por ANDRÉA BRAGA PESSANHA

Mestranda em História na Universidade Severino Sombra, Vassouras (USS - RJ).

 

* Este artigo é parte integrante do projeto de dissertação de Mestrado em História (USS – Universidade Severino Sombra)

 

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De Isabel a Zumbi: para uma análise do universo cultural e simbólico afro-brasileiro através de sambas-enredo de 1986 a 1996*

Andréa Braga Pessanha

 

O tema principal deste artigo é a análise do universo cultural e simbólico afro-brasileiro, através das letras dos sambas-de-enredo, ou sambas-enredo das escolas de samba do Grupo Especial[1] do carnaval carioca entre os anos de 1986 e 1996.

A escolha por este corte temporal (1986-1996) justifica-se por este período abranger dois marcos históricos relativos às questões negras, o centenário da abolição da escravidão no Brasil (1888-1988) e o tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares (1695-1995). O período analisado engloba também os anos anteriores e posteriores aos marcos citados.

Os sambas-enredo são importantes fontes documentais porque tanto preservam quanto divulgam valores e signos de determinados estamentos sociais e étnicos, que, no carnaval, são melhor percebidos e assimilados ou rejeitados por outros estamentos sociais/étnicos.

Embora tratados como minorias, a incidência de não-brancos[2] na população brasileira é superior à quantidade de brancos[3] nesta sociedade. Contudo estes estabeleceram a predominância de seus signos e valores em todas as instâncias sociais, por serem os segmentos controladores do poder nesta sociedade.

Parte da população do Rio de Janeiro e “Grande Rio” é afro-descendente e forma a maioria das mais desfavorecidas parcelas sociais. As escolas de samba estão baseadas em áreas onde a gama maior de moradores é afro-descendente. Entender como estes lidam com a presença ou ausência de seus signos e valores sócio-culturais nos sambas-enredo, cantados por toda a cidade e no Sambódromo, é o nosso interesse.

A opção pelos sambas-enredo se deu pela observação de que parte da população se envolve no clima de carnaval, aprendendo e repetindo as letras dos sambas das suas escolas-de-samba preferidas, no período que antecede as Festas de Momo. Estas letras são parte de uma concepção complexa de carnaval, que envolve a elaboração do enredo e de uma sinopse deste enredo pelo carnavalesco, entregue à ala dos compositores, a composição dos sambas pelos diversos integrantes da ala dos compositores e a escolha do melhor samba pela comunidade[4] envolvida com aquela escola.

Este envolvimento de grandes parcelas da população com o samba-enredo, memorizando-os, é uma forma de preservação/divulgação da cultura afro-brasileira, porque os sambas contam uma história (ou uma estória) que, em muitos casos, têm como temática principal ou secundária o universo afro; além disso, muitos compositores inserem em suas letras alusões ao seu ambiente sócio-cultural.

O Carnaval, embora para uma parcela dos autores estudados, já muito influenciado e invadido por valores estranhos aos seus de origem, continua sendo um dos poucos espaços de expressão e representatividade do universo mítico e lúdico do negro, onde, mesmo seguindo a sinopse de um enredo pré-estabelecido, é possível descobrir sambas-enredo onde transparecem elementos oriundos dos segmentos de base de uma escola de samba. As escolas são formadas, em sua quase totalidade, em morros, favelas e bairros pobres e periféricos do Rio de Janeiro. Nestes locais a maioria da população é etnicamente negra, apresentando uma simbologia própria.

Nestes onze anos de desfiles foram analisados 183 sambas-enredo. Dentre esses 25 tiveram a cultura afro-brasileira como temática principal; 66 como tema secundário, ou fizeram alusões a este, e 92 não trouxeram quaisquer referências ao universo cultural e simbólico negro. Este dado denota a existência de uma linha de continuidade da temática nos sambas-enredo do período analisado.

Como exemplo de referências à cultura negra podemos começar com as homenagens a três personalidades do universo afro-brasileiro feitas por escolas em 1986: Grande Othelo (G.R.E.S. Estácio de Sá), Caymmi (G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira) e Ganga Zumba (G.R.E.S. Engenho da Rainha). Nesta última enfocou-se também Palmares. Em 1988 quatro escolas tiveram enredos enfocando a escravidão e sua abolição no Brasil: a G.R.E.S. Mangueira denunciou a ilusão da alforria:

Será...

Que a Lei Áurea tão sonhada

Há tanto tempo assinada

Não foi o fim da escravidão

............................................

Livre do açoite da senzala

Preso na miséria da favela

 

A G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis cantou Sou Negro, do Egito à Liberdade e lembrou que: “Liberdade raiou, mas igualdade não , não, não, não, não”

Já a G.R.E.S. Tradição fez um enredo mais tradicional ao cantar a ‘harmonia’ existente entre as “raças” que compõem o povo brasileiro. Cita heranças culturais dos três troncos principais e, em relação à herança negra recita:

Tem Carimbo, tem Caxambu, tem Ticumbí

Maracatus e Jongos

Tem Chico Rei, tem Quelé, tem Zumbi

Resgatando até hoje a semente dos quilombos

 

E a campeã do Carnaval foi a G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel e seu antológico enredo Kizomba, a Festa da Raça. “Valeu, Zumbi! O Grito forte dos Palmares...”

Em 1989 a G.R.E.S. Estácio de Sá contou a história do arroz e o lembrou como ‘comida de santo’, alimento ofertado a Oxalá. Ainda comparou a miscigenação étnica brasileira à mistura de feijão com arroz. E a campeã do desfile a G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, ao descrever a transição da monarquia à república, lembrou a abolição da escravidão:

Pra Isabel, a heroína

Que assinou a Lei Divina

Negro cantou , comemorou

O fim da sina

 

Em 1991 a G.R.E.S. São Clemente, em enredo satírico à história do Brasil, refere-se aos “saturnafricanos” escravizados. E a G.R.E.S. Mocidade Independente de Padre Miguel cantou a água e dedicou uma parte de se samba aos orixás ligados à água:

Aieieu Mamãe Oxum

Yemanjá Mamãe Sereia

Salve as águas de Oxalá

Uma estrela me clareia

 

Em 1992 a G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro conta a história do café, sua origem africana e sua cor negra como a dos escravos que o cultivaram, além de aludir à religiosidade negra:

Soca no pilão

Preto Velho mandingueiro

O negro que virou ouro

Lá nas terras do Salgueiro

 

Já a G.R.E.S. Caprichosos de Pilares, em enredo sobre artesanato, canta o artesanato afro-brasileiro e seu vínculo com a religião:

Que batuque gostoso

Um axé bem formoso

Salve a Bahia

Ouro e prata adornando

Couro e lata marcando

Essa magia

 

Gostaríamos de exemplificar também com alguns versos em enredos sem relação com a temática negra, o que indicaria uma emersão do universo simbólico dos compositores sobre a sinopse dos carnavalescos. No ano de 1989 esta mesma Caprichosos de Pilares, em crítica à espoliação sofrida pelo Brasil, no enredo “O Que é Bom Todo Mundo Gosta”, em alusão direta ao misticismo afro-brasileiro, recita:

Eu já mandei buscar

A minha figa de guiné  (guiné)

Vou rezar não sei aonde

Pra espantar este olho grande

Da terra que o mundo’todo quer

 

No ano de 1996 a mesma Caprichosos, com o enredo Samba, Sabor Chocolate, afirma, em referência às mulheres descendentes da miscigenação entre negros e brancos, que esta iguaria é “marrom, da cor da ginga da mulata”

Aliás, referências aos termos mulata e morena são recorrentes nos sambas analisados. A G.R.E.S. Tradição cita a música “Garota de Ipanema” mas troca o corpo dourado da loura por um moreno:

Oh! Linda morena

Quero ver passar

Num doce balanço

Caminho do mar

 

Em 1993 a G.R.E.S. Unidos da Tijuca inspirou-se na composição étnica brasileira e afirma que, com a chegada do negro “meu Brasil morenizou”, assim como o morro do Borel, comunidade de origem da escola:

Canta Borel

A tua raça

Hoje é cor de mel

 

A G.R.E.S. Salgueiro, campeã do ano, pegou um “Ita no Norte” e desembarcou no Rio:

Terra do samba, da mulata e futebol

Aqui se faz necessário uma análise mais pormenorizada do ano de 1995. No ano do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, nenhuma das dezoito escolas fez qualquer alusão ao fato. Apenas em 1996 Zumbi foi relembrado (pela G.R.E.S. Unidos da Tijuca). Por que isto teria ocorrido? Talvez a influência da mídia possa explicar tal fenômeno. Nos anos precedentes a 1988 já havia muitos preparativos para comemorar o Centenário. Lançamentos de livros e eventos dos mais variados agitaram o cenário cultural brasileiro. Até a tradicional mensagem de fim de ano da TV Globo fez referência ao fato: todo o staff de atores negros da emissora e artistas negros convidados, após cantarem o jingle, desejaram axé, palavra que, para os adeptos das religiões afro-brasileiras, reúne força vital, energia. Atualmente esse termo foi apropriado pelos movimentos de valorização da negritude como emblema de luta.

Já a destruição do Quilombo dos Palmares e a morte de seu último rei, Zumbi trouxeram mais polêmica que comemorações institucionais. A proposta de um feriado cívico municipal em 20 de novembro foi criticada e ridicularizada por diversos segmentos sociais, e quando o projeto tornou-se lei, foi boicotado por comerciantes. Estes alegaram excesso de feriados, o que prejudicariam a economia como um todo. A argumentação de que mais um feriado era ruim não se aprofundou para a contestação do excesso de feriados católicos no país, embora o Estado seja laico.

Deixo para os leitores esta reflexão. Por que o centenário da abolição da escravidão no Brasil recebeu mais atenção e comemorações que o tricentenário da destruição do maior quilombo já constituído no Brasil?

Abaixo preparamos um gráfico com a distribuição dos 183 sambas pelos onze anos analisados.

Ano

enredo principal

enredo secundário

ausência de refer.

total

1986

3

10

7

20

1987

1

1

14

16

1988

4

7

5

16

1989

3

6

9

18

1990

3

4

9

16

1991

1

5

10

16

1992

1

5

9

15

1993

2

7

5

14

1994

4

3

9

16

1995

0

9

9

18

1996

3

9

6

18

Total

25

66

92

183

 

Fazendo este estudo de caso sobre os valores simbólicos afro-brasileiros nos sambas do carnaval, percebemos a importância de entender sua formação, desde sua criação, no Rio de Janeiro, no final do século XIX, até as feições atuais, no início do séc. XXI. O Carnaval surgiu em um contexto social extremamente heterogêneo e percebemos que há uma contraposição entre cientistas de correntes teóricas distintas e também entre escritores especialistas em samba sobre esta trajetória. O samba-enredo, as escolas de samba e o próprio carnaval estariam deturpados?

Mikhail Bakhtin, em A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais [5], afirma o espírito carnavalesco medieval como intensamente vivido por todas as instâncias sociais. É fundamental a compreensão que havia uma imersão no mundo do carnaval, que os participantes nunca se portavam como meros espectadores das diversas e simultâneas manifestações carnavalescas. Nos parece, pelas obras analisadas, que as formas de brincar o carnaval no Rio de Janeiro, no início do séc. XX ainda conservavam este espírito carnavalesco medieval. Com as transformações sofridas pelo carnaval carioca (para Bakhtin, o carnaval moderno), ao longo do séc. XX e início do séc. XXI, este ambiente lúdico teria se desvanecido.

Em artigo publicado na revista Estudos Históricos, editada pela Fundação Getúlio Vargas, intitulado Cronistas, folcloristas e os ranchos carnavalescos: perspectivas sobre a cultura popular, Renata de Sá Gonçalves faz uma análise comparativa entre a visão de cronistas e jornalistas e a visão de folcloristas, sobre o surgimento e o fim dos ranchos no carnaval carioca[6], no início do séc. XX. Cronistas, como Eneida, Jotaefegê, Francisco Guimarães (Vagalume), tinham um contato mais estreito com o mundo dos ranchos, promovendo, julgando e desfilando nestes. Faziam uma comparação das diversas manifestações carnavalescas entre si e as hierarquizavam dentro de uma suposta escala na qual os ranchos ocupavam lugar destacado. Os folcloristas, como Câmara Cascudo, Edison Carneiro, Renato Almeida, Mario de Andrade, por sua vez, voltados para o que julgavam ser as raízes da nossa nacionalidade, deram grande destaque à descrição dos ‘folguedos populares’, principalmente entre as décadas de 1940 e 1950, período de grande atuação e produção intelectual desse grupo. Assim, os ranchos carnavalescos, encarados dentro de um conjunto mais vasto de tradições, não foram destacados como uma manifestação especial, e sim como parte integrante da grande totalidade dos folguedos brasileiros.

A partir da observação das diversas linhas historiográficas sobre manifestações culturais, linhas estas que se opõem, chegamos a algumas conclusões sobre o esquema empresarial que teria afastado o lúdico da festa momesca; e a não existência de “cultura pura”, pois os contatos inter-étnicos inviabilizariam a manutenção de todo um conjunto de símbolos e signos isolados de influências externas, sejam elas intersociais ou mesmo intra-sociais. Por isso nosso objeto de estudo, a manifestação cultural denominado samba-enredo, não poderia ser considerado um fenômeno exclusivamente pertencente às camadas pobres da sociedade carioca, compostas fundamentalmente de negros e mestiços. Embora sua base seja os ritmos trazidos d’África, a inserção de instrumentos musicais europeus, de letras em Língua Portuguesa e contatos com ritmos populares europeus comprovariam esta interação cultural.

Estudos sobre os conceitos de cultura, cultura popular, e sobre a História do samba estão se tornando abundantes. Alguns desses estudos, por vezes, defendem que determinadas produções culturais são detentoras de tradições que não deveriam ser deturpadas por influências externas. É a mentalidade da cultura ter que possuir um comportamento isolacionista, ser um “museu vivo”, alijado da dinâmica das sociedades. Já outros afirmam que a dinâmica social é um impeditivo para um espontâneo resguardo de tradições culturais.

Os autores, e suas obras, analisados neste artigo, tanto ligados à Academia quanto pertencentes a outros setores sociais, são Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti - Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile[7]; Hermano Vianna – Mistério do Samba[8]; Roberto Moura - Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro[9]; entre outros.

Maria Laura Cavalcanti critica a noção de pureza cultural. Para ela:

A matriz conceitual que embasa esse tipo de leitura é uma noção de cultura popular, cujas raízes remontam ao Romantismo, poderosa corrente de idéias surgidas na Europa, na segunda metade do século XVIII[10]... O apelo ideológico deste tipo de visão é forte. Seus argumentos, entretanto, são metodologicamente insustentáveis. O acesso a uma ‘tradição popular pura’ é humanamente impossível. (...) as próprias idéias de pureza e autenticidade comportam problemas. Sugerem a homogeneidade, e a cultura popular é, e sempre foi, essencialmente diversa, a um ponto surpreendente.[11]

Hermano Vianna também aponta para este caminho em sua obra. Este autor utiliza-se de Gilberto Velho para ratificar sua argumentação.

A cultura brasileira é uma cultura heterogênea em que podemos notar “a consciência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser operacionais, étnicas, religiosas, etc.”[12]. A heterogeneidade cultural é uma das principais características das sociedades complexas, que vistas como “produto nunca acabado da interação e negociação da realidade efetivadas por grupos e mesmo indivíduos cujos interesses são, em princípio, potencialmente diferentes.”

Especificamente sobre nosso objeto de estudo, o samba, Hermano Vianna afirma que

o samba não é apenas a criação de grupos de negros e pobres, moradores dos morros do Rio de Janeiro, mas que outros grupos de outras classes e outras raças e outras nações participaram desse processo.[13]

Esta linha historiográfica acredita que o dinamismo social permite que universos culturais distintos interajam e influenciem-se mutuamente. Estas interações são intrínsecas às sociedades complexas

Mas encontramos autores que defendem que a pureza das raízes da cultura popular brasileira, no caso específico, o samba, estaria sendo deturpada por elementos estranhos ao seu universo. Já em 1962, entre os dias 28 de novembro e 02 de dezembro, reuniu-se o I Congresso Nacional do Samba, que contou com a participação de intelectuais, artistas e jornalistas especializados, como Edison Carneiro (presidente), Ari Barroso, Araci de Almeida, Sérgio Cabral, Pixinguinha – para citar alguns – além de representantes do Estado. Durante o Congresso foram instauradas seis comissões, sendo a primeira dividida em cinco subcomissões. Esta primeira comissão tinha como título Preservação das Características Tradicionais do Samba; uma de suas subcomissões trataria dos Aspectos Positivos da Comercialização e outra da Autenticidade, Estilização e Adaptação[14].

No prefácio do livro de Roberto Moura, assinada por Fernando Pamplona, Sérgio Cabral e Nei Lopes, podemos, no texto deste último, observar uma constatação crítica às transformações sofridas pelo universo do samba:

O período de 64 até agora foi decisivo para a desnacionalização absoluta de nossa cultura e completa descaracterização daquela outrora importante expressão de arte popular e vida comunitária que foi a escola de samba. (...) Nesses 20 anos o samba passou de alvo de perseguição racista a símbolo nacional, paternalizado pela cultura hegemônica. Passou a funcionar também como salvo-conduto aos seus “protetores”, alçados a patronos e mesmo “donos” das escolas. A profissionalização da figura do carnavalesco – antes um artista anônimo do grupo – cresceu e se sobrepôs aos anseios da comunidade. Tornou-se o dirigente todo poderoso, a quem até o “dono” da escola se submete.

A institucionalização da profissão de “presidente de ala”, que vende fantasias (a preços bem lucrativos) a pessoas estranhas à comunidade de origem da escola, que sequer sabem cantar o samba, ajudou a afastar ainda mais o samba de suas raízes. O samba-enredo mudou para satisfazer à nova clientela [classe média] e às gravadoras. Sambas mais ligeiros (mais “animados” e mais “alegres”), com refrões semelhantes a frevos, é o mais comum atualmente.[15]

Para Nei Lopes esta “invasão” de elementos estranhos ao universo cultural das comunidades produtoras do samba trouxe a mercantilização deste. Segundo este escritor houve um

acirramento na competição (muito dinheiro envolvido), antes cordial, hoje suscetível a subornos, intimidações e ameaças.[16]

Também acadêmicos concordam com esta corrente, como é o caso da filósofa Selma Ávila que, em sua dissertação, ao abordar a origem da escola de samba, afirma que:

Dos muito humildes ranchos do passado (...) surgiram as escolas de samba, inicialmente também pobres e simples, que hoje ostentam um luxo exagerado e repetitivo.[17] (...) Por muito que se afirme que o poder atrofia a imaginação, manipula e distorce a espontaneidade criadora, olhando esta festa espetacular a única, sentimos que, por mais que a indústria cultural imprima suas marcas destrutivas, a força artística deste povo é indestrutível, como o espírito do carnaval, que se transforma, se metamorfoseia e que, com seu poder afirmativo, pode enfrentar o establishment repressivo.[18]

Para a produção deste artigo foi selecionada, entre as hipóteses orientadoras do projeto de dissertação, a tese que a continuidade, embora não linear, de elementos do universo negro nos sambas-enredo do período analisado nos sugere um alto grau de resistência cultural negra, apesar da grande mistura étnica existente, atualmente, nos quadros das agremiações analisadas, e que as distintas correntes que analisam o carnaval carioca representam as diversas visões sobre este fenômeno sócio-cultural, tão complexo quanto à própria sociedade que o produz e consome. Como exemplo podemos citar a influência dos meios de comunicação - da mídia – no imaginário de carnavalescos e compositores, propiciando a grande exploração em torno do centenário da abolição da escravidão, influenciando no alto índice de enredos abordando o tema e no baixo índice de alusões, tanto da mídia quanto dos enredos, observado no ano do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares.

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Referências bibliográficas

Fontes Primárias

Sambas-enredo das escolas de samba do Grupo Especial, dos anos 1986 a 1996. Recolhidos nos materiais de divulgação da LIESA.

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Periódicos

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Revista Rio Samba e Carnaval. Rio de Janeiro. nº 25. 1996.

[1] Atualmente a denominação para as maiores e mais ricas escolas de samba do carnaval carioca é Grupo Especial, mas já foi Grupo I e I-A.

[2] Nesta categoria estariam negros, indígenas, mestiços, asiáticos, etc.

[3] Nesta categoria estariam pessoas de traços europeus e pele clara.

[4] Comunidade aqui no sentido de um grupo com interesses e objetivos comuns. Não no sentido comunidade carente, como se generalizou designar as favelas, onde muitas escolas estão baseadas.

[6] GONÇALVES, Renata de Sá. Cronistas, folcloristas e os ranchos carnavalescos: perspectivas sobre a cultura popular. Estudos Históricos nº 32. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003. pp. 89-105.

[7] CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: FUNARTE/UFRJ, 1994.

[8] VIANNA, Hermano. Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1995.

[9] MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983. Col. MPB, nº 9

[10] CAVALCANTI, Maria Laura, 1994. p.16.

[11] Idem. p. 17.

[12] VIANNA, Hermano, 1995. p. 16, citando VELHO, Gilberto. Projeto, emoção e orientação em sociedades complexas. In: Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. pp. 13-17.

[13] Idem. p. 16

[14] CARNEIRO, Edison. Carta do Samba.Rio de Janeiro: campanha de Defesa do Folclore, 1962.

[15] MOURA, Roberto. Carnaval - da Redentora à Praça do Apocalipse. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. pp. 9-12.

[16] Idem Ibdem.                 

[17] ÁVILA, Selma. Gaetner da Costa. O Carnaval como visão transformadora do mundo. (Dissertação de Mestrado em Filosofia). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Mar/81. p. 95.

[18] Idem. pp. 105/106.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 13 abril, 2006.