Em
Eros e Civilização Marcuse
caracteriza a dominação na sociedade de consumo como um processo de
apropriação da própria base instintiva dos homens, procurando apontar
alternativas históricas para fundamentar a possibilidade de uma mudança
qualitativa nas relações humanas. Antecipando a utilização de um
conceito que seria consagrado em uma obra posterior - Marcuse caracteriza
a opressão na sociedade de consumo a partir da manipulação das falsas
necessidades. Segundo o filósofo é preciso que haja uma revolução na
base instintiva dos homens, para que haja qualquer mudança social, pois
desta maneira, os homens poderão despertar para as suas verdadeiras
necessidades, aquelas que pressupõem uma qualidade de vida digna de todo
ser humano.
Em
Eros e Civilização Marcuse descreve a dialética da civilização
partindo da análise da afirmação de Freud de que “... o preço que
pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de
felicidade pela intensificação do sentimento de culpa” (FREUD,S. 1974, p.185). A crítica freudiana, ao pressupor a correlação
entre progresso e sentimento de culpa, aponta diretamente para a
infelicidade como condição estrutural da vida em sociedade. Mas ao
perceber essa dinâmica, Freud ao mesmo tempo concebeu como imutável a
oposição entre indivíduo e sociedade. Partindo desse caráter
irreconciliável, Marcuse acusa Freud de negar e defender ao mesmo tempo a
civilização: Freud a negaria por alegar a impossibilidade de superar o
estado de carência frente à natureza e a defenderia em virtude de ser a
civilização a responsável por produzir os bens culturais, uma vez que
ao homem é impossível viver sob a hegemonia do princípio de prazer.
Como são as pulsões sublimadas que dão a origem à cultura, Freud
considera eterna e irredutível a luta pela existência, assim como seria
eterno e irredutível o conflito entre princípio de prazer e princípio
de realidade.
Marcuse
analisa a crítica de Freud à sociedade dialetizando seus elementos
negativos. Quando Freud pensa ser inevitável o processo de repressão,
Marcuse argumenta que a teoria freudiana está descrevendo as condições
de fundação e reprodução da civilização, entretanto a hierarquia e a
exploração do trabalho, a maneira de divisão de recursos e a repressão
mediante a imposição dessas condições representam um excesso em relação
ao que seria necessário para a existência da civilização. Esse excesso
de repressão pulsional, que se manifesta como uma ampliação daquelas
restrições efetivamente necessárias para manter os interesses da dominação
social, é denominado por Marcuse como mais-repressão.
Dessa forma, Marcuse enfatiza o elemento crítico e dialético que
teria faltado a Freud, ou seja, a consideração acerca da distinção
entre as exigências do princípio de realidade e as exigências que
alguma forma específica de dominação nos impõe em nome de uma
determinada realidade. A quantidade adicional de repressão conduz ao
aumento descontrolado do sentimento de culpa, mergulhando a civilização
capitalista na irracionalidade.
Como
a mais-repressão é o
correspondente pulsional do trabalho alienado, Marcuse propõe uma outra
denominação para o princípio de realidade freudiano, mais adequada para
dar conta do processo repressivo que submete os homens na sociedade
industrial avançada. Assim, para Marcuse, mais do que princípio de
realidade seria adequado falar em princípio
de desempenho, ou seja, a modalidade de repressão sobre as pulsões
que adequa os homens ao aparato técnico, político e econômico de dominação.
Através da hierarquia do trabalho na sociedade industrial efetiva-se a
imposição de todos os requisitos adicionais de repressão institucional
requeridos por esse aparato.
A
principal implicação da metamorfose conceitual proposta por Marcuse, ao
empregar os conceitos de mais-repressão e princípio
de desempenho, consiste na denúncia do anacronismo da dominação na
sociedade da abundância. Nesta, tornam-se obsoletas as justificativas
históricas da dominação. Marcuse defende a tese de que, como vivemos em
um período de exploração que poderá ser superado com o avanço tecnológico,
as máquinas pouparão o tempo dos homens, liberando tempo livre para a
realização das verdadeiras faculdades humanas. A escassez, ou seja, a
condição de dependência humana frente ao poder da natureza, deixou de
ser justificativa para a mais-repressão,
uma vez que o grau de domínio dos homens sobre a natureza no mundo
contemporâneo proporciona a possibilidade concreta de realização das
necessidades humanas fundamentais. Se a miséria e a dominação material
persistem, tal existência anacrônica deixa de ser fruto dessa escassez e
passa a ser uma conseqüência da má distribuição de recursos.
Temos,
portanto, que ao gerar condições para o livre desenvolvimento das
potencialidades humanas, o avanço técnico atua contra a repressão.
Entretanto, em virtude da correlação anteriormente apontada entre
progresso e sentimento de culpa, esse vetor emancipatório é neutralizado
mediante a hegemonia da mais-repressão
e do princípio de desempenho. Marcuse
chega a essa conclusão a partir de uma análise da dialética da civilização,
constatando a correlação entre a história do sentimento de culpa e a
história da humanidade. Com o objetivo de entender melhor essa relação,
é necessário observar como o sentimento de culpa é definido por Freud:
Conhecemos
assim as duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo da
autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira
insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo
tempo em que faz isso, exige punição, uma vez que a continuação dos
desejos proibidos não pode ser escondida do superego. (FREUD, S. 1974, O
Ego e o Id, p.179)
Para
Freud, o medo da autoridade externa corresponde ao medo que os filhos
sentem do pai. A renúncia que realizam se converte em fonte de consciência
direcionada para o nascimento do homem racional. Mas quando se trata do
medo do superego, que é uma autoridade interna, apenas a renúncia não
é suficiente, pois o desejo continua vivo e não pode ser escondido do
superego. Ou seja, essa renúncia é incapaz de libertar do sentimento de
culpa que persiste, que é conseqüência do desejo proibido, tornando-se
fonte permanente de sofrimento. No livro O
ego e o id, Freud nos fala de pessoas que se comportam de uma maneira
muito peculiar durante a análise. Quando é dada alguma esperança de
cura a esses pacientes, espera-se que haja uma melhora, mas eles se
mostram descontentes e seu estado se torna pior. Chega-se à conclusão de
que esses indivíduos, além de não suportarem qualquer elogio, reagem
inversamente ao progresso do tratamento, seus sintomas se acentuam e suas
moléstias pioram, ao invés de melhorarem. Esse fenômeno foi nomeado por
Freud como “reação terapêutica negativa”.
Ao
final, percebemos que estamos tratando com o que pode ser chamado de
‘fator moral ’, um sentimento de culpa que está encontrando sua
satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento.
Devemos estar certos em encarar esta explicação desencorajadora como
final. (FREUD, S. 1996 Além do Princípio de Prazer, p.62)
O
sentimento de culpa se expressa, pois, como uma resistência do paciente
à cura, cuja superação é extremamente difícil, dada a inviabilidade
de se convencer o paciente de que é o seu sentimento de culpa que o torna
enfermo.O paciente freudiano, em sua “reação terapêutica negativa”,
pode ser analogamente comparado ao indivíduo comum na sociedade de massas
contemporânea, que tem seu sentimento de culpa exacerbado pelas exigências
que lhe são impostas pela sociedade.
Porém,
segundo Freud: “É possível descobrir os impulsos reprimidos que
realmente se acham no fundo do sentimento de culpa” (FREUD,
1996, p.64). Agora o conflito é interno entre os instintos
de vida e de morte e os últimos impulsionam a agressividade contra os
sucessores do pai, que são representados pelas autoridades da sociedade.
Estas se multiplicam, aumentando assim as proibições e acarretando o
crescimento da agressividade gerada pela frustração decorrente das
proibições. A necessidade de se defender contra essa agressividade logo
é despertada e se efetiva com o fortalecimento do sentimento de culpa:
Visto
que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os
seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado a ela, só pode
alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do
sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai, termina em relação
ao grupo. Se a civilização constitui o caminho necessário ao
desenvolvimento da família à humanidade como um todo, então em
resultado do conflito inato surgido da ambivalência da eterna luta entre
as tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado
a um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo
considere difícil de tolerar. (MARCUSE,
H. 1968, p. 183)
Percebemos,
neste trecho, que o sentimento de culpa é simultaneamente condição
fundamental para a própria existência da civilização, e algo cuja
intensificação perpetua a vida civilizada como sistema organizado de
dominação. O sistema hierárquico de trabalho, além de racionalizar a
dominação, também impede qualquer tipo de rebelião. Marcuse aponta que
todas as rebeliões serviram para substituir um grupo dominante por outro,
mas não alcançaram seu principal objetivo: a abolição da dominação e
da exploração. A facilidade com que essas revoltas foram derrotadas pela
dominação requer uma explicação:
Em
todas as revoluções parece ter havido um momento histórico em que a
luta contra a dominação poderia ter saído vitoriosa... mas o momento
passou. Um elemento autoderrota parece
estar em jogo nessa dinâmica (independente a validade das razões tais
como a prematuridade e a desigualdade das forças).
(MARCUSE,
H. 1968, p. 92)
O
elemento de autoderrota (sentimento
de culpa) é produto da racionalização do poder e da repressão.
Obrigando os indivíduos à labuta, a dominação já não está mais
defendendo privilégios específicos, mas da sociedade como um todo. A
liberdade prometida pela dominação se torna o próprio instrumento da
repressão, porém Marcuse nos lembra sempre que a não gratificação dos
desejos provoca revolta, aumentando a agressividade.
Segundo
Freud, o fortalecimento de Eros, que seria o único meio de coagir os
impulsos destrutivos e amenizar o sentimento de culpa, é um objetivo
inalcançável pela civilização, uma vez que esta se encontra fundada na
supressão dos instintos. A civilização progride de acordo com o
trabalho, que Freud considera penoso e desagradável. Para Freud a
civilização tende para a autodestruição, uma vez que tem como base o
trabalho e a sublimação, que enfraquecem as pulsões de vida, deixando
prevalecer as pulsões destrutivas. “Após a sublimação, o componente
erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que
com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação
à agressão e a destruição”.(FREUD, 1996, Além
do Princípio de Prazer, p.71)
Contra
essa tendência descrita por Freud, Marcuse levanta várias objeções.
Uma delas consiste na identificação entre o caráter histórico das pulsões
e a sua natureza, explicando que o princípio de desempenho é semelhante ao princípio de realidade
tal como pensado por Freud. Marcuse não deixa dúvida de que é o princípio
de desempenho que impõe restrições aos instintos. Mas, como ele está
ligado à sexualidade e aos instintos de morte, se as instituições do princípio
de desempenho, com o processo histórico, se tornarem obsoletas, a própria
organização repressiva das pulsões também se tornará obsoleta. A
superação das imposições do princípio
de desempenho e da mais-repressão
poderia igualmente conduzir à superação do próprio sentimento de
culpa.
Uma
demonstração de que as pulsões podem ser modificadas provém da afirmação
de Freud de que “a luta pela existência forçou as pulsões a uma mudança
em nome da sobrevivência, uma repressão em benefício da civilização”
(FREUD, 1996, Além do Princípio de
Prazer, p.50) As pulsões são, pois, determinadas historicamente, não
existe estrutura instintiva fora da estrutura histórica. Para compreender
melhor, vejamos a definição de pulsão de Freud:
Parece
então que, uma pulsão é um impulso inerente à vida orgânica, a
restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade foi
obrigada a abandonar sob pressão de forças perturbadoras externas, ou
seja, é uma elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a
expressão da inércia inerente à vida orgânica. (FREUD, S.
1996, O Ego e o Id p.47)
Como
vemos, Freud afirma que as pulsões podem ser modificadas, mas negaria
provavelmente a possibilidade de uma libertação da sociedade, uma vez
que para ele, a escassez e a dominação sempre existirão. No entanto,
com o objetivo de demonstrar que o próprio Freud fornece instrumentos que
possibilitam a fundamentação de uma sociedade menos repressiva, Marcuse
retoma a análise do conceito de pulsões primárias, em especial a pulsão
de morte. Reexaminando a teoria de Freud, Marcuse nos explica que a origem
das pulsões destrutivas se dá desde o primeiro impulso à vida orgânica.
A tendência dos organismos vivos era sempre retornar ao seu estado inorgânico.
A
tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada
se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro
instinto: o instinto de retornar ao estado inanimado. Naquela época, era
ainda coisa fácil a uma substância viva morrer; o curso de sua vida era
provavelmente breve e determinando-se sua direção pela estrutura química
da jovem vida. (FREUD, S. 1996, Além do Princípio de Prazer p.49).
Na
medida em que os seres se tornavam mais complexos, o caminho de volta à
matéria inorgânica tornou-se mais complexo. Assim, por um longo tempo, a
substância viva esteve sendo criada insistentemente e morrendo, até que
as influências externas se alteraram a ponto de “forçar a sustância
ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de
vida e a efetuar détours mais
complicados antes de atingir o seu objetivo de morte”.(FREUD, Além do Princípio de Prazer, 1996, p.49) O desenvolvimento
pulsional segundo Freud, foi determinado por fatores exógenos, tensões e
forças externas que tornaram o caminho distante e doloroso. Os instintos
de vida surgiram com função de “garantir que o organismo seguirá seu
próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de
retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio
organismo”. (FREUD, Além do Princípio
de Prazer, 1996, p.50).
O
impulso para a morte tem sua origem numa necessidade de aliviar as tensões,
a pressão que a natureza provoca nos seres. Contudo, na sociedade avançada,
os impulsos de vida são reprimidos e os de morte se transformam em agressão
e moralidade socialmente úteis. Como os derivativos da pulsão de morte
agem em fusão com as pulsões de vida, o destino da energia das pulsões
de morte permanece dependendo da libido, portanto, se houver uma
transformação qualitativa na sexualidade, as manifestações da pulsão
de morte tenderão igualmente à transformação. Segundo Marcuse, o
sentimento de culpa se transformará a ponto de permitir que Eros se
sobreponha a Thanatos. Essa mudança na estrutura mental se relaciona
diretamente com a arte, pois está nela o conteúdo que é livre do princípio
de desempenho.Vejamos o que Freud diz a respeito da arte:
Um
tipo diferente de satisfação é concedido aos participantes de uma
unidade cultural pela arte, embora, via de regra, ela permaneça inacessível
às massas que se acham empenhada num trabalho exaustivo, além de não
terem desfrutado de qualquer educação pessoal. (FREUD, 1974, p.94).
Embora
Marcuse reconheça que a arte seja pouco acessível às grandes massas,
ele defende que é esta que irá amenizar a racionalidade da sociedade
tecnológica, evitando que a essência do homem seja apenas logos.
Segundo Freud, no processo de formação mental, a única faculdade capaz
de ligar o inconsciente ao consciente, o princípio de prazer ao princípio
de realidade, por meio de sonhos e divagações, é a fantasia, porém ela
é condenada à inutilidade. Enquanto a consciência é socialmente útil
para o progresso tecnológico, a fantasia é socialmente inútil, não
apresenta função objetiva no mundo, a não ser através da arte. Como o
id tem ligação com a memória da gratificação, a fantasia preserva a
memória do passado dominado pelo princípio de prazer.
Assim,
para Marcuse, a arte, em oposição à realidade vigente, pode ser uma
forma de libertação do princípio de desempenho. Podemos observar que o valor libertador da
arte é reconhecido também por Freud.
Como
já descobrimos há muito tempo, a arte oferece satisfações
substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renuncias
culturais, e, por esse motivo ela serve, como o sacrifício que tem de
fazer em beneficio da civilização. Por outro lado, as criações da arte
elevam seus sentimentos de identificação, de que toda a unidade cultural
carece tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências
emocionais altamente valorizadas. (FREUD,
S. 1974, p.94)
Como
já dissemos, essa libertação depende da transformação qualitativa do
papel do trabalho mecanizado, que poderia desviar energia instintiva da
labuta para o livre jogo das faculdades humanas. Entretanto, quanto mais
essas condições se mostram favoráveis à emancipação, tanto maior é
a necessidade de justificar a manutenção da ordem na civilização. A própria
sociedade impõe a racionalidade da dominação, temendo a liberdade que
possa conter a inversão de toda a hierarquia e dos valores do sistema. A
produtividade atua, pois, a favor da repressão. A sociedade se defende
contra a liberdade (que configura uma ameaça de desordem), utilizando
mecanismos que cerceiam a possibilidade de liberdade, com a manipulação
da consciência dos indivíduos, por meio de atividades que desprezam a
inteligência, fim de que eles jamais reconheçam a irracionalidade desse
sistema.
A
libertação de Eros se encontra na sociedade contemporânea em
conformidade com o princípio de
desempenho, que neutraliza seus potenciais emancipadores. As pulsões
de morte devem permanecer neutralizando os potenciais emancipadores de
Eros para manter o sistema intacto. Além disso, enquanto o sistema de
controles unificados mantém a ordem que burocratiza as relações, os
meios de comunicação de massa estimulam uma liberdade sexual controlada
fortalecendo a alienação. Uma vez que o indivíduo é educado
principalmente pelos meios de comunicação e por outras agências de
socialização que não família, esse fortalecimento da alienação
estende-se ao processo educativo. Todos estão submetidos às ordens do
sistema, até mesmo o pai de família, o qual perde sua autoridade perante
o filho. “Como a dominação se congela num sistema de administração
objetiva, as imagens que orientam o desenvolvimento do superego tornam-se
despersonalizadas”.(MARCUSE, H. 1968,
p.97).
Não
há, na sociedade afluente, um indivíduo que seja o dominador e sim um
conjunto de instituições, e, no interior destas, pessoas com diversos
cargos administrativos, umas mandando, outras obedecendo, mas todas
submetidas a um único sistema no qual a individualidade se dissolveu.
Onde se situa o sentimento de culpa em uma sociedade sem pai? Para quem se
direcionaria a revolta?
Apesar
de não haver “espaço mental”, como nota o próprio Marcuse, para o
desenvolvimento do homem contra seu sentimento de culpa, em virtude da
manipulação da consciência, ainda é preciso considerar que o
sentimento de culpa está presente, mesmo que se manifeste coletivamente.
A agressividade se manifesta intensamente sob a forma de guerras e
mediante a tecnologia que com seus inventos ameaça a aniquilação de
populações inteiras. Enquanto isso, a sociedade progride, as pessoas
continuam trabalhando e satisfazendo suas necessidades de consumo.
A
teoria da alienação demonstrou o fato de que o homem não se realiza em
seu trabalho, que a sua vida se tornou um instrumento de trabalho, e os
respectivos produtos assumiram uma forma e um poder independente dele como
indivíduo. Mas a emancipação desse estado parece requerer não que impeça
a alienação, mas que esta se consuma; não a reativação da
personalidade reprimida e produtiva, mas a sua abolição. (MARCUSE,
H.1968, p.103)
Marcuse
analisa a alienação dialeticamente: não é a abolição da alienação
que irá emancipar os homens, mas a sua consumação. A sociedade está em
movimento constante e contraditório. A superação do trabalho alienado
será acompanhada da abolição da personalidade reprimida e produtiva,
pelo conseqüente fortalecimento de Eros.
Entretanto,
há ainda uma barreira contra a realização do fortalecimento de Eros: o
instinto de morte. “O fato brutal da morte nega redondamente a realidade
de uma existência não-repressiva. Pois a morte é a negatividade final
do tempo, mas a alegria quer eternidade”.(MARCUSE, H,
1968, p.199).
Os
homens aprendem, antes mesmo que a sociedade os obrigue, a saber, que todo
o prazer real da vida está sujeito à efemeridade. Isso configura uma
fonte de resignação incessante. É o tempo que, aliado à sociedade,
mantém a lei e a ordem. Estas, por conseguinte, servem de apoio para as
instituições que expulsam a busca da liberdade para o domínio da
utopia. A morte é inaceitável, agonizante e dolorosa. Aqueles que morrem
precocemente, sofridamente, são uma grande acusação da civilização. A
morte deles perpetua a culpa da humanidade. Para amenizar a má consciência
dessa culpa, toda a moralidade e todos os estabelecimentos dessa sociedade
repressiva são instrumentos imprescindíveis.
Uma
vez mais, a profunda ligação entre o instinto de morte e o sentimento de
culpa torna-se evidente. O silencioso “acordo profissional” com o fato
da morte e da doença é, talvez, uma das mais profusamente divulgadas
expressões do instinto de morte – ou melhor, de sua utilidade social. (MARCUSE,
H. 1968, p.203)
Como
“negatividade final do tempo”, a morte é vista na sociedade também
como negatividade final do prazer, em convergência com Eros. Entretanto,
se pensarmos no papel do instinto de morte, poderemos concluir que sua
finalidade está em conformidade com Eros.
O
instinto de morte opera segundo o princípio de Nirvana: tende para aquele
estado de “gratificação constante” em que não se sente tensão
alguma – um estado sem carências. Essa tendência do instinto implica
que as suas manifestações destrutivas seriam reduzidas ao mínimo, à
medida que se aproximassem de tal estado. (MARCUSE,
H.1968, p.202).
O
objetivo do instinto, como podemos notar, não é o final da vida, mas das
tensões, da dor. O conflito entre Eros e Thanatos se reduz na medida em
que eles possuem o mesmo objetivo, a saber, a gratificação. Em sua
abordagem da dialética da civilização, Marcuse adota o dualismo
pulsional de Freud para poder argumentar que o futuro da humanidade
depende da aptidão do homem para inverter a tendência basicamente
repressiva da sociedade moderna. Como já vimos, essa tendência pode ser
invertida na medida em que Eros se fortificar e impedir o acúmulo de
culpa.
Negar
a racionalidade desse sistema requer a compreensão das contradições da
sociedade e, sobretudo, autonomia. Nesse aspecto, a obra de Marcuse
comporta ricas contribuições. Assim como o paciente descrito por Freud
portador de um sentimento de culpa que impede sua recuperação, o
integrante da civilização deve, ao menos, entender as causas da doença
que assola a sociedade, compreendendo seus antagonismos e os assimilando
em um processo reflexivo.
Concluímos
que, o pensamento de Marcuse possui uma preocupação central que o remete
a tradição da história da filosofia, a saber, a preocupação com a
“felicidade” humana. Entretanto, o conceito de felicidade é
redefinido, levando em consideração o novo contexto histórico surgido
com o desenvolvimento capitalista. É necessário pensar a felicidade também
tendo em vista a existência da possibilidade real de libertação da luta
pela existência, proporcionada pelo nível elevado de desenvolvimento
atingido pelas forças produtivas
Como
vimos, para Marcuse, a questão da felicidade só pode ser posta no atual
estágio de desenvolvimento técnico atingido pela sociedade. Por isso ele
retoma a teoria freudiana e questiona a relação estabelecida por Freud
entre infelicidade e civilização. Na tentativa de resolver a oposição
estabelecida por Freud entre felicidade e civilização, Marcuse apresenta
várias propostas que rompem com as premissas repressivas que atuam na
sociedade. Mostramos, neste artigo, diversas dessas propostas guiando-nos
pelas conseqüências do conceito de sentimento de culpa na sociedade avançada.
Através deste conceito procuramos compreender a
importância da teoria freudiana: ela fornece elementos para romper com a
aceitação desta forma alienada de sociedade, ao colocar em questão seus
fundamentos.
Freud
se refere a uma concepção de indivíduo e de civilização que permite
sua utilização enquanto um instrumento de análise e de crítica da sociedade. Seu aparente
pessimismo reflete uma postura essencialmente crítica para com o processo
civilizatório. Partindo da perspectiva individual, analisando a culpa,
Freud chega à conclusão de que esse sofrimento é causado por uma
civilização que nega, pela sua própria estrutura e organização, a
satisfação e a felicidade aos indivíduos. O indivíduo em Freud é
reprimido, infeliz e não possui autonomia.
Para
Marcuse, somente quando todos os indivíduos tiverem acesso às riquezas
produzidas pela “sociedade da abundância”, não apenas um pequeno
grupo de pessoas, e, sobretudo, quando a produção desta riqueza não
estiver mais vinculada ao aumento da repressão, conseqüentemente da
culpa. Somente sob essas condições teremos a felicidade.