por GISANE SOUZA SANTANA

Pesquisadora do grupo de pesquisa Representações Identitárias Híbridas da Nação,  coordenado pela Professora Drª Sandra Maria Pereira do Sacramento

 

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Em Busca da Identidade Nacional em  Iracema, Memórias de um  Sargento de Milícias, O Cortiço e Macunaíma

 

Gisane Souza Santana

 

  [...] Se o povo de determinada nação é a articulação do movimento ambivalente[...], a própria nação deixa de ser  signo de modernidade sob o qual as diferenças culturais são homogeneizadas, em uma visão horizontal da sociedade. A nação, ao contrário, revela, em sua representação ambivalente e vacilante, a etnografia de sua própria  historicidade e abre a possibilidade para outras narrações de seu povo e suas diferenças – chamado de “dissemi-nação”  (BHABHA)

 

 

Resumo

A busca de uma literatura  que configurasse ou traduzisse a identidade nacional foi durante a trajetória da produção literária brasileira, algo almejado por diversos escritores. Dentre os quais destacamos: José de Alencar,  Manuel Antônio de Almeida, Aluízio de Azevedo e Mario de Andrade. Autores respectivamente de  Iracema, Memórias de um sargento de milícias, O Cortiço e Macunaíma. Portanto, objetiva-se aqui observar o conceito de brasilidade, focalizando alguns dos personagens dessas obras.

Abstract

The quest for a literature that could configured or translate the national identity was, during the trajectory of the Brazilian liture production, something wished for several by diverse writers. We can Highlight: Jose de Alencar, Manuel Antonio de Almeida, Aluízio de Azevedo and Mario de Andrade. Authors respectively of Iracema, Memórias de um sargento de milícias, O cortiço the Macunaíma. Therefore, objective here is to observe the concept os brasility, standing out some characteres of these works.

 

A busca de uma literatura  que configurasse ou traduzisse a identidade nacional foi durante a trajetória da produção literária brasileira, algo almejado por diversos escritores. Dentre os quais destacamos: José de Alencar,  Manuel Antônio de Almeida, Aluízio de Azevedo e Mario de Andrade. Autores respectivamente de Iracema, Memórias de um sargento de milícias, O Cortiço e Macunaíma. Portanto, objetiva-se aqui observar o conceito de brasilidade, enfocando alguns dos personagens dessas obras.

A problemática centra-se em averiguar como o conceito de brasilidade  é reafirmado a aprtir de uma estratégia discursiva literária. Com a finalidade de  elucidar essa questão,a verificação da narrativa literária enquanto representação da brasilidade é vislumbrada  seundo os conceitos de  Antônio Cândido (1993), Hall (2005) e Sacramento (2004).

Inicialmente, faremos um estudo sobre  a fundação da construção da identidade nacional em Iracema. Depois,  tomaremos as obras Memórias de um sargento de milícias e O Cortiço – aplicando conceito de ordem e desordem  na primeira e traçando uma análise sob o viés positivista na segunda. E por ultimo, sinalizaremos através de Macunaíma a formação da identidade nacional.

Iracema e a Identidade Nacional

É na obra alencariana que se dissemina a construção da identidade nacional. O autor concilia perfeitamente duas culturas e dois povos diferentes: Iracema como indígena que ama incondicionalmente, submetendo-se ao véu do amor romântico, a uma doce escravidão e Poti o grande guerreiro, o irmão inseparável, ambos subservientes a Martim,o branco civilizador. Ocultando porém, a violência e as fraturas desse processo. Foi da união – representada entre Martim e Iracema – que nasceu o mestiço Moacir, o filho da dor e de duas culturas que não se interpenetram.

Assim, a cor dos detalhes pitorescos, reconhece-se sem dificuldades no discurso alencariano, o propósito em oferecer a seus contemporâneos uma identidade nacional, o mito do sugirmento de um país miscigenado desde sua origem. Todavia, apesar do argumento romântico de representação do Brasil, Alencar se beneficia do modelo europeu para sua construção literária.

Destarte, a literatura romântica se fundamenta no pitoresco, em que  a priori, já apresenta uma fórmula para a construção de uma literatura representativa do nacional. Apesar de Alencar atingir um sentimento íntimo, superando o Instinto de Nacionalidade (MACHADO DE ASSIS, 1973), Alencar ainda utiliza da estética normativa da época na sua representação do nacional. Trata-se de uma bandeira ideológica e estética levantada pelos românticos, em que o valor patriótico é fato inquestionável e anterior a qualquer construção literária.

Pode-se afirmar que, segundo o conceitode Antônio Cãndido a  Dialética da Ordem e Desorde[1]m, em Iracema  predomina a Ordem, isto é, a obra está pautada numa perspectiva européia. Logo, a remissão ao passado histórico brasileiro que se apresenta como argumento literário. Além de proporcionar uma explicação aceitável na época do que fosse o Brasil e do que fosse a singularidade brasileira, omite uma diálogo político meio fora do lugar de um Império (sem parlamento) e um liberalismo europeu.

É forçoso admitir o impasse quando se enxerga duas realidades contraditas num mesmo lugar: a de um país recém-independente que queria participar do plano mundial do libreralismo burguês, e ao mesmo tempo, um Império de características ultra-conservadoras (apesar do apresso de nosso Pedro II às descobertas tecnológicas de ponta). Além disso, omite também as principais divergências que existem entre a terrível chaga de “tupiniquim”:  a escravidão; os pressupostos que fundamentam a ideologia política, social e ecônomica (aí se encluem as relações de trabalho) do liberalismo burguês, o qual  se esboçava com força desde a revolução francesa do século XVIII.

As Memórias de Manuel Antônio de Almeida

Já a obra  Memória de um Sargento de Milícias, mesmo sendo da mesma época, apresenta algumas características que ultrapassam o ideal romântico da época, adquirindo uma feição bastante singular. O protagonista desta obra, Leonardo, assume  no decorrer da narrativa, características de um anti-herói, fato ausente nos romances românticos. Tal epíteto se corrobora em Leonardo, visto que,  não se caracteriza por ações grandiosas e altruístas, ou honradas e destemidas à maneira dos heróis (tanto medievais como românticos). Ele está imerso num coitidiano comum, oscilando entre o lícito e o ilícito, entre o aceito e condenável socialmente. Desmitifica assim, a figura paradigmática do herói romântico.

Deste modo, se revela a teor de uma classe que transita entre Ordem e Desordem, vivendo num mundo sem culpa. Não manda, mas vive à espreita de uma oportunidade de segurar alguma migalha que aparece na classe senhoril.

Evidente que não se trata de uma transposição da sociedade brasileira para as Memórias, mesmo porque não se tematizam as classes dirigentes e a classe escrava. Não se trata de um documento e sim de literatura. Logo, o dado ficcional não vem diretamente do real, mas o primeiro pode pressupor o segundo. Ler um no outro e perceber através dos principios  mediadores cultos na narrativa, a formação do real, visualizando a realidade histórica nas duas séries, a social e a literária. Assim, as Memórias pressupõem um panorama histórico da classe intermediária do Brasil, o que torna o romance representativo da nação.

Aqui se pode enxergar que o autor das Memórias não tem postura ufanista e ideológica como a dos românticos na edificação de um Brasil patriótico. Este reconhece a existência de uma realidade mais concreta que é a das classes sociais, apesar de formalizar a classe intermediária. Porém, trata o assunto com imparcialidade. De acordo Antônio Candido (1993),  além da intuição histórica vista  na dialética da Ordem e Desordem, a presença do aspecto cultural e folclórico representando o popular, é visto também nessa mesma dialética. O popular pode ser identificado na figura do malandro e sua esperteza,  no modo como agem as personagens, devido às dificuldades pecuniárias.  Contrapondo com a liberdade e o tempo de “sobra” procuram levar vantagem em todas as situações. Trata-se da representação do nacional referente à  da classe intermediária, visualizando seu aspecto folclórico.

Esta argumentação contrapõe a tradicional comparação do romance ao pícaro espanhol, o que reforça a brasilidade da obra. É esta oscilação entre a visão histórica e  cultural  que balanceiam todo romance, constituindo a própria dialética na representação nacional. O historicismo é abrandado pelo aspecto popular, com a imparcialidade de quem prefere não dar ênfase a um aspecto, mais oscilar entre os dois. São estas características que segundo  Antônio Candido,  Manuel de Almeida trata com imparcialidade ao representar o Brasil da classe intermediária.

Com uma temática que tateia não mais o período colonial, mas uma época bem mais recente, a era do tempo do rei D. João VI, o livro de Manuel Antônio  de Almeida  é uma obra ímpar no contexto romântico. Logo que, ao perscrutar sua profunda estrutrura, toda densidade problematizadora vem à tona, englobando o enfoque  cultural e histórico de uma classe que passava “despecebida” aos olhos da ufanista estética romântica. Candido contemplou a brasilidade carregada no bojo das Memórias, livrando-as da pecha  de romande inusitado para seu contexto. A irreverência do texto de Almeida ganhou um sentido muito maior do que sua comparação com o pícaro europeu, e passou a ser constituinte de um viés bem mais interessante na percepção de como pode ser, através Ordem e Desordem, a formalização estética da sociedade intermediária da época.

O cortiço e seu viés positivista

A obra O cortiço, sendo uma produção marcadamente naturalista, apresenta uma análise social a partir de grupos humanos à margem dos lucros gerados pelo processo de industrialização. Contracenam apenas como animais condicionados ao trabalho e incapazes de assimilar a inteligência capitalista para geração de lucros. Vê-se assim,  emergir um contexto social em que se ocorre freneticamente o processo de industrialização, urbanização e aumento dos postos de trabalho – características sobretudo à capital carioca tematizada na obra, visto que o Rio de janeiro, apesar de poder simbolicamente representar o Brasil, possui uma urbanização muito à frente se comparada com ao restante do país.

Além da chegada do contigente imigracional, distribuindo entre as classes ricas e pobres os postos de trabalho, as habitações e o lazer. Isso tudo sob a ótica social determinista veiculada O cortiço.

Apesar de tratar de uma narrativa que evidencia o coletivo, destaca-se a figura de João Romão, que resume por assim dizer, a voraz tranformação à que o Brasil era acometido, ou seja, o que se chamou de progresso na época.

Analisar a obra O cortiço significa primeiramente entender o viés positivista utilizado, dando origem assim a um romance científico ou de tese, masclado a um realismo eivado de personagens-tipo. As primeiras eclosões positivistas ocorreram  em solo brasileiro apenas em 1850. Se se considera o que diz a teoria de Auguste Comte, percebe-se que le enuncia estágios em que o devir é entendido evolutivamente. Com efeito, para Comte, são três os estágios que explicam o movimento histórico, o teológico, o metafisiso e o positivo. Mas, o que interessa de fato para a precição de O cortiço, é saber que ele divide as áreas de conhecimento humano, em que se pode observar, dessa forma, a evolução de um organismo simples a um mais complexo.

Assim, a Sociologia torna-se o cume  desses estágios, e a mais complexo, visto que se atingir o estado positivo, sua capacidade de explicação do real é absolutamente mais ampla do que qualquer outro  meio. Desta maneira, identificamos o famoso lema da filosofia positiva “ver para prever” na obra O cortiço. O determinismo sociológico se expressa na trajetória  que os personagens percorrem na obra. Com efeito, o produto daquele meio será exatamente igual àquele meio.

É por exemplo, o caso de Pombinha. Porquanto ela cresceu num contexto onde as relações conjugais se fazem e desfazem com a maior naturalidade, a referida personagem separa então em dois anos de casada. Torna-se posteriormente uma prostituta, fato também aceito pela pobre população do cortiço. A filha da portuguesa Piedade, pelas insinuações e comparações que faz o autor (para corroborar o cientificismo) também seguirá o mesmo intinerário de Pombinha, ressalte-se também a importância da determinação que a beleza corporal pode imprimir aos indivíduos de classe baixa.

Quanto à determinação desta beleza, vê-se que ela se torna,  de certa forma, desconsiderada quando está em jogo um casamento da elite, já que aí se enxerga um jogo de interesses políticos-sociais e econômicos. È o caso de João Romão pela filha de um rico comerciante, Zulmira. Quanto ao casamento de Miranda, o autor tece sua visão realista, pois este vive um casamento infeliz em que se sente agrilhoado pelo dote concedido pelo seu sogro. O romance oscila entre o comportamento social e econômico de uma classe e outra, como visto, ora propugnando a libertibagem proletária, ora o cinismo capitalista dos novos ricos.

A personagem João Romão sintetiza a própria visão realista para explicação do comportamento social. De um lado, ele se submeteu aos maiores sacrifícios para acumular mais capital quando era um reles comerciante, se “amigou” com uma escrava, cometeu um roubo miúdo, explorou seus funcionários e foi impiedoso com seus inquilinos, até se tornar um rico burguês. Por outro lado ele cumpre os ditames cientifico do detrminismo Darwinista em que os mais aptos vencerão no processo de seleção natural, ou seja, se João Romão passeia entre o lícito e o ilícito, entre o moral e o imoral é porque, em acordo com essa linha teórica, a realidade brasileira exige esse tipo de etitude de um indíviduo que evolui (aqui no sentido cientificista)  e venceu no processo de seleção natural. Tanto que, ao final do livro, veremos que ele acaba rico e noivo de Zumira, realizando-se socialmente. Já Betoleza, sua antiga companheira, escrava, carrega na pele a pecha de “raça inferior”, incompatível com a realidade final “limpa, branca e rica” de João Romão. Com efeito, o final de Betoleza no romance é voltar à sua condição de escrava.

Macunaíma e a identidade brasileira

Macunaíma, é a obra de Mário de Andrade que incorpora o mais consciente questionamento de Brasil, se comparamos com as outras três obras. De fato, é uma das contudentes expressões do Modernismo brasileiro que procurou pelo peculiarmente brasileiro em detrimento a tudo o que vinha de fora. Trata de uma “caminhada”  pelo Brasil, onde não só o ambiente é observado, mas principalmente o dado cultural. Não custa lembrar nosso célebre Villa Lobos, que andou por várias partes do Brasil catalogando uma infinidade de ritmos, sons e tons de nossa cultura.

Macunaíma, é a própria vivência dessas diversas tonalidades no seu sentido mais essencial e disperso, formando uma idéia do Brasil diante de sua própria identidade descentrada. Herói sem nenhum caráter, vê-se que, se contextualizarmos em Mcaunaíma, o herói remete uma idéia de uma eterna luta travada em favor do coletivo independente das diferenças.  Assim, Macunaíma, passeia pelo Brasil buscando a muiraquitã,  isto é, uma identidade brasileira essencialmente inexistente. Ao mesmo tempo em que ele vivivfica e dialoga com os deuses e indivíduos de cada regiãotem uma relação absolutamente independente e desenlaçada de qualquer contexto.

O mítico e o lúdico são a constituição da própria obra, em que, apresentando-se na condição de fantástico, se desprende dos juízos de valores que contaminaram as visões realista, romântica e naturalista sobre a identidade brasileira. Isso remete o leitor a uma dimensão que se explica na própria cultura brasileira e não em visões preconcebidas que analisam tanto a sociedade como a cultura. Entretanto, não há uma procupação em justificar os defeitos de Macunaíma, que seriam defeitos de um possível “ jeito de ser brasileiro”, mas apenas de mostrá-lo em sua forma imparcial, sem espaços para idelizações e nem valorações positivas ou negativas. No entanto, a procura da muiraquitã e o próprio comportamento da personagem denotam a dificuldade de sentar, condensar a síntese de uma identidade nacional, que, como já dissemos, é fragmentada.

A Modernidade é marcada por diversas caracteríticas, entre elas pode-se destcar a pluralidade, o descentramento e a fragmentação. Imersa nesse contexto, situa-se a obra Macunaíma, na qual o seu protagonista é o herói múltiplo, pois consegue vivenciar uma variedade de personagens, ora bons ora maus; não tem preconceito, não cinge a moral de uma época, ainda se concentra em si próprio todas as virtudes e defeitos que nunca se encontraram reunidos em um único indivíduo. Por isso é considerado excepcional.

Assim, torna-se necessário destronar-se a visão identitária essencialista, consederando-se a cultura como um processo, por isso é impossível definir, limitar o que venha a ser identidade nacional.

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[1] A ordem estaria para ideologia e a desordem para a realidade.

Referências bibliográficas

ALENCAR, José de. Iracema. 5ª ed. São Paulo: Ática,1975

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de mílicias. São Paulo: Ática,1990.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum carater. Belo Horizonte: Villa Rica,1993.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço.  São paulo:Ática,1998.

BHABHA, H.K. O local da cultura. Trad.Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1999.

CANDIDO, A. Dialética da Malandragem. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade; trad: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999

HELENA, Lúcia. “ Escrevendo a nação”. In: Literatura e diferença IV Congresso da ABRALIC. São Paulo: ABRALIC,1994.

SACRAMENTO, S. M. P do. Nação, identidade e gênero na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Caetés, 2004.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 17 abril, 2006.