por ALEXANDER GONÇALVES

Graduado em Filosofia pela UEM (Universidade Estadual de Maringá-PR); docente no ensino fundamental, médio e superior

 

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O fim da arte pensado a partir do conceito de “aura” de W. Benjamin

 

Alexander Gonçalves

 

Resumo

O processo de industrialização e, conseqüentemente, o surgimento das novas técnicas de reprodução no séc. XX, deixam marcas profundas no campo da estética, significando um abalo considerável no modo de percepção da realidade transmitida. A fotografia mostra-se como um grande momento desta revolução que alcança seu apogeu com o advento do cinema, pois esta nova arte, além da imagem, simulava também o movimento do real. Com o cinema inaugura-se um novo conceito de arte, um novo conceito de narrativa, e um novo modo de perceber a realidade transmitida. O aparecimento das grandes salas de apresentação também apontava para uma arte não mais direcionada ao indivíduo, mas às massas. Este trabalho pretende, a partir das reflexões de Walter Benjamin, contemplar este momento de crise na concepção de arte vigente no início do séc. XX.

Palavras-chave: arte; reprodução; cinema; percepção.

Abstract

The industrialization process and, consequently, the appeareance of new techniques of reproduction in the 20 century leave deep marks on the aesthetics field, meaning a considerable concern in the perception way of the transmited reality. The photograph is shown as a big moment of this revolution wich achieves its top with the cinema advent, because this new art, beyond image, also simulated the moviment of the real. With the cinema a new concept of art is inaugurated, a new narrative concept, and a new way of understanding the transmited reality. The appearence of big rooms of representations also pointed to a not directed art to the person, but to the people. This research intends, starting from Walter Benjamin’s reflections, to contemplate this moment of crisis in the standing art conception in the beginning of 20 century.

Words-key: art; reproduction; cinema; perception.

 

No ensaio a obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1936), o filósofo Walter Benjamim afirma que, com as novas possibilidades de reprodução técnica desenvolvidas entre os séculos XIX e XX, a obra de arte perdeu a sua “autenticidade” e “autoridade”, que lhe era conferida através de sua duração no tempo, aliás, autenticidade e duração são qualidades que perdem o sentido diante destas novas técnicas de produção e reprodução das obras, representada principalmente nas formas da fotografia e principalmente do cinema. Por outro lado, ao perder aquilo que o filósofo chamou de “aura”, a arte deixa pra trás o aspecto elitista e tradicional, deixando de ser privilégio de apenas alguns para atingir a grande massa, ou seja, segundo Benjamin, as novas técnicas de reprodução da arte poderiam, em última análise, promover a democratização no campo das artes. Neste ensaio Walter Benjamin busca, através da análise das novas experiências estéticas do século XX, um diagnóstico para o indivíduo e a sociedade de seu tempo.

A reprodução de obras de arte, segundo Benjamin, não constitui nenhuma novidade, e isto se comprova na história da arte ao passo que, devido a diversas finalidades a arte foi sempre suscetível de reprodução. O que Benjamin constata como elemento novo, seria sem dúvida a técnica de reprodução, ou melhor, o dinamismo no desenvolvimento dessas técnicas que, no processo histórico da arte denuncia o quanto o aspecto quantitativo das reproduções sempre esteve intimamente ligado ao valor qualitativo dessas obras. Benjamin exemplifica este fato lembrando-nos quão marcante foi o processo de tipografia para a literatura mundial, e como a fotografia carregava dentro de si o embrião do cinema falado. O filósofo percebia que o desenvolvimento das técnicas de reprodução - decorrentes das mudanças no processo de produção - estava dentro da própria obra de arte, inoculada, como uma necessidade imposta pelo próprio contexto sócio-cultural à que advém a obra, e que, de certa forma, condiciona a produção artística.

Com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram tal nível que, em decorrência, ficaram em condições não apenas de se dedicar a todas as obras de arte do passado e de modificar de modo bem profundo os seus meios de influência, mas de elas próprias se imporem, como formas originais de arte. (BENJAMIN, 1980, P.6)

Benjamin acredita que, tanto as reproduções da obra de arte, e em especial, a arte cinematográfica, reagiram sobre as formas tradicionais de arte. Segundo Flávio René Kothe (1946), o ensaio “A obra de arte” é apenas aparentemente um ensaio sobre cinema, pois ele não se centraliza no cinema, mas toma-o como um ponto estratégico para examinar o “desenvolvimento” da arte, e conseqüentemente, os sintomas sociais. A “teoria crítica” de Benjamim consiste justamente nesta impossibilidade de se considerar uma particularidade autônoma, isolada de seu contexto histórico, portanto, segundo Benjamim, a arte nunca pode ser analisada por teorias abstratas, mas sim, a partir de suas ressonâncias com o todo histórico-social.

Com o rápido desenvolvimento tecnológico, proporciona-se um grande aperfeiçoamento nas técnicas da reprodução, tanto na indústria como na arte, este avanço permitia que, no processo de reprodução da obra de arte, se conservasse intacto todo o conteúdo desta obra. Mas, aos olhos de Benjamin, por mais perfeita que uma reprodução se apresente, ela sempre estará desprovida da característica de autenticidade, de seu hic et nunc (aqui e agora), descrita como a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra., presença que lhe confere toda sua história. O autor afirma que, desvalorizar o hic et nunc da obra de arte implica em atingi-la em seu ponto mais sensível: sua autenticidade. Cito Benjamin:

O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa. (Idem, P.08)

Para Benjamin, com a reprodução técnica, o aqui e agora característicos da obra de arte tradicional desaparecem, ocasionando a destruição da aura da obra de arte, e com isso, abalando o próprio conceito de arte, que de fenômeno estético singular, passa a ser um evento de massas.

A multiplicação de cópias permite que o evento produzido uma só vez transforme-se num fenômeno de massas, permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão, ou à audição em quaisquer circunstâncias, conferindo-lhe atualidade permanente, o que para Benjamin constitui em um abalo considerável na realidade transmitida, e conseqüentemente em um abalo na tradição, que explicitamente se configura na crise da renovação atual, pela qual passa a própria humanidade[1]. Para Benjamin estes processos estão correlacionados com os movimentos de massa produzidos em sua época, e o cinema seria seu agente mais eficaz, pois, para o filósofo “não se pode apreender a significação social do cinema, caso seja negligenciado o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural” (ibidem).

O surgimento do cinema representa então, o nascimento de uma arte cuja gênese já não repousa no âmbito da tradição, surge, pelo contrário, como a própria negação daquilo que é a essência da arte tradicional. Em outras palavras, o cinema surge como uma possibilidade de arte não pela sua autenticidade, mas devido justamente à sua possibilidade de reprodução, ou seja, aquilo que era único, feito por um artista único, em uma época única, e somente possível de ser observada em um único local (salas de concerto, museus etc.), pode ser sentido em diferentes lugares e épocas, ou em vários lugares ao mesmo tempo em contextos e circunstâncias diferentes.  A esta nova possibilidade de arte, se vincula também um novo modo de percepção do espectador, isto é, do próprio homem.

O aparecimento da fotografia, bem como do cinema já no século dezenove, e conseqüentemente, dos novos movimentos artísticos posteriormente consumados no século vinte, apontam para uma nova percepção da realidade transmitida. Segundo Benjamin, quando os jornais passam a ser ilustrados com fotos do cotidiano, ocorre aí uma nova maneira de se transmitir a informação, onde, uma foto, que já não é mais um retrato de família ou de alguém socialmente importante, precisa de uma narrativa textual para lhe atribuir significado.

Esta transformação narrativa observada principalmente na transição do século dezenove para o século vinte parece almejar o imediato, o que é o caso da teoria da informação, onde os fatos devem ser transmitidos o mais nu possível. Mas embora as fotos e as novas narrativas empregassem diferentes linguagens, ainda assim, era preciso simular o movimento das coisas que nos cercam, dar à representação o “sopro da vida”, a dinâmica do mundo, e com o cinema tornou-se mais fácil criar a sensação de movimento tão desejada pelas várias tendências artísticas do século vinte,  como os impressionistas, os dadaístas e os surrealistas. Além disso, com o cinema, foi possível manipular a representação do tempo como nunca antes havia acontecido. O tempo, isto é, necessidade de sua manipulação na representação, levou artistas e espectadores ao cinema.

A busca pela representação do instantâneo e do “real” aparece como ponto de partida do projeto cinematográfico. Conseqüências interessantes dessa busca podem ser visíveis nas teorias do cineasta russo S.M.Eisenstein, naquilo que ele chamou de “montagem de atracção”. O processo consiste no desenvolvimento de uma técnica de montagem  psicologicamente calculada para a captação das  percepções, ou seja, capaz de atrair o espectador e assim conduzi-lo através de choques sensoriais e psicológicos, choques que por sua vez, constituem a única possibilidade de alcançar uma conclusão ideológica perceptível. Estes choques foram primeiramente utilizados anteriormente no teatro por Eisenstein, e depois, segundo o mesmo, inevitavelmente empregado nas técnicas cinematográficas. Para melhor entendermos o que seria uma montagem de atracção cito Eisenstein:

A atracção é todo o fator agressivo do teatro, isto é, todo o elemento que leva ao espectador os fatores sensoriais ou psicológicos que influem na sua experiência, todo elemento que pode ser verificado experimentalmente e matematicamente calculado para produzir determinadas emoções-choques no espectador (...) porque o efeito lírico que certas cenas de Chaplin provocam é inseparável das atrações comunicadas pelo mecanismo específico do seu movimento. (EISENSTEIN, s/d, P.64).

O teatro concebido por Eisenstein, caminhava inevitavelmente para a representação de uma arte altamente objetiva e absolutamente real, e tal concepção de teatro conduzia diretamente ao cinema, pois somente o domínio cinematográfico podia conter a abjetividade mais inflexível, e assim, corresponder com maior fidelidade ao modo de perceber do espectador contemporâneo. Tentaremos, a partir de agora, demonstrar como a teoria de Benjamin descreve esta profunda transformação na percepção do homem contemporâneo, e de que forma elas correspondem com o surgimento de uma nova concepção de arte no século vinte.

Em A Obra de Arte na época de suas técnicas de reprodução, Walter Benjamin explica, a partir da história, esta transformação no modo de perceber a realidade. Segundo o filósofo,  na medida que a história se constrói, bem como na  medida que o homem constrói a história, sua percepção também se modifica - já que sua sensibilidade não depende apenas da natureza, mas também da história.  Acerca deste fenômeno, o comentador Flávio René Kothe afirma:

A reprodutibilidade técnica acarreta outro tipo de percepção, por um lado atrofiadora da diferença e por outro, dessacralizadora. Por sua vez, a própria necessidade de obras reproduzidas tecnicamente, possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico, decorre de mudanças no processo de produção (caracterizadas especialmente pela mecanização), que diminuem a capacidade de percepção do diferenciado, a ponto de atingirem a própria ‘ Einmaligkeit’ (o caráter único) da obra de arte.(KOTHE, 1978, P.36).

Para Walter Benjamin, o declínio de aura se apresenta em meio a uma série de transformações sociais, sendo assim, é uma resposta a um novo modo de perceber e de transmitir a realidade pelo homem em circunstâncias correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas na vida presente.

Benjamin define aura como a aparição única de uma realidade longínqua por mais próxima que esteja, e acredita que a decadência da aura está intimamente ligada a duas circunstâncias correlatas ao papel crescente desempenhado pelas massas em seu presente. O autor observa dentro das massas duas tendências igualmente fortes: exigem, de um lado, que as coisas se tornem, tanto humana quanto espacialmente mais próximas, de outro lado, acolhendo as reproduções, tendem a depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma vez. Benjamin observa que, dia a dia, impõe-se gradativamente a necessidade de assumir o domínio mais próximo possível do objeto através de sua imagem.

Para Flávio René Kothe, Benjamin destacou as possibilidades abertas pela tecnologia e as conseqüências positivas desta percepção modificada, que diz respeito principalmente ao aspecto da “dessacralização”; enquanto que Adorno em seu ensaio de 1938 intitulado de: “Uber den Fetischcharakter der Musik und die Regression des Horens” (O Fetichismo na Música e a regressão da audição), apontou as conseqüências negativas e as deficiências ali presentes. Para Benjamin, um salto qualitativo para frente; para Adorno, um salto para trás.

Dessacralizar a arte seria despoja-la do papel ritualístico a que, durante toda tradição esteve submetida. Apesar de apresentar-se modificada no tempo, a obra de arte sempre desempenhou o mesmo papel, isto é, de servir de suporte para um fim maior, e nunca de se encerrar em si mesma. Benjamim brevemente mostra-nos, entre os gregos antigos, a gênese da obra de arte a partir de um ritual, e em seguida vista como objeto de adoração religiosa. Segundo o autor, os antigos sentiam a aura da obra. Portanto a destruição da aura a partir da perda de sua função ritualística é vista por Benjamin como um fato no mínimo importante e decisivo no processo histórico da arte. O filósofo relata:

... o valor de unicidade, típica da obra de arte autêntica, funda-se sobre esse ritual que de início, foi o suporte do seu velho valor utilitário. Qualquer que seja o número de intermediários, essa ligação fundamental é ainda reconhecível – tal como um ritual secularizado – através do culto dedicado à beleza, mesmo sobre as formas mais profanas. Aparecido na época da renascença, esse culto da beleza, predominante no decorrer de três séculos, guarda hoje a marca reconhecível dessa origem, a despeito do primeiro abalo que sofreu desde então. (BENJAMIN, 1980, P.10)

Walter Benjamin afirma que a fotografia foi a primeira técnica de reprodução eminentemente revolucionária, e por ela os artistas, como visionários, puderam participar dos novos rumos da arte, que a partir de Mallarmé, se pretende autônoma.

A arte, neste momento, buscava sua autonomia, ser por ela mesma:
 “arte pela arte”. Isto significa que ela deveria encerrar-se em si mesma, e não depender condições sempre impostas por uma matéria objetiva. Este fato assinala a emancipação da obra de arte com relação à existência parasitária que lhe era imposta pelo seu papel ritualístico, e funda a arte sobre uma outra forma de práxis: a política.

A medida em que as obras de arte se afastaram de seu valor ritualístico tornaram mais passíveis de serem exibidas e deslocadas de um lugar para outro, pois anteriormente o culto, o mistério, envolvia as obras muitas vezes em um manto de segredos revelados apenas a poucos. Segundo Benjamin, as diversas técnicas de reprodução reforçaram esse aspecto em tais proporções que, mediante um fenômeno análogo ao produzido nas origens, o deslocamento quantitativo entre as duas formas de valor, típicas da obra de arte, transformou-se numa modificação qualitativa, que afeta sua própria natureza, e o valor de exibição sobrepõe-se decididamente sobre o valor de culto, Benjamin afirma ainda que a partir da fotografia e do cinema este fato se tornou bastante claro. O autor nota que, despregadas de suas bases ritualísticas pela técnica de reprodução, a arte, em decorrência, não mais podia manter seus aspectos de independência, e essa evolução, que implica na alteração funcional da arte, não pode ser percebida em seu tempo. Terry Eagleton, em seu ensaio sobre Benjamin intitulado de “O Rabino Marxista”, afirma:

...a reprodução mecânica, na qual a mesma tecnologia que produz a alienação, recebendo uma torção dialética, pode liberar os produtos culturais de sua aura intimidatória e faze-los funcionar em novas maneiras produtivas. (EAGLETON, 1993, P.238)

Segundo Benjamin, tal conseqüência, durante um longo tempo escapou ao séc. XX, que, no entanto, viu o cinema nascer e se desenvolver.

Para melhor elucidar a relação entre “arte tradicional” e “arte sem aura”, Benjamin tece uma análise sobre a relação entre cinema e teatro. Nesta exposição, o filósofo destaca o fato de que no cinema, diferentemente do teatro, existe um hiato entre o espectador e o intérprete[2]. Esse hiato consiste em dois fatos: o primeiro diz respeito ao mecanismo do cinema, onde o conjunto de aparelhos que transmite a performance do artista ao público não está obrigado a respeita-la integralmente. Além de que a atuação do intérprete encontra-se submetida a uma série de testes ópticos, referentes ao processo de produção do filme. O segundo refere-se ao fato de que o intérprete do filme, não apresentando ele próprio a sua performance, não tem, como o ator de teatro, a possibilidade de adaptar a sua atuação às reações dos espectadores no decorrer da representação; em face desse distanciamento, não é possível submeter os valores de culto. Ao separar o ator do público e coloca-lo diante dos aparelhos, a aura desses intérpretes desaparece necessariamente, e com ela, a das personagens que eles representam. Benjamin nota aí uma situação passível de ser caracterizada: pela primeira vez, e em decorrência do cinema, o homem deve agir com toda a sua personalidade viva, mas privado da aura.

Apoiando-se em alguns textos de Pirandello, Benjamin afirma que, na medida em restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a “personalidade do ator”; o culto do astro, que favorece ao capitalismo dos produtores e cuja magia é garantida pela personalidade que, já de há muito, reduziu-se ao encanto corrompido de seu valor de mercadoria. No entanto, esta nova arte produzida em meio a todas estas novas possibilidades de produção, vem de encontro com as novas expectativas do público contemporâneo, um público segundo Benjamim, atento àquilo que se repete identicamente pelo mundo, e que, “graças à reprodução, consegue-se até estandardizar aquilo que existe só uma vez” (BENJAMIN, 1980 P.09).

Do ponto de vista da psicanálise, o autor analisa algumas modificações que o espectador dessa nova arte veio a sofrer. Benjamin afirma que o cinema, alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido visual como no auditivo, acarretou, em conseqüência, um aprofundamento da percepção. E em decorrência disso o autor afirma a superioridade do cinema sobre a pintura e sobre o teatro. Com relação à pintura, diz que o cinema permite que se analise melhor o conteúdo dos filmes fornecendo um levantamento da realidade mais preciso. Com relação ao teatro por ser capaz de isolar um número bem maior de elementos constituintes, e isso é visto por Benjamin como ponto capital, pois sendo assim ele tende a favorecer mútua compenetração da arte e da ciência, e chama a atenção à uma outra característica, além desta citada, que diz respeito às transformações que o cinema causou em relação ao espaço e ao movimento desvendando novas estruturas da matéria, descobrindo novas formas do movimento desconhecidas do homem:

Fica bem claro, em conseqüência, que a natureza que fala à câmara é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente. (Idem, P.23)

Benjamin nota que, através das técnicas de filmagem, como os cortes, isolamentos, extensões, reduções, acelerações e retardamentos, a câmara abre, pela primeira vez ao homem, a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo.

O dadaísmo é visto por Walter Benjamin como um paralelo importante a ser traçado junto ao cinema. Segundo Benjamin, este movimento ajudou a amplificar o gosto pelo cinema nesta época, pois se constituía também do mesmo caráter de diversionismo pelos choques provocados no espectador devido às mudanças de lugares e de ambientes utilizados também no cinema, com a ressalva de que, no cinema diferentemente da pintura, não existe lugar para a contemplação, pois uma imagem sucede a outra em pequenos intervalos de tempo não deixando lugar para a fixação do pensamento, o que expôs essa arte a incansáveis críticas, como a de que arte seria concentração e não diversão. Benjamin responde afirmando que é justamente por essa espécie de divertimento que a arte nos confirma tacitamente que o nosso modo de percepção está hoje apto a responder novas tarefas, e conclui:

Se ele (o cinema) deixa em segundo plano o valor de culto da arte, não é apenas porque transforma cada espectador em aficionado, mas porque a atitude desse aficionado não é produto de nenhum esforço de atenção. O público das salas obscuras é bem um examinador que se distrai. (Ibidem, P.27)

A visão benjaminiana do advento do cinema, assim como de toda arte submetida à reprodução técnica, permanece imantada de um otimismo característico de uma abordagem materialista, onde a perda da aura consiste em uma necessidade da arte de atingir novas dimensões, de se libertar dos domínios burgueses do século XIX, e de adentrar assim à uma cultura de massa que vem sendo constituída. As conclusões de Benjamin acerca das novas técnicas de reprodução da arte provocaram várias reações no meio intelectual de seu tempo, como podemos observar em correspondências estabelecidas com seu amigo, e também frankfurtiano, Theodor W. Adorno[3]. Este apresenta uma visão bem menos otimista que a de Benjamim em relação às novas técnicas de reprodução, bem como acerca das novas possibilidades artísticas que surgem a partir deste dado.[4]

A análise de Benjamin acerca das novas técnicas de reprodução da obra de arte desenvolvidas nos séculos XIX e XX, parece indicar a superação do próprio conceito tradicional de arte, a partir da destruição daquilo que fundamentalmente lhe conferia autoridade e autenticidade no tempo: sua aura. A reprodução em série das obras de arte e sua difusão em massa abalaram a tradição ao atingirem este ponto fulcral, pois, com a perda da aura a obra de arte perde também aquele “algo de longínquo”, que permite com que uma obra de arte seja ela mesma e com isso “nos toque”, nos “diga algo”, a partir de um passado singular que se presentifica. Por fim, através da análise deste conceito (aura), Benjamin aponta o encerramento de uma dada concepção de arte bem como o surgimento de novas possibilidades estéticas configuradas e regidas por outras leis contrárias à autenticidade e duração, a saber, a repetição. Em outras palavras, através do conceito de aura, o filósofo observa as mais profundas transformações, não apenas da arte, mas do homem e da vida na época das reprodutibilidades técnicas.

 

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[1] Este ensaio foi escrito em 1936, no “entre-guerras”.

[2] Este hiato, constituído sobretudo pela mediação mecânica existente entre o espectador e o filme, é composto por todo aparato tecnológico (câmaras, luzes etc.) que se impõe entre o intérprete e o espectador. Segundo Benjamin, esta mediação mecânica pode alterar uma percepção da realidade, o que confere à fotografia e ao cinema dimensões perceptivas mais profundas do que as obtidas pelas obras de arte tradicionais. Benjamin acredita que, com o surgimento da fotografia e do cinema, a relação do homem com a realidade muda profundamente.

[3] Sobre estas correspondências ver o livro de Rolf Wiggershaus: A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significado político. Trad. Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

[4] Flávio René Kothe observa que Adorno não tem a mesma visão otimista (benjaminiana) em relação à arte reprodutível, pois, seu exílio nos EUA permitiu que observasse de perto os aspectos negativos que uma grande Indústria Cultural - como a gigante indústria cinematográfica norte-americana - poderia trazer à sociedade. Segundo o comentador, enquanto Benjamim adota uma perspectiva com fortes tendências materialistas e com fim otimista, Adorno é mais idealista e tende mais ao pessimismo no que diz respeito às novas técnicas de reprodução. Sobre esta discussão ver o livro de Flávio René Kothe: Ensaios 46, Benjamin & Adorno: confrontos, São Paulo: Ática, 1978.

Referências bibliográficas

ADORNO,T., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BENJAMIN.W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: Os pensadores: Textos escolhidos, Walter Benjamim, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jurgen Habermas, trad. José Lino Grunnewald, São Paulo: Abril Cultural, 1980

EAGLETON,T. A Ideologia da Estética, trad. Mauro Sá Rego Costa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

EISENSTEIN, S.M. Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução. Trad. C.Braga e I. Canelas, Lisboa: Editorial Presença, s/d.

________________. Reflexões de um Cineasta, trad. Gustavo A. Doria, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

KOTHE, F. Ensaios 46, Benjamin & Adorno: confrontos, São Paulo: Ática, 1978.

WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significado político. Trad. Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 12 abril, 2006.