por WILTON RODRIGUES MACHADO

Graduando em Pedagogia - Unesp, Campus de Marília

 

 

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Pedagogia Libertária: projeto e utopia educacional na sociedade capitalista

Wilton Rodrigues Machado

 

Resumo

Objetivando formar indivíduos livres através da autonomia, responsabilidade, solidariedade, etc., acreditamos que a pedagogia libertária, além de estabelecer novas formas de relações interpessoais, seja um instrumento de luta para a superação das condições de exploração que sustentam o capitalismo. Partindo da premissa de que as bases do capitalismo são a exploração, a desigualdade e a heterogestão, investigamos qual a possibilidade de realização da autogestão em unidades escolares. Analisando as relações entre saber-poder, observou-se ser quase nula essa possibilidade, pela própria estrutura do capitalismo. Nele, ou as escolas são a seu favor ou são contra. Sendo a favor, constituem-se sobre o autoritarismo. Sendo contra, arriscam fechar-se em si mesmas, criando uma ilha de liberdade em meio à exploração. Não podendo jamais fugir da sociedade na qual está inserida, a educação anarquista deve agir no seio da sociedade e Estado capitalista, sendo o espelho que reflete o que não devemos ser.

Palavras-Chave: Educação – Pedagogia Libertária – Educação Anarquista – Anarquismo

Abstract

Objectifying to form free individuals through the autonomy, responsibility, solidarity, etc., we believe that the libertarian pedagogy, besides establishing new forms of interpersonal relations, either an instrument of fight for the overcoming of the exploration conditions that support the capitalism. Leaving of the premise of that the bases of the capitalism are the exploration, the inaquality and the conventional management, we investigate which the possibility of accomplishment of the self management in pertaining to school units. Analyzing the relations between know-power, this possibility was observed to be almost null, for the proper structure of the capitalism. In it, or the schools are its favor or are against. Being the favor, they consist on the authoritarianism. Being against, they risk to close itself in itself same, creating an island of freedom in way to the exploration. Never not being able to run away from the society in which she is inserted, the anarchic education must act in the inside of the society and capitalist State, being the mirror that it reflects what we do not have to be.

Keywords: Education - Libertarian Pedagogy – Anarchist Education – Anarchism

Introdução

Pode-se dizer que um dos principais objetivos da pedagogia libertária é preparar os indivíduos para a vivência plena da liberdade. Para isso, desenvolve a autonomia, a responsabilidade, o respeito, a solidariedade, a cooperação e a criatividade nos educandos. Assim, além de estabelecer novas formas de relações interpessoais, é também um instrumento de luta para a superação das condições de exploração que sustentam nossa sociedade.

Partindo da premissa de que as bases da sociedade capitalista são a exploração, a desigualdade e a heterogestão, procuramos investigar qual a possibilidade de realização da autogestão em unidades escolares e qual é o lugar da escola autogerida na sociedade capitalista. Além disso, analisamos as relações existentes entre poder e saber, liberdade e autoridade, algumas experiências anarquistas em educação e o porquê do esquecimento ao qual a pedagogia libertária foi relegada no Brasil.

Desta forma, nosso trabalho está dividido em duas partes: na primeira, nós faremos o percurso da autoridade à liberdade, onde discutiremos, além destes conceitos, a relação saber-poder. Na segunda, examinaremos as propostas e experiências anarquistas em educação. Escolhemos para o nosso estudo dois casos clássicos de experiências educacionais libertárias: o Orfanato Prévost e a escola-comunidade La Ruche. Por fim, esboçaremos o panorama da educação libertária no Brasil no final do século XIX e início do XX.

Parte I – Da Autoridade à Liberdade

São inúmeras as perspectivas teóricas e práticas da pedagogia libertária que podemos distinguir. No geral, podemos dizer que uma “[...] das características centrais da proposta pedagógica dos anarquistas é o seu antiautoritarismo [...]” (MORIYÓN, 1989, p. 17). Com Gallo (1995a.), vemos que a educação anarquista tem, ao lado do antiautoritarismo, a autogestão como um dos seus principais focos. Mas por não ser a única tendência autogestionária em educação[1], para melhor entendê-la e diferi-la das demais, podemos dividi-la em: 1)  tendência não-diretiva, muito próxima, do ponto de vista metodológico e psicológico, da tendência escolanovista e da pedagogia institucional, sendo Max Stirner (1806-1856) um dos seus maiores teóricos; 2) tendência mainstream, sustentada teoricamente pelos outros grandes nomes do anarquismo, como Proudhon (1809-1865), Bakunin (1814-1876), Kropotkin (1842-1921), Malatesta (1853-1932), e base das experiências clássicas de escolas libertárias, como o Orfanáto Prévost e a escola La Ruche.

A pedagogia libertária, segundo a tendência mainstream, ao contrário da tendência não-diretiva, não entende a liberdade como um meio de emancipação, mas como um fim, e a autoridade, longe de ser considerada perniciosa e combatida é, antes de tudo, boa e indispensável. Mas, se uma das características centrais da pedagogia libertária é o antiautoritarismo, como pode considerar a autoridade como “[...] boa e indispensável na educação das crianças [...]” (GALLO, 1995a., p. 171)?

Para respondermos essa questão, faz-se antes necessário analisarmos as concepções de poder e autoridade e as relações existentes entre saber e poder, para finalmente entendermos o tipo de antiautoritarismo e liberdade que os anarquistas defendem nas suas propostas educacionais.

Conceitos de Poder

Segundo a concepção clássica de poder, chamada topológica (do grego Topos – lugar) e construída pela Filosofia Política, existem lugares (Topoi) na sociedade onde temos a sua concentração e outros onde verificamos a sua ausência. Exemplificando com um regime monarquista, a concentração do poder se daria na figura do monarca, e todos os demais espaços sociais, assim como os súditos estariam esvaziados do poder. Conforme Gallo, o equilíbrio duma sociedade sob esta concepção se dá pela “soma zero”. Acompanhemos o seu raciocínio:

[...] para que haja o equilíbrio social, a ordem de grandeza (positiva) do poder concentrado em determinados lugares deve ser igual à ordem de grandeza (negativa) de poder que falta nos demais espaços sociais. Para facilitar a compreensão: Pensemos numa hipotética sociedade monárquica composta por dez súditos e um rei; se cada um dos súditos vale [-1], em termos de poder, a concentração de poder do rei deverá ser [+10]. apenas desta forma a sociedade estará equilibrada; se o rei tiver uma unidade de poder a mais ou a menos, haverá um perigoso desequilíbrio para um dos lados, prejudicial para o conjunto todo (GALLO, 1997, p. 98).

Nesta concepção topológica do poder, temos que nos distanciar do fenômeno para podermos identificar os topoi de onde ele se emana, como suas amarras estão ligadas às regiões esvaziadas de poder para, a partir disso, estabelecer as relações de força.

Insatisfeito com essa perspectiva macroscópica do poder, considerada incompleta, Gallo nos informa que Foucault resolveu investigar as relações de poder sob outro ponto de vista, o microscópico, o qual ele chamou de “microfísica do poder”. Assim, Foucault desenvolve uma outra noção de poder, onde este estaria esparramado pela sociedade, formando uma “Teia de Renda”, “[...] fruto da ação e correlação de forças que se materializam em meio à multiplicidade de indivíduos que se fazem sujeitos justamente através da relação de poder do que da ação unilateral de um soberano que exerce despoticamente o poder [...]” (GALLO, 1997, p. 106).  Desta forma, não existem lugares determinados para o poder, ele se encontra diluído por todo o tecido social. Um outro dado interessante desta concepção é que o poder não está reduzido à pura e simples repressão. É “[...] imperativo que às suas conotações negativas – o poder como repressão - sejam anexadas também as suas conotações positivas – o poder como fonte de produção social -; é o que Foucault chama de tecnologia do poder”. (GALLO, 1997, p. 105). Em outros termos, já não se trata de poder e não-poder, como na lógica binária da concepção clássica, mas de “[...] poderes múltiplos e múltiplos contrapoderes, que só se definem enquanto tal na relação de uns com os outros. Dessa microfísica de poderes e contrapoderes que se entrelaçam e engalfinham-se, ergue-se toda a macroestrutura social [...] (GALLO, 1997, p. 100)”.

Gallo (1997) demonstra que em Foucault, o poder não é algo que se pode possuir, conquistar ou perder, mas algo que os indivíduos exercem e sofrem. Que o poder está interno em todos os tipos de relações sociais e que vem de baixo, estando na base tanto do dominador quanto do dominado, e que se há poder, há também a resistência – contrapoder –, sendo esta a condição essencial de sua existência.

 

A Autoridade

Entre as concepções de autoridade, vemo-la ora confundida com poder, ora concebida como algo totalmente diverso. Para Engels (1820-1895), citado por Gallo (1995a., p.25), a autoridade é concebida como “[...] imposição da vontade de outro à nossa [...]”. Engels naturaliza a autoridade ao compará-la aos fenômenos climáticos ao qual todos estamos sujeitos e da qual é-nos impossível fugir. Para ele, não há organização sem autoridade e comando, pois é necessário existir uma “[...] autoridade centralizadora, que distribui e coordena as tarefas, fazendo com que sejam realizadas no momento certo e na ordem correta”. (Ibidem, p. 26). Faz também uma diferenciação entre autoridade organizacional e autoridade política: desta última, nós podemos prescindir - o que seria a tarefa revolucionária -, mas da autoridade organizacional não, porque ela é decorrente das condições de produção e circulação das mercadorias e, portanto, anterior à política. De qualquer modo, seja organizacional ou política, a autoridade é uma forma de poder, pois ambas supõem a imposição da vontade de um(ns) sobre a vontade de outro(s) e uma subordinação, que se divide: uma a ser combatida (esfera política) e a outra imprescindível (pré-política).

Um outro postulado bem mais interessante é o de Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política contemporânea, que nos diz que o conceito de autoridade deve ser buscado nas experiências antigas, sobretudo na romana, considerada a única verdadeira experiência política organizada de acordo com a autoridade. Longe de ser uma imposição da vontade às vontades alheias, dada fundamentalmente pela violência ou pelo convencimento, a “[...] autoridade implica numa legitimidade que é anterior à imposição mesma e aceita por ambas as partes de antemão, enquanto que no poder a legitimidade, quando existe, é sempre posterior à imposição, sendo ela própria uma imposição” (GALLO, 1995a., p. 28).

Essa legitimidade da autoridade apoia-se no ato fundante dos antepassados[2] e, segundo Gallo (Ibidem, p. 31), aqueles que são investidos de autoridade e são obedecidos, não o são porque tenham convencido ou subjugado o outro, mas porque é o que dita a tradição, de onde que o fundamento de toda autoridade é divino. Por conseguinte, depois do processo de secularização, o Estado perdeu a legitimação da sua autoridade, passando a governar somente através do poder, isto é, da coação e da violência. Exilada da esfera política, a autoridade permanece hoje em outras esferas - pré-políticas - do convívio social, tal como na esfera religiosa e na educacional.

Se buscarmos as bases psicológicas da autoridade, perceberemos que, no âmbito da psicopedagogia, ela está de certa forma relacionada com o poder. Para os psicopedagogos franceses dos anos setenta, fortemente influenciados pela psicanálise, a autoridade fundamenta-se numa neurose inculcada na criança através da família e da escola, como forma de garantir e cristalizar a perpetuação do sistema central baseado no poder. Para Michel Lobrot, citado por Gallo (1995b. p. 37), toda autoridade provém do medo que temos do outro, sendo que este medo é uma forma de defesa: se o outro pode me atacar, devo antecipar-me a ele. Assim, a autoridade é uma capacidade de mudar a vontade do outro impondo a ele a nossa vontade, utilizando-se da repressão ou da coerção:

A autoridade é um sistema que permite alterar a vontade do outro, curvá-la no sentido que se deseja.

Dois casos podem ser apresentados. Ou bem se procura suprimir pura e simplesmente a vontade do outro, porque ela constitui um perigo e, então, utiliza-se um mecanismo que chamaremos a Repressão. Ou bem se procura fazer o outro agir num sentido diferente daquele que ele próprio desejaria, num sentido que deseja útil. Utiliza-se então um mecanismo que chamaremos Coerção.

Quer se trate de Repressão ou Coerção, o princípio é sempre o mesmo e devemos mais uma vez analisá-lo. O princípio é o de transformar o campo psicológico do indivíduo sobre o qual se quer agir de tal modo que o ato que ele projeta tenha conseqüências distintas daquela que deveria ter normalmente (LOBROT apud: GALLO, 1995a., p. 37).

Interessante notar que não apenas o que obedece, mas também aquele que age autoritariamente o faz com medo do outro. Uma outra questão é que para Lobrot, a autoridade é exercida apenas por aqueles que ocupam o lugar de poder, conforme a noção topológica já discutida.

Seguindo nossa análise sobre a autoridade no âmbito da psicopedagogia, temos as perspectivas de Gerard Mendel e Christian Vogt. Se em alguns momentos suas análises aproximam-se às de Lobrot, quando estes seguem identificando a autoridade com o poder, em outros elas se distanciam bastante, como quando eles apontam para um processo de dissociação entre uma ideologia autoritária (fundamento da família e da educação da infância) e uma ideologia dominante (substrato do modo de produção social). O poder não mais está associado de modo indivisível à autoridade, mas apresenta uma tendência de dissociar-se. Neste processo, a autoridade está ausente da esfera política, assim como o poder impera sem legitimidade.

[...] a ideologia dominante se revela como a expressão de uma força mistificadora que não resiste à prova do exame crítico da realidade social e o fenômeno autoridade mostra não ser senão a relíquia mais ou menos consciente da relação de poder no passado entre pais e filhos [...] (MENDEL; VOGT apud: GALLO, 1995a., p. 42).

Apesar de breve, nossa análise demonstra que poder e autoridade estão historicamente ligados, entrelaçados, chegam mesmo a confundirem-se, não obstante serem coisas totalmente distintas.

A Relação Saber-Poder

Para darmos continuidade, faz-se necessário resgatar um ponto que talvez não tenha ficado tão explícito: segundo Gallo (1995a.), mais do que uma relação política, a autoridade pertence ao reino da pré-política, ou seja, pertence ao nível das relações que antecedem a política propriamente dita, como a educação, a religião, a relação familiar privada, a relação inter-individual dentro de um grupo social, etc. Apesar deste ponto estar presente em todos os autores utilizados no sub-item anterior, seguiremos utilizando apenas Arendt, porque na sua tipificação do fenômeno da autoridade ele está mais saliente.

Segundo Arendt, é uma grande falácia situar a educação no nível político, porque ela apenas prepara os indivíduos para a vivência política, não sendo uma atividade propriamente política. Ela chega a afirmar que onde termina a educação, começa a política:

Nada é mais questionável, então como hoje em dia, do que a significação política de exemplos retirados do campo da educação. No âmbito político tratamos unicamente com adultos que ultrapassaram a idade da educação propriamente dita, e a política, ou o direito de participar da condução dos negócios públicos, começa precisamente onde termina a educação. (A educação adulta, individual ou comunal, pode ser de grande importância para a formação da personalidade, para seu pleno desenvolvimento ou maior enriquecimento, mas é politicamente irrelevante, a menos que seja seu propósito proporcionar requisitos técnicos, de algum modo não adquiridos na juventude, necessários à participação nos problemas públicos). Reciprocamente, em educação lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estarem sendo preparadas para elas (ARENDT, apud: GALLO, 1995a., p. 46).

Desta forma, quando situamos a educação no nível imediatamente anterior ao político, ou seja, no pré-político, a autoridade assume a sua feição mais bem acabada, pois temos a legitimação da autoridade daquele que educa – porque representante de uma cosmovisão – sobre aquele que está sendo educado, assim como temos a legitimidade da autoridade do pai na esfera familiar, também pré-política, para educar o filho, dado que eles sabem mais e possuem uma cosmovisão mais elaborada do que a criança ou o adolescente.

Aprofundando-nos um pouco mais na questão da relação saber-poder, vamos ver o que  Gallo nos demonstra em uma passagem de um dos livros de Foucault:

Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender quais são as suas relações de luta e de poder. E é somente nessas relações de luta e poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreenderemos em que consiste o conhecimento (FOUCAULT apud: GALLO, 1997, p. 111).

A partir de Gallo (1997), podemos concluir que saber e poder são indissociáveis, sendo que o conhecimento é essencialmente político. Percebemos esta relação mais nitidamente quando pensamos na constituição da ciência moderna e a sua vontade de verdade para a produção do saber, porque “[...] instituir uma verdade é um ato essencialmente político, é o exercício de um poder [...]” (GALLO, 1997, p. 112).

Na educação isso se deu quando o processo educacional articulou-se em pedagogia como forma de construir uma verdade sobre o ensino e a aprendizagem. Neste caso, o processo estava intimamente ligado ao exercício de um poder específico, a disciplina, que consistia na busca do domínio do corpo social através de seus elementos mais básicos, os indivíduos. Depois disso, a disciplinarização foi utilizada para individualizar o exercício do poder.

A escola foi uma das instituições onde esta nova tecnologia – assim Foucault a denominou: tecnologia política da disciplina – surgiu, no esforço de individualizar dentro da multiplicidade, de controlar as condutas, os comportamentos e as atitudes. Nas salas de aulas nós temos “[...] um professor para dezenas de discípulos, e é necessário, apesar da multiplicidade dos alunos, que se logre uma individualização do poder, um controle permanente, uma vigilância em todos os instantes [...]” (GALLO, 1997, p. 113). Além do professor, temos ainda o inspetor de alunos e as outras formas de controle surgidas a partir da disciplina: notas quantitativas, exames, concursos, etc.

Uma dessas tecnologias, que nos parece tão natural ainda hoje, é a disposição estratégica da classe em filas, que segundo Gallo (1997) permite que todos os alunos sejam melhor vigiados e controlados por um único professor. Atingindo seus corpos e comportamentos, individualiza a relação de poder. “Essas estratégias de dominação através da delimitação de espaços e da disciplina corporal diferem quase nada em sua aplicação, seja nos exércitos seja nas escolas” (GALLO, 1997, p. 113).

Nessa cartografia do ensino, na qual os espaços são delimitados estrategicamente, tudo é cuidadosamente preparado para que o poder assuma o seu topos: “[...] a cátedra, está estrategicamente colocada num plano mais elevado, para que ele possa olhar os alunos do alto [...] e também para que cada aluno [...] tenha que inclinar o pescoço para trás, olhando para o alto, como se estivesse vendo seu verdadeiro Senhor” (GALLO, 1997, p. 56).

Destacamos ainda a importância do exame nesta constituição do processo educacional em pedagogia, pois além de controlar os alunos, era necessário quantificá-los, qualificá-los, classificá-los. Por meio dos exames, a escola pôde controlar os seus alunos nos contextos didático-pedagógicos e políticos. No primeiro, verificando a aprendizagem; no segundo, pela conotação de sanção e de castigo que o exame adquire, enraizando inconscientemente em cada um a sensação de estar sendo controlado, vigiado.

A pedagogia, enquanto “ciência da educação”, vai assim, materializada na instituição escolar, servir de alicerce para o mundo ocidental contemporâneo, sendo a sua base disciplinar.

Nesse contexto, no qual tende-se a assumir a noção topológica de poder, a equação saber é poder não é apenas aceita e válida, mas funciona como um dos pilares de sua estruturação, pelos seus nítidos contornos de instrumentalidade: quem não sabe não pode dominar, e em conseqüência, termina dominado; Quem sabe manda, quem não sabe, obedece.

Numa sociedade igualitária, “[...] não mais baseada na exploração e na dominação, ela perde completamente sua significação: o saber, embora embase as ações do indivíduo, não fundamenta nenhuma situação em que ele se imponha sobre outro amparado no saber...” (GALLO, 1997, p. 63), e por isso a equação já não teria mais nenhum sentido. Mas como estamos analisando a validade da educação anarquista dentro da sociedade capitalista, considerando-a como “[...] um dos mecanismos de luta para a superação das condições de exploração que sustentam essa sociedade, sendo uma delas a própria questão do saber [...]” (Ibidem), preparando o indivíduo para a vivência plena de sua liberdade em meio à liberdade dos demais, seguiremos para o próximo sub-item.

A Liberdade

Para compreendermos a pedagogia libertária, faz-se necessário entendermos um dos seus conceitos-chave: a liberdade.

O conceito de liberdade com o qual nós freqüentemente temos contato é aquele que foi desenvolvido pela filosofia política que culminaria no liberalismo, definido do ponto de vista burguês.

Os anarquistas trabalham com um conceito de liberdade muito diferente do conceito dos liberais, sendo necessário explicitar as diferenças existentes entre as duas concepções para que possamos entender a real dimensão da proposta educativa libertária.

Junto aos inúmeros filósofos, economistas e historiadores que deram origem ao iluminismo, John Locke (1632-1704) foi um dos primeiros a empreender a construção teórica de sustentação de uma ordem social burguesa.

Na época, fazia-se necessário separar o homem em estado natural do civilizado. Para isso, acharam necessário estabelecer um contrato social que regesse as relações dos homens na comunidade, de forma a destruir o direito natural do homem medieval. Assim, os liberais vão tratar da liberdade como um fenômeno natural, na qual o indivíduo, ao pactuar desta sociedade, deve abrir mão de uma parcela de sua liberdade em nome da segurança e da defesa de interesses que a comunidade lhe proporcionará. Essa renúncia é feita em nome de um gerenciamento coletivo do direito de propriedade que, segundo Gallo (1997 b.), se dava para garantir o direito da propriedade, pois vivia-se num momento em que era necessária uma consolidação política da propriedade burguesa, em oposição à dos nobres.

Rousseau (1712-1778), outro importante pensador do liberalismo que viveu numa época em que a propriedade burguesa já estava praticamente consolidada, constata que “[...] embora em estado natural o homem seja livre, a sociedade coloca a liberdade em risco” (GALLO, 1995b., p. 20). Conclui que a liberdade é parte da própria natureza humana, e que a verdadeira sociedade deve tudo fazer para preservá-la. Assim, a sociedade deve encontrar então não uma forma de estruturação que suprima a liberdade natural, mas que permita que esta seja trocada por uma liberdade convencional, cuja intensidade deve ser igual à da anterior.

Tal como Locke, Rousseau prossegue admitindo a liberdade como algo natural, com a diferença de que já não se trata de abandonar a liberdade em prol da cultura da civilização, mas sim de estabelecer, através do contrato social, uma liberdade que seja uma adaptação daquela criada pela natureza. Nesta concepção, segundo Gallo (1995b.), a liberdade é sempre natural e nunca uma construção social.

Já os anarquistas desenvolvem uma trajetória bastante diferente – na verdade, oposta – para o conceito de  liberdade.

Para Pierre-Joseph Proudhon, anarquista francês, a liberdade é a resultante da oposição de duas forças: a força de afirmação, a necessidade, e a força de negação, a espontaneidade. Quanto mais simples um ser vivo qualquer seja, mais será regido pela necessidade; quanto mais complexo, mais influenciado pela espontaneidade, sendo que esta, no seu último grau é a própria liberdade. Segundo Gallo (1995b.), Proudhon afirma a existência de dois tipos de liberdade: a simples, experimentada pelos bárbaros – que não viviam numa sociedade desenvolvida – e a liberdade composta, a verdadeira liberdade, vivida em sociedade. Esta pressupõe, para sua existência, a convergência de inúmeras liberdades individuais, que se complementam, resultando em uma liberdade maior e mais abrangente.

Podemos notar que a concepção de liberdade de Proudhon se assemelha muito à de Rousseau, ao admitir dois tipos de liberdade, porém, a oposição aparece quando vemos que para Rousseau a verdadeira liberdade é a natural, enquanto que para Proudhon a verdadeira liberdade é a social, chegando a afirmar que para que haja sociedade: “[...] é preciso que haja engrenagem de liberdades, transações voluntárias, obrigações recíprocas [...] graças a este organismo, os indivíduos [...] especializam-se segundo seu talento, desenvolvem e multiplicam [...] a sua ação própria e a sua liberdade” (PROUDHON Apud: GALLO, 1995b., p. 23).

Um outro anarquista, o russo Mikhail Bakunin, parte desta concepção de Proudhon para levantar suas críticas ao conceito de liberdade de filósofos como Locke e Rousseau. Segundo Gallo (1995b.), para Bakunin a liberdade não é algo natural, mas sim uma construção eminentemente social. Somente a relação social pode fundar a liberdade, sendo que esta é o ponto de chegada, e não o ponto de partida. Se para os liberais a liberdade só existe na natureza e a sociedade é um empecilho para ela, para Bakunin a liberdade é possível somente em sociedade, pois no começo da história, estando o homem inconsciente de si, ele era como uma marionete nas mãos das forças naturais. Com o progresso cultural e o desenvolvimento da civilização, o homem vai aos poucos se libertando das fatalidades naturais, construindo seu mundo e conquistando a liberdade. Assim, a liberdade é entendida pelos socialistas libertários como um fato social e coletivo, que só adquire sentido como relação, sendo uma característica exclusiva do mundo humano, pois implica consciência e reflexão. Segundo Gallo (1995b.), não podemos dizer que na sociedade capitalista vivemos uma liberdade verdadeira, pois a liberdade da classe dominante está condicionada à exploração das classes dominadas. Somente uma comunidade socialista libertária poderia realizar a verdadeira liberdade, dando condições para o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, com igualdade e justiça. Na sociedade capitalista o homem jamais poderá ser livre, pois esta baseia-se na exploração e na desigualdade, mantendo em condições sub-humanas a maioria da população para que uma pequena parcela possa realizar-se.

Em suma, conforme Gallo nos explica (1995b.), para Bakunin a educação tem um papel fundamental no processo de construção da liberdade. Instrução e educação são de fundamental importância para a conquista da liberdade, pois é através da educação – seja a institucional, realizada nas escolas, ou a informal, realizada pela família e pela sociedade como um todo – que as pessoas entram em contato com toda a cultura já produzida pela humanidade. E como a liberdade é um fenômeno social, de cultura, o contato com o produto da civilização é indispensável para a sua conquista.

Essa diferença conceitual, na qual a liberdade é entendida como um produto da sociedade e não como uma lei natural comum a todos os homens, será fundamental para a compreensão das idéias e experiências que os anarquistas desenvolveram em educação.

Parte II – Experiências Anarquistas em Educação

Antes de passarmos para a análise das experiências anarquistas em educação, faremos uma síntese das principais idéias que sustentam a pedagogia libertária.

Primeiramente, temos que entender o projeto anarquista no âmbito das lutas sociais do século XIX. Coerente com a idéia proudhoniana de que a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra deles mesmos, o projeto anarquista de educação criticou implacavelmente a perspectiva ideológica de reprodução social da educação oferecida pela burguesia - na qualidade de classe dominante - rejeitando a educação oferecida pelo governo e propondo que os trabalhadores criassem eles próprios as suas escolas.

Segundo Gallo (1995a.), o historiador do anarquismo Edgar Rodrigues, diz que educar, na perspectiva libertária, é acima de tudo a preparação do homem para a liberdade, para a criatividade e para a solidariedade. Educar é contribuir para formar caracteres retos, despertar o amor pela humanidade e converter o homem em amigo do homem, responsável por si e pelo grupo. Assim, o objetivo primordial da educação anarquista é formar homens livres e conscientes que lutem pela liberdade de todos, e como a liberdade só adquire sentido quando expressão da  coletividade, um indivíduo só pode ser livre quando todos aqueles que compõem o coletivo social também o forem.

Partindo sempre em busca deste objetivo, os escritos anarquistas sobre educação são, por um lado, propostas sobre novas bases e objetivos para a educação, e por outro, uma crítica ao sistema de ensino praticado no capitalismo, que sempre existiu para adaptar os indivíduos à sociedade, educando-os para que sejam como devem ser, padronizando suas consciências e suas personalidades:

Essa educação sempre procurou formar as pessoas de acordo com as necessidades da sociedade, servindo operários conformados para o trabalho braçal e formando os filhos da burguesia para as funções de gestão da sociedade, mas ainda assim para gerir de acordo com os desejos da sociedade, e não deles próprios. A educação tradicional capitalista é, ao mesmo tempo, reflexo e fonte da desigualdade social, gerando uma visão de mundo que garante a acomodação, e ensinando ricos e pobres a se conformarem com a estrutura social, que deve ser percebida como inevitável e imutável (GALLO, 1995a., p. 35).

Já o objetivo da educação libertária é educar para que a pessoa seja o que ela realmente é, consciente de si mesma e de sua singularidade, de suas diferenças e da importância de seu relacionamento com o grupo social para a construção coletiva da liberdade.

Analisando este aspecto da educação - o de introjetar nos indivíduos a ideologia da máquina social através do processo de subjetivação - e entendendo a pedagogia libertária como uma educação contra-ideológica que visa uma subjetivação autônoma, Gallo (1995a.) nos mostra uma definição interessante de Sartre sobre a liberdade, que a conceitua enquanto fundamento do ser. Segundo essa definição, a subjetivação ideológica oferece uma identidade ao sujeito que é falsa e que o impede de ser livre, pois se é idêntico a si mesmo, já não pode escolher ser de outra maneira. Por outro lado, a subjetivação autônoma, ao desenvolver a consciência da não-identidade, tanto interna quanto externa, abre ao indivíduo o reino das possibilidades e da liberdade: se não é nada, ele pode escolher ser qualquer coisa. “O homem é livre porque não é si-mesmo, mas sim presença a si. O ser que é o que é não pode ser livre” (SARTRE apud: GALLO, 1995a., p. 73).

Mas um dos pontos fundamentais da educação anarquista é a educação integral, que visa formar o homem completo, inteiro, segundo Gallo (1995b.) senhor de suas habilidade físicas, intelectuais e sociais, sendo o seu ponto central essa ligação entre a reflexão intelectual e o trabalho manual. Formando a base da pedagogia libertária ao lado da educação racional, vemos a dupla importância da educação integral:

Por um lado, a integralidade faz referência em parte ao que já acabamos de expor: o ensino tem como objetivo desenvolver todas as possibilidades da criança, tirar tudo o que ela traz dentro de si sem abandonar nenhum aspecto, mental ou físico, intelectual ou afetivo. Por outro lado, o ensino integral enfrenta diretamente o problema  da divisão social e levanta a questão da necessidade de uma divisão entre trabalho braçal e trabalho intelectual que costuma reforçar e justificar a divisão em classes sociais, dominante e dominada (MORIYÓN, 1989, p. 21).

Com isso, os anarquistas chamam a atenção para a educação desigual, que não tem outro objetivo senão o de perpetuar e consolidar as desigualdades, em virtude da classe social à qual se pertence.

Por fim, a educação anarquista  propunha a co-educação dos sexos e das classes, baseada na solidariedade, no apoio mútuo, na autogestão e livre de qualquer tipo de autoritarismos, preconceitos e competitividade.

A seguir, abordaremos duas experiências clássicas da educação anarquista e traçaremos um breve panorama de como se deram as idéias libertárias em educação no Brasil no início do século XX.

O Orfanato Prévost

Exatamente um século e um quarto nos separam da primeira experiência libertária em educação, o Orfanato Prévost, que se localizava na cidade de Cempuis, em França.

Este orfanato foi estabelecido em 1861, por Joseph-Gabriel Prévost (1793-1875), um rico comerciante saint-simoniano que construiu a casa para acolher alguns órfãos. Deixou em testamento que esta casa ficaria de posse do Departamento do Sena, sob a condição de que ali funcionaria um orfanato para ambos os sexos e com professores e diretores laicos. Depois de uma longa disputa entre a administração municipal e a família de Prévost, o orfanato foi oficialmente estabelecido em 1871.

Nove anos se passaram para que, a partir do mês de dezembro de 1880, a administração do Orfanato Prévost ficasse a cargo do pedagogo anarquista Paul Robin.

Robin (1837-1912) pode ser considerado o principal nome da pedagogia libertária no século XIX, pois foi o primeiro a conseguir levar para a prática as idéias que vinham sendo discutidas entre os socialistas. Defensor ardoroso da educação integral, Segundo Lipianski (1999), ainda na rede pública de ensino, ele organizava passeios com os alunos estudando botânica, astronomia, geologia, fazia visitas periódicas aos artesãos e às fábricas e organizava cursos técnicos e de música.

Na sua proposta de educação integral, dividia a educação em duas fases: a primeira, que ele denominou período espontâneo, na qual as crianças são essencialmente consumidoras, e a segunda, período dogmático, quando a criança passa a poder ser também produtora. Em Prévost haviam oficinas de sapateiro, de costura, uma tipografia, uma forja e uma marcenaria, para que as crianças as utilizassem nas atividades práticas do segundo período.

As crianças viviam a maior parte do tempo ao ar livre, nos jardins ou nos campos, onde também praticavam diversos tipos de esportes, tais como natação e equitação. No tocante ao aspecto moral, segundo Gallo (1995a.) a organização educacional não admitia a realização de provas e exames como forma de classificação dos alunos, nem prêmios ou castigos pelos desempenhos individuais. Os alunos mais adiantados eram estimulados a auxiliarem aos outros, como monitores, o assumir responsabilidades pelas ações praticadas e a solidariedade nos jogos em equipe.

Mas dentre todos os pontos de sua proposta pedagógica, os que mais geraram polêmicas foram a co-educação dos sexos e o ensino racional e laico. Estes suscitaram violentos ataques dos cristãos e conservadores, além das autoridades escolares, sendo que Robin foi vítima de perseguições e acusações múltiplas, que culminaram na sua exoneração do cargo de administrador do Orfanato Prévost, em 1894.

A Escola Comunidade La Ruche

A segunda experiência anarquista em educação a que nos propomos tratar é a que foi praticada por Sébastien Faure, em França, entre os anos de 1904 e 1917 e que ficou conhecida pelo nome La Ruche.

Segundo Gallo (1995b.), La Ruche, que traduzido para o português significa “A Colméia”, é uma alusão direta às teorias do apoio mútuo desenvolvida por Piotr Kropotkin, que formaram as bases do anarco-comunismo.

La Ruche, que foi fundada pelo próprio Faure, abrigava cerca de quarenta e cinco crianças de ambos os sexos e foi, em certa medida, a continuação da experiência de Paul Robin em Cempuis. Gallo (1995b.) cita que a grande diferença entre as duas experiências foi que Faure teve muito mais facilidade e liberdade de ação do que o seu inspirador, pois a sua escola não estava atrelada ao Estado, apesar das inúmeras tentativas de institucionalização. Além disso, segundo suas próprias palavras, A Colméia não era nem escola, nem internato, nem orfanato. Era uma grande comunidade constituída pelas crianças, pelos colaboradores e por todos aqueles que estavam envolvidos com o processo educativo, formando o que ele se referia como uma “grande família”, onde todos mantinham contato direto com as crianças no dia-a-dia, iniciando-as nas mais diversas atividades domésticas e profissionais.

Assim como no orfanato Prévost, a base da proposta educacional de La Ruche era a educação integral. Faure também entendia que o “[...] papel do ensino é levar ao desenvolvimento máximo todas as faculdades da criança; físicas, intelectuais e morais” (GALLO, 1995b., p. 186).

Segundo Gallo (1995b.), um outro ponto importante foi que Faure, a partir do trabalho das múltiplas oficinas existentes em La Ruche, conseguia, além de alcançar o objetivo pedagógico da formação profissional técnica, manter o sustento da comunidade, seja produzindo para as necessidades internas, seja comercializando o excedente com o exterior. Assim, na comunidade-escola todos tinham sua subsistência garantida, desde habitação, vestuário e alimentação até os cuidados com a saúde. Sobre as remunerações:

Nossos colaboradores não recebem retribuição nem salário. Todas as funções na Colméia são totalmente gratuitas. Salário, soldo, adiantamento é aqui algo totalmente desconhecido. Os companheiros que, por razões diversas, trabalham na Colméia o fazem da forma mais desinteressada possível. Cada um deles deve, entretanto, ter capacidade, assiduidade no trabalho, sobriedade e moralidade que lhe permitiriam lá fora, subir aos níveis mais cobiçados. Nossos colaboradores renunciam de bom grado a estas vantagens materiais, para viverem na Colméia (MORIYÓN, 1989, p. 116).

Ademais, existia um fundo comum do qual os colaboradores podiam retirar a quantia necessária para as suas necessidades extras. Segundo Moriyón (1989), apesar dessa retirada poder se dar sem ser necessário passar pelo julgamento de outros, em mais de uma década de existência da comunidade, todos os colaboradores sempre foram absolutamente comedidos, não causando ao empreendimento quaisquer problemas de ordem financeira.

Quanto às decisões, tanto as econômicas quanto as organizacionais ou pedagógicas, eram tomadas em assembléia, onde todos os colaboradores participavam com iguais direitos, inclusive os jovens adolescentes, que opinavam e votavam como qualquer adulto. Assim, a autogestão estava presente tanto nos aspectos políticos e econômicos, quanto no pedagógico. Na visão de Gallo (1995a.), La Ruche pode ser considerada como uma comunidade anarco-comunista.

Entretanto, apesar de todas as suas inovações e da revolução na educação a que se propunha, a comunidade-escola La Ruche não conseguiu prosseguir por muito tempo. A experiência foi dissolvida, em fevereiro de 1917, pela Primeira Guerra Mundial, em razão de todas as provações, privações, desencontros e dificuldades econômicas que ela trazia consigo.

Além dessas duas experiências clássicas em educação libertária, segundo Lipianski (1999), podemos citar muitas outras, como a Escola Moderna de Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909), a Iasnaia-Poliana de Tolstoi (1828-1910), as Comunidades Escolares de Hamburgo, embora estas duas últimas não sejam partidárias do anarquismo[3].

A Pedagogia Libertária no Brasil

As experiências educacionais em bases libertárias se desenvolveram em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, no final do século XIX e início do XX. Infelizmente, segundo Kassick (2000), a história oficial da pedagogia se fez omissa em relação à contribuição do pensamento pedagógico libertário.

Falar de pedagogia libertária no Brasil parece trazer à memória algo já extinto. Salvo os poucos livros, artigos em revistas e algumas dissertações e teses, acessíveis apenas para um pequeno grupo, nada mais resta sobre educação anarquista no Brasil. Kassick (2000) esclarece que isso se deve em parte à necessidade dos militantes anarquistas não deixarem pistas que pudessem comprometer o movimento mais amplo de organização dos trabalhadores na luta contra o Estado. Mas, por outro lado, é notório que foi também vítima do “esquecimento” por parte da pedagogia oficial, resultante da rejeição das idéias libertárias.

Como aconteceu em várias partes do mundo, os princípios da Escola Moderna foram adotados também no Brasil. Segundo Kassick (2000), os novos métodos de ensino propostos e implantados pela Escola Moderna, que tinham por base o respeito à liberdade, à individualidade, à expressão da criança, reorganizaram o fazer pedagógico, imprimindo-lhe autêntica função revolucionária. Assim como em Prévost e La Ruche, princípios como co-educação dos sexos e de classes sociais, ensino racional e integral apontavam para uma educação livre de dogmas, preconceitos e competitividade.

Essa educação foi de grande importância para a educação do operariado brasileiro no início do século XX. Dado o desinteresse do Estado pela educação do povo, a educação libertária chegava a se constituir quase que na única educação que os trabalhadores tinham acesso. Além disso, conforme Kassick (2000), os princípios pedagógicos da educação libertária foram os únicos parâmetros para a contestação da pedagogia tradicional.

As escolas libertárias, além de oferecer o ensino formal para as crianças, ofereciam o ensino profissional para os adultos e realizavam palestras e conferências à noite ou aos domingos, nas chamadas Sessões de Propaganda Científica.

Seguindo com Kassick (2000) no resgate da história do movimento anarquista, foi bastante elevado o número de escolas, Centros de Cultura e até Universidades Populares[4], criadas e mantidas pelo anarco-sindicalismo da época.

No caso brasileiro, as idéias libertárias foram introduzidas no movimento sindicalista brasileiro pelos trabalhadores anarquistas vindos da Espanha, Itália e Portugal, durante a época da imigração, e “[...] representou a frente de luta mais significativa dos trabalhadores nas duas primeiras décadas do século contra a exploração do operariado brasileiro” (KASSICK, 2000, p. 15).

Finalizando com Kassick (2000), apesar de pouco lembrada e referenciada, a educação anarquista foi importante não apenas para a “instituição escola” e para o seu fazer pedagógico, mas também para a própria Pedagogia, que incorporou muitos de seus princípios.

Considerações Finais

Na primeira parte, nós estudamos duas conceituações do poder: a primeira, segundo a noção topológica, na qual o poder está concentrado em alguns lugares da sociedade e esvaziado em outros, e a segunda, na qual o poder está esparramado pela sociedade formando uma “teia de renda”.

Analisando a pedagogia tradicional, vemos que nela utiliza-se o conceito topológico do poder, sendo o topos do poder o corpo do professor. A escola nova também utiliza a noção topológica do poder, apenas deslocando o seu topos. Nela, o poder não está centrado no corpo do professor, mas sim no dos alunos. Essas duas concepções educacionais preservam a equação saber é poder nas mesmas bases: através do poder continua-se exercendo algum tipo de dominação, ocorrendo apenas uma reorganização estratégica do espaço e não uma mudança no sentido do poder.

No contexto do poder enquanto teia de renda, tanto a pedagogia tradicional quanto a escola nova perdem o seu referencial, pois já não é mais concebível um ou mais topos de poder.

Trabalhando com a concepção de que a educação pertence ao âmbito da pré-política, veremos que em lugar de termos uma relação macrossocial em que o poder político exerce-se do professor para os alunos (escola tradicional) ou dos alunos para o professor (escola nova), temos uma relação microssocial – individual – na qual todas as partes exercem e sofrem um micropoder, que se inscreve no contexto das relações pré-políticas e que formarão o futuro sujeito para as relações macrossociais.

A pedagogia libertária, em lugar de instituir a absoluta não-diretividade na educação, parte necessariamente da autoridade para fundar a liberdade, pois vimos que a autoridade, considerada no nível pré-político, não deve ser confundida com autoritarismo. Ademais, pensando na concepção dialética do desenvolvimento, de Bakunin, temos que o desenvolvimento de uma coisa qualquer é a progressiva negação de seu ponto de partida. Assim, uma educação libertária, pensada nessa perspectiva, jamais poderia começar pela liberdade, pois implicaria na sua negação. Por outro lado, começando pela autoridade, a sua progressiva negação levará ao desenvolvimento da liberdade.

Pensamos que atualmente seja quase nula a possibilidade de pôr em prática um projeto de autogestão escolar dentro do sistema capitalista, pelo fato de que a estrutura do capitalismo impede qualquer tentativa nesse sentido. Assim, o impasse que se coloca para a educação anarquista é o da impossibilidade de encontrar o seu fim.

No contexto capitalista, ou as escolas são a seu favor ou são contra. Sendo a favor, deve constituir-se sobre o autoritarismo e a lógica do mercado. Sendo contra, corre o risco de fechar-se em si mesma, criando uma ilha de liberdade em meio à exploração do capital, sendo incoerente com a concepção de liberdade dos anarquistas. Não podendo jamais fugir da sociedade na qual está inserida, a educação anarquista deve agir dentro mesmo do capitalismo

A autogestão, ao invés de instaurar-se imediatamente, deve ser construída progressivamente pela negação paulatina da heterogestão. Além disso, lembrando as “Leis de Renda” de Foucault, a autogestão permanece ainda irrealizável, mas como uma contra-referência à referência heterogestionária posta e imposta pelo capitalismo.

A pedagogia libertária contrói-se na tensão entre o dado prático, vivenciado e paulatinamente negado, e o dado conceitual, o projeto, construído e buscado como meta.

Assim, ela nasce no seio da sociedade e Estado capitalista, servindo como uma “nova” ferramenta de análise e crítica da sociedade capitalista e da educação por ela pensada, sendo o espelho que reflete o que não devemos ser.

__________

[1] Gallo (1995a.) cita Georges Lapassade, que divide a aplicação da autogestão à pedagogia em três tendências: a Autoritária, iniciada por A. Makarenko, na qual o professor propõe aos alunos algumas técnicas de autogestão; a Freinet, inspirada no pedagogo francês e centrada na criação de novos métodos e técnicas pedagógicas progressistas; e a Libertária, na qual os professores deixam nas mãos dos alunos quaisquer orientações no sentido de instituir um grupo de aprendizagem, ficando apenas como consultores do grupo. Gallo identifica nesta definição certo reducionismo, dada a abrangência das propostas e experiências anarquistas.

[2] No caso romano, quando “[...] os deuses investiram Rômulo de autoridade para fundar a cidade e, a partir desse instante de gênese, a autoridade divina é passada a Rômulo e começa a ser transmitida, seja através da descendência, seja através da tradição, para os governantes futuros [...]” (GALLO, 1995b., p. 33).

[3] Aqui, da mesma forma que o próprio Lipianski (1999) fala sobre Charles Fourier, o inventor do Falanstério, vale mais o espírito do que o nome.

[4] A “[...] Universidade Popular de Ensino, criada em 1904, que apesar da duração efêmera, de julho a outubro, pretendia complementar o sistema de educação libertária. Sua organização curricular dava-se através de unidades temáticas independentes, proferidas através de aulas-palestras e que eram divulgadas com antecedência na imprensa anarquista” (KASSICK, 2000, p.23).

Referências

GALLO, S. Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: Unimep, 1995a. 252 p.

__________. Pedagogia do risco: experiências anarquistas em educação. Campinas: Papirus, 1995b. 191 p.

__________. Repensar a educação: Foucault. Filosofia, Sociedade e Educação, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 93-118, 1997.

KASSICK, N. B;  KASSICK, C. N. A pedagogia libertária na história da educação brasileira. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000. 35 p.

LIPIANSKY, E.M. A pedagogia libertária. São Paulo: Imaginário, 1999. 76 p.

MORIYÓN, F. G. (Org.). Educação libertária. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 156 p.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 17 agosto, 2006.