por SUSEL OLIVEIRA ROSA

Doutoranda em História (UNICAMP), área de concentração Política, Memória e Cidade, bolsista Cnpq

 

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Da violência, da pureza e da ordem

 

Susel Oliveira da Rosa*

 

Resumo

No presente artigo discuto algumas questões que dizem respeito à compulsão da sociedade moderna pelos ideais de ‘ordem’, ‘beleza’ e ‘pureza’. Embasada nas idéias de Freud (O Mal-estar na Civilização), Zygmunt Baumam (O Mal-estar da Pós-Modernidade e Totalitarismo e Holocausto), Mary Douglas (Pureza e Perigo), Hannah Arendt (Sobre a Violência, A condição humana) e Michel Foucault (Vigiar e Punir, Em defesa da sociedade) tenho por objetivo entender como estes pressupostos (ordem, beleza, pureza) contribuem para inventar uma sociedade em que o ‘outro’, muitas vezes, é encarado como a ‘sujeira’ que deve ser banida de um mundo puro, linear e ordenado; um mundo que assistiu à exacerbação da violência em todos os âmbitos, principalmente no âmbito da política.

Palavras-chave: modernidade, ordem, pureza, violência, biopolítica.

Abstract

In the present article I argue some questions concerning at the compulsion of the modern society for the ideals of ' order ', ' beauty ' and ' pureness '. Supported in the ideas of Freud (The Malaise in the Civilization), Zygmunt Baumam (The Malaise of Pós-Modernity and Totalitarism and Holocaust), Mary Douglas (Purity and Danger), Hannah Arendt (On the Violence, The human condition) and Michel Foucault (To watch and To punish, In defense of the society) I’ve for objective to understand how these estimated (order, beauty, pureness) contribute to create a society where the ' other ', is many times contemplated as the ' dirt ' that must be banished of a pure world, linear and directed; a world that attended at the exacerbation of the violence in all the scopes, mainly in the scope politics.

Key-words: modernity, order, pureness, violence, biopolítics.

 

 

Introdução

Vivemos atualmente em meio a uma velocidade temporal onde a idéia linear de passado/presente/futuro parece não fazer mais sentido. O tempo dos calendários e da história parece ter ficado pra traz, restando-nos, como diz Virilio (2000), um tempo esférico ou dromológico que se expõe à velocidade absoluta da luz. Nesse tempo veloz em que vivemos, na chamada era da informação – onde a informação massiva transforma-se em desinformação generalizada -, assistimos a uma eclosão da violência em todos os âmbitos. Em nossa inércia comportamental ela se transforma, por vezes, em apenas mais um espetáculo midiático. “A exposição à violência talvez nos obrigue a aceitar, agora, a ampliação dos meios, e acatar o excesso como instrumento de sensibilização. Cada um de nós sobrevive como pode a uma dose diária de exposição traumática, na tela da televisão ou no sinal de trânsito”, como diz Seligmann (2000, p. 33).

Acredito que essa exacerbação da violência na contemporaneidade está ligada a esfera do político e tem seus pressupostos na modernidade. Hannah Arendt (1994), além de lembrar que a violência sempre desempenhou um papel importante nos negócios humanos, diferencia poder e violência. Para a filósofa, apesar de estarem imbricados em muitas circunstâncias, poder e violência se opõem. A essência do poder não é a violência, essa última aparece quando o primeiro está em risco, e, pode conduzir, inclusive, a desaparição do poder. Destruição do poder e da própria política, como aconteceu com o totalitarismo. Seguindo essa idéia podemos pensar que o sentido da política, então, se perdeu, já que ultimamente parece-nos extremamente difícil separar poder e violência.

Mas, que características da sociedade moderna acabaram por aproximar e tornar de certa forma indistinguível poder e violência? Que técnicas de poder propiciaram à invenção de um mundo onde o ‘outro’ pode ser descartado se não se encaixar na concepção de ‘progresso’ de um universo linear e projetivo? Suponho que a forma como a sociedade moderna construiu seus conceitos de ‘ordem’, ‘beleza’ e ‘pureza’ podem fornecer uma pista para entendermos os eventos catastróficos do século passado, e a ampliação da violência no âmbito da política.

Da violência, da pureza e da ordem

- Não gosto de pretos, Kindzu.

- Como? Então gosta de quem? Dos brancos?

- Também não.

- Já sei: gosta de indianos, gosta da tua raça.

- Não. Eu gosto de homens que não têm raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu[1].

No texto traduzido como ‘mal-estar na civilização’, Freud (1996, p.33) afirma que “os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas”. Para o pai da psicanálise possuímos o que ele chama de uma poderosa e instintiva quota de agressividade. Possuímos um impulso de crueldade, muito bem interpretado por Gauer (2000) em suas reflexões sobre a violência, quando ela nos diz que ser cruel é uma das maneiras mais legítimas de se tornar humano. Procuramos satisfazer no outro, ou melhor, sobre o outro, essa agressividade. Agressividade que tende a ser controlada pelo que Freud denomina de ‘civilização’ – o homem civilizado, diz ele, trocou uma parcela de felicidade por uma parcela de segurança. A hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe ao programa da civilização, sendo, portanto, um impedimento à ‘civilização’.

Essa agressividade deriva-se do instinto de morte, que convive com Eros, o instinto de vida, de amor e divide com este ‘o domínio do mundo’. Logo, se concordarmos, pelo menos nesse sentido com Freud, a idéia dicotômica de que existem ‘homens bons’ e ‘homens maus’ perde credibilidade, já que todos possuem um potencial de amor e de agressividade, de vida e de morte. Obviamente, em diversos momentos da vida, um deles pode sobrepujar o outro, seja momentânea ou mais detidamente. Nesse sentido, a análise de Hannah Arendt (2001) acerca do julgamento e da pessoa do oficial nazista Eichmann é reveladora, diz ela que o homem que enviou milhões de pessoas para os campos de extermínio, não passava de um homem comum, que não era um monstro, mas um produto do estado totalitário, e podia ser caracterizado por um ‘vazio de pensamento’. O sentido dado pela autora é político, mas não deixa de ser apropriado para a idéia de instinto agressivo presente em todos os homens, que faz de um assassino um ‘homem comum’ e não ‘um monstro’, incompatível com a idéia de ‘humano’. Se o instinto agressivo está presente nos homens, a monstruosidade não tem o caráter de inumanidade que comumente pensamos.

Para o autor de ‘o mal-estar da pós-modernidade’, Zygmunt Bauman, quando Freud fala em ‘civilização’ ou ‘cultura’ (outra possibilidade de tradução) é a modernidade que ele se refere, é a ‘história da modernidade’ que ocupa Freud no livro ‘o mal-estar na civilização’. Então, quando Freud pergunta “quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela?”(1996, p. 147), está perguntando que meios à sociedade moderna se utiliza para inibir a agressividade instintiva dos homens. A resposta é dada logo a seguir: a agressividade é internalizada, introjetada, enviada de volta ao ego, dando forma a um superego, a ‘consciência’ que está pronta a jogar sobre o ego a mesma agressividade que ele desejaria satisfazer sobre outros indivíduos. A idéia do ‘sentimento de culpa’ – severidade do superego ou severidade da consciência – surge aí como a tensão entre o ego e o superego, expressando-se numa ‘necessidade de punição’, como diz Freud. Assim, “a civilização consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada” (FREUD, 1996, p.3). O ‘mal-estar’, sugestivo do título, configura-se no sentimento de culpa, fortemente estimulado na modernidade.

Assim coube a modernidade, mais do que em qualquer época, disciplinar a agressividade dos homens através do sentimento de culpa, dos ideais de ordem e beleza, e de toda uma gama de procedimentos coercitivos. Nesse sentido, a partir do século XVIII, espaço, tempo e corpo foram esquadrinhados ao máximo, como mostra Foucault em ‘Vigiar e Punir’. No que diz respeito ao corpo, foram estimuladas novas técnicas de limitações e coerções, técnicas que eram a novidade, pois o corpo sempre foi objeto de investimentos nas mais diversas sociedades e épocas[2]. Com a modernidade o corpo passou a ser trabalhado detalhadamente, exercendo-se “sobre ele uma coerção sem folga, [mantendo-o] ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo” (FOUCAULT, 2002, p. 118). Um esquadrinhamento que, além de utilitário, pode ser pensado como uma forma de conter a agressividade humana, já que esses métodos – disciplinas – controlam e sujeitam as forças do corpo, numa relação de ‘docilidade-utilidade’ como diz Foucault.

Outro tema caro à modernidade, e que causa certo temor quando associamos os vários acontecimentos ligados a sua busca pelas sociedades, é a beleza. Para Freud a felicidade na vida é buscada pela ‘fruição da beleza’, e a sociedade moderna já não pode abdicar dela. O temor de que falo é causado pela imediata associação da beleza com a ordem, com a limpeza, e de quantas vezes isso se torna compulsão, e dos objetos se estende as pessoas, as etnias, as sexualidades, gerando inúmeros episódios de discriminação e genocídios de que a história está repleta. A ‘civilização’ ou a modernidade rejeita a sujeira,

[estendendo a] exigência de limpeza ao corpo humano (...) não nos surpreende a idéia de estabelecer o emprego do sabão como um padrão real de civilização. Isso é igualmente verdadeiro quanto à ordem. Assim como a limpeza, ela só se aplica às obras do homem (...) A ordem é uma espécie de compulsão a ser repetida, compulsão que, ao se estabelecer um regulamento de uma vez por todas, decide quando, onde e como uma coisa será efetuada (FREUD, 1996, p. 113).

A modernidade disciplinou o homem, fazendo com que ele aceitasse e buscasse os ideais de beleza, limpeza e de ordem. Dificilmente conseguimos imaginar como viviam as pessoas dos séculos anteriores, sem água encanada, sem sistema de esgotos, com o mau-cheiro (que assim denominamos hoje) impregnando ruas, casas e locais de trabalho. Escrevendo no século XX, Patrick Süskind, autor do romance ‘O Perfume’, descreve com olhos de asseio o século XVIII onde ambientou seu romance:

Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sobre as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada de fedor (SÜSKIND, 1985, p.5-6).

Apesar do exagero propositado na descrição, o olhar de Süskind está impregnado de nossos conceitos sobre sujeira, mostrando como é inconcebível à sociedade moderna, inclusive, descrever a ‘sujeira’ das épocas anteriores.

Para a antropóloga Mary Douglas – em Pureza e Perigo – sujeira é essencialmente desordem, portanto, é ofensiva a ordem, e existe aos olhos de quem a vê. Eliminá-la para Douglas não é um esforço negativo, mas positivo, uma vez que reorganizamos o ambiente ao fazê-lo. O problema é que do ambiente, muitas vezes, passamos a ‘reorganizar’ a sociedade, estendendo os conceitos de puro/impuro a pessoas e grupos sociais. 

Analisando sociedades primitivas, Douglas diz que impureza e sujeira devem ser examinadas pela ‘ordem’, já que ambas não podem ser incluídas para se manter ‘um padrão’. Essa análise vale também para os modernos, já que como diz ela, estamos todos sujeitos às mesmas regras, a diferença é que na cultura primitiva as regras de padronização funcionam com mais força e “com os modernos elas se aplicam a áreas de existência deslocadas e separadas” (DOUGLAS, 1976, p.56). A desordem estraga, então, o padrão. Mas, assim como estraga o padrão, ela fornece materiais para esse mesmo padrão, fornece materiais para a ordem. Michel Maffesoli (2001) disse algo semelhante referindo-se a violência enquanto dissidência social, que para ele estaria vinculada há um duplo elemento de destruição e construção: ao mesmo tempo em que revela uma desestruturação social ela invoca uma nova construção, de modo que a violência também estrutura o fato social. O problema que vejo aqui é de que tipo de ‘ordem’ ou nova estrutura social, que a ‘desordem’ ou a violência contribuem para inventar, uma vez que a recepção de ambas, na sociedade é, na grande maioria das vezes, vista e explorada (pela mídia, por exemplo) em seu caráter negativo, e resulta em ações castradoras e proibitivas que só fazem aumentar preconceitos e temores sociais.

Cada cultura impõe sua própria noção de sujeira e de contaminação, e assim estabelece sua noção de ordem, a partir de então, a ‘sujeira’ deve ser eliminada. Identificar o que está fora de lugar e é uma ameaça a ordem é o primeiro estágio, como diz Mary Douglas:

Primeiro estão, reconhecidamente, fora de lugar, uma ameaça à boa ordem, e assim, considerados desagradáveis e varridos vigorosamente. Neste estágio têm alguma identidade: podem ser vistos como pedaços indesejáveis de seja lá o que for: cabelo, comida ou embrulho. Este é o estágio em que são perigosos; sua semi-identidade ainda adere-se e a claridade da cena na qual se intrometeram é prejudicada pela sua presença. Mas, um longo processo de pulverização, decomposição e putrefação aguarda qualquer coisa física que tiver sido reconhecida como suja. No fim, qualquer identidade desapareceu. A origem dos vários pedacinhos e partes está perdida e entraram na massa do lixo comum. É desagradável remexer no refugo para recuperar algo, pois isso restaura a identidade. Enquanto a identidade está ausente, o lixo não é perigoso (1976, p. 194).

Lendo o trecho acima é impossível não lembrarmos do extermínio perpetrado pelos nazistas durante a segunda guerra mundial, quando alguns oficiais acreditavam que não deixariam provas do massacre cometido. O ‘lixo’ humano fora queimado, incinerado nos fornos nazistas. Assim, não representava mais perigo; a identidade, acreditavam, havia desaparecido, o sonho estético de ‘pureza’ fora preservado. O conceito de ‘ordem’ e ‘pureza’ deslizou das ‘coisas’, como “cabelo, comida ou embrulho”, para as pessoas.

Pureza, sujeira, higiene, estão então associados à idéia que temos de ordem e que nos faz decidir, por exemplo, por guardar nossos livros no escritório e não na cozinha. Uma ‘ordem’ que fornece estabilidade num universo pensado em termos de projeto e progresso. Num universo linear, a ‘ordem’ pode garantir certa proteção contra o acaso e mantém a fé nas probabilidades. Uma idéia – ‘ordem’ – que sempre existiu nas sociedades em todas as épocas. Contudo, aliada ao universo linear e progressivo da modernidade, passou a ocupar um lugar de destaque nesse mundo disciplinar, adquirindo um caráter menos construtivo do que o pensado por Mary Douglas.

Enquanto estamos organizando, limpando a sujeira do nosso ambiente, organizando os livros no escritório ou na sala e não na cozinha, deixando o lixo na área de serviço e não no hall de entrada, por exemplo, entendemos o caráter construtivo que Mary Douglas coloca. No entanto, quando colocamos os loucos em naus e os jogamos na água, quando incineramos milhares de pessoas, quando jogamos ao mar aqueles que não se ‘encaixam’ na ‘ordem’ do regime militar, quando considerados o ‘outro’ como sujeira e tratamos de organizar o ‘ambiente’, a cidade, o país, eliminando a presença de pessoas ou grupos indesejados, temos um sério problema. Quando o Estado moderno, responsável pela manutenção da ordem e detentor dos meios de coerção física, como diz Max Weber, estimula suas instituições a promover uma ‘higienização social’, a idéia de ‘ordem’ já não é mais positiva, torna-se uma perigosa e letal compulsão.

Uma compulsão condensada pela modernidade num desejo ‘esmagador e irresistível’ de instalar uma ordem segura contra todos os desafios futuros, como diz Bauman:

As utopias modernas diferiam em muitas de suas pormenorizadas prescrições, mas todas elas concordavam em que o ‘mundo perfeito’ seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo, um mundo em que a sabedoria hoje apreendida permaneceria sábia amanhã e depois de amanhã, e em que as habilidades adquiridas pela vida conservariam sua utilidade para sempre. O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada ‘fora do lugar’; um mundo sem ‘sujeira’; um mundo sem estranhos (1998, p. 21).

Os sistemas totalitários modernos são os exemplos mais extremos dessa compulsão para a ‘ordem’: eliminando estranhos e prescrevendo noções de limpeza e pureza. Dito de outra forma, dentro dessa visão moderna de ordem, progresso, compulsões de pureza e limpeza, o totalitarismo (nazista, fascista ou stalinista) surgiu como um fenômeno tipicamente moderno. Através da ciência, da tecnologia e da burocracia administrativa assistimos a tentativa de homogeneização e purificação da sociedade, que incluiu, na radicalização desses preceitos, a eliminação genocida do diferente, do ‘outro’, do outsider que não se encaixa nesse ordenamento social. Como diz Bauman, o Holocausto foi gestado e “posto em prática em nossa sociedade moderna e racional, em uma fase avançada de nossa civilização e em um momento de ápice da nossa cultura, sendo por esta razão um problema desta sociedade, desta civilização e desta cultura” (1997, p. 139). De modo que o totalitarismo do século passado não pode ser entendido como um evento acidental e passageiro, uma exceção facilmente contornada pela retomada da ‘democracia’ liberal. Mas sim como fruto da ‘civilização’, dessa época moderna e de sua compulsão pela ordem, dessa ‘civilização’ que buscou no sentimento de culpa uma forma de controlar a agressividade humana[3].

Precisamos lembrar que as manifestações de compulsão pela ordem e pela pureza não se manifestaram apenas nos regimes totalitários – onde são mais visíveis – mas também se fizeram presentes na invenção dos estados nacionais modernos através das tendências de unificação e homogeneização de uma filiação e identidade nacional, demandando a uniformização das diferenças e a diluição dos ‘estranhos’. No momento em que se determina a cidadania através da origem dos indivíduos – vamos tomar como exemplo a construção do Estado-nação no Brasil – estipula-se quem tem direito a essa cidadania, ou seja, quem é e quem não é brasileiro. Quem não é, torna-se ‘o outro’, o ‘estranho’, um ‘pária’. Ou seja, alguém que não está incluído na ‘ordem’. 

É possível afirmar, então, que a ‘compulsão’ pela ‘ordem’, pela ‘pureza’ e pela ‘beleza’ se espalhou pelo mundo moderno, independente do regime político – democracias liberais ou totalitarismos. Ultrapassando o caráter positivo de ‘organizar a desordem do ambiente’, se manifestou na administração da vida e do corpo das populações, e, nesse sentido, pode ser pensada como técnica disciplinadora e regulamentadora, de acordo com a idéia de biopolítica enunciada por Foucault.

Segundo Foucault (2002a), o século XIX assiste ao que chama de uma “estatização do biológico”, quando uma outra tecnologia de poder que não é disciplinar (centrada no corpo), mas que é regulamentadora (centrada na vida) se articula com a ‘disciplina’ (de maneira não excludente) sob a forma do que chama de ‘biopolítica’. Quando o dado biológico passa a ser político e vice-versa, instala-se um novo direito, diz ele, um direito que perpassa o direito soberano, um novo direito, agora, de fazer viver e deixar morrer. Esse direito de fazer viver e deixar morrer passa a ser exercido como política estatal a administrar a vida e o corpo da população.

Na perspectiva de uma biopolítica, a vida passa a ser pensada como elemento político por excelência, devendo ser administrada e regrada pelo Estado. Assim, teoricamente, as intervenções políticas devem proteger as condições de vida da população. Contudo, essa proteção está inserida nos ideais de ‘pureza’ e ‘ordem’, e, enquanto cuida-se da vida de uns, autoriza-se à morte de ‘outros’. De maneira que a violência não diminui, mas dissemina-se pelo corpo social e político. É uma violência depuradora, que garante a vida de parte da população. Exterminando os ‘inimigos’ da classe operária, o totalitarismo de esquerda garantiria a vida da classe operária. Exterminando a ‘raça impura’, o nazismo garantia a vida da ‘raça pura’. Perseguindo, torturando e exterminando os opositores, os ditadores latino-americanos estavam garantindo a vida daqueles que se encaixavam na ‘ordem’ estabelecida.

Nesse sentido a política é vivenciada como violência, onde a vida humana é passível de ser descartada e assassinada por atos administrativos sem que se cometa qualquer crime. A diferenciação entre poder e violência torna-se tênue, e a política perde o sentido original atribuído por Hannah Arendt (2002) – que é a garantia da vida em seu sentido mais amplo (retirado seu caráter de dominação). Entendo que é nessa aproximação da biologia e da política apontada por Foucault, que se fundamentam os preceitos de ‘ordem’ e ‘pureza’ modernos:

A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura (FOUCAULT, 2002a, p. 305).

Quando o Estado passa a se ocupar da saúde e da higiene das pessoas (em nome do ‘futuro da espécie’, do ‘bem-comum’, da ‘saúde das populações’ e/ou da ‘vitalidade do corpo social’), temos um “novo corpo”, como diz Foucault, “múltiplo, com inúmeras cabeças”, referindo-se a noção de “população” – é com a noção de “população” que a biopolítica trabalha. É a ‘população’, a ‘massa’, que deve ser agora, não só disciplinada, mas controlada[4], segundo padrões normalizadores, que, em nome dos que ‘devem viver’, estipula-se ‘quem deve morrer’ – a morte do outro, da raça ruim é o que vai deixar a vida em geral mais sadia. O racismo do século XIX, já não é “um mero ódio entre as raças”, mas uma “doutrina política estatal”, a justificar a atuação violenta dos Estados modernos.

É somente porque a vida biológica se tornou fato político decisivo que se pode entender como, no século XX,

as democracias parlamentares puderam virar Estados totalitários, e os Estados totalitários converter-se quase sem solução de continuidade em democracias parlamentares. Em ambos os casos, estas reviravoltas produziam-se num contexto em que a política já havia se transformado, fazia tempo, em biopolítica, e no qual a aposta em jogo consistia então apenas em determinar qual forma de organização se revelaria mais eficaz para assegurar o cuidado, o controle e o usufruto da vida nua. As distinções políticas tradicionais (como aquelas entre direita e esquerda, liberalismo e totalitarismo, privado e público) perdem sua clareza e sua inteligibilidade, entrando em uma zona de indeterminação (AGAMBEN, 2004, p. 128).

Penso que essa zona de indeterminação emerge da vinculação do dado biológico ao político e vice-versa, e através da biopolítica podemos entender como os pressupostos de ‘ordem’, ‘beleza’ e ‘pureza’ se disseminaram pelo mundo moderno, dando forma a um racismo exercido como política estatal – dos Estados totalitários ou das ‘democracias’ liberais – onde poder e violência se aproximam, e o sentido da política (arendtiano) se esvazia. Já que esse é um regime político que pode “tanto garantir o incentivo quanto o massacre da vida”(NEGRI e HARDT, 2004).

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[1] Trecho da conversa de um velho comerciante indiano, com um menino africano, em ‘Terra Sonânbula’, romance de Mia Couto.

[2] Ver Richard Sennet, Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental (RJ:Record, 1994); E.H. Gombrich, A História da Arte (RJ:Zahar, 1979); Gilles Lipovetsky, Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (SP: Cia das Letras, 1989); Nízia Villaça, Em nome do corpo (RJ:Rocco, 1998), entre outros.

[3] Pensando dessa forma, podemos prescindir do tradicional questionamento de como foi possível serem perpetrados delitos tão atrozes contra seres humanos, uma questão que não faz avançar em nada nosso entendimento sobre esses eventos. Como diz Giorgio Agamben (Homo Sacer, UFMG, 2004), “mais honesto e sobretudo mais útil seria indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integramente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentava como delito”.

[4] Faço aqui uma referência a idéia desenvolvida por Deleuze, a partir de Foucault, de “sociedade de controle”.

Referências Bibliográficas

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SELIGMANN, M. A história como trauma. In:NESTROVSKI, A., SELIGMANN, M. Catástrofe e Representação. SP: Escuta, 2000. p. 73-98.

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 17 abril, 2006.