por JOÃO MARCOS MATEUS KOGAWA

Aluno ingressante no Programa de pós-graduação em lingüística e língua portuguesa da UNESP – CAr (mestrado), sob a orientação da Profa. Dra. Renata Maria Facuri Coelho Marchezan

 

 

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Geni no Entremeio de Uma Arena de Vozes

João Marcos Mateus Kogawa

 

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a relação autor-herói na canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque. Sob essa perspectiva, consideramos essa relação como dialógica. O autor-criador que constitui esse sujeito constitui-se como tal enquanto posição exotópica “conclusiva”. Além disso, essa voz autoral “traz para dentro” do seu discurso outras vozes – que cerceiam a vida de seu herói – para subverter alguns valores sociais. Isso faz da canção uma arena de embates discursivos e tomadas de posição axiológicas (posição do autor, do herói e outras, que procuram silenciar o herói) . Nesse sentido, a voz do autor-criador apresenta-se como voz crítica a alguns valores religiosos – figurativizados pelo coro e por outros elementos –, capitalistas e políticos que se configuram no discurso da canção como “silenciadores” da voz de Geni. Para realizar este trabalho, valemo-nos de alguns pressupostos teóricos do círculo de Bakhtin. Destacamos, dentro do quadro teórico bakhtiniano, as categorias de dialogismo, autor e herói como conceitos essenciais deste trabalho.

Palavras-Chave: Autor; herói; atividade estética; dialogismo;

Abstract:This article has as objective analyzes the relationship author-hero in the song “Geni e o Zepelim”, of Chico Buarque. Under that perspective, we considered that relationship as dialogical. The author-creator that constitutes that subject it is constituted as such while position conclusive exotopic. Besides, that authorial “voice brings inside” of your speech other voices - that reduce the life of your hero - to subvert some social values. That does of the song an arena of discursive collisions and electric outlet of position axiology (the author's position, of the hero and other, that try to silence the hero). In that sense, the author-creator's voice comes as critical voice the some religious values – figurative for the choir and for other elements -, capitalists and political that are configured in the speech of the song as "mufflers" of the voice of Geni. To construct this work, we were worth ourselves of some theoretical presuppositions of the circle of Bakhtin. We highlighted inside of the picture theoretical bakhtiniano, the dialogism categories, author and hero as basic concepts of this work[*]

Keywords: Author; hero; aesthetics activity; dialogism

 

Chico BuarqueIntrodução

A relação autor-herói, trabalhada por Bakhtin principalmente em Estética da criação verbal e Problemas da poética de Dostoiévski, constitui-se como pilar teórico de extrema importância para a compreensão de algumas canções de Chico Buarque. Percebemos que o universo artístico-cancioneiro do compositor, nas décadas de 60/70 no Brasil, é consideravelmente atravessado por essa relação. Os heróis buarqueanos, portanto, possibilitam, em certa medida, leituras da “realidade” político-histórico-social brasileira do período de ditadura militar. O objeto de nosso estudo será a canção “Geni e o Zepelim”, mas poderíamos citar: “Pedro, pedreiro”, “Funeral de um lavrador”, “Construção”, “O malandro nº 2”, “Homenagem ao malandro”, “Cala a boca Bárbara”, enfim, a enumeração talvez não deixasse espaço para nosso artigo.

O que nos chama a atenção na canção[1] é o posicionamento autoral com relação à sua personagem. Entendemos que o discurso desse autor coloca-se “em defesa” de seu herói e, para marcar essa posição valorativa, a voz autoral imerge na historicidade e demarca a dialogicidade do discurso, ou seja, essa voz traz para o interior de seu discurso outras vozes sócio-históricas, que também têm sua leitura sobre o comportamento de Geni, para polemizar com elas. O autor, portanto, instaura a polêmica no interior da canção para delimitar seu lugar a partir de outras vozes. Sua posição com relação a seu herói choca-se com outras posições e se forma a partir delas.

Entendemos esse autor como “a consciência de uma consciência” – para usar as palavras de Tezza (2003) – que assume uma posição emotivo-volitiva[2] diante do seu herói. Assim,

O tom emocional-volitivo é um momento inalienável do ato realmente executado, mesmo do mais abstrato pensamento. É ele que relaciona todo o conteúdo de um pensamento com o Ser-evento único. O tom emocional-volitivo não é uma passiva reação psíquica, mas uma atitude de dever da consciência, moralmente válida e responsavelmente ativa (TEZZA, 2003, p. 185).

Sob esse aspecto, a voz autoral apresenta-se como crítica aos valores religiosos e capitalistas sobre o ambiente de Geni. Isso nos permite marcar a posição valorativa do autor-criador como “defensora” do comportamento de seu herói na medida em que a atitude desse herói contraria alguns padrões sociais que, no modo de ver autoral, não se sustentam. Contra o discurso religioso, a crítica é re-velada pela discursivização da hipocrisia demonstrada pela “cidade religiosa”; contra o discurso capitalista, a voz autoral desconstrói o utilitarismo, que vê nas relações subjetivas uma forma de “lucratividade”.

Propomos, portanto, refletir sobre a formação desse herói buarqueano a partir da análise do embate entre diferentes vozes no discurso da canção. Assim, a imagem de Geni forma-se a partir do diálogo polêmico entre a voz do autor-criador e as vozes a que esse autor-criador se contrapõe (no caso a voz religiosa e capitalista).

Bakhtin: dialogismo e o excedente da visão estética

A obra bakhtiniana é marcada por re-leituras e por dificuldades interpretativas devido à dispersão com que os textos foram distribuídos e publicados. Somam-se a isso, algumas dúvidas com relação à autoria de determinadas obras, que não estão “assinadas” pelo teórico russo. Marxismo e filosofia da linguagem, por exemplo, não tem Bakhtin como autor, mas um dos membros de seu círculo: Voloshinov. Alguns atribuem a Bakhtin a autoria dessa obra, mas, de acordo com Tezza (2003), “(...)até que as pesquisas historiográficas sejam capazes de nos dar respostas mais precisas sobre os textos disputados, parece-nos conveniente tratar os autores do Círculo pelos seus próprios nomes”.

Contudo, não devemos olhar para a obra bakhtiniana com a idéia de que é composta por colagens conceituais não inter-relacionáveis. Apesar da dispersão dos textos (muitos afirmam que alguns se perderam) há uma profunda coerência na obra do teórico russo e seu círculo:

Se hoje, para imaginar uma seqüência linear das reflexões, assinadas por Bakhtin ou por outros membros do círculo, teríamos de reler as obras, o que efetivamente várias pessoas estão fazendo nesse momento, encontrando uma profunda coerência para a colcha de retalhos que nos chegou, teríamos também de reconhecer que essa coerência de fato já estava metonimizada em cada trabalho, especialmente se considerarmos a concepção histórico-cultural de linguagem que orienta e se constitui como marca essencial do conjunto dos textos (BRAIT, 2001, p. 21).

A concepção histórico-cultural de linguagem apontada por Brait, vincula-se, em certa medida, à concepção bakhtiniana de dialogismo. Para Bakhtin, a realidade viva da linguagem – o momento em que essa linguagem não está in abstrato – é o momento da interação verbal, ou seja, o momento em que a linguagem está em uso dentro da história e da cultura num movimento dialógico entre o eu e o outro.

Essa preocupação com a “realidade viva da linguagem” aparece problematizada na obra de Voloshinov Marxismo e filosofia da linguagem. Nesse texto – escrito em 1929 – o signo é abordado sob a perspectiva dialógica, enquanto interação verbal. Nesse sentido, o signo não é uma entidade abstrata – tal como a langue saussureana, entendida por Voloshinov não como signo, mas como sinal – que deve ser interpretada meramente à luz de uma organização formal (estrutural), mas um ponto de encontro entre sujeitos (e sua posição emotivo-volitiva), a língua e a história.

Sob esse prisma, o discurso é constituído pela relação dialógica entre, pelo menos, duas consciências sociais (ou dois centros de valores), que se inserem num momento histórico e se posicionam diante de uma língua. Não que o sentido não necessite de uma instância “lógico-abstrata” – representada pela língua – mas a apreensão do sentido da criação estética só pode se dar, para o Círculo bakhtiniano, por meio de uma concepção dialógica da linguagem, o que significa dizer que a imprescindibilidade do sinal não pode reduzir a análise a uma estrutura desvinculada do momento verbal. Toda palavra relaciona-se com outra; responde, concorda com outra ou discorda dela em um determinado contexto histórico-cultural vivenciado por sujeitos sócio-individuais.

Essa filosofia da linguagem bakhtiniana é o sustentáculo de seus estudos e concepções teórico-literárias. Contudo, não podemos confundir e colocar sob um mesmo olhar teórico, a concepção dialógica da linguagem e a teoria literária de Bakhtin fundamentada no princípio do dialogismo:

Dialogismo é uma categoria essencial da natureza da linguagem, antes de qualquer coisa, antes mesmo que a linguagem entre no universo estético; a linguagem concreta, o momento verbal bakhtiniano é dialógico (...); nenhuma significação se instaura, em nenhum evento concreto, sem a presença de, no mínimo, dois centros de valor (TEZZA, 2003, p. 232).

Além da concepção dialógica da linguagem, devemos olhar para a relação dialógica entre consciências – ou centro de valores – e entender a posição exotópica que o autor ocupa diante da personagem. Dessa forma,

Esta relação viva de consciências – ou, de modo mais preciso, de centros de valores, em que um deles, o autor, é transcendente (no tempo, no espaço e nos valores) ao outro, o herói – será uma das chaves da concepção literária de Bakhtin. A noção de excedente de um centro de valores com relação a outro é particularmente importante na sua estilística; nela, será indispensável a categoria do plurilingüismo, ou heteroglossia, que se define como a presença direta ou indireta de diferentes vozes sociais, ou centros de valor, em todo momento verbal (TEZZA, 2003, p. 208-209).

A partir dessa concepção dialógica da linguagem – e do discurso – e da relação autor-herói, propomos entender a constituição de Geni, dentro da canção “Geni e o Zepelim”, como um sujeito “sem-voz”, na medida em que as vozes opressoras do discurso religioso e capitalista “silenciam” esse sujeito. Dessa forma, partimos da idéia de excedente da visão estética como olhar extraposto que constrói a imagem das personagens e do seu caráter e que, ao situar o lugar da personagem, demarca seu próprio lugar fora dela – o que permite à voz autoral avaliar a situação de “silêncio” do herói e criticar, sutilmente, a postura dos discursos condenatórios. Assim, autor e herói se constituem numa interação dialógica. O autor vivencia o “encontro” com a personagem e, após ter retornado a seu lugar autoral, constrói valorativamente o que vivenciou.

Para Bakhtin, esse ativismo era desconsiderado pelos estudos literários de seu tempo e, por isso, tais estudos não olham para esse princípio estético basilar. O teórico russo critica os estudos que se fundamentam em uma análise psicológica do autor – aquilo que ele quis dizer etc. – e o estudo histórico-alegórico que procura entender a criação estética por meio de paralelos entre cenas da obra e acontecimentos históricos que se correspondem. De acordo com o teórico,

As tentativas mais sérias de empreender um enfoque de princípio da personagem partem dos métodos biográficos e sociológicos, mas esses métodos tampouco são dotados de uma concepção estético-formal suficientemente aprofundada do princípio estético basilar da relação entre personagem e autor, pois o substituem por relações e fatores sociais e psicológicos passivos e transgredientes à consciência criadora: a personagem e o autor acabam não sendo elementos do todo artístico da obra, mas elementos de uma unidade prosaicamente concebida da vida psicológica e social (BAKHTIN, 2003, p. 7).

Por outro lado, os métodos e concepções formalistas também não escapam às críticas do Círculo. Em Marxismo e filosofia da linguagem, Voloshinov tece uma longa crítica ao que ele denominou objetivismo abstrato. O alvo principal dessa crítica é a “langue saussureana”. Essa concepção era muito utilizada e explorada pelos estudos literários empreendidos pelos formalistas russos. Para Voloshinov (apud TEZZA, 2003), “a língua como um sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares”.

Um estudo de natureza formal, ainda que contenha suas contribuições teóricas – pois, de acordo com Tezza (2003): “Bakhtin não negou aos formalistas a sua importância na análise técnica da linguagem poética, no levantamento de seus dados quantitativos, didaticamente úteis;” – não dá conta da fundamentação estética. Para Bakhtin (2003), “A tarefa basilar é, antes de tudo, definir o desígnio artístico e seu efetivo contexto, ou seja, aquele mundo axiológico em que se coloca e se realiza tal desígnio”. Mais que isso – e aqui o teórico russo toca num ponto nodal para a teoria formalista – Bakhtin nega a possibilidade de entendimento da obra estética a partir de uma “consciência lingüística” do autor:

(...) antes de tudo precisamos compreender a estrutura dos valores e do sentido em que a criação transcorre e toma consciência de si mesma por via axiológica, compreender o contexto em que se assimila o ato criador. A consciência criadora do autor-artista nunca coincide com a consciência lingüística, a consciência lingüística é apenas um elemento, um material, totalmente guiado pelo desígnio puramente artístico (BAKHTIN, 2003, p. 179).

Geni no entremeio da arena de vozes

De início, o sujeito do discurso instaura, por meio de uma descrição de terceira pessoa, um sujeito feminino que se relaciona sexualmente com determinados outros. O relacionamento se dá de maneira aleatória e sem aparente discriminação por parte da protagonista. Esses outros pertencem a camadas sociais de baixo prestígio que sobrevivem à margem da sociedade. Para comprovar essas afirmações, citamos alguns versos da canção: “De tudo que é nego torto/Do mangue do cais do porto/Ela já foi namorada/O seu corpo é dos errantes/Dos cegos dos retirantes/É de quem não tem mais nada(...)É a rainha dos detentos/Das loucas, dos lazarentos/Dos moleques do internato”.

Em uma leitura inicial, chama-nos a atenção o desprendimento da protagonista com relação aos valores tradicionais sobre a sexualidade, tais como a realização do ato após o casamento; ou a concepção de que sexo deve ser feito “com amor”. Isso nos remete à idéia do ato sexual como uma ação instintiva – quase animalesca – em que ficam suspensas as “imposições” do campo afetivo e dos valores sociais religiosos.

Além dessa aparente suspensão valorativa, merece destaque o que se enuncia no sétimo verso: “Dá-se assim desde menina”. Esse enunciado instaura na canção um dado histórico sobre o sujeito feminino e uma duplicação da voz autoral. Entendemos que o fato de ela se dar desde menina instaura, por um lado, um efeito de sentido de intensificação da “ausência” de valores no universo subjetivo; por outro lado, o enunciado em questão materializa o efeito de que a protagonista foi condicionada, devido a fatores sócio-econômicos – não materializados no texto, mas que podem ser pressupostos – a uma vida de errância. Apresenta-se, de forma re-velada, uma “justificativa” para as predisposições subjetivas no sentido de que o comportamento da protagonista foi condicionado pelas impossibilidades que ela enfrentou. Além disso, o enunciado remete-nos à idéia de que o comportamento da personagem é irreversível, uma vez que ela o tem desde a meninice. Essa irreversibilidade encontra eco no discurso popular que se materializa, lingüística e historicamente, sob a forma do enunciado: “Pau que nasce torto nunca se endireita”.

Contudo, o que observamos anteriormente situa-se em um nível superficial do discurso. Mais adiante, ainda na primeira parte da canção, apreendemos os seguintes versos: “Ela é um poço de bondade/E é por isso que a cidade/Vive sempre a repetir/Joga pedra na Geni”. Nesse momento da canção a personagem é nomeada (Geni) e uma outra personagem – que permanecerá até o final da canção – aparece: o coro. Essa personagem representa no texto os valores condenatórios que cerceiam a vida de Geni. A voz desse coro simboliza a voz do julgamento e, por sua vez, a voz que diz a Geni o que ela não é e o que ela deveria ser. Nesse sentido, essa voz estabelece um diálogo polêmico e se constitui como voz que silencia Geni. A voz coral[3] representa no texto alguns valores morais sobre a sexualidade. Mais que isso, essa voz é portadora da concepção cristã a respeito da sexualidade, ou seja, a idéia de que o sujeito deve se relacionar com um parceiro (a) sexual, após o casamento, legitimado pela igreja.

Essa voz, que condena e recusa o comportamento de Geni, integra um campo discursivo-polêmico contra outra voz, que questiona os valores corais: a voz autoral. O questionamento se dá a partir de uma construção paradoxal. Ao analisarmos os enunciados supracitados, notamos que o motivo pelo qual o coro julga Geni não é passível de julgamento, fator que instaura uma contradição em termos. Geni não é julgada e condenada, no dizer da voz autoral, por se prostituir, mas por ser um poço de bondade. Podemos questionar, a partir do enunciado citado: por que alguém deve ser julgado por ser bom? A resposta a esse paradoxo remete-nos à idéia de que o pré-julgamento realizado pelo coro (símbolo da moral social religiosa cristã) não considera que Geni possa ter valores, ou seja, o comportamento de Geni é visto pela cidade como imoral pelo fato de ela não se enquadrar no modelo comportamental pregado pelo discurso religioso cristão.

Para Bakhtin, o processo de criação se dá no momento em que o excedente de visão estética ou olhar extraposto, após ter contemplado e vivenciado o objeto estético de forma dialógica, retorna a si para dar forma e acabamento ao que foi contemplado. O autor é a consciência exotópica que, após vivenciar o acontecimento sócio-discursivo organiza e faz uma leitura desse acontecimento e, por sua vez, ao produzir seu discurso artístico constrói a imagem do leitor que ele deseja atingir. Renegamos pensar que o autor é a consciência plena e absoluta que dirige todos sentidos. Mais que isso, nossa reflexão, juntamente com Bakhtin, propõe o autor é construídos no/pelo discurso enquanto uma das categorias fundadoras da obra estética.

Além das vozes do autor e do coro, temos a não-voz de Geni, que sintetiza um modelo anti-heróico, e as vozes político-capitalistas. O anti-heroísmo dessa personagem – seu heroísmo – reside no fato de ela representar a miséria daqueles que não têm mais nada. Podemos entender a protagonista da canção como o herói cotidiano que, muitas vezes, tem de enfrentar situações além das possibilidades de escolha. A personagem nuclear da canção constitui-se e é constituída num cronotopo[4] diferente daqueles que desejam apedrejá-la e, por isso, sua história e sua cultura não compreendem o universo valorativo da moralidade defendida pela cidade.

Na segunda parte da canção, instaura-se outro acontecimento narrativo que abala com as estruturas até então seqüenciadas: trata-se da chegada do Zepelim e de seu comandante: “Um dia surgiu brilhante/Entre as nuvens, flutuante/Um enorme zepelim/Pairou sobre os edifícios/Abriu dois mil orifícios/Com dois mil canhões assim”. Esse acontecimento discursivo modifica a constituição de Geni enquanto sujeito sem-voz – ainda que relativa e temporariamente. A partir da chegada do anti-sujeito, Geni passa a ocupar outra posição dentro da esfera taxativa em que estava enquadrada.

De alvo de crítica, Geni passa a objeto do desejo do comandante que vê na personagem uma formosa dama. Geni não só representa algo de “valor” para o comandante como passa a ter uma utilidade para aqueles que antes a condenavam. A personagem passa a ser a possibilidade de salvação para a cidade. O comandante diz: (...)posso evitar o drama/ Se aquela formosa dama/Esta noite me servir. A leitura do discurso da canção ganha um novo direcionamento, qual seja a inversão dos valores e das posições subjetivas. A prostituição corporal de Geni passa a ser valorizada na medida em que possui uma utilidade para a sociedade. Ao refletirmos no sentido da prostituição, notamos que a cidade, dantes taxativa com relação à prostituição do corpo e dos valores morais, prostitui-se moralmente e deixa de lado seus valores por medo de virar geléia.

Geni então, se encontra diante de um dilema: aceitar a proposta do forasteiro ou não. A partir desse momento, a voz autoral constrói valores concernentes à figura de Geni que, até então, não tinham sido citados: “Mas de fato logo ela/Tão coitada e tão singela”. Os adjetivos coitada e singela configuram um campo de simplicidade e humildade que, de certa forma, antecipam a decisão da personagem (resposta positiva às súplicas da cidade) e marca uma posição emotivo-volitiva do autor diante de seu herói, qual seja, o compadecimento de sua personagem. Não só isso, mas também marcam uma atitude de “defesa” autoral do comportamento de seu herói e uma tomada de posição crítica diante do moralismo da cidade. Tais adjetivos nos permitem pensar no ponto de vista extraposto que dirige a leitura para um efeito de antimoralismo, isto é, para uma inversão e questionamento de valores. Isso se concretiza logo após os versos citados anteriormente: “Acontece que a donzela/ – e isso era segredo dela/Também tinha seus caprichos/E a deitar com homem tão nobre/Tão cheirando a brilho e a cobre/Preferia amar com os bichos”.

Nesse momento do texto, há um diálogo polêmico entre o posicionamento autoral e o discurso capitalista. Geni, que até então não discriminava os sujeitos com quem se relacionava, ao se deparar com luxo e riqueza prefere amar com os bichos. A polêmica é reforçada com o posicionamento da cidade diante da ética valorativa de Geni: “Ao ouvir tal heresia/A cidade em romaria/Foi beijar a sua mão”. Ao analisarmos a relação entre Geni e o comandante, apreendemos a idéia de que “o dinheiro não compra tudo”. Para o comandante, não é o dinheiro da cidade que importa, mas a relação com Geni; para Geni, não é o poder e o dinheiro do comandante que importam, mas a comoção causada pelos pedidos: “(...)Foram tantos os pedidos/Tão sinceros, tão sentidos/Que ela dominou seu asco”.

Apreendemos nesse trecho um diálogo com o discurso religioso instaurado pelos termos heresia e romaria. Além disso, o ato de beijar a mão dialoga com o ato de beijar a mão do superior (o papa, principalmente) conhecido (historicamente), principalmente, no campo católico. Isso reforça a idéia de que a canção é construída a partir de um diálogo polêmico entre diferentes campos de discurso, quais sejam: o religioso, o político, o econômico e o discurso autoral que, ao se “identificar” com Geni (herói), se coloca contra todos os outros. O autor constrói, nesse aspecto, um enfrentamento de vozes que se digladiam (voz capitalista; voz religiosa; e a sua própria que nega ambos) e concorrem para a formação da “consciência” do sujeito feminino. Ressaltamos que essa “consciência” instaurada em Geni resulta do ponto de vista extraposto do autor, ou seja, há uma “consciência” global externa que organiza e propõe leituras a partir das configurações discursivas que cerceiam a vida subjetiva.

No enunciado: “O prefeito de joelhos/ O bispo de olhos vermelhos/E o banqueiro com um milhão”, observamos que há um rendimento dos campos sociais mais importantes diante de Geni, a rainha dos detentos. Curvam-se diante dela o campo econômico – figurativizado pelo banqueiro – o político – figurativizado pelo prefeito – e o religioso – figurativizado pelo bispo. Tal fato propõe uma desestruturação sistemática e uma inversão de valores. O discurso da canção “Geni e o zepelim”, sob essa ótica, denuncia a hipocrisia e o utilitarismo de uma cidade – que historicamente se fortalecia grandemente pela exploração do trabalho operário nas fábricas, nas lavouras, etc. – que se prostitui quando se acha: “Pronta pra virar geléia”.

Sob essa perspectiva, o autor traz para seu discurso uma história da cultura e reativa na memória do leitor as arbitrariedades, as desigualdades, a hipocrisia e o falso moralismo existentes desde o domínio religioso sobre as sociedades. O questionamento presente na canção buarqueana retoma o discurso da inquisição e da era dos suplícios para denunciar que os conjuntos de regras utilizados para a formação e constituição dos sujeitos retomam os clássicos em alguns aspectos.

Nesse sentido observamos a discursivização da hipocrisia como marca do procedimento inter-relacional dos sujeitos da canção – fator que nos remete, com maior vigor, ao campo religioso: “Vai com ele vai Geni/Vai com ele vai Geni/Você pode nos salvar/Você vai nos redimir/Você dá pra qualquer um/Bendita Geni”. Não podemos esquecer de que já no discurso bíblico encontramos a figura dos fariseus, constantemente acusados por Cristo de hipocrisia; a história da inquisição; o período de “caça às bruxas”, etc.

A oposição entre bendita e maldita também é de ordem religiosa e comporta outro fator avaliativo-moralista. O valor atribuído à personagem vincula-se, portanto, à sua utilidade. A configuração valorativa (Bendita/maldita) varia de acordo com a situação vivenciada pela cidade. Isso denota a não fixidez dos valores que a cidade tem, uma vez que eles mudam de acordo com a situação. Sob esse aspecto, o posicionamento da cidade é de hipocrisia: quando o objeto de avaliação é Geni, a condenação é imediata porque “Ela dá pra qualquer um” – o que, sob a ótica do discurso religioso, se caracteriza como ausência de valores morais; quando o objeto de avaliação é a própria cidade, não há julgamento – por parte desse mesmo discurso religioso – com relação à subversão de valores (efetivada no momento em que essa cidade apóia a prostituição de Geni para não virar geléia).

Integra-se, nessa teia discursiva, o utilitarismo, instaurador do universo discursivo capitalista que vê as relações subjetivas como possibilidade de lucro. Nesse aspecto, observamos que o comportamento da cidade muda em relação a Geni no momento em que ela se constitui em objeto do qual se pode tirar proveito. O termo bendita – pertencente ao campo religioso – se inter-relaciona com o discurso capitalista no sentido de que é atribuído no momento em que o sujeito pode oferecer “lucro”.

A voz autoral – excedente de visão estética – configura esses campos e, a partir deles, propõe a negação dos valores religiosos e capitalistas. A visualização desse posicionamento pode ser lida nos trechos que representam o clamor da cidade para que Geni a salve. Podemos, dessa forma, compreender a polemização de vozes a partir da não-voz do sujeito feminino inscrito em “Geni e o Zepelim”. Para que possamos realizar uma leitura a respeito da leitura realizada e proposta pelo autor, é necessário retomar fatos histórico-culturais que formam e constituem a memória da sociedade brasileira das décadas de 60/70. Nesse sentido, nossa leitura deve se constituir como um diálogo inter-histórico e intercultural.

Sob esse aspecto, não podemos descartar que, historicamente, algumas canções de Chico representam um gênero considerado subversivo, ou seja, constituem-se como discursos que, muitas vezes, reconstroem a ordem social de forma invertida. Sob esse prisma, compreendemos que o discurso de “Geni e o Zepelim” é uma possibilidade de negação dos valores vigentes no Brasil nas décadas de 60/70 – momento de grandes conturbações políticas, sociais e culturais em que a música tinha seu papel de resistência ao poder ditatorial.

Contudo, não podemos nos esquecer de que artistas como Chico Buarque, nessa época, eram constantemente perseguidos pelo regime de ditadura. Se pensarmos por esse ângulo, talvez possamos compreender a ambigüidade do desfecho da canção: ficamos entre a possibilidade de questionamento dos discursos capitalista e religioso e a vitória desses discursos sobre o discurso autoral na medida em que a cidade usa Geni, é salva e ainda assim: “Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni/ Ela é feita pra apanhar/Ela é boa de cuspir/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni”.

Conclusão

A partir de algumas categorias conceituais do Círculo bakhtiniano, analisamos a constituição subjetiva de Geni na canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque. Para isso, partimos da relação entre a voz do autor-criador e a não-voz da personagem central (herói) Geni. Essa não-voz do herói torna-se sua principal característica e é desse modo que sua imagem é construída. O herói buarqueano em questão, a nosso ver, pode ser entendido como um modelo anti-heróico que, por meio de seu silêncio, derruba – através da voz autoral – uma série de valores morais pregados e exigidos pela cidade.

Sob essa ótica, Geni ganha o status de herói a partir da voz autoral. A voz do autor-criador se coloca em “defesa” do silenciamento de sua personagem e dá voz a ela na medida em que questiona os conceitos religiosos e capitalistas. O silêncio de Geni – marca da opressão realizada pelo coro, pelo prefeito, pelo banqueiro, pelo comandante, enfim, pelo sistema que a cerceia – constitui-se como marca anti-triunfalista que derruba os valores morais e éticos dogmáticos.

A nosso ver, há uma grande “jogada” por parte do autor-criador: se pensarmos num diálogo com a bíblia temos, no comportamento de Cristo – talvez o exemplo maior de enfrentamento sistêmico por meio do silêncio –, um possível correspondente para o comportamento de Geni. Nesse sentido, a idéia do cordeiro que vai em silêncio para o matadouro – feitas as devidas ressalvas contextuais – pode ser relacionada ao posicionamento emotivo-volitivo da voz autoral que ativa na memória do leitor esse outro discurso. Assim, o efeito de redenção por meio de um cordeiro que tem de ser sacrificado fica marcada em “Vai com ele vai Geni/ Vai com ele vai Geni/ Você pode nos salvar/Você vai nos redimir”.

Sob essa ótica, a desconstrução dos valores religiosos se dá por uma via também “religiosa”. O próprio discurso bíblico é retomado para questionar o moralismo e as convenções que se dizem “cristãs”. Nesse sentido, “Geni e o zepelim” é constituída por uma rede complexa de discursos que se “espelham”. É uma arena em que o próprio discurso acusador (religioso) é rebatido – quando pensamos na retomada do discurso bíblico sobre Cristo –, para sua própria desconstrução. A imagem de Geni é configurada como “(...)um poço de bondade”, na voz autoral.

A submissão de Geni é a condição para que se possa fazer esse paralelo – ainda que relativo – com a figura de Cristo e, assim, mais do que uma submissão ingênua, o herói buarqueano ganha voz através da voz autoral que denuncia o crime que a cidade comete ao jogar pedra na Geni. O silêncio da personagem é um silêncio que fala e é a relação com a voz autoral que nos dá a “exata” medida desse falar.

Dessa forma Geni, por um lado é marcada pelo silêncio, pela submissão e pela não-voz na medida em que o sistema que a cerceia impede que ela fale. Por outro lado, esse sujeito fala através de uma outra voz, a voz autoral que heroifica sua personagem e derruba os valores de seus inquisidores.

 

Referencias Bibliografia

BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-120.

___. O problema do autor. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 173-186.

BRAIT, B. O discurso sob o olhar de Bakhtin. In: GREGOLIN, M. R. F. V.; BARONAS, R. (Orgs.). Análise do discurso: as materialidades do sentido. São Carlos, SP: Claraluz, 2001. p. 19-35.

TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª Ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

[*] Agradecemos Luís Cândido – doutorando em educação pela UNIMEP – pela contribuição com nosso resumo em inglês.

[1] Particularizamos nosso objeto de análise: “Geni e o Zepelim”.

[2]  Na concepção bakhtiniana, todo discurso re-produz valores que marcam o posicionamento do sujeito. A expressão emotivo-volitivo, portanto liga-se a esse caráter valorativo que cerceia a produção do discurso. Contudo, não podemos nos esquecer de que essa volitividade (“vontade”) não pode ser considerada nos termos do sujeito psicologista, uma vez que o Círculo de Bakhtin trabalha com a idéia de que a “realidade viva” da língua – e do discurso – é sócio-individual e não apenas subjetiva.

[3] O termo deriva da do substantivo coro. Assim, o chamamos coral à voz do coro que canta: “Joga pedra na Geni/Joga pedra na Geni”.

[4] Trata-se de um conceito da visão teórica de Bakhtin. Para ele, o tempo (cronos) não pode ser entendido separado do espaço (topos). A partir disso, o teórico russo elabora o conceito de cronotopo, ou seja, o tempo no espaço e vice-versa.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 17 agosto, 2006.