por MARIA ÉRBIA CÁSSIA CARNAÚBA

Graduanda em Filosofia - Unesp, campus de Marília

 

 

 

versão para imprimir [arquivo PDF]
Clique e cadastre-se para receber os informes de atualização da Revista Urutágua

 

Marcuse e a psicanálise: 

uma análise do sentimento de culpa

Maria Érbia Cássia Carnaúba

 

Resumo: O objetivo deste artigo é mostrar a apreensão da teoria freudiana por Herbert Marcuse na obra Eros e Civilização. Mais especificamente tomando como ponto de partida a sua análise do sentimento de culpa no capítulo Dialética da Civilização. Marcuse resgata a teoria freudiana para argumentar que o futuro da humanidade pode ser mudado e que é possível uma sociedade menos repressiva, desde que sejam superados alguns obstáculos, dentre eles destacando-se o sentimento de culpa da humanidade. Pretendemos analisar o papel do sentimento de culpa na sociedade e sua importância como elemento antagônico frente à hipótese de Marcuse de uma sociedade menos repressiva.

Palavras-Chave: culpa, civilização, Freud, Marcuse

Abstract: The objective of this article is to show the apprehension of the freudiana theory for Herbert Marcuse in the Eros and Civilization.  More specifically taking as starting point its analysis of the feeling of guilt in the chapter Dialectic of the Civilization.  Marcuse rescues the freudiana theory to argue that the future of the humanity can be changed and that a less repressive society, since that some obstacles are surpassed, amongst them is possible being distinguished the feeling of guilt of the humanity.  We intend to analyze the paper of the feeling of guilt in the society and its importance as antagonistic element front to the hypothesis of Marcuse of a less repressive society.

Keywords: guilt, civilization, Freud, Marcuse

 

Eros e Civilização, de Herbert MarcuseEm Eros e Civilização Marcuse caracteriza a dominação na sociedade de consumo como um processo de apropriação da própria base instintiva dos homens, procurando apontar alternativas históricas para fundamentar a possibilidade de uma mudança qualitativa nas relações humanas. Antecipando a utilização de um conceito que seria consagrado em uma obra posterior - Marcuse caracteriza a opressão na sociedade de consumo a partir da manipulação das falsas necessidades. Segundo o filósofo é preciso que haja uma revolução na base instintiva dos homens, para que haja qualquer mudança social, pois desta maneira, os homens poderão despertar para as suas verdadeiras necessidades, aquelas que pressupõem uma qualidade de vida digna de todo ser humano.

Herbert Marcuse (arquivo)  fonte: www.ub.uni-frankfurt.de/archive/marcusevita.html )Em Eros e Civilização Marcuse descreve a dialética da civilização partindo da análise da afirmação de Freud de que “... o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa” (FREUD,S. 1974, p.185). A crítica freudiana, ao pressupor a correlação entre progresso e sentimento de culpa, aponta diretamente para a infelicidade como condição estrutural da vida em sociedade. Mas ao perceber essa dinâmica, Freud ao mesmo tempo concebeu como imutável a oposição entre indivíduo e sociedade. Partindo desse caráter irreconciliável, Marcuse acusa Freud de negar e defender ao mesmo tempo a civilização: Freud a negaria por alegar a impossibilidade de superar o estado de carência frente à natureza e a defenderia em virtude de ser a civilização a responsável por produzir os bens culturais, uma vez que ao homem é impossível viver sob a hegemonia do princípio de prazer. Como são as pulsões sublimadas que dão a origem à cultura, Freud considera eterna e irredutível a luta pela existência, assim como seria eterno e irredutível o conflito entre princípio de prazer e princípio de realidade.

Marcuse analisa a crítica de Freud à sociedade dialetizando seus elementos negativos. Quando Freud pensa ser inevitável o processo de repressão, Marcuse argumenta que a teoria freudiana está descrevendo as condições de fundação e reprodução da civilização, entretanto a hierarquia e a exploração do trabalho, a maneira de divisão de recursos e a repressão mediante a imposição dessas condições representam um excesso em relação ao que seria necessário para a existência da civilização. Esse excesso de repressão pulsional, que se manifesta como uma ampliação daquelas restrições efetivamente necessárias para manter os interesses da dominação social, é denominado por Marcuse como mais-repressão. Dessa forma, Marcuse enfatiza o elemento crítico e dialético que teria faltado a Freud, ou seja, a consideração acerca da distinção entre as exigências do princípio de realidade e as exigências que alguma forma específica de dominação nos impõe em nome de uma determinada realidade. A quantidade adicional de repressão conduz ao aumento descontrolado do sentimento de culpa, mergulhando a civilização capitalista na irracionalidade.

Como a mais-repressão é o correspondente pulsional do trabalho alienado, Marcuse propõe uma outra denominação para o princípio de realidade freudiano, mais adequada para dar conta do processo repressivo que submete os homens na sociedade industrial avançada. Assim, para Marcuse, mais do que princípio de realidade seria adequado falar em princípio de desempenho, ou seja, a modalidade de repressão sobre as pulsões que adequa os homens ao aparato técnico, político e econômico de dominação. Através da hierarquia do trabalho na sociedade industrial efetiva-se a imposição de todos os requisitos adicionais de repressão institucional requeridos por esse aparato.

A principal implicação da metamorfose conceitual proposta por Marcuse, ao empregar os conceitos de mais-repressão e princípio de desempenho, consiste na denúncia do anacronismo da dominação na sociedade da abundância. Nesta, tornam-se obsoletas as justificativas históricas da dominação. Marcuse defende a tese de que, como vivemos em um período de exploração que poderá ser superado com o avanço tecnológico, as máquinas pouparão o tempo dos homens, liberando tempo livre para a realização das verdadeiras faculdades humanas. A escassez, ou seja, a condição de dependência humana frente ao poder da natureza, deixou de ser justificativa para a mais-repressão, uma vez que o grau de domínio dos homens sobre a natureza no mundo contemporâneo proporciona a possibilidade concreta de realização das necessidades humanas fundamentais. Se a miséria e a dominação material persistem, tal existência anacrônica deixa de ser fruto dessa escassez e passa a ser uma conseqüência da má distribuição de recursos.

Temos, portanto, que ao gerar condições para o livre desenvolvimento das potencialidades humanas, o avanço técnico atua contra a repressão. Entretanto, em virtude da correlação anteriormente apontada entre progresso e sentimento de culpa, esse vetor emancipatório é neutralizado mediante a hegemonia da mais-repressão e do princípio de desempenho. Marcuse chega a essa conclusão a partir de uma análise da dialética da civilização, constatando a correlação entre a história do sentimento de culpa e a história da humanidade. Com o objetivo de entender melhor essa relação, é necessário observar como o sentimento de culpa é definido por Freud:

Conhecemos assim as duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo da autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso, exige punição, uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. (FREUD, S. 1974, O Ego e o Id, p.179)

Para Freud, o medo da autoridade externa corresponde ao medo que os filhos sentem do pai. A renúncia que realizam se converte em fonte de consciência direcionada para o nascimento do homem racional. Mas quando se trata do medo do superego, que é uma autoridade interna, apenas a renúncia não é suficiente, pois o desejo continua vivo e não pode ser escondido do superego. Ou seja, essa renúncia é incapaz de libertar do sentimento de culpa que persiste, que é conseqüência do desejo proibido, tornando-se fonte permanente de sofrimento. No livro O ego e o id, Freud nos fala de pessoas que se comportam de uma maneira muito peculiar durante a análise. Quando é dada alguma esperança de cura a esses pacientes, espera-se que haja uma melhora, mas eles se mostram descontentes e seu estado se torna pior. Chega-se à conclusão de que esses indivíduos, além de não suportarem qualquer elogio, reagem inversamente ao progresso do tratamento, seus sintomas se acentuam e suas moléstias pioram, ao invés de melhorarem. Esse fenômeno foi nomeado por Freud como “reação terapêutica negativa”.

Ao final, percebemos que estamos tratando com o que pode ser chamado de ‘fator moral ’, um sentimento de culpa que está encontrando sua satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento. Devemos estar certos em encarar esta explicação desencorajadora como final. (FREUD, S. 1996 Além do Princípio de Prazer, p.62)

O sentimento de culpa se expressa, pois, como uma resistência do paciente à cura, cuja superação é extremamente difícil, dada a inviabilidade de se convencer o paciente de que é o seu sentimento de culpa que o torna enfermo.O paciente freudiano, em sua “reação terapêutica negativa”, pode ser analogamente comparado ao indivíduo comum na sociedade de massas contemporânea, que tem seu sentimento de culpa exacerbado pelas exigências que lhe são impostas pela sociedade.

Porém, segundo Freud: “É possível descobrir os impulsos reprimidos que realmente se acham no fundo do sentimento de culpa” (FREUD, 1996, p.64). Agora o conflito é interno entre os instintos1 de vida e de morte e os últimos impulsionam a agressividade contra os sucessores do pai, que são representados pelas autoridades da sociedade. Estas se multiplicam, aumentando assim as proibições e acarretando o crescimento da agressividade gerada pela frustração decorrente das proibições. A necessidade de se defender contra essa agressividade logo é despertada e se efetiva com o fortalecimento do sentimento de culpa:

Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado a ela, só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai, termina em relação ao grupo. Se a civilização constitui o caminho necessário ao desenvolvimento da família à humanidade como um todo, então em resultado do conflito inato surgido da ambivalência da eterna luta entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado a um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere difícil de tolerar. (MARCUSE, H. 1968, p. 183)

Percebemos, neste trecho, que o sentimento de culpa é simultaneamente condição fundamental para a própria existência da civilização, e algo cuja intensificação perpetua a vida civilizada como sistema organizado de dominação. O sistema hierárquico de trabalho, além de racionalizar a dominação, também impede qualquer tipo de rebelião. Marcuse aponta que todas as rebeliões serviram para substituir um grupo dominante por outro, mas não alcançaram seu principal objetivo: a abolição da dominação e da exploração. A facilidade com que essas revoltas foram derrotadas pela dominação requer uma explicação:

Em todas as revoluções parece ter havido um momento histórico em que a luta contra a dominação poderia ter saído vitoriosa... mas o momento passou. Um elemento autoderrota parece estar em jogo nessa dinâmica (independente a validade das razões tais como a prematuridade e a desigualdade das forças).  (MARCUSE, H. 1968, p. 92)

O elemento de autoderrota (sentimento de culpa) é produto da racionalização do poder e da repressão. Obrigando os indivíduos à labuta, a dominação já não está mais defendendo privilégios específicos, mas da sociedade como um todo. A liberdade prometida pela dominação se torna o próprio instrumento da repressão, porém Marcuse nos lembra sempre que a não gratificação dos desejos provoca revolta, aumentando a agressividade.

Segundo Freud, o fortalecimento de Eros, que seria o único meio de coagir os impulsos destrutivos e amenizar o sentimento de culpa, é um objetivo inalcançável pela civilização, uma vez que esta se encontra fundada na supressão dos instintos. A civilização progride de acordo com o trabalho, que Freud considera penoso e desagradável. Para Freud a civilização tende para a autodestruição, uma vez que tem como base o trabalho e a sublimação, que enfraquecem as pulsões de vida, deixando prevalecer as pulsões destrutivas. “Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e a destruição”.(FREUD, 1996, Além do Princípio de Prazer, p.71)

Contra essa tendência descrita por Freud, Marcuse levanta várias objeções. Uma delas consiste na identificação entre o caráter histórico das pulsões e a sua natureza, explicando que o princípio de desempenho é semelhante ao princípio de realidade tal como pensado por Freud. Marcuse não deixa dúvida de que é o princípio de desempenho que impõe restrições aos instintos. Mas, como ele está ligado à sexualidade e aos instintos de morte, se as instituições do princípio de desempenho, com o processo histórico, se tornarem obsoletas, a própria organização repressiva das pulsões também se tornará obsoleta. A superação das imposições do princípio de desempenho e da mais-repressão poderia igualmente conduzir à superação do próprio sentimento de culpa.

Uma demonstração de que as pulsões podem ser modificadas provém da afirmação de Freud de que “a luta pela existência forçou as pulsões a uma mudança em nome da sobrevivência, uma repressão em benefício da civilização” (FREUD, 1996, Além do Princípio de Prazer, p.50) As pulsões são, pois, determinadas historicamente, não existe estrutura instintiva fora da estrutura histórica. Para compreender melhor, vejamos a definição de pulsão de Freud:

Parece então que, uma pulsão é um impulso inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade foi obrigada a abandonar sob pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica. (FREUD, S. 1996, O Ego e o Id p.47)

Como vemos, Freud afirma que as pulsões podem ser modificadas, mas negaria provavelmente a possibilidade de uma libertação da sociedade, uma vez que para ele, a escassez e a dominação sempre existirão. No entanto, com o objetivo de demonstrar que o próprio Freud fornece instrumentos que possibilitam a fundamentação de uma sociedade menos repressiva, Marcuse retoma a análise do conceito de pulsões primárias, em especial a pulsão de morte. Reexaminando a teoria de Freud, Marcuse nos explica que a origem das pulsões destrutivas se dá desde o primeiro impulso à vida orgânica. A tendência dos organismos vivos era sempre retornar ao seu estado inorgânico.

A tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro instinto: o instinto de retornar ao estado inanimado. Naquela época, era ainda coisa fácil a uma substância viva morrer; o curso de sua vida era provavelmente breve e determinando-se sua direção pela estrutura química da jovem vida. (FREUD, S. 1996, Além do Princípio de Prazer p.49).

Na medida em que os seres se tornavam mais complexos, o caminho de volta à matéria inorgânica tornou-se mais complexo. Assim, por um longo tempo, a substância viva esteve sendo criada insistentemente e morrendo, até que as influências externas se alteraram a ponto de “forçar a sustância ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de vida e a efetuar détours mais complicados antes de atingir o seu objetivo de morte”.(FREUD, Além do Princípio de Prazer, 1996, p.49) O desenvolvimento pulsional segundo Freud, foi determinado por fatores exógenos, tensões e forças externas que tornaram o caminho distante e doloroso. Os instintos de vida surgiram com função de “garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo”. (FREUD, Além do Princípio de Prazer, 1996, p.50).

O impulso para a morte tem sua origem numa necessidade de aliviar as tensões, a pressão que a natureza provoca nos seres. Contudo, na sociedade avançada, os impulsos de vida são reprimidos e os de morte se transformam em agressão e moralidade socialmente úteis. Como os derivativos da pulsão de morte agem em fusão com as pulsões de vida, o destino da energia das pulsões de morte permanece dependendo da libido, portanto, se houver uma transformação qualitativa na sexualidade, as manifestações da pulsão de morte tenderão igualmente à transformação. Segundo Marcuse, o sentimento de culpa se transformará a ponto de permitir que Eros se sobreponha a Thanatos. Essa mudança na estrutura mental se relaciona diretamente com a arte, pois está nela o conteúdo que é livre do princípio de desempenho.Vejamos o que Freud diz a respeito da arte:

Um tipo diferente de satisfação é concedido aos participantes de uma unidade cultural pela arte, embora, via de regra, ela permaneça inacessível às massas que se acham empenhada num trabalho exaustivo, além de não terem desfrutado de qualquer educação pessoal. (FREUD, 1974, p.94).

Embora Marcuse reconheça que a arte seja pouco acessível às grandes massas, ele defende que é esta que irá amenizar a racionalidade da sociedade tecnológica, evitando que a essência do homem seja apenas logos. Segundo Freud, no processo de formação mental, a única faculdade capaz de ligar o inconsciente ao consciente, o princípio de prazer ao princípio de realidade, por meio de sonhos e divagações, é a fantasia, porém ela é condenada à inutilidade. Enquanto a consciência é socialmente útil para o progresso tecnológico, a fantasia é socialmente inútil, não apresenta função objetiva no mundo, a não ser através da arte. Como o id tem ligação com a memória da gratificação, a fantasia preserva a memória do passado dominado pelo princípio de prazer.

Assim, para Marcuse, a arte, em oposição à realidade vigente, pode ser uma forma de libertação do princípio de desempenho. Podemos observar que o valor libertador da arte é reconhecido também por Freud.

Como já descobrimos há muito tempo, a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renuncias culturais, e, por esse motivo ela serve, como o sacrifício que tem de fazer em beneficio da civilização. Por outro lado, as criações da arte elevam seus sentimentos de identificação, de que toda a unidade cultural carece tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas. (FREUD, S. 1974, p.94)

Como já dissemos, essa libertação depende da transformação qualitativa do papel do trabalho mecanizado, que poderia desviar energia instintiva da labuta para o livre jogo das faculdades humanas. Entretanto, quanto mais essas condições se mostram favoráveis à emancipação, tanto maior é a necessidade de justificar a manutenção da ordem na civilização. A própria sociedade impõe a racionalidade da dominação, temendo a liberdade que possa conter a inversão de toda a hierarquia e dos valores do sistema. A produtividade atua, pois, a favor da repressão. A sociedade se defende contra a liberdade (que configura uma ameaça de desordem), utilizando mecanismos que cerceiam a possibilidade de liberdade, com a manipulação da consciência dos indivíduos, por meio de atividades que desprezam a inteligência, fim de que eles jamais reconheçam a irracionalidade desse sistema.

A libertação de Eros se encontra na sociedade contemporânea em conformidade com o princípio de desempenho, que neutraliza seus potenciais emancipadores. As pulsões de morte devem permanecer neutralizando os potenciais emancipadores de Eros para manter o sistema intacto. Além disso, enquanto o sistema de controles unificados mantém a ordem que burocratiza as relações, os meios de comunicação de massa estimulam uma liberdade sexual controlada fortalecendo a alienação. Uma vez que o indivíduo é educado principalmente pelos meios de comunicação e por outras agências de socialização que não família, esse fortalecimento da alienação estende-se ao processo educativo. Todos estão submetidos às ordens do sistema, até mesmo o pai de família, o qual perde sua autoridade perante o filho. “Como a dominação se congela num sistema de administração objetiva, as imagens que orientam o desenvolvimento do superego tornam-se despersonalizadas”.(MARCUSE, H. 1968, p.97).

Não há, na sociedade afluente, um indivíduo que seja o dominador e sim um conjunto de instituições, e, no interior destas, pessoas com diversos cargos administrativos, umas mandando, outras obedecendo, mas todas submetidas a um único sistema no qual a individualidade se dissolveu. Onde se situa o sentimento de culpa em uma sociedade sem pai? Para quem se direcionaria a revolta?

Apesar de não haver “espaço mental”, como nota o próprio Marcuse, para o desenvolvimento do homem contra seu sentimento de culpa, em virtude da manipulação da consciência, ainda é preciso considerar que o sentimento de culpa está presente, mesmo que se manifeste coletivamente. A agressividade se manifesta intensamente sob a forma de guerras e mediante a tecnologia que com seus inventos ameaça a aniquilação de populações inteiras. Enquanto isso, a sociedade progride, as pessoas continuam trabalhando e satisfazendo suas necessidades de consumo.

A teoria da alienação demonstrou o fato de que o homem não se realiza em seu trabalho, que a sua vida se tornou um instrumento de trabalho, e os respectivos produtos assumiram uma forma e um poder independente dele como indivíduo. Mas a emancipação desse estado parece requerer não que impeça a alienação, mas que esta se consuma; não a reativação da personalidade reprimida e produtiva, mas a sua abolição. (MARCUSE, H.1968, p.103)

Marcuse analisa a alienação dialeticamente: não é a abolição da alienação que irá emancipar os homens, mas a sua consumação. A sociedade está em movimento constante e contraditório. A superação do trabalho alienado será acompanhada da abolição da personalidade reprimida e produtiva, pelo conseqüente fortalecimento de Eros.

Entretanto, há ainda uma barreira contra a realização do fortalecimento de Eros: o instinto de morte. “O fato brutal da morte nega redondamente a realidade de uma existência não-repressiva. Pois a morte é a negatividade final do tempo, mas a alegria quer eternidade”.(MARCUSE, H, 1968, p.199).

Os homens aprendem, antes mesmo que a sociedade os obrigue, a saber, que todo o prazer real da vida está sujeito à efemeridade. Isso configura uma fonte de resignação incessante. É o tempo que, aliado à sociedade, mantém a lei e a ordem. Estas, por conseguinte, servem de apoio para as instituições que expulsam a busca da liberdade para o domínio da utopia. A morte é inaceitável, agonizante e dolorosa. Aqueles que morrem precocemente, sofridamente, são uma grande acusação da civilização. A morte deles perpetua a culpa da humanidade. Para amenizar a má consciência dessa culpa, toda a moralidade e todos os estabelecimentos dessa sociedade repressiva são instrumentos imprescindíveis.

Uma vez mais, a profunda ligação entre o instinto de morte e o sentimento de culpa torna-se evidente. O silencioso “acordo profissional” com o fato da morte e da doença é, talvez, uma das mais profusamente divulgadas expressões do instinto de morte – ou melhor, de sua utilidade social. (MARCUSE, H. 1968, p.203)

Como “negatividade final do tempo”, a morte é vista na sociedade também como negatividade final do prazer, em convergência com Eros. Entretanto, se pensarmos no papel do instinto de morte, poderemos concluir que sua finalidade está em conformidade com Eros.

O instinto de morte opera segundo o princípio de Nirvana: tende para aquele estado de “gratificação constante” em que não se sente tensão alguma – um estado sem carências. Essa tendência do instinto implica que as suas manifestações destrutivas seriam reduzidas ao mínimo, à medida que se aproximassem de tal estado. (MARCUSE, H.1968, p.202).

O objetivo do instinto, como podemos notar, não é o final da vida, mas das tensões, da dor. O conflito entre Eros e Thanatos se reduz na medida em que eles possuem o mesmo objetivo, a saber, a gratificação. Em sua abordagem da dialética da civilização, Marcuse adota o dualismo pulsional de Freud para poder argumentar que o futuro da humanidade depende da aptidão do homem para inverter a tendência basicamente repressiva da sociedade moderna. Como já vimos, essa tendência pode ser invertida na medida em que Eros se fortificar e impedir o acúmulo de culpa.

Negar a racionalidade desse sistema requer a compreensão das contradições da sociedade e, sobretudo, autonomia. Nesse aspecto, a obra de Marcuse comporta ricas contribuições. Assim como o paciente descrito por Freud portador de um sentimento de culpa que impede sua recuperação, o integrante da civilização deve, ao menos, entender as causas da doença que assola a sociedade, compreendendo seus antagonismos e os assimilando em um processo reflexivo.

Concluímos que, o pensamento de Marcuse possui uma preocupação central que o remete a tradição da história da filosofia, a saber, a preocupação com a “felicidade” humana. Entretanto, o conceito de felicidade é redefinido, levando em consideração o novo contexto histórico surgido com o desenvolvimento capitalista. É necessário pensar a felicidade também tendo em vista a existência da possibilidade real de libertação da luta pela existência, proporcionada pelo nível elevado de desenvolvimento atingido pelas forças produtivas

Como vimos, para Marcuse, a questão da felicidade só pode ser posta no atual estágio de desenvolvimento técnico atingido pela sociedade. Por isso ele retoma a teoria freudiana e questiona a relação estabelecida por Freud entre infelicidade e civilização. Na tentativa de resolver a oposição estabelecida por Freud entre felicidade e civilização, Marcuse apresenta várias propostas que rompem com as premissas repressivas que atuam na sociedade. Mostramos, neste artigo, diversas dessas propostas guiando-nos pelas conseqüências do conceito de sentimento de culpa na sociedade avançada. Através deste conceito procuramos compreender a importância da teoria freudiana: ela fornece elementos para romper com a aceitação desta forma alienada de sociedade, ao colocar em questão seus fundamentos.

Freud se refere a uma concepção de indivíduo e de civilização que permite sua utilização enquanto um instrumento de análise e de crítica da sociedade. Seu aparente pessimismo reflete uma postura essencialmente crítica para com o processo civilizatório. Partindo da perspectiva individual, analisando a culpa, Freud chega à conclusão de que esse sofrimento é causado por uma civilização que nega, pela sua própria estrutura e organização, a satisfação e a felicidade aos indivíduos. O indivíduo em Freud é reprimido, infeliz e não possui autonomia.

Para Marcuse, somente quando todos os indivíduos tiverem acesso às riquezas produzidas pela “sociedade da abundância”, não apenas um pequeno grupo de pessoas, e, sobretudo, quando a produção desta riqueza não estiver mais vinculada ao aumento da repressão, conseqüentemente da culpa.  Somente sob essas condições teremos a felicidade.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Freud, Trad. Jaime Salomão, Rio de Janeiro: Editora Standart brasileira, Imago, 1996.

___________ Além do Princípio de Prazer, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

___________ O Ego e o Id. Tradução Jaime Salomão, Rio de Janeiro: Imago 1996.

___________ Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Tradução Jaime Salomão, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

___________ Os Pensadores. Tradução Jaime Salomão, São Paulo: Editora Abril Cultural, 1974.

___________ O Mal Estar na Civilização. Tradução Jaime Salomão. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1974.

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.

MARCUSE, H. Eros e Civilização. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

___________ Ideologia da Sociedade Industrial. Tradução Giasone Rebuá, Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1967.

NICHOLSEN, W. S. “The Accumulated Guilt Of Humankind”: On The Aesthetic in a Damaged World. To be presented of Herbert Marcuse’s Eros and Civilization, May 17 – 20, 2005, Belo Horizonte, Brazil2.

______________

1 Segundo Laplanche e Pontalis no livro Vocabulário de Psicanálise, Freud utiliza o termo “instint” para se referir a um comportamento animal fixado por hereditariedade. Mas Marcuse utiliza instinto com o mesmo significado de pulsão de Freud, qual seja, um impulso constituído por uma “fonte”, por uma “meta” e um objetivo não obtido. Neste texto, quando nos referirmos a Freud, utilizaremos o termo pulsão e quando nos referimos ao texto de Marcuse, nos manteremos fiéis à obra, usando o termo instinto, mas com o significado de pulsões.

2 Este texto não foi publicado, mas foi apresentado no Congresso Internacional Dimensão Estética - homenagem aos 50 anos de Eros e Civilização, Belo Horizonte, 2005.

 

©Copyright 2001/2006 - Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar

Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá/PR - Brasil - Email: rev-urutagua@uem.br 

Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 22 agosto, 2006.