. Uma citação própria dos pensadores dessa escola é o paradoxo: “cavalo branco não é cavalo”, de Gong sunlong 公孙龙(320 a 250 a.C.).

[11]Para constar, as outras escolas citadas por Bangu, e não por Shimatan, são: a Escola Mista (zajia 杂家), nome dado ao processo, que veremos a seguir, de fusão do pensamento de todas as escolas; e Escola dos Escritores (xiaoshuo小说家), cujos registros estavam relacionados ao shuo (“falar”, “transmitir oralmente”), isto é, seriam os pensadores que compilavam as transmissões orais e lendas da antiguidade chinesa.

[12] Pensador do período dos “Estados Combatentes”, que viveu entre 280 e 233 a.C. e sintetizou os princípio de governo dos legistas na obra que passou a levar o seu nome.

[13] As aplicações de tais princípios na política serão abordados adiante, no entanto, as colocações de Laozi são particularmente paradoxais, como se percebe nessas passagens, o que permite ao leitor interpretá-las de diversas maneiras e em várias áreas da vida.

[14]Tradução de Mario Bruno Sproviero, com algumas alterações.

[15]A determinação de uma bitola padrão para as carruagens fez parte dessa unificação de medidas e expressa bem as preocupações dos legistas, pois em uma época em que as estradas eram sulcos na terra, carruagens de diferentes bitolas não circulavam em uma mesma região, dificultando a integração do território.

[16]O filme “Herói” (com o astro de Kung fu, Jet Li), lançado em 2005, traz esse paradoxo “governo severo-governo bom” na figura de Shihuangdi. É bom lembrar que essa questão da história chinesa passou a ser o grande precedente para legitimar “penas severas, leis rigorosas” de qualquer época na China.

[17] Needham cita o diálogo entre o primeiro imperador dos Han e o conselheiro deste, que sempre se expressava em linguagem poética. “Consegues fazer poesia em cima de um cavalo (nas campanhas militares)?”, perguntou o Imperador. Jiayi respondeu “O Imperador por acaso não governa em cima de um cavalo?... unir erudição e força militar é a arte [de governo] de longo prazo” (p. 197).

[18]Um dos grandes temas do pensamento chinês foi o debate em torno da existência ou não de uma “matéria original”, sendo alguns partidários da tese de que nada existia no início do universo, o “vazio”, e outros acreditavam que havia elementos primordiais. Nesse debate contribuíram os ensinamentos da Escola do Yin e Yang, que internamente abarcava tanto os partidários do “vazio” como os que buscavam a essência material das coisas.

[19] As implicações e articulações específicas causadas pelo encontro do budismo com a China não serão tratadas aqui por exigir uma abordagem mais aprofundada de sua formação na Índia, sua chegada à China, a tradução e apropriação desse pensamento por parte da civilização chinesa. Mas, para o propósito desse artigo, qual seja, o de realçar a influência do modo chinês de administração dos rios na formação do pensamento político da China imperial, podemos nos limitar à matriz conceitual de articulação das Cem Escolas nesse constante esforço de interligar e regular as tendências políticas, esse permanente movimento de alternância centralização-fragmentação, ortodoxia-pluralidade, ocorrido nas cortes imperiais chinesas.

[20]Para Yang, na “História Geral da Filosofia Chinesa”, as relações cruciais do Império chinês ocorria entre a corte imperial, os nobres donatário de terras, os proprietários não-nobres (onde melhor se insere o conceito weberiano de grupo de parentesco) e os camponeses (arrendatários das terras e fonte de mão-de-obra para os campos e para a guerra).

[21]A título de comparação o Brasil tem a disponibilidade de 6950 Km³/ano, que corresponde a 17% da disponibilidade mundial e é utilizado 1%.

[22]No Brasil os números são: 43% para uso doméstico, 17% para indústria e 40% para agricultura.

 
 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 25 setembro, 2006.