Introdução
Pode-se
dizer que um dos principais objetivos da pedagogia libertária é preparar
os indivíduos para a vivência plena da liberdade. Para isso, desenvolve
a autonomia, a responsabilidade, o respeito, a solidariedade, a cooperação
e a criatividade nos educandos. Assim, além de estabelecer novas formas
de relações interpessoais, é também um instrumento de luta para a
superação das condições de exploração que sustentam nossa sociedade.
Partindo
da premissa de que as bases da sociedade capitalista são a exploração,
a desigualdade e a heterogestão, procuramos investigar qual a
possibilidade de realização da autogestão em unidades escolares e qual
é o lugar da escola autogerida na sociedade capitalista. Além disso,
analisamos as relações existentes entre poder e saber, liberdade e
autoridade, algumas experiências anarquistas em educação e o porquê do
esquecimento ao qual a pedagogia libertária foi relegada no Brasil.
Desta
forma, nosso trabalho está dividido em duas partes: na primeira, nós
faremos o percurso da autoridade à liberdade, onde discutiremos, além
destes conceitos, a relação saber-poder. Na segunda, examinaremos as
propostas e experiências anarquistas em educação. Escolhemos para o
nosso estudo dois casos clássicos de experiências educacionais libertárias:
o Orfanato Prévost e a escola-comunidade La Ruche. Por fim, esboçaremos
o panorama da educação libertária no Brasil no final do século XIX e
início do XX.
Parte
I – Da Autoridade à Liberdade
São
inúmeras as perspectivas teóricas e práticas da pedagogia libertária
que podemos distinguir. No geral, podemos dizer que uma “[...] das
características centrais da proposta pedagógica dos anarquistas é o seu
antiautoritarismo [...]” (MORIYÓN, 1989, p. 17). Com Gallo (1995a.),
vemos que a educação anarquista tem, ao lado do antiautoritarismo, a
autogestão como um dos seus principais focos. Mas por não ser a única
tendência autogestionária em educação,
para melhor entendê-la e diferi-la das demais, podemos dividi-la em: 1)
tendência não-diretiva, muito próxima, do ponto de vista
metodológico e psicológico, da tendência escolanovista e da pedagogia
institucional, sendo Max Stirner (1806-1856)
um dos seus maiores teóricos; 2) tendência mainstream,
sustentada teoricamente pelos outros grandes nomes do anarquismo, como
Proudhon (1809-1865), Bakunin (1814-1876), Kropotkin (1842-1921), Malatesta (1853-1932), e base das experiências
clássicas de escolas libertárias, como o Orfanáto Prévost e a
escola La Ruche.
A
pedagogia libertária, segundo a tendência mainstream, ao contrário
da tendência não-diretiva, não entende a liberdade como um meio de
emancipação, mas como um fim, e a autoridade, longe de ser considerada
perniciosa e combatida é, antes de tudo, boa e indispensável. Mas, se
uma das características centrais da pedagogia libertária é o
antiautoritarismo, como pode considerar a autoridade como “[...] boa e
indispensável na educação das crianças [...]” (GALLO,
1995a., p. 171)?
Para
respondermos essa questão, faz-se antes necessário analisarmos as concepções
de poder e autoridade e as relações existentes entre saber e poder, para
finalmente entendermos o tipo de antiautoritarismo e liberdade que os
anarquistas defendem nas suas propostas educacionais.
Conceitos
de Poder
Segundo
a concepção clássica de poder, chamada topológica (do grego Topos
– lugar) e construída pela Filosofia Política, existem lugares (Topoi)
na sociedade onde temos a sua concentração e outros onde verificamos a
sua ausência. Exemplificando com um regime monarquista, a concentração
do poder se daria na figura do monarca, e todos os demais espaços
sociais, assim como os súditos estariam esvaziados do poder. Conforme
Gallo, o equilíbrio duma sociedade sob esta concepção se dá pela
“soma zero”. Acompanhemos o seu raciocínio:
[...]
para que haja o equilíbrio social, a ordem de grandeza (positiva) do
poder concentrado em determinados lugares deve ser igual à ordem de
grandeza (negativa) de poder que falta nos demais espaços sociais. Para
facilitar a compreensão: Pensemos numa hipotética sociedade monárquica
composta por dez súditos e um rei; se cada um dos súditos vale [-1], em
termos de poder, a concentração de poder do rei deverá ser [+10].
apenas desta forma a sociedade estará equilibrada; se o rei tiver uma
unidade de poder a mais ou a menos, haverá um perigoso desequilíbrio
para um dos lados, prejudicial para o conjunto todo (GALLO, 1997, p. 98).
Nesta
concepção topológica do poder, temos que nos distanciar do fenômeno
para podermos identificar os topoi de onde ele se emana, como suas
amarras estão ligadas às regiões esvaziadas de poder para, a partir
disso, estabelecer as relações de força.
Insatisfeito
com essa perspectiva macroscópica do poder, considerada incompleta, Gallo
nos informa que Foucault resolveu investigar as relações de poder sob
outro ponto de vista, o microscópico, o qual ele chamou de “microfísica
do poder”. Assim, Foucault desenvolve uma outra noção de poder, onde
este estaria esparramado pela sociedade, formando uma “Teia de Renda”,
“[...] fruto da ação e correlação de forças que se materializam em
meio à multiplicidade de indivíduos que se fazem sujeitos justamente
através da relação de poder do que da ação unilateral de um soberano
que exerce despoticamente o poder [...]” (GALLO, 1997, p. 106).
Desta forma, não existem lugares determinados para o poder, ele se
encontra diluído por todo o tecido social. Um outro dado interessante
desta concepção é que o poder não está reduzido à pura e simples
repressão. É “[...] imperativo que às suas conotações negativas –
o poder como repressão - sejam anexadas também as suas conotações
positivas – o poder como fonte de produção social -; é o que Foucault
chama de tecnologia do poder”. (GALLO, 1997, p. 105). Em
outros termos, já não se trata de poder e não-poder, como na lógica
binária da concepção clássica, mas de “[...] poderes múltiplos e múltiplos
contrapoderes, que só se definem enquanto tal na relação de uns com os
outros. Dessa microfísica de poderes e contrapoderes que se entrelaçam e
engalfinham-se, ergue-se toda a macroestrutura social [...] (GALLO, 1997,
p. 100)”.
Gallo
(1997) demonstra que em Foucault, o poder não é algo que se pode
possuir, conquistar ou perder, mas algo que os indivíduos exercem e
sofrem. Que o poder está interno em todos os tipos de relações sociais
e que vem de baixo, estando na base tanto do dominador quanto do dominado,
e que se há poder, há também a resistência – contrapoder –, sendo
esta a condição essencial de sua existência.
A
Autoridade
Entre
as concepções de autoridade, vemo-la ora confundida com poder, ora
concebida como algo totalmente diverso. Para Engels (1820-1895), citado
por Gallo (1995a., p.25), a autoridade é concebida como “[...] imposição
da vontade de outro à nossa [...]”. Engels naturaliza a autoridade ao
compará-la aos fenômenos climáticos ao qual todos estamos sujeitos e da
qual é-nos impossível fugir. Para ele, não há organização sem
autoridade e comando, pois é necessário existir uma “[...] autoridade
centralizadora, que distribui e coordena as tarefas, fazendo com que sejam
realizadas no momento certo e na ordem correta”. (Ibidem, p. 26). Faz
também uma diferenciação entre autoridade organizacional e autoridade
política: desta última, nós podemos prescindir - o que seria a tarefa
revolucionária -, mas da autoridade organizacional não, porque ela é
decorrente das condições de produção e circulação das mercadorias e,
portanto, anterior à política. De qualquer modo, seja organizacional ou
política, a autoridade é uma forma de poder, pois ambas supõem a imposição
da vontade de um(ns) sobre a vontade de outro(s) e uma subordinação, que
se divide: uma a ser combatida (esfera política) e a outra imprescindível
(pré-política).
Um
outro postulado bem mais interessante é o de Hannah Arendt (1906-1975),
filósofa política contemporânea, que nos diz que o conceito de
autoridade deve ser buscado nas experiências antigas, sobretudo na
romana, considerada a única verdadeira experiência política organizada
de acordo com a autoridade. Longe de ser uma imposição da vontade às
vontades alheias, dada fundamentalmente pela violência ou pelo
convencimento, a “[...] autoridade implica numa legitimidade que é
anterior à imposição mesma e aceita por ambas as partes de antemão,
enquanto que no poder a legitimidade, quando existe, é sempre posterior
à imposição, sendo ela própria uma imposição” (GALLO, 1995a., p.
28).
Essa
legitimidade da autoridade apoia-se no ato fundante dos antepassados e, segundo Gallo (Ibidem,
p. 31), aqueles que são investidos de autoridade e são obedecidos, não
o são porque tenham convencido ou subjugado o outro, mas porque é o que
dita a tradição, de onde que o fundamento de toda autoridade é divino.
Por conseguinte, depois do processo de secularização, o Estado perdeu a
legitimação da sua autoridade, passando a governar somente através do
poder, isto é, da coação e da violência. Exilada da esfera política,
a autoridade permanece hoje em outras esferas - pré-políticas - do convívio
social, tal como na esfera religiosa e na educacional.
Se
buscarmos as bases psicológicas da autoridade, perceberemos que, no âmbito
da psicopedagogia, ela está de certa forma relacionada com o poder. Para
os psicopedagogos franceses dos anos setenta, fortemente influenciados
pela psicanálise, a autoridade fundamenta-se numa neurose inculcada na
criança através da família e da escola, como forma de garantir e
cristalizar a perpetuação do sistema central baseado no poder. Para
Michel Lobrot, citado por Gallo (1995b. p. 37), toda autoridade provém do
medo que temos do outro, sendo que este medo é uma forma de defesa: se o
outro pode me atacar, devo antecipar-me a ele. Assim, a autoridade é uma
capacidade de mudar a vontade do outro impondo a ele a nossa vontade,
utilizando-se da repressão ou da coerção:
A
autoridade é um sistema que permite alterar a vontade do outro, curvá-la
no sentido que se deseja.
Dois
casos podem ser apresentados. Ou bem se procura suprimir pura e
simplesmente a vontade do outro, porque ela constitui um perigo e, então,
utiliza-se um mecanismo que chamaremos a Repressão. Ou bem se
procura fazer o outro agir num sentido diferente daquele que ele próprio
desejaria, num sentido que deseja útil. Utiliza-se então um mecanismo
que chamaremos Coerção.
Quer
se trate de Repressão ou Coerção, o princípio é sempre o mesmo e
devemos mais uma vez analisá-lo. O princípio é o de transformar o campo
psicológico do indivíduo sobre o qual se quer agir de tal modo que o ato
que ele projeta tenha conseqüências distintas daquela que deveria ter
normalmente (LOBROT apud: GALLO, 1995a., p. 37).
Interessante
notar que não apenas o que obedece, mas também aquele que age
autoritariamente o faz com medo do outro. Uma outra questão é que para
Lobrot, a autoridade é exercida apenas por aqueles que ocupam o lugar de
poder, conforme a noção topológica já discutida.
Seguindo
nossa análise sobre a autoridade no âmbito da psicopedagogia, temos as
perspectivas de Gerard Mendel e Christian Vogt. Se em alguns momentos suas
análises aproximam-se às de Lobrot, quando estes seguem identificando a
autoridade com o poder, em outros elas se distanciam bastante, como quando
eles apontam para um processo de dissociação entre uma ideologia autoritária
(fundamento da família e da educação da infância) e uma ideologia
dominante (substrato do modo de produção social). O poder não mais está
associado de modo indivisível à autoridade, mas apresenta uma tendência
de dissociar-se. Neste processo, a autoridade está ausente da esfera política,
assim como o poder impera sem legitimidade.
[...]
a ideologia dominante se revela como a expressão de uma força
mistificadora que não resiste à prova do exame crítico da realidade
social e o fenômeno autoridade mostra não ser senão a relíquia mais ou
menos consciente da relação de poder no passado entre pais e filhos
[...] (MENDEL;
VOGT apud: GALLO, 1995a., p. 42).
Apesar
de breve, nossa análise demonstra que poder e autoridade estão
historicamente ligados, entrelaçados, chegam mesmo a confundirem-se, não
obstante serem coisas totalmente distintas.
A
Relação Saber-Poder
Para
darmos continuidade, faz-se necessário resgatar um ponto que talvez não
tenha ficado tão explícito: segundo Gallo (1995a.), mais do que uma relação
política, a autoridade pertence ao reino da pré-política, ou seja,
pertence ao nível das relações que antecedem a política propriamente
dita, como a educação, a religião, a relação familiar privada,
a relação inter-individual dentro de um grupo social, etc. Apesar deste
ponto estar presente em todos os autores utilizados no sub-item anterior,
seguiremos utilizando apenas Arendt, porque na sua tipificação do fenômeno
da autoridade ele está mais saliente.
Segundo
Arendt, é uma grande falácia situar a educação no nível político,
porque ela apenas prepara os indivíduos para a vivência política, não
sendo uma atividade propriamente política. Ela chega a afirmar que onde
termina a educação, começa a política:
Nada
é mais questionável, então como hoje em dia, do que a significação
política de exemplos retirados do campo da educação. No âmbito político
tratamos unicamente com adultos que ultrapassaram a idade da educação
propriamente dita, e a política, ou o direito de participar da condução
dos negócios públicos, começa precisamente onde termina a educação.
(A educação adulta, individual ou comunal, pode ser de grande importância
para a formação da personalidade, para seu pleno desenvolvimento ou
maior enriquecimento, mas é politicamente irrelevante, a menos que seja
seu propósito proporcionar requisitos técnicos, de algum modo não
adquiridos na juventude, necessários à participação nos problemas públicos).
Reciprocamente, em educação lidamos sempre com pessoas que não podem
ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estarem sendo
preparadas para elas (ARENDT, apud: GALLO, 1995a., p. 46).
Desta
forma, quando situamos a educação no nível imediatamente anterior ao
político, ou seja, no pré-político, a autoridade assume a sua feição
mais bem acabada, pois temos a legitimação da autoridade daquele que
educa – porque representante de uma cosmovisão – sobre aquele que está
sendo educado, assim como temos a legitimidade da autoridade do pai na
esfera familiar, também pré-política, para educar o filho, dado que
eles sabem mais e possuem uma cosmovisão mais elaborada do que a criança
ou o adolescente.
Aprofundando-nos
um pouco mais na questão da relação saber-poder, vamos ver o que
Gallo nos demonstra em uma passagem de um dos livros de Foucault:
Se
quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo
em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar não dos filósofos
mas dos políticos, devemos compreender quais são as suas relações de
luta e de poder. E é somente nessas relações de luta e poder – na
maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam,
procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações
de poder – que compreenderemos em que consiste o conhecimento (FOUCAULT
apud: GALLO, 1997, p. 111).
A
partir de Gallo (1997), podemos concluir que saber e poder são indissociáveis,
sendo que o conhecimento é essencialmente político. Percebemos esta relação
mais nitidamente quando pensamos na constituição da ciência moderna e a
sua vontade de verdade para a produção do saber, porque “[...]
instituir uma verdade é um ato essencialmente político, é o exercício
de um poder [...]” (GALLO,
1997, p. 112).
Na
educação isso se deu quando o processo educacional articulou-se em
pedagogia como forma de construir uma verdade sobre o ensino e a
aprendizagem. Neste caso, o processo estava intimamente ligado ao exercício
de um poder específico, a disciplina, que consistia na busca do domínio
do corpo social através de seus elementos mais básicos, os indivíduos.
Depois disso, a disciplinarização foi utilizada para individualizar o
exercício do poder.
A
escola foi uma das instituições onde esta nova tecnologia – assim
Foucault a denominou: tecnologia política da disciplina – surgiu, no
esforço de individualizar dentro da multiplicidade, de controlar as
condutas, os comportamentos e as atitudes. Nas salas de aulas nós temos
“[...] um professor para dezenas de discípulos, e é necessário,
apesar da multiplicidade dos alunos, que se logre uma individualização
do poder, um controle permanente, uma vigilância em todos os instantes
[...]” (GALLO, 1997, p. 113). Além do professor, temos ainda o inspetor
de alunos e as outras formas de controle surgidas a partir da disciplina:
notas quantitativas, exames, concursos, etc.
Uma
dessas tecnologias, que nos parece tão natural ainda hoje, é a disposição
estratégica da classe em filas, que segundo Gallo (1997) permite que
todos os alunos sejam melhor vigiados e controlados por um único
professor. Atingindo seus corpos e comportamentos, individualiza a relação
de poder. “Essas estratégias de dominação através da delimitação
de espaços e da disciplina corporal diferem quase nada em sua aplicação,
seja nos exércitos seja nas escolas” (GALLO, 1997, p. 113).
Nessa
cartografia do ensino, na qual os espaços são delimitados
estrategicamente, tudo é cuidadosamente preparado para que o poder assuma
o seu topos: “[...] a cátedra, está estrategicamente colocada
num plano mais elevado, para que ele possa olhar os alunos do alto [...] e
também para que cada aluno [...] tenha que inclinar o pescoço para trás,
olhando para o alto, como se estivesse vendo seu verdadeiro Senhor” (GALLO,
1997, p. 56).
Destacamos
ainda a importância do exame nesta constituição do processo educacional
em pedagogia, pois além de controlar os alunos, era necessário quantificá-los,
qualificá-los, classificá-los. Por meio dos exames, a escola pôde
controlar os seus alunos nos contextos didático-pedagógicos e políticos.
No primeiro, verificando a aprendizagem; no segundo, pela conotação de
sanção e de castigo que o exame adquire, enraizando inconscientemente em
cada um a sensação de estar sendo controlado, vigiado.
A
pedagogia, enquanto “ciência da educação”, vai assim, materializada
na instituição escolar, servir de alicerce para o mundo ocidental
contemporâneo, sendo a sua base disciplinar.
Nesse
contexto, no qual tende-se a assumir a noção topológica de poder, a
equação saber é poder não é apenas aceita e válida, mas funciona
como um dos pilares de sua estruturação, pelos seus nítidos contornos
de instrumentalidade: quem não sabe não pode dominar, e em conseqüência,
termina dominado; Quem sabe manda, quem não sabe, obedece.
Numa
sociedade igualitária, “[...] não mais baseada na exploração e na
dominação, ela perde completamente sua significação: o saber, embora
embase as ações do indivíduo, não fundamenta nenhuma situação em que
ele se imponha sobre outro amparado no saber...” (GALLO, 1997, p. 63), e
por isso a equação já não teria mais nenhum sentido. Mas como estamos
analisando a validade da educação anarquista dentro da sociedade
capitalista, considerando-a como “[...] um dos mecanismos de luta para a
superação das condições de exploração que sustentam essa sociedade,
sendo uma delas a própria questão do saber [...]” (Ibidem), preparando
o indivíduo para a vivência plena de sua liberdade em meio à liberdade
dos demais, seguiremos para o próximo sub-item.
A
Liberdade
Para
compreendermos a pedagogia libertária, faz-se necessário entendermos um
dos seus conceitos-chave: a liberdade.
O
conceito de liberdade com o qual nós freqüentemente temos contato é
aquele que foi desenvolvido pela filosofia política que culminaria no
liberalismo, definido do ponto de vista burguês.
Os
anarquistas trabalham com um conceito de liberdade muito diferente do
conceito dos liberais, sendo necessário explicitar as diferenças
existentes entre as duas concepções para que possamos entender a real
dimensão da proposta educativa libertária.
Junto
aos inúmeros filósofos, economistas e historiadores que deram origem ao
iluminismo, John Locke (1632-1704) foi um dos primeiros a empreender a
construção teórica de sustentação de uma ordem social burguesa.
Na
época, fazia-se necessário separar o homem em estado natural do
civilizado. Para isso, acharam necessário estabelecer um contrato social
que regesse as relações dos homens na comunidade, de forma a destruir o
direito natural do homem medieval. Assim, os liberais vão tratar da
liberdade como um fenômeno natural, na qual o indivíduo, ao pactuar
desta sociedade, deve abrir mão de uma parcela de sua liberdade em nome
da segurança e da defesa de interesses que a comunidade lhe proporcionará.
Essa renúncia é feita em nome de um gerenciamento coletivo do direito de
propriedade que, segundo Gallo (1997 b.), se dava para garantir o direito
da propriedade, pois vivia-se num momento em que era necessária uma
consolidação política da propriedade burguesa, em oposição à dos
nobres.
Rousseau
(1712-1778), outro importante pensador do liberalismo que viveu numa época
em que a propriedade burguesa já estava praticamente consolidada,
constata que “[...] embora em estado natural o homem seja livre, a
sociedade coloca a liberdade em risco” (GALLO, 1995b., p. 20). Conclui
que a liberdade é parte da própria natureza humana, e que a verdadeira
sociedade deve tudo fazer para preservá-la. Assim, a sociedade deve
encontrar então não uma forma de estruturação que suprima a liberdade
natural, mas que permita que esta seja trocada por uma liberdade
convencional, cuja intensidade deve ser igual à da anterior.
Tal
como Locke, Rousseau prossegue admitindo a liberdade como algo natural,
com a diferença de que já não se trata de abandonar a liberdade em prol
da cultura da civilização, mas sim de estabelecer, através do contrato
social, uma liberdade que seja uma adaptação daquela criada pela
natureza. Nesta concepção, segundo Gallo (1995b.), a liberdade é sempre
natural e nunca uma construção social.
Já
os anarquistas desenvolvem uma trajetória bastante diferente – na
verdade, oposta – para o conceito de liberdade.
Para
Pierre-Joseph Proudhon, anarquista francês, a liberdade é a resultante
da oposição de duas forças: a força de afirmação, a necessidade,
e a força de negação, a espontaneidade. Quanto mais simples um
ser vivo qualquer seja, mais será regido pela necessidade; quanto mais
complexo, mais influenciado pela espontaneidade, sendo que esta, no seu último
grau é a própria liberdade. Segundo Gallo (1995b.), Proudhon afirma a
existência de dois tipos de liberdade: a simples, experimentada pelos bárbaros
– que não viviam numa sociedade desenvolvida – e a liberdade
composta, a verdadeira liberdade, vivida em sociedade. Esta pressupõe,
para sua existência, a convergência de inúmeras liberdades individuais,
que se complementam, resultando em uma liberdade maior e mais abrangente.
Podemos
notar que a concepção de liberdade de Proudhon se assemelha muito à de
Rousseau, ao admitir dois tipos de liberdade, porém, a oposição aparece
quando vemos que para Rousseau a verdadeira liberdade é a natural,
enquanto que para Proudhon a verdadeira liberdade é a social, chegando a
afirmar que para que haja sociedade: “[...] é preciso que haja
engrenagem de liberdades, transações voluntárias, obrigações recíprocas
[...] graças a este organismo, os indivíduos [...] especializam-se
segundo seu talento, desenvolvem e multiplicam [...] a sua ação própria
e a sua liberdade” (PROUDHON Apud: GALLO, 1995b., p. 23).
Um
outro anarquista, o russo Mikhail Bakunin, parte desta concepção de
Proudhon para levantar suas críticas ao conceito de liberdade de filósofos
como Locke e Rousseau. Segundo Gallo (1995b.), para Bakunin a liberdade não
é algo natural, mas sim uma construção eminentemente social. Somente a
relação social pode fundar a liberdade, sendo que esta é o ponto de
chegada, e não o ponto de partida. Se para os liberais a liberdade só
existe na natureza e a sociedade é um empecilho para ela, para Bakunin a
liberdade é possível somente em sociedade, pois no começo da história,
estando o homem inconsciente de si, ele era como uma marionete nas mãos
das forças naturais. Com o progresso cultural e o desenvolvimento da
civilização, o homem vai aos poucos se libertando das fatalidades
naturais, construindo seu mundo e conquistando a liberdade. Assim, a
liberdade é entendida pelos socialistas libertários como um fato social
e coletivo, que só adquire sentido como relação, sendo uma característica
exclusiva do mundo humano, pois implica consciência e reflexão. Segundo
Gallo (1995b.), não podemos dizer que na sociedade capitalista vivemos
uma liberdade verdadeira, pois a liberdade da classe dominante está
condicionada à exploração das classes dominadas. Somente uma comunidade
socialista libertária poderia realizar a verdadeira liberdade, dando
condições para o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas,
com igualdade e justiça. Na sociedade capitalista o homem jamais poderá
ser livre, pois esta baseia-se na exploração e na desigualdade, mantendo
em condições sub-humanas a maioria da população para que uma pequena
parcela possa realizar-se.
Em
suma, conforme Gallo nos explica (1995b.), para Bakunin a educação tem
um papel fundamental no processo de construção da liberdade. Instrução
e educação são de fundamental importância para a conquista da
liberdade, pois é através da educação – seja a institucional,
realizada nas escolas, ou a informal, realizada pela família e pela
sociedade como um todo – que as pessoas entram em contato com toda a
cultura já produzida pela humanidade. E como a liberdade é um fenômeno
social, de cultura, o contato com o produto da civilização é indispensável
para a sua conquista.
Essa
diferença conceitual, na qual a liberdade é entendida como um produto da
sociedade e não como uma lei natural comum a todos os homens, será
fundamental para a compreensão das idéias e experiências que os
anarquistas desenvolveram em educação.
Parte
II – Experiências Anarquistas em Educação
Antes
de passarmos para a análise das experiências anarquistas em educação,
faremos uma síntese das principais idéias que sustentam a pedagogia
libertária.
Primeiramente,
temos que entender o projeto anarquista no âmbito das lutas sociais do século
XIX. Coerente com a idéia proudhoniana de que a emancipação dos
trabalhadores só pode ser obra deles mesmos, o projeto anarquista de
educação criticou implacavelmente a perspectiva ideológica de reprodução
social da educação oferecida pela burguesia - na qualidade de classe
dominante - rejeitando a educação oferecida pelo governo e propondo que
os trabalhadores criassem eles próprios as suas escolas.
Segundo
Gallo (1995a.), o historiador do anarquismo Edgar Rodrigues, diz que
educar, na perspectiva libertária, é acima de tudo a preparação do
homem para a liberdade, para a criatividade e para a solidariedade. Educar
é contribuir para formar caracteres retos, despertar o amor pela
humanidade e converter o homem em amigo do homem, responsável por si e
pelo grupo. Assim, o objetivo primordial da educação anarquista é
formar homens livres e conscientes que lutem pela liberdade de todos, e
como a liberdade só adquire sentido quando expressão da
coletividade, um indivíduo só pode ser livre quando todos aqueles
que compõem o coletivo social também o forem.
Partindo
sempre em busca deste objetivo, os escritos anarquistas sobre educação são,
por um lado, propostas sobre novas bases e objetivos para a educação, e
por outro, uma crítica ao sistema de ensino praticado no capitalismo, que
sempre existiu para adaptar os indivíduos à sociedade, educando-os para
que sejam como devem ser, padronizando suas consciências e suas
personalidades:
Essa
educação sempre procurou formar as pessoas de acordo com as necessidades
da sociedade, servindo operários conformados para o trabalho braçal e
formando os filhos da burguesia para as funções de gestão da sociedade,
mas ainda assim para gerir de acordo com os desejos da sociedade, e não
deles próprios. A educação tradicional capitalista é, ao mesmo tempo,
reflexo e fonte da desigualdade social, gerando uma visão de mundo que
garante a acomodação, e ensinando ricos e pobres a se conformarem com a
estrutura social, que deve ser percebida como inevitável e imutável (GALLO,
1995a., p. 35).
Já
o objetivo da educação libertária é educar para que a pessoa seja o
que ela realmente é, consciente de si mesma e de sua singularidade, de
suas diferenças e da importância de seu relacionamento com o grupo
social para a construção coletiva da liberdade.
Analisando
este aspecto da educação - o de introjetar nos indivíduos a ideologia
da máquina social através do processo de subjetivação - e entendendo a
pedagogia libertária como uma educação contra-ideológica que visa uma
subjetivação autônoma, Gallo (1995a.) nos mostra uma definição
interessante de Sartre sobre a liberdade, que a conceitua enquanto
fundamento do ser. Segundo essa definição, a subjetivação ideológica
oferece uma identidade ao sujeito que é falsa e que o impede de ser
livre, pois se é idêntico a si mesmo, já não pode escolher ser de
outra maneira. Por outro lado, a subjetivação autônoma, ao desenvolver
a consciência da não-identidade, tanto interna quanto externa, abre ao
indivíduo o reino das possibilidades e da liberdade: se não é nada, ele
pode escolher ser qualquer coisa. “O homem é livre porque não é
si-mesmo, mas sim presença a si. O ser que é o que é não pode ser
livre” (SARTRE apud: GALLO, 1995a., p. 73).
Mas
um dos pontos fundamentais da educação anarquista é a educação
integral, que visa formar o homem completo, inteiro, segundo Gallo
(1995b.) senhor de suas habilidade físicas, intelectuais e sociais, sendo
o seu ponto central essa ligação entre a reflexão intelectual e o
trabalho manual. Formando a base da pedagogia libertária ao lado da educação
racional, vemos a dupla importância da educação integral:
Por
um lado, a integralidade faz referência em parte ao que já acabamos de
expor: o ensino tem como objetivo desenvolver todas as possibilidades da
criança, tirar tudo o que ela traz dentro de si sem abandonar nenhum
aspecto, mental ou físico, intelectual ou afetivo. Por outro lado, o
ensino integral enfrenta diretamente o problema da divisão social e levanta a questão da necessidade de uma
divisão entre trabalho braçal e trabalho intelectual que costuma reforçar
e justificar a divisão em classes sociais, dominante e dominada (MORIYÓN,
1989, p. 21).
Com
isso, os anarquistas chamam a atenção para a educação desigual, que não
tem outro objetivo senão o de perpetuar e consolidar as desigualdades, em
virtude da classe social à qual se pertence.
Por
fim, a educação anarquista propunha a co-educação dos sexos e das classes, baseada na
solidariedade, no apoio mútuo, na autogestão e livre de qualquer tipo de
autoritarismos, preconceitos e competitividade.
A
seguir, abordaremos duas experiências clássicas da educação anarquista
e traçaremos um breve panorama de como se deram as idéias libertárias
em educação no Brasil no início do século XX.
O
Orfanato Prévost
Exatamente
um século e um quarto nos separam da primeira experiência libertária em
educação, o Orfanato Prévost, que se localizava na cidade de Cempuis,
em França.
Este
orfanato foi estabelecido em 1861, por Joseph-Gabriel Prévost
(1793-1875), um rico comerciante saint-simoniano que construiu a casa para
acolher alguns órfãos. Deixou em testamento que esta casa ficaria de
posse do Departamento do Sena, sob a condição de que ali funcionaria um
orfanato para ambos os sexos e com professores e diretores laicos. Depois
de uma longa disputa entre a administração municipal e a família de Prévost,
o orfanato foi oficialmente estabelecido em 1871.
Nove
anos se passaram para que, a partir do mês de dezembro de 1880, a
administração do Orfanato Prévost ficasse a cargo do pedagogo
anarquista Paul Robin.
Robin
(1837-1912) pode ser considerado o principal nome da pedagogia libertária
no século XIX, pois foi o primeiro a conseguir levar para a prática as
idéias que vinham sendo discutidas entre os socialistas. Defensor
ardoroso da educação integral, Segundo Lipianski (1999), ainda na rede pública
de ensino, ele organizava passeios com os alunos estudando botânica,
astronomia, geologia, fazia visitas periódicas aos artesãos e às fábricas
e organizava cursos técnicos e de música.
Na
sua proposta de educação integral, dividia a educação em duas fases: a
primeira, que ele denominou período espontâneo, na qual as crianças
são essencialmente consumidoras, e a segunda, período dogmático,
quando a criança passa a poder ser também produtora. Em Prévost haviam
oficinas de sapateiro, de costura, uma tipografia, uma forja e uma
marcenaria, para que as crianças as utilizassem nas atividades práticas
do segundo período.
As
crianças viviam a maior parte do tempo ao ar livre, nos jardins ou nos
campos, onde também praticavam diversos tipos de esportes, tais como natação
e equitação. No tocante ao aspecto moral, segundo Gallo (1995a.) a
organização educacional não admitia a realização de provas e exames
como forma de classificação dos alunos, nem prêmios ou castigos pelos
desempenhos individuais. Os alunos mais adiantados eram estimulados a
auxiliarem aos outros, como monitores, o assumir responsabilidades pelas ações
praticadas e a solidariedade nos jogos em equipe.
Mas
dentre todos os pontos de sua proposta pedagógica, os que mais geraram
polêmicas foram a co-educação dos sexos e o ensino racional e laico.
Estes suscitaram violentos ataques dos cristãos e conservadores, além
das autoridades escolares, sendo que Robin foi vítima de perseguições e
acusações múltiplas, que culminaram na sua exoneração do cargo de
administrador do Orfanato Prévost, em 1894.
A
Escola Comunidade
La Ruche
A
segunda experiência anarquista em educação a que nos propomos tratar é
a que foi praticada por Sébastien Faure, em França, entre os anos de
1904 e 1917 e que ficou conhecida pelo nome La Ruche.
Segundo
Gallo (1995b.), La Ruche, que traduzido para o português significa “A
Colméia”, é uma alusão direta às teorias do apoio mútuo
desenvolvida por Piotr Kropotkin, que formaram as bases do
anarco-comunismo.
La
Ruche, que foi fundada pelo próprio Faure, abrigava cerca de quarenta e
cinco crianças de ambos os sexos e foi, em certa medida, a continuação
da experiência de Paul Robin em Cempuis. Gallo (1995b.) cita que a grande
diferença entre as duas experiências foi que Faure teve muito mais
facilidade e liberdade de ação do que o seu inspirador, pois a sua
escola não estava atrelada ao Estado, apesar das inúmeras tentativas de
institucionalização. Além disso, segundo suas próprias palavras, A
Colméia não era nem escola, nem internato, nem orfanato. Era uma
grande comunidade constituída pelas crianças, pelos colaboradores e por
todos aqueles que estavam envolvidos com o processo educativo, formando o
que ele se referia como uma “grande família”, onde todos mantinham
contato direto com as crianças no dia-a-dia, iniciando-as nas mais
diversas atividades domésticas e profissionais.
Assim
como no orfanato Prévost, a base da proposta educacional de La Ruche era
a educação integral. Faure também entendia que o “[...] papel do
ensino é levar ao desenvolvimento máximo todas as faculdades da criança;
físicas, intelectuais e morais” (GALLO, 1995b., p. 186).
Segundo
Gallo (1995b.), um outro ponto importante foi que Faure, a partir do
trabalho das múltiplas oficinas existentes em La Ruche, conseguia, além
de alcançar o objetivo pedagógico da formação profissional técnica,
manter o sustento da comunidade, seja produzindo para as necessidades
internas, seja comercializando o excedente com o exterior. Assim, na
comunidade-escola todos tinham sua subsistência garantida, desde habitação,
vestuário e alimentação até os cuidados com a saúde. Sobre as
remunerações:
Nossos
colaboradores não recebem retribuição nem salário. Todas as funções
na Colméia são totalmente gratuitas. Salário, soldo, adiantamento é
aqui algo totalmente desconhecido. Os companheiros que, por razões
diversas, trabalham na Colméia o fazem da forma mais desinteressada possível.
Cada um deles deve, entretanto, ter capacidade, assiduidade no trabalho,
sobriedade e moralidade que lhe permitiriam lá fora, subir aos níveis
mais cobiçados. Nossos colaboradores renunciam de bom grado a estas
vantagens materiais, para viverem na Colméia (MORIYÓN, 1989, p. 116).
Ademais,
existia um fundo comum do qual os colaboradores podiam retirar a quantia
necessária para as suas necessidades extras. Segundo Moriyón (1989),
apesar dessa retirada poder se dar sem ser necessário passar pelo
julgamento de outros, em mais de uma década de existência da comunidade,
todos os colaboradores sempre foram absolutamente comedidos, não causando
ao empreendimento quaisquer problemas de ordem financeira.
Quanto
às decisões, tanto as econômicas quanto as organizacionais ou pedagógicas,
eram tomadas em assembléia, onde todos os colaboradores participavam com
iguais direitos, inclusive os jovens adolescentes, que opinavam e votavam
como qualquer adulto. Assim, a autogestão estava presente tanto nos
aspectos políticos e econômicos, quanto no pedagógico. Na visão de
Gallo (1995a.), La Ruche pode ser considerada como uma comunidade
anarco-comunista.
Entretanto,
apesar de todas as suas inovações e da revolução na educação a que
se propunha, a comunidade-escola La Ruche não conseguiu prosseguir por
muito tempo. A experiência foi dissolvida, em fevereiro de 1917, pela
Primeira Guerra Mundial, em razão de todas as provações, privações,
desencontros e dificuldades econômicas que ela trazia consigo.
Além
dessas duas experiências clássicas em educação libertária, segundo
Lipianski (1999), podemos citar muitas outras, como a Escola Moderna
de Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909), a Iasnaia-Poliana de
Tolstoi (1828-1910), as Comunidades Escolares de Hamburgo, embora
estas duas últimas não sejam partidárias do anarquismo.
A
Pedagogia Libertária no Brasil
As
experiências educacionais em bases libertárias se desenvolveram em várias
partes do mundo, inclusive no Brasil, no final do século XIX e início do
XX. Infelizmente, segundo Kassick (2000), a história oficial da pedagogia
se fez omissa em relação à contribuição do pensamento pedagógico
libertário.
Falar
de pedagogia libertária no Brasil parece trazer à memória algo já
extinto. Salvo os poucos livros, artigos em revistas e algumas dissertações
e teses, acessíveis apenas para um pequeno grupo, nada mais resta sobre
educação anarquista no Brasil. Kassick (2000) esclarece que isso se deve
em parte à necessidade dos militantes anarquistas não deixarem pistas
que pudessem comprometer o movimento mais amplo de organização dos
trabalhadores na luta contra o Estado. Mas, por outro lado, é notório
que foi também vítima do “esquecimento” por parte da pedagogia
oficial, resultante da rejeição das idéias libertárias.
Como
aconteceu em várias partes do mundo, os princípios da Escola Moderna
foram adotados também no Brasil. Segundo Kassick (2000), os novos métodos
de ensino propostos e implantados pela Escola Moderna, que tinham por base
o respeito à liberdade, à individualidade, à expressão da criança,
reorganizaram o fazer pedagógico, imprimindo-lhe autêntica função
revolucionária. Assim como em Prévost e La Ruche, princípios como
co-educação dos sexos e de classes sociais, ensino racional e integral
apontavam para uma educação livre de dogmas, preconceitos e
competitividade.
Essa
educação foi de grande importância para a educação do operariado
brasileiro no início do século XX. Dado o desinteresse do Estado pela
educação do povo, a educação libertária chegava a se constituir quase
que na única educação que os trabalhadores tinham acesso. Além disso,
conforme Kassick (2000), os princípios pedagógicos da educação libertária
foram os únicos parâmetros para a contestação da pedagogia
tradicional.
As
escolas libertárias, além de oferecer o ensino formal para as crianças,
ofereciam o ensino profissional para os adultos e realizavam palestras e
conferências à noite ou aos domingos, nas chamadas Sessões de
Propaganda Científica.
Seguindo
com Kassick (2000) no resgate da história do movimento anarquista, foi
bastante elevado o número de escolas, Centros de Cultura e até
Universidades Populares,
criadas e mantidas pelo anarco-sindicalismo da época.
No
caso brasileiro, as idéias libertárias foram introduzidas no movimento
sindicalista brasileiro pelos trabalhadores anarquistas vindos da Espanha,
Itália e Portugal, durante a época da imigração, e “[...]
representou a frente de luta mais significativa dos trabalhadores nas duas
primeiras décadas do século contra a exploração do operariado
brasileiro” (KASSICK, 2000, p. 15).
Finalizando
com Kassick (2000), apesar de pouco lembrada e referenciada, a educação
anarquista foi importante não apenas para a “instituição escola” e
para o seu fazer pedagógico, mas também para a própria Pedagogia, que
incorporou muitos de seus princípios.
Considerações
Finais
Na
primeira parte, nós estudamos duas conceituações do poder: a primeira,
segundo a noção topológica, na qual o poder está concentrado em alguns
lugares da sociedade e esvaziado em outros, e a segunda, na qual o poder
está esparramado pela sociedade formando uma “teia de renda”.
Analisando
a pedagogia tradicional, vemos que nela utiliza-se o conceito topológico
do poder, sendo o topos do poder o corpo do professor. A escola
nova também utiliza a noção topológica do poder, apenas deslocando o
seu topos. Nela, o poder não está centrado no corpo do professor,
mas sim no dos alunos. Essas duas concepções educacionais preservam a
equação saber é poder nas mesmas bases: através do poder continua-se
exercendo algum tipo de dominação, ocorrendo apenas uma reorganização
estratégica do espaço e não uma mudança no sentido do poder.
No
contexto do poder enquanto teia de renda, tanto a pedagogia tradicional
quanto a escola nova perdem o seu referencial, pois já não é mais
concebível um ou mais topos de poder.
Trabalhando
com a concepção de que a educação pertence ao âmbito da pré-política,
veremos que em lugar de termos uma relação macrossocial em que o poder
político exerce-se do professor para os alunos (escola tradicional) ou
dos alunos para o professor (escola nova), temos uma relação
microssocial – individual – na qual todas as partes exercem e sofrem
um micropoder, que se inscreve no contexto das relações pré-políticas
e que formarão o futuro sujeito para as relações macrossociais.
A
pedagogia libertária, em lugar de instituir a absoluta não-diretividade
na educação, parte necessariamente da autoridade para fundar a
liberdade, pois vimos que a autoridade, considerada no nível pré-político,
não deve ser confundida com autoritarismo. Ademais, pensando na concepção
dialética do desenvolvimento, de Bakunin, temos que o desenvolvimento de
uma coisa qualquer é a progressiva negação de seu ponto de partida.
Assim, uma educação libertária, pensada nessa perspectiva, jamais
poderia começar pela liberdade, pois implicaria na sua negação. Por
outro lado, começando pela autoridade, a sua progressiva negação levará
ao desenvolvimento da liberdade.
Pensamos
que atualmente seja quase nula a possibilidade de pôr em prática um
projeto de autogestão escolar dentro do sistema capitalista, pelo fato de
que a estrutura do capitalismo impede qualquer tentativa nesse sentido.
Assim, o impasse que se coloca para a educação anarquista é o da
impossibilidade de encontrar o seu fim.
No
contexto capitalista, ou as escolas são a seu favor ou são contra. Sendo
a favor, deve constituir-se sobre o autoritarismo e a lógica do mercado.
Sendo contra, corre o risco de fechar-se em si mesma, criando uma ilha de
liberdade em meio à exploração do capital, sendo incoerente com a
concepção de liberdade dos anarquistas. Não podendo jamais fugir da
sociedade na qual está inserida, a educação anarquista deve agir dentro
mesmo do capitalismo
A
autogestão, ao invés de instaurar-se imediatamente, deve ser construída
progressivamente pela negação paulatina da heterogestão. Além disso,
lembrando as “Leis de Renda” de Foucault, a autogestão permanece
ainda irrealizável, mas como uma contra-referência à referência
heterogestionária posta e imposta pelo capitalismo.
A
pedagogia libertária contrói-se na tensão entre o dado prático,
vivenciado e paulatinamente negado, e o dado conceitual, o projeto,
construído e buscado como meta.
Assim,
ela nasce no seio da sociedade e Estado capitalista, servindo como uma
“nova” ferramenta de análise e crítica da sociedade capitalista e da
educação por ela pensada, sendo o espelho que reflete o que não devemos
ser.