por SAUL EDGARDO MENDEZ SANCHEZ FILHO

Graduando em Comunicação Social (Universidade Estadual de Santa Cruz)

 

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A Representação da Identidade Cultural através de Registros Fotográficos – da Literatura à Imagem

 

Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho*

 

Resumo

Neste trabalho a literatura é tomada como expressão da cultura regional sul-baiana, suscitadora do interesse do leitor-turista (SIMÕES, 2002). O re-conhecimento da identidade cultural obtido através dos livros complementa-se com o uso da linguagem fotográfica, que possui a característica de ícone indicial (SCHAEFFER, 1996) e que é, por sua qualidade imagética, capaz de dar visibilidade (CALVINO, 1998) às expressões regionais abordadas pela obra literária. São apresentados registros fotográficos tomados com base na literatura sul-baiana, e que fazem parte do projeto de pesquisa Literatura, Cultura e Viagem: Bens Simbólicos e Mapas através de Registros Fotográficos, desenvolvido na universidade Estadual de Santa Cruz. Por fim, a fotografia, ao ser memento mori (BARTHES, 1980) é tida como documento de relevância para a preservação da memória e como forma de valorização da cultura na região.

Palavras-Chave: Fotografia, Identidade, Literatura.

Abstract

In this work literature is taken as an expression of the regional culture of south-Bahia, provoker of the interest of the Reader-Tourist (SIMÕES, 2002).  The recognition of the cultural identity through books is complemented with the use of the photographic language, which possesses the characteristics of an indicial icon (SCHAEFFER, 1996) and that is, for its imagetic qualities, capable to give visibility (CALVIN, 1998) to the regional expressions seen in the literary composition.  Photographic registers taken on the basis of literature of south-Bahia are presented, which are part of the research project Literature, Culture and Tripping:  Symbolic Assets and Maps through Photographic Registers, developed in the State University of Santa Cruz.  Finally, Photography, by being memento mori (BARTHES, 1980) is presented as a relevant document for the preservation of the memory and as form of valuation of the regional culture.

Words-key: Photography, Identity, Literature

 

Introdução – literatura, imaginário regional e turismo

No presente artigo, a literatura é tomada como expressão regional suscitadora de interesse turístico. A fotografia permeia o estudo como documento de relevância para a preservação do imaginário cultural do sul da Bahia. O trabalho é resultado parcial do projeto de pesquisa Literatura, Cultura e Viagem: Bens Simbólicos e Mapas, realizado na Universidade Estadual de Santa Cruz sob orientação da Profa. Dra. Maria de Lourdes Netto Simões.

A literatura regionalista, intencionalmente ou não, traduz peculiaridades locais, expressando os traços do momento histórico e da realidade social; nela, o local é abordado com amplitude, podendo-se falar tanto de um regionalismo urbano quanto de um regionalismo rural.

A grande tendência da literatura regionalista é apresentar a tensão entre idílio e realismo, entre nação e região, oralidade e letra, campo e cidade, entre a visão nostálgica do passado e a denúncia das misérias do presente. O descritivismo pictorial faz alusão a imagens através de sonoridade, ritmo e modo de falar dos personagens; aqui se encontra em prática “a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens” (CALVINO, 1998).

É dessa visibilidade proposta por Calvino que surge a questão do imaginário - ato da consciência como modo de perceber o mundo que está ao seu redor, o ambiente de convívio (ISER, 1996), que é assim transposto da mente do autor para o papel. Para Chiappini,

Em qualquer dos casos, o grande escritor regionalista é aquele que sabe nomear; que sabe o nome exato das árvores, flores, pássaros, rios e montanhas. Mas a região descrita ou aludida não é apenas um lugar fisicamente localizável no mapa do país. O mundo narrado não se localiza necessariamente em uma determinada região geograficamente reconhecível, supondo muito mais um compromisso entre referência geográfica e geografia ficcional. (CHIAPPINI, p.9, 1995)

Reflete-se então no texto as in-order-to motivations (motivações para) e as because motivations (motivações porquê) do escritor, através das quais podemos identificar o arcabouço sócio-histórico da época na qual o texto foi escrito (GUMBRECHT, 1998). Gumbrecht, teórico tomado aqui como base no estudo dos textos literários, expõe as idéias de atos comunicativos como atos de expressão nos quais reside o imaginário cultural regional do autor.

Assim, os registros fotográficos unem-se ao texto enriquecendo o arcabouço de significados sócio-culturais encontrados nas expressões regionais, satisfazendo portanto, embora não por completo, a necessidade de visualizar características apresentadas no espaço do texto; dessa necessidade surge o ato de deslocamento, a ser realizado pelo leitor-turista (SIMÕES, 2002).

Para além das técnicas de propaganda, publicidade e marketing, “a comunicação turística toca as imagens identitárias de um território, a memória coletiva e social de um povo” (VOISIN, 2004); buscamos neste caso um caminho inverso, partindo da formulação de imagens identitárias através das expressões literárias da região sul-baiana, rumo à comunicação turística, visando uma preservação maior das características culturais do povo grapiúna. Porém, é necessário ressaltar que as fotografias não informam por si mesmas o receptor - os seus elementos agem sobre ele como ícones indiciais (SCHAEFFER, 1996) que se remetem a conhecimentos resultantes de leituras anteriores, neste caso da literatura regional Sul-Baiana.

Linguagem fotográfica – características e relevância cultural

A fotografia, inicialmente, era tida como uma cópia indiscutível da realidade. Considerando as categorias de Charles Sanders Pierce (1999) sobre a semiótica, a fotografia era tida como um ícone do real. Porém, chegamos ao discurso do índice, isto é, a fotografia como traço de um real. Jean-Marie Schaeffer (1996) apresenta a fotografia como uma linguagem que contém características tanto icônicas como indiciais, referindo-se à imagem fotográfica como ícone indicial.

É portanto, segundo Schaeffer, necessário um “conhecimento lateral” formado para que o receptor perceba todas as nuances de significado sugeridas por uma fotografia; dentre os tipos de conhecimento lateral possíveis, estão incluídas informações de caráter histórico, social e cultural. No que condiz com sua iconicidade, a fotografia é capaz de sugerir diversos aspectos históricos e sociais sem exigir conhecimentos específicos prévios. Já quanto a suas características indiciais, alguns significados exigem especificidades de informação, e é aí que reside a complementaridade entre texto e imagem – na qual nenhum dos dois perde sua auto-suficiência, porém juntos apresentam um leque maior de significados.

Assim, a fotografia é enriquecedora como documento de relevância para a memória regional, que deve ser preservado com a finalidade de manter um registro dos aspectos identitários inerentes a momentos históricos e à sociedade local, assim como traços da relação existente entre os espaços rural e urbano.

Do texto à imagem – identidade cultural e registros fotográficos

Os registros fotográficos do presente trabalho foram selecionados com base na literatura da região sul-baiana, em seus aspectos sócio-culturais e históricos. Em busca de melhor exemplificar a temática, as imagens selecionadas foram avaliadas em busca daquelas que melhor representassem as características de ícone indicial. Apresentamos aqui então essas duas imagens escolhidas, associando-as a fragmentos da literatura regional.

Considerando a hipótese de Schaeffer (1996), uma vez possuindo o conhecimento lateral necessário, a qualidade indicial da fotografia dependerá de diversos aspectos: Os objetos reconhecidos na imagem (onde se inserem características icônicas), a disposição desses objetos e o ponto de vista do fotógrafo, ou seja, aquilo a que foi reservada uma maior atenção - podendo estar tanto em primeiro, segundo, ou terceiro plano, dependendo não apenas de sua disposição no espaço fotográfico, mas também de sua força impactante, aquilo chamado por Barthes (1980) de punctum – aspecto da imagem que parte da cena e traspassa, fere, punge. Para Barthes, em seu livro A Câmara Clara, esse ponto de vista fenomenológico sobrepunha-se até mesmo à capacidade representativa quando se tratava de fotografia.

Nas noites de lua, quando as estrelas enchiam os céus, tantas e tão belas que ofuscavam a vista, os pés dentro da água do rio, ele planejava a vinda para estas terras de Ilhéus. Homens escreviam, homens que haviam ido antes, e contavam que o dinheiro era fácil, que era fácil também conseguir um pedaço grande de terra e planta-la com uma árvore que se chamava cacaueiro e que dava frutos cor de ouro que valiam mais que o próprio ouro. A terra estava na frente dos que chegavam e não era ainda de ninguém. Seria de todo aquele que tivesse coragem de entrar mata adentro, fazer queimadas, plantar cacau, milho e mandioca, comer alguns anos farinha e caça, até que o cacau começasse a frutificar. Então era a riqueza, dinheiro que um homem não podia gastar, casa na cidade, charutos, botinas rangideiras. (AMADO, 1999, p.13)

Trabalhadores na estrada, área rural – Ilhéus/BA - Fonte: Saul Mendez, 2004 No fragmento retirado do romance Terras do Sem Fim de Jorge Amado, vemos que a migração para a região cacaueira foi grande na época em que a terra prometia riquezas e as plantações não sofriam com a invasão da doença chamada vassoura-de-bruxa. Percebe-se porém, que para alcançar a desejada riqueza, os trabalhadores deviam se esforçar em meio à mata virgem e passar um tempo de miséria e alimentação parca. Essa situação descrita pela literatura amadiana acabou formando o imaginário regional do trabalhador rural, aquele que veio de longe para sofrer nas roças de cacau sob o mando dos grandes coronéis.

Trabalhadores na estrada, área rural – Ilhéus/BA - Fonte: Saul Mendez, 2004Possuindo o conhecimento prévio dos aspectos histórico-culturais descritos na literatura, logo reconheceremos na imagem a figura do trabalhador rural, que carregava em sua carroça as sacas de cacau e seguia então seu caminho de volta para a fazenda. A fotografia atinge um nível quase bucólico se tida como representação do fragmento da obra, tal qual a literatura regional é em seus aspectos específicos.

 

Houve um tempo em que todos se conheciam nessa cidade. Mas esse tempo vai distante, hoje só as pessoas mais importantes são conhecidas de todos. Os navios que chegam trazem gente nova, homens e mulheres que vêm em busca do ouro fácil que nasce nas árvores de cacau. Porque por todo o Brasil core a fama da Rainha do Sul, fama que está mesclada com as antigas histórias de mortes e tiroteios e com as histórias modernas do cacau sendo a melhor lavoura do país. (AMADO, 1999, p. 65)

rmazém de cacau das Indústrias Kaufmann – Ilhéus/BA - Fonte: CEDOC - UESC O fragmento acima, retirado São Jorge dos Ilhéus, de outra obra de Jorge Amado, fala sobre as mudanças ocorridas na região com o advento da fama de riqueza. Assim, a imagem do armazém de cacau se impõe como índice dessas mudanças de comportamento, que vão do nível de produção e tratamento dos chamados frutos de ouro, das mudanças econômicas e crescimento da cidade, até às mudanças sociais e culturais ocorridas devido à industrialização na região cacaueira.

Devido, portanto, ao conhecimento lateral proporcionado pela literatura regional, podemos perceber o amplo conjunto de significados que permeia uma única imagem fotográfica e sua relação com a identidade cultural do sul da Bahia. Defende-se então, neste trabalho, a relevância do registro fotográfico para as pesquisas relacionadas à cultura e à identidade, reconhecendo sua importância para a preservação da memória e como forma de valorização do imaginário cultural regional.

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Referências Bibliográficas

AMADO, J. Terras do sem fim. 64º e. Rio de Janeiro: Record, 1999.

AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 52º ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

BARTHES, R. A Câmara Clara. Trad. Manuela Torres, Edições 70, Lisboa/Portugal, 1980.

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso, 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CHIAPPINI, Ligia. Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Net, Disponível em: www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/170.pdf , Acessado em: 10 Out 2004.

GUMBRECHT, H. U. As Conseqüências da Estética da Recepção: Um Início Postergado. In: Corpo e Forma – Ensaios Para uma Crítica Não-Hermenêutica. Org: João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998. p. 23 – 46.

ISER, Wolfgang. O Imaginário. In: O Fictício e o Imaginário - Perspectivas de uma Antropologia Literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. p. 209 - 302.

SCHAEFFER, Jean -Marie. A Imagem Precária. Campinas: Papirus, 1996.

SIMÕES, M.L. N. De Leitor a Turista na Ilhéus de Jorge Amado. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, 6. Belo Horizonte: ABRALIC, 2002. p. 177 – 183

VOISIN, Jane Kátia. Comunicação Turística, Memória, Identidade: Uma proposta de abordagem e dois casos (Ilhéus-Bahia e La Rochelle-França). Net, Disponível em: http://alpha.uesc.br/icer/artigos/janekatiadoiscasos.htm , Acessado em: 10 Out 2004.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 12 abril, 2006.