Introdução
A
relação autor-herói, trabalhada por Bakhtin principalmente em Estética da criação verbal e Problemas
da poética de Dostoiévski, constitui-se como pilar teórico de
extrema importância para a compreensão de algumas canções de Chico
Buarque. Percebemos que o universo artístico-cancioneiro do compositor,
nas décadas de 60/70 no Brasil, é consideravelmente atravessado por essa
relação. Os heróis buarqueanos, portanto, possibilitam, em certa
medida, leituras da “realidade” político-histórico-social brasileira
do período de ditadura militar. O objeto de nosso estudo será a canção
“Geni e o Zepelim”, mas poderíamos citar: “Pedro, pedreiro”,
“Funeral de um lavrador”, “Construção”, “O malandro nº 2”,
“Homenagem ao malandro”, “Cala a boca Bárbara”, enfim, a enumeração
talvez não deixasse espaço para nosso artigo.
O
que nos chama a atenção na canção
é o posicionamento autoral com relação à sua personagem. Entendemos
que o discurso desse autor coloca-se “em defesa” de seu herói e, para
marcar essa posição valorativa, a voz autoral imerge na historicidade e
demarca a dialogicidade do discurso, ou seja, essa voz traz para o
interior de seu discurso outras vozes sócio-históricas, que também têm
sua leitura sobre o comportamento de Geni,
para polemizar com elas. O autor, portanto, instaura a polêmica no
interior da canção para delimitar seu lugar a partir de outras vozes.
Sua posição com relação a seu herói choca-se com outras posições e
se forma a partir delas.
Entendemos
esse autor como “a consciência de uma consciência” – para usar as
palavras de Tezza (2003) – que assume uma posição emotivo-volitiva
diante do seu herói. Assim,
O
tom emocional-volitivo é um momento inalienável do ato realmente
executado, mesmo do mais abstrato pensamento. É ele que relaciona todo o
conteúdo de um pensamento com o Ser-evento único. O tom
emocional-volitivo não é uma passiva reação psíquica, mas uma atitude
de dever da consciência, moralmente válida e responsavelmente ativa
(TEZZA, 2003, p. 185).
Sob
esse aspecto, a voz autoral apresenta-se como crítica aos valores
religiosos e capitalistas sobre o ambiente de Geni. Isso nos
permite marcar a posição valorativa do autor-criador como
“defensora” do comportamento de seu herói na medida em que a atitude
desse herói contraria alguns padrões sociais que, no modo de ver
autoral, não se sustentam. Contra o discurso religioso, a crítica é
re-velada pela discursivização da hipocrisia demonstrada pela “cidade
religiosa”; contra o discurso capitalista, a voz autoral desconstrói o
utilitarismo, que vê nas relações subjetivas uma forma de
“lucratividade”.
Propomos,
portanto, refletir sobre a formação desse herói buarqueano a partir da
análise do embate entre diferentes vozes no discurso da canção. Assim,
a imagem de Geni forma-se a partir do diálogo polêmico entre a
voz do autor-criador e as vozes a que esse autor-criador se contrapõe (no
caso a voz religiosa e capitalista).
Bakhtin:
dialogismo e o excedente da visão estética
A
obra bakhtiniana é marcada por re-leituras e por dificuldades
interpretativas devido à dispersão com que os textos foram distribuídos
e publicados. Somam-se a isso, algumas dúvidas com relação à autoria
de determinadas obras, que não estão “assinadas” pelo teórico
russo. Marxismo e filosofia da linguagem, por exemplo, não tem
Bakhtin como autor, mas um dos membros de seu círculo: Voloshinov. Alguns
atribuem a Bakhtin a autoria dessa obra, mas, de acordo com Tezza (2003),
“(...)até que as pesquisas historiográficas sejam capazes de nos dar
respostas mais precisas sobre os textos disputados, parece-nos conveniente
tratar os autores do Círculo pelos seus próprios nomes”.
Contudo,
não devemos olhar para a obra bakhtiniana com a idéia de que é composta
por colagens conceituais não inter-relacionáveis. Apesar da dispersão
dos textos (muitos afirmam que alguns se perderam) há uma profunda coerência
na obra do teórico russo e seu círculo:
Se
hoje, para imaginar uma seqüência linear das reflexões, assinadas por
Bakhtin ou por outros membros do círculo, teríamos de reler as obras, o
que efetivamente várias pessoas estão fazendo nesse momento, encontrando
uma profunda coerência para a colcha de retalhos que nos chegou, teríamos
também de reconhecer que essa coerência de fato já estava metonimizada
em cada trabalho, especialmente se considerarmos a concepção histórico-cultural
de linguagem que orienta e se constitui como marca essencial do conjunto
dos textos (BRAIT, 2001, p. 21).
A
concepção histórico-cultural de linguagem apontada por Brait,
vincula-se, em certa medida, à concepção bakhtiniana de dialogismo.
Para Bakhtin, a realidade viva da linguagem – o momento em que essa
linguagem não está in abstrato – é o momento da interação
verbal, ou seja, o momento em que a linguagem está em uso dentro da história
e da cultura num movimento dialógico entre o eu e o outro.
Essa
preocupação com a “realidade viva da linguagem” aparece
problematizada na obra de Voloshinov Marxismo e filosofia da linguagem.
Nesse texto – escrito em 1929 – o signo é abordado sob a perspectiva
dialógica, enquanto interação verbal. Nesse sentido, o signo não é
uma entidade abstrata – tal como a langue saussureana, entendida
por Voloshinov não como signo, mas como sinal – que deve ser
interpretada meramente à luz de uma organização formal (estrutural),
mas um ponto de encontro entre sujeitos (e sua posição
emotivo-volitiva), a língua e a história.
Sob
esse prisma, o discurso é constituído pela relação dialógica entre,
pelo menos, duas consciências sociais (ou dois centros de valores), que
se inserem num momento histórico e se posicionam diante de uma língua. Não
que o sentido não necessite de uma instância “lógico-abstrata” –
representada pela língua – mas a apreensão do sentido da criação estética
só pode se dar, para o Círculo bakhtiniano, por meio de uma concepção
dialógica da linguagem, o que significa dizer que a imprescindibilidade
do sinal não pode reduzir a análise a uma estrutura desvinculada do
momento verbal. Toda palavra relaciona-se com outra; responde, concorda
com outra ou discorda dela em um determinado contexto histórico-cultural
vivenciado por sujeitos sócio-individuais.
Essa
filosofia da linguagem bakhtiniana é o sustentáculo de seus estudos e
concepções teórico-literárias. Contudo, não podemos confundir e
colocar sob um mesmo olhar teórico, a concepção dialógica da linguagem
e a teoria literária de Bakhtin fundamentada no princípio do dialogismo:
Dialogismo
é uma categoria essencial da natureza da linguagem, antes de
qualquer coisa, antes mesmo que a linguagem entre no universo estético; a
linguagem concreta, o momento verbal bakhtiniano é dialógico
(...); nenhuma significação se instaura, em nenhum evento concreto, sem
a presença de, no mínimo, dois centros de valor (TEZZA, 2003, p.
232).
Além
da concepção dialógica da linguagem, devemos olhar para a relação
dialógica entre consciências – ou centro de valores – e entender a
posição exotópica que o autor ocupa diante da personagem. Dessa forma,
Esta
relação viva de consciências – ou, de modo mais preciso, de
centros de valores, em que um deles, o autor, é transcendente (no
tempo, no espaço e nos valores) ao outro, o herói – será uma das
chaves da concepção literária de Bakhtin. A noção de excedente
de um centro de valores com relação a outro é particularmente
importante na sua estilística; nela, será indispensável a categoria do
plurilingüismo, ou heteroglossia, que se define como a presença direta
ou indireta de diferentes vozes sociais, ou centros de valor, em todo
momento verbal (TEZZA, 2003, p. 208-209).
A
partir dessa concepção dialógica da linguagem – e do discurso – e
da relação autor-herói, propomos entender a constituição de Geni,
dentro da canção “Geni e o Zepelim”, como um sujeito “sem-voz”,
na medida em que as vozes opressoras do discurso religioso e capitalista
“silenciam” esse sujeito. Dessa forma, partimos da idéia de excedente
da visão estética como olhar extraposto que constrói a imagem das
personagens e do seu caráter e que, ao situar o lugar da personagem,
demarca seu próprio lugar fora dela – o que permite à voz autoral
avaliar a situação de “silêncio” do herói e criticar, sutilmente,
a postura dos discursos condenatórios. Assim, autor e herói se
constituem numa interação dialógica. O autor vivencia o “encontro”
com a personagem e, após ter retornado a seu lugar autoral, constrói
valorativamente o que vivenciou.
Para
Bakhtin, esse ativismo era desconsiderado pelos estudos literários de seu
tempo e, por isso, tais estudos não olham para esse princípio estético
basilar. O teórico russo critica os estudos que se fundamentam em uma análise
psicológica do autor – aquilo que ele quis dizer etc. – e o estudo
histórico-alegórico que procura entender a criação estética por meio
de paralelos entre cenas da obra e acontecimentos históricos que se
correspondem. De acordo com o teórico,
As
tentativas mais sérias de empreender um enfoque de princípio da
personagem partem dos métodos biográficos e sociológicos, mas esses métodos
tampouco são dotados de uma concepção estético-formal suficientemente
aprofundada do princípio estético basilar da relação entre personagem
e autor, pois o substituem por relações e fatores sociais e psicológicos
passivos e transgredientes à consciência criadora: a personagem e o
autor acabam não sendo elementos do todo artístico da obra, mas
elementos de uma unidade prosaicamente concebida da vida psicológica e
social (BAKHTIN, 2003, p. 7).
Por
outro lado, os métodos e concepções formalistas também não escapam às
críticas do Círculo. Em Marxismo e filosofia da linguagem,
Voloshinov tece uma longa crítica ao que ele denominou objetivismo
abstrato. O alvo principal dessa crítica é a “langue
saussureana”. Essa concepção era muito utilizada e explorada pelos
estudos literários empreendidos pelos formalistas russos. Para Voloshinov
(apud TEZZA, 2003), “a língua como um sistema estável de formas
normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que
só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares”.
Um
estudo de natureza formal, ainda que contenha suas contribuições teóricas
– pois, de acordo com Tezza (2003): “Bakhtin não negou aos
formalistas a sua importância na análise técnica da linguagem poética,
no levantamento de seus dados quantitativos, didaticamente úteis;” –
não dá conta da fundamentação estética. Para Bakhtin (2003), “A
tarefa basilar é, antes de tudo, definir o desígnio artístico e seu
efetivo contexto, ou seja, aquele mundo axiológico em que se coloca e se
realiza tal desígnio”. Mais que isso – e aqui o teórico russo toca
num ponto nodal para a teoria formalista – Bakhtin nega a possibilidade
de entendimento da obra estética a partir de uma “consciência lingüística”
do autor:
(...)
antes de tudo precisamos compreender a estrutura dos valores e do sentido
em que a criação transcorre e toma consciência de si mesma por via
axiológica, compreender o contexto em que se assimila o ato criador. A
consciência criadora do autor-artista nunca coincide com a consciência
lingüística, a consciência lingüística é apenas um elemento, um
material, totalmente guiado pelo desígnio puramente artístico (BAKHTIN,
2003, p. 179).
Geni
no entremeio da arena de vozes
De
início, o sujeito do discurso instaura, por meio de uma descrição de
terceira pessoa, um sujeito feminino que se relaciona sexualmente com
determinados outros. O
relacionamento se dá de maneira aleatória e sem aparente discriminação
por parte da protagonista. Esses outros
pertencem a camadas sociais de baixo prestígio que sobrevivem à
margem da sociedade. Para comprovar essas afirmações, citamos alguns
versos da canção: “De tudo que é nego torto/Do mangue do cais do
porto/Ela já foi namorada/O seu corpo é dos errantes/Dos cegos dos
retirantes/É de quem não tem mais nada(...)É a rainha dos detentos/Das
loucas, dos lazarentos/Dos moleques do internato”.
Em
uma leitura inicial, chama-nos a atenção o desprendimento da
protagonista com relação aos valores tradicionais sobre a sexualidade,
tais como a realização do ato após o casamento; ou a concepção de que
sexo deve ser feito “com amor”. Isso nos remete à idéia do ato
sexual como uma ação instintiva – quase animalesca – em que ficam
suspensas as “imposições” do campo afetivo e dos valores sociais
religiosos.
Além
dessa aparente suspensão valorativa, merece destaque o que se enuncia no
sétimo verso: “Dá-se assim desde menina”. Esse enunciado instaura na
canção um dado histórico sobre o sujeito feminino e uma duplicação da
voz autoral. Entendemos que o fato de ela se dar desde menina instaura,
por um lado, um efeito de sentido de intensificação da “ausência”
de valores no universo subjetivo; por outro lado, o enunciado em questão
materializa o efeito de que a protagonista foi condicionada, devido a
fatores sócio-econômicos – não materializados no texto, mas que podem
ser pressupostos – a uma vida de errância. Apresenta-se, de forma
re-velada, uma “justificativa” para as predisposições subjetivas no
sentido de que o comportamento da protagonista foi condicionado pelas
impossibilidades que ela enfrentou. Além disso, o enunciado remete-nos à
idéia de que o comportamento da personagem é irreversível, uma vez que
ela o tem desde a meninice. Essa irreversibilidade encontra eco no
discurso popular que se materializa, lingüística e historicamente, sob a
forma do enunciado: “Pau que nasce torto nunca se endireita”.
Contudo,
o que observamos anteriormente situa-se em um nível superficial do
discurso. Mais adiante, ainda na primeira parte da canção, apreendemos
os seguintes versos: “Ela é um poço de bondade/E é por isso que a
cidade/Vive sempre a repetir/Joga pedra na Geni”. Nesse momento da canção
a personagem é nomeada (Geni) e
uma outra personagem – que permanecerá até o final da canção –
aparece: o coro. Essa personagem representa no texto os valores condenatórios
que cerceiam a vida de Geni. A voz desse coro simboliza a voz do julgamento e, por sua vez,
a voz que diz a Geni o que ela não
é e o que ela deveria ser. Nesse sentido, essa voz estabelece um diálogo
polêmico e se constitui como voz que silencia Geni. A voz coral
representa no texto alguns valores morais sobre a sexualidade. Mais que
isso, essa voz é portadora da concepção cristã a respeito da
sexualidade, ou seja, a idéia de que o sujeito deve se relacionar com um
parceiro (a) sexual, após o casamento, legitimado pela igreja.
Essa
voz, que condena e recusa o comportamento de Geni,
integra um campo discursivo-polêmico contra outra voz, que questiona os
valores corais: a voz autoral. O questionamento se dá a partir de uma
construção paradoxal. Ao analisarmos os enunciados supracitados, notamos
que o motivo pelo qual o coro julga Geni
não é passível de julgamento, fator que instaura uma contradição em
termos. Geni não é julgada e
condenada, no dizer da voz autoral, por se prostituir, mas por ser um poço de bondade. Podemos questionar, a partir do enunciado
citado: por que alguém deve ser julgado por ser bom? A resposta a esse
paradoxo remete-nos à idéia de que o pré-julgamento realizado pelo coro
(símbolo da moral social religiosa cristã) não considera que Geni possa ter valores, ou seja, o comportamento de Geni é
visto pela cidade como imoral pelo fato de ela não se enquadrar no modelo
comportamental pregado pelo discurso religioso cristão.
Para
Bakhtin, o processo de criação se dá no momento em que o excedente de
visão estética ou olhar extraposto, após ter contemplado e vivenciado o
objeto estético de forma dialógica, retorna a si para dar forma e
acabamento ao que foi contemplado. O autor é a consciência exotópica
que, após vivenciar o acontecimento sócio-discursivo organiza e faz uma
leitura desse acontecimento e, por sua vez, ao produzir seu discurso artístico
constrói a imagem do leitor que ele deseja atingir. Renegamos pensar que
o autor é a consciência plena e absoluta que dirige todos sentidos. Mais
que isso, nossa reflexão, juntamente com Bakhtin, propõe o autor é
construídos no/pelo discurso enquanto uma das categorias fundadoras da
obra estética.
Além
das vozes do autor e do coro, temos a não-voz de Geni, que sintetiza um
modelo anti-heróico, e as vozes político-capitalistas. O anti-heroísmo
dessa personagem – seu heroísmo – reside no fato de ela representar a
miséria daqueles que não têm mais nada. Podemos entender a protagonista
da canção como o herói cotidiano que, muitas vezes, tem de enfrentar
situações além das possibilidades de escolha. A personagem nuclear da
canção constitui-se e é constituída num cronotopo
diferente daqueles que desejam apedrejá-la e, por isso, sua história e
sua cultura não compreendem o universo valorativo da moralidade defendida
pela cidade.
Na
segunda parte da canção, instaura-se outro acontecimento narrativo que
abala com as estruturas até então seqüenciadas: trata-se da chegada do
Zepelim e de seu comandante: “Um dia surgiu brilhante/Entre as nuvens,
flutuante/Um enorme zepelim/Pairou sobre os edifícios/Abriu dois mil orifícios/Com
dois mil canhões assim”. Esse acontecimento discursivo modifica a
constituição de Geni enquanto sujeito sem-voz – ainda que relativa e
temporariamente. A partir da chegada do anti-sujeito, Geni passa a ocupar
outra posição dentro da esfera taxativa em que estava enquadrada.
De
alvo de crítica, Geni passa a objeto do desejo do comandante que vê na
personagem uma formosa dama.
Geni não só representa algo de “valor” para o comandante como passa
a ter uma utilidade para aqueles que antes a condenavam. A personagem
passa a ser a possibilidade de salvação para a cidade. O comandante diz:
(...)posso evitar o drama/ Se aquela formosa dama/Esta noite me servir. A
leitura do discurso da canção ganha um novo direcionamento, qual seja a
inversão dos valores e das posições subjetivas. A prostituição
corporal de Geni passa a ser valorizada na medida em que possui uma
utilidade para a sociedade. Ao refletirmos no sentido da prostituição,
notamos que a cidade, dantes taxativa com relação à prostituição do
corpo e dos valores morais, prostitui-se moralmente e deixa de lado seus
valores por medo de virar geléia.
Geni
então, se encontra diante de um dilema: aceitar a proposta do forasteiro
ou não. A partir desse momento, a voz autoral constrói valores
concernentes à figura de Geni que, até então, não tinham sido citados:
“Mas de fato logo ela/Tão coitada e tão singela”. Os adjetivos coitada
e singela configuram um campo de
simplicidade e humildade que, de certa forma, antecipam a decisão da
personagem (resposta positiva às súplicas da cidade) e marca uma posição
emotivo-volitiva do autor diante de seu herói, qual seja, o
compadecimento de sua personagem. Não só isso, mas também marcam uma
atitude de “defesa” autoral do comportamento de seu herói e uma
tomada de posição crítica diante do moralismo da cidade. Tais adjetivos
nos permitem pensar no ponto de vista extraposto que dirige a leitura para
um efeito de antimoralismo, isto é, para uma inversão e questionamento
de valores. Isso se concretiza logo após os versos citados anteriormente:
“Acontece que a donzela/ – e isso era segredo dela/Também tinha seus
caprichos/E a deitar com homem tão nobre/Tão cheirando a brilho e a
cobre/Preferia amar com os bichos”.
Nesse
momento do texto, há um diálogo polêmico entre o posicionamento autoral
e o discurso capitalista. Geni, que até então não discriminava os
sujeitos com quem se relacionava, ao se deparar com luxo e riqueza prefere
amar com os bichos. A polêmica é reforçada com o posicionamento
da cidade diante da ética valorativa de Geni: “Ao ouvir tal heresia/A
cidade em romaria/Foi beijar a sua mão”. Ao analisarmos a relação
entre Geni e o comandante, apreendemos a idéia de que “o dinheiro não
compra tudo”. Para o comandante, não é o dinheiro da cidade que
importa, mas a relação com Geni; para Geni, não é o poder e o dinheiro
do comandante que importam, mas a comoção causada pelos pedidos:
“(...)Foram tantos os pedidos/Tão sinceros, tão sentidos/Que ela
dominou seu asco”.
Apreendemos
nesse trecho um diálogo com o discurso religioso instaurado pelos termos heresia
e romaria. Além disso, o ato de beijar a mão dialoga com o ato de
beijar a mão do superior (o papa, principalmente) conhecido
(historicamente), principalmente, no campo católico. Isso reforça a idéia
de que a canção é construída a partir de um diálogo polêmico entre
diferentes campos de discurso, quais sejam: o religioso, o político, o
econômico e o discurso autoral que, ao se “identificar” com Geni (herói),
se coloca contra todos os outros. O autor constrói, nesse aspecto, um
enfrentamento de vozes que se digladiam (voz capitalista; voz religiosa; e
a sua própria que nega ambos) e concorrem para a formação da “consciência”
do sujeito feminino. Ressaltamos que essa “consciência” instaurada em
Geni resulta do ponto de vista extraposto do autor, ou seja, há
uma “consciência” global externa que organiza e propõe leituras a
partir das configurações discursivas que cerceiam a vida subjetiva.
No
enunciado: “O prefeito de joelhos/ O bispo de olhos vermelhos/E o
banqueiro com um milhão”, observamos que há um rendimento dos campos
sociais mais importantes diante de Geni, a
rainha dos detentos. Curvam-se diante dela o campo econômico –
figurativizado pelo banqueiro – o político – figurativizado pelo
prefeito – e o religioso – figurativizado pelo bispo. Tal fato propõe
uma desestruturação sistemática e uma inversão de valores. O discurso
da canção “Geni e o zepelim”, sob essa ótica, denuncia a hipocrisia
e o utilitarismo de uma cidade – que historicamente se fortalecia
grandemente pela exploração do trabalho operário nas fábricas, nas
lavouras, etc. – que se prostitui quando se acha: “Pronta pra virar
geléia”.
Sob
essa perspectiva, o autor traz para seu discurso uma história da cultura
e reativa na memória do leitor as arbitrariedades, as desigualdades, a
hipocrisia e o falso moralismo existentes desde o domínio religioso sobre
as sociedades. O questionamento presente na canção buarqueana retoma o
discurso da inquisição e da era dos suplícios para denunciar que os
conjuntos de regras utilizados para a formação e constituição dos
sujeitos retomam os clássicos em alguns aspectos.
Nesse
sentido observamos a discursivização da hipocrisia como marca do
procedimento inter-relacional dos sujeitos da canção – fator que nos
remete, com maior vigor, ao campo religioso: “Vai com ele vai Geni/Vai
com ele vai Geni/Você pode nos salvar/Você vai nos redimir/Você dá pra
qualquer um/Bendita Geni”. Não podemos esquecer de que já no discurso
bíblico encontramos a figura dos fariseus, constantemente acusados por
Cristo de hipocrisia; a história da inquisição; o período de “caça
às bruxas”, etc.
A
oposição entre bendita e maldita também é de ordem religiosa e comporta outro fator
avaliativo-moralista. O valor atribuído à personagem vincula-se,
portanto, à sua utilidade. A configuração valorativa (Bendita/maldita)
varia de acordo com a situação vivenciada pela cidade. Isso denota a não
fixidez dos valores que a cidade tem, uma vez que eles mudam de acordo com
a situação. Sob esse aspecto, o posicionamento da cidade é de
hipocrisia: quando o objeto de avaliação é Geni, a condenação
é imediata porque “Ela dá pra qualquer um” – o que, sob a ótica
do discurso religioso, se caracteriza como ausência de valores morais;
quando o objeto de avaliação é a própria cidade, não há julgamento
– por parte desse mesmo discurso religioso – com relação à subversão
de valores (efetivada no momento em que essa cidade apóia a prostituição
de Geni para não virar geléia).
Integra-se,
nessa teia discursiva, o utilitarismo, instaurador do universo discursivo
capitalista que vê as relações subjetivas como possibilidade de lucro.
Nesse aspecto, observamos que o comportamento da cidade muda em relação
a Geni no momento em que ela se constitui em objeto do qual se pode
tirar proveito. O termo bendita – pertencente ao campo religioso
– se inter-relaciona com o discurso capitalista no sentido de que é
atribuído no momento em que o sujeito pode oferecer “lucro”.
A
voz autoral – excedente de visão estética – configura esses campos
e, a partir deles, propõe a negação dos valores religiosos e
capitalistas. A visualização desse posicionamento pode ser lida nos
trechos que representam o clamor da cidade para que Geni a salve.
Podemos, dessa forma, compreender a polemização de vozes a partir da não-voz
do sujeito feminino inscrito em “Geni e o Zepelim”. Para que possamos
realizar uma leitura a respeito da leitura realizada e proposta pelo
autor, é necessário retomar fatos histórico-culturais que formam e
constituem a memória da sociedade brasileira das décadas de 60/70. Nesse
sentido, nossa leitura deve se constituir como um diálogo inter-histórico
e intercultural.
Sob
esse aspecto, não podemos descartar que, historicamente, algumas canções
de Chico representam um gênero considerado subversivo, ou seja,
constituem-se como discursos que, muitas vezes, reconstroem a ordem social
de forma invertida. Sob esse prisma, compreendemos que o discurso de
“Geni e o Zepelim” é uma possibilidade de negação dos valores
vigentes no Brasil nas décadas de 60/70 – momento de grandes conturbações
políticas, sociais e culturais em que a música tinha seu papel de resistência
ao poder ditatorial.
Contudo,
não podemos nos esquecer de que artistas como Chico Buarque, nessa época,
eram constantemente perseguidos pelo regime de ditadura. Se pensarmos por
esse ângulo, talvez possamos compreender a ambigüidade do desfecho da
canção: ficamos entre a possibilidade de questionamento dos discursos
capitalista e religioso e a vitória desses discursos sobre o discurso
autoral na medida em que a cidade usa Geni, é salva e ainda assim:
“Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni/ Ela é feita pra apanhar/Ela é
boa de cuspir/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni”.
Conclusão
A
partir de algumas categorias conceituais do Círculo bakhtiniano,
analisamos a constituição subjetiva de Geni na canção “Geni e
o Zepelim”, de Chico Buarque. Para isso, partimos da relação entre a
voz do autor-criador e a não-voz da personagem central (herói) Geni.
Essa não-voz do herói torna-se sua principal característica e é desse
modo que sua imagem é construída. O herói buarqueano em questão, a
nosso ver, pode ser entendido como um modelo anti-heróico que, por meio
de seu silêncio, derruba – através da voz autoral – uma série
de valores morais pregados e exigidos pela cidade.
Sob
essa ótica, Geni ganha o status de herói a partir da voz
autoral. A voz do autor-criador se coloca em “defesa” do silenciamento
de sua personagem e dá voz a ela na medida em que questiona os conceitos
religiosos e capitalistas. O silêncio de Geni – marca da opressão
realizada pelo coro, pelo prefeito, pelo banqueiro, pelo comandante,
enfim, pelo sistema que a cerceia – constitui-se como marca
anti-triunfalista que derruba os valores morais e éticos dogmáticos.
A
nosso ver, há uma grande “jogada” por parte do autor-criador: se
pensarmos num diálogo com a bíblia temos, no comportamento de Cristo –
talvez o exemplo maior de enfrentamento sistêmico por meio do silêncio
–, um possível correspondente para o comportamento de Geni.
Nesse sentido, a idéia do cordeiro que vai em silêncio para o matadouro
– feitas as devidas ressalvas contextuais – pode ser relacionada ao
posicionamento emotivo-volitivo da voz autoral que ativa na memória do
leitor esse outro discurso. Assim, o efeito de redenção por meio de um
cordeiro que tem de ser sacrificado fica marcada em “Vai com ele vai
Geni/ Vai com ele vai Geni/ Você pode nos salvar/Você vai nos
redimir”.
Sob
essa ótica, a desconstrução dos valores religiosos se dá por uma via
também “religiosa”. O próprio discurso bíblico é retomado para
questionar o moralismo e as convenções que se dizem “cristãs”.
Nesse sentido, “Geni e o zepelim” é constituída por uma rede
complexa de discursos que se “espelham”. É uma arena em que o próprio
discurso acusador (religioso) é rebatido – quando pensamos na retomada
do discurso bíblico sobre Cristo –, para sua própria desconstrução.
A imagem de Geni é configurada como “(...)um poço de
bondade”, na voz autoral.
A
submissão de Geni é a condição para que se possa fazer esse
paralelo – ainda que relativo – com a figura de Cristo e, assim, mais
do que uma submissão ingênua, o herói buarqueano ganha voz através
da voz autoral que denuncia o crime que a cidade comete ao jogar pedra na Geni.
O silêncio da personagem é um silêncio que fala e é a relação com a
voz autoral que nos dá a “exata” medida desse falar.
Dessa
forma Geni, por um lado é marcada pelo silêncio, pela submissão
e pela não-voz na medida em que o sistema que a cerceia impede que ela
fale. Por outro lado, esse sujeito fala através de uma outra voz,
a voz autoral que heroifica sua personagem e derruba os valores de seus
inquisidores.
Referencias
Bibliografia
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