Apolo e Dioniso disputam a soberania na obra de Antônio
      Fraga
      
      
      Maria
      Célia Barbosa Reis da Silva
      
 
      
      
      
        
        
          
            | Resumo O
              objetivo deste ensaio é mostrar a disputa pela soberania dos
              deuses Apolo e Dioniso na obra do escritor carioca Antônio Fraga.
              Dioniso, deus bastardo, da periferia; Fraga, autor marginal —
              ambos corroem a tradição nos costumes e no discurso. Apolo, deus
              da cidade, é a voz que legitima o poder e o discurso acadêmico.
              Em Desabrigo, no poema dramático Moinho e, e em
              outros escritos, o autor mostra suas faces: a de Dioniso, nas ações
              e na fala das personagens que vivem à margem, e a de Apolo, na
              citação de nomes e na apropriação de trechos de autores
              brasileiros e estrangeiros consagrados, e na estrutura do teatro
              clássico grego. A “dança” de Apolo e Dioniso pelas páginas
              de Fraga reflete a procura do equilíbrio entre o erudito e o
              moderno, entre o profano e o sacro, entre a transgressão e a
              aceitação, entre a vida e a ficção.
              
               Palavras-chave:
              Literatura; Deuses; Cidade, Periferia; Tradição.
              
               Abstract
              
              The
              scope of this essay is to show the contention for the supremacy of
              divinities—Dionysus and Apollo — on the carioca author’s
              books, Antônio Fraga. Dionysus is proscribe god, lives on the
              field, on the margin of the city. Fraga and the god of wine
              destroy part of the speech and custom from the tradition. Apollo,
              god of the city, is the voice of the power that legalizes the
              government rules in vigor and the academicals speech.
              
               Fraga’s
              books are able to translate the double face of his life and his
              fiction — from Dionysus and from Apollo. The dance of Dionysus
              and Apollo on the lines or on the margin of the page of his books
              reveals a pursuit of equilibrium between ancient and modern,
              between law-breaking e acceptance, between life and fiction. 
              
               Key-Words:
              Literature; Gods: City; On the margin; Law-breaking; Tradition.
              
               | 
        
        
       
       
      
      
       Mito
      significa narrativa. Sua abrangência, seus ritos, seus feitos, sua
      genealogia, sua procedência são criadas e transmitidas, em seus primórdios,
      pelo discurso oral. De boca em boca, o mito vai sendo reconstruído à feição
      dos povos que nele vêem sua imagem refletida e supervalorizada. “Se os
      deuses vivem uma vida igual à nossa, está justificada a vida humana, e não
      há teodicéia que seja mais satisfatória. (NIETZSCHE,
      s/d, p.31)
Mito
      significa narrativa. Sua abrangência, seus ritos, seus feitos, sua
      genealogia, sua procedência são criadas e transmitidas, em seus primórdios,
      pelo discurso oral. De boca em boca, o mito vai sendo reconstruído à feição
      dos povos que nele vêem sua imagem refletida e supervalorizada. “Se os
      deuses vivem uma vida igual à nossa, está justificada a vida humana, e não
      há teodicéia que seja mais satisfatória. (NIETZSCHE,
      s/d, p.31)
      
      
      O
      convite a Dioniso para participar dos festejos orgiásticos de Antônio
      Fraga é feito pelo próprio autor de Desabrigo
      em seu texto e contexto tão afinados à trajetória desse deus cuja força
      libertadora é capaz de corroer a tradição.
      Sob
      vários heterônimos – Zagreu, Sabázio, Iaco, Baco e Dioniso – e
      disfarces – touro, bode – o deus do êxtase e entusiasmo, auxiliado
      por seu pai, Zeus, luta pela vida e pela imortalidade; Fraga sob a máscara
      de suas criaturas – Evêmero, Cobrinha, Desabrigo, Miquimba, campônia,
      artífice – luta pela revelação da vida periférica sua e de seus
      pares por meio de seu discurso.
      Ambos
      vivem à margem – no campo, no Monte Nisa e no Mangue e adjacências –
      incomodam, transgridem, contestam o poder e o discurso que os legitimam.
      Os dois, no entanto, desejam ter acesso à polis,
      ser recebidos e reconhecidos pelo séqüito de Apolo: deuses olimpianos,
      acadêmicos, beletristas. Seus pares marginais de aparência estranha – faunos, sátiros, prostitutas, camponeses,
      gigolôs – não lhe bastam ou almejam trazê-los do centro para a
      periferia.
      Fraga
      faz parte do cortejo brasileiro que acompanha o deus da embriaguez e do
      delírio. O autor de Moinho e
      não é um escritor ingênuo nem individualista. Tal qual Dioniso, deus do
      povo da universalidade social, ele é o escritor dos desvalidos. Sua obra
      ambiciona estabelecer uma continuidade desse discurso espontâneo, prenhe
      de gírias, de ditados populares e de frases feitas, que aborrece e
      contesta o domínio apolíneo estabelecido. Suas vidas não devem ser
      encarceradas num discurso artificial, acadêmico, preso a regras
      gramaticais que não coaduna com o texto oral. A vida desses desprotegidos
      é uma construção no discurso de e sobre eles. Destituí-los de voz é
      alijá-los do processo social, é lançá-los para a margem da vida e da
      ficção.
      A
      vida e a obra fraguiana coincidem com a saga dionisíaca. Errantes,
      fugindo de Hera, dos Titãs ou do aluguel caro, irreverentes e rejeitados
      pelo espírito contestador e renovador, procuram um espaço em que possam
      celebrar seus feitos, seus ritos e conquistar novos seguidores. Dionísio,
      no campo, e Fraga, na Baixada Fluminense, semeiam o solo de onde brotam
      uvas e poesias.
      Apolo
      não se deixa abater, pois, nos sonhos de Fraga, há um espaço por ele
      ocupado. O Procurador da Marginália reflete, na vida e na obra, as
      contradições da vida vivida e da vida sonhada, da aparência e da essência,
      do popular e do erudito. Talvez, o procurado equilíbrio tenha sido
      perseguido: ser reconhecido no apolíneo meio acadêmico, como ele e sua
      escrita são: dionisíacos.
      A
      relação complexa do espírito apolíneo com o instinto dionisíaco na
      tragédia deveria, pois, na realidade ser simbolizada por uma aliança
      fraterna destas duas divindades. Dioniso fala a língua de Apolo, mas
      Apolo acaba por falar a língua de Dioniso; e dessa maneira se conseguiu
      atingir o fim último da tragédia e da arte. (NIETSCHE,
      s/d, p.135)
      
      
      A
      vida vivida
      
      
      Nas
      ruas Senador Euzébio e São Pedro, Antônio brinca sua meninice. De uma
      rua próxima, Visconde de Itaúna, vem ao som popular das rodas de samba.
      Lá, no número 117, mora Hilária de Almeida, Tia Ciata. O tempo célere
      desliza pelas ruas do menino e, logo, a separação dos pais, em 1932, lança-o
      na vida. Aos 16 anos, sozinho, resolve seguir rumo próprio. Vai para o
      Mangue, templo orgiástico de prazer, onde vende siri e bugigangas úteis
      ao “pedaço”. Pelo andar ziguezagueante recebo o apelido de Cobrinha,
      personagem da novela Desabrigo, obra que expressa nossa identidade e aproxima a língua
      falada da língua escrita, publicada em 1945, quando finda o Estado Novo.
      Na
      primeira metade da década de 40, a inquietude e a insatisfação em relação
      à Segunda Guerra Mundial e à ditadura do Estado Novo movem a produção
      intelectual brasileira que, pelas sombras das crises e talvez incitadas
      por elas, brota profícua e fluente em artigos, em depoimentos, em crônicas,
      na ficção, na pintura e nos bate-papos entabulados dos cafés, nos
      bares, nas leiterias, nas livrarias da Cidade do Rio de Janeiro. Década
      elástica que, sob a locução “de 45”, aglutina uma geração de múltiplos
      perfis, que do final dos anos 30 até meados de 50, revigora o modernismo,
      então em fase de saturação, e consolida em prosa e verso suas propostas
      de renovação e de pesquisa estética.
      Nos
      anos 40, quando o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, é o centro
      cultural do país, Fraga, andarilho irreverente, circula por diferentes
      espaços do centro carioca que – numa dionisíaca geografia, própria de
      boêmios, intelectuais, artistas, malandros – se estende da Taberna da
      Glória até botecos e cafés do Estácio, do Mangue e da Praça Onze.
      A
      obra
      Desabrigo
      literalmente vai a praça. Em 1945, Fraga assume uma atitude semelhante àquela
      que anos mais tarde identifica a geração Mimeógrafo: como poucos
      livreiros quiseram comprar sua novela, ele resolveu vendê-la nos bancos
      da Cinelândia. É o próprio Fraga quem relata esse fato ao jornal O
      Globo, em 8 de novembro de 1978.
      Fui
      para a Cinelândia, botei os livros num banco e comecei a vender ao povo.
      Ao lado do banco coloquei um cartaz: um livro, cinco mil réis, dois
      livros, quatro e um livro autografado somente mil reis. Considero uma
      bobagem esse negócio de autógrafos. O que vale é a obra. A assinatura
      de um homem não vale nada.
      
      
      Muitos
      caminhos, sem dúvida, conduzem a Fraga. Muitas vozes – contemporâneas
      ou não – dialogam com seus textos. Seus escritos contemplam muitos ismos.
      Palavras, expressões e rótulos hodiernos como estudos culturais,
      interdisciplinaridade, pluralidade, modernidade, pós-modernidade são
      passíveis e possíveis de serem discutidos a partir de seus textos. Como
      se trata de uma obra e de um autor quase desconhecidos, escolhi Desabrigo – livro inaugural, livro síntese de uma obra que seria
      tecida ao longo do tempo, anonimamente, à margem de editores, de críticos
      e de leitores. Em Desabrigo,
      estão todos os “ingredientes” – mecanismos e procedimentos literários
      – com os quais o porta-voz da marginália elabora suas poções mágicas
      ou suas composições poéticas nas quais Apolo e Dionísio disputam a
      soberania.
      Essa
      “quasi-novela” abriga três divisões cujos títulos – primeiro round,
      segundo tempo e terceiro ato – sintetizam a idéia principal dos seis
      episódios ou contos flagrantes que compõem cada parte da novela. Esses
      episódios são como peças de um jogo de armar: atritam-se pelas páginas
      do primeiro round e pelos espaços periféricos do Rio de Janeiro de
      outrora; depois se aproximam e possibilitam, no segundo tempo, o
      entendimento da “arte” do jogo, da literatura; e, no palco da vida, já
      no terceiro ato, juntam-se e produzem o sentido do texto, de Desabrigo:
      novela curta, episódica que focaliza 
      instantâneos de personagens transgressores e, ao mesmo tempo,
      fracassados, num espaço e tempo determinados – o Rio boêmio da década
      de 40.
      A
      novela narra-se, pois expõe ao leitor os bastidores da criação literária
      e/ou a efervescência interior do escritor em estado epifânico. O autor
      simula a criação de uma novela dentro da sua e elege Evêmero,
      personagem e pseudo-autor, como seu procurador. Evêmero, personagem de Desabrigo,
      resgata um outro (ou será ele mesmo?) escritor grego, do final do século
      IV e início do século III a.C. A intenção literária de ambos tem algo
      em comum: legitimar personagens divinos ou humanos que são refutados
      pelas instituições. Evêmero grego escreveu um romance filosófico
      – História sagrada (Hicra anagraphe) em que identifica os deuses
      com os antigos reis dinivizados, legando aos deuses uma realidade histórica,
      Transfigurados em seres históricos, os deuses resistiram ao longo
      processo de desmistificação e ao triunfo do Cristianismo. Aqui, cabe a
      Evêmero desempenhar o papel de autor da novela e o de crítico que
      defende seu ponto de vista sobre a construção da história pelo discurso
      que lhe é coerente. Evêmero é efêmero, cá no texto de Fraga, cumpre a
      execução do projeto da novela e bate “a bota em mil- novecentos- e
      -quarenta- e- dois. Semanas antes de bater 
      ele disse não sei onde nem quando”, o único ponto de vista
      original, feito para legitimar o livro que pretende escrever e que está
      sendo escrito sob os olhos do leitor:
      ...
      vou escrever ele todo em gíria pra arreliar um porrilhão de gente. Os
      anatoles vão me esculhambar. Mas se me der na telha usar a ausência de
      pontuação ou fazer as preposições ir parar na quirica das donzelinhas
      cheias de nove horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso
      povo não tenha de modo nenhum que dar satisfações a qualquer
      sacanocrata não acha? (Desabrigo, p. 16-7)
      
      
      Os
      pontos de vista, que entremeiam os contos flagrantes dos momentos primeiro
      e terceiro da novela, não estão vinculados à perspectiva narrativa
      tradicional. Exceto o de Evêmero, os demais são fragmentos colhidos e
      deslocados da obra de outros autores que inseridos em Desabrigo,
      contemplam o intuito de Fraga: discutir a participação da voz dos excluídos
      prosaica, fluida, despida de censura – no coro literário. Pela autoria
      e pela linguagem formal, esses pontos de vista evidenciam com seu parecer
      – favorável ou não – o lado apolíneo do nosso forasteiro literário
      e a validade de sua obra.
      Há
      seis pontos de vista: três, no primeiro round; três, no terceiro
      ato. Os pontos de vista primeiro e terceiro, respectivamente, de Campos de
      Carvalho e de José Guerreiro Murta não aceitam o linguajar do povo, o
      uso da gíria e da linguagem trivial no discurso literário. Os outros,
      contextualizados no terceiro ato, são apropriações de fragmentos
      de textos de Azorín, Henri Bauche e Luigi Pirandello. Há, nessa última
      parte da novela, uma comunhão ideológica que estabelece uma harmoniosa
      relação intertextos, isto é, entre o texto centralizador, no caso Desabrigo,
      e a unidade textual deslocada. Esses pontos de vista, introduzidos pelo
      narrador no curso da narrativa, tanto mostram a coerência entre a obra em
      si e o questionamento que se realiza pelas suas páginas, como torna a crítica
      - que, normalmente, só tem função fora da obra e após sua conclusão -
      parte do texto e, como tal, cúmplice do discurso que o constrói.
      Todas
      as personagens dialogam com Dioniso e sua corte. No primeiro round, a
      trama principal é a briga entre Oscar Pereira, vulgo Desabrigo, e seu
      desafeto Amauri dos Santos Silva, conhecido na Zona do Canal do Mangue e
      redondezas como Cobrinha. Todos os episódios estão de alguma forma
      ligados a essas personagens. A cena de banzé — no boteco de
      Coisada —  pára quando ele mostra a Cobrinha o jornal que noticia, sob
      o título Sururu no Mangue, a briga entre este e Desabrigo. O foco
      desloca-se para Desabrigo. Na porta do barraco de Durvalina, sua
      preferida, ele "escola a pivetada", contando as façanhas de seu
      pai: tocador de cuíca, mulherengo, malandro, capanga de Pinheiro Machado.
      A cena primeira continua em Palpites. No Café Bar e Bilhares Flor
      do Estácio, Desabrigo, chateado com a carta de rompimento de Durvalina,
      esconde-se no W. C. para evitar novo confronto com Cobrinha, mas a briga
      repete-se. O primeiro round só termina menos tenso porque um camelô
      aproveita o ajuntamento e usa todos os malabarismos verbais para vender a Loção
      Mercúrio.
      No
      segundo tempo, Evêmero chega ao Mangue para conhecer por dentro a
      vida que deseja tornar ficção: um livro "sobre todo vagabundo e
      mulher da vida" (D. p. 32) - um texto prosaico, com gírias,
      sem preocupações ortográficas ou sintáticas. Esse livro, almejado por
      ele, já começou a ser contado por um narrador em terceira pessoa, no primeiro
      round, mas só é escrito por Evêmero na última página. Os truques
      usados por Fraga conferem à novela caráter (meta) ficcional e são-nos
      revelados pelo narrador. “Naquele dia anatole tava mais peasado
      quedesabrigo na página dezenove (Loção Mercúrio) desta quasi-novela.”
      Nessa
      parte da novela, não há ponto de vista. Evêmero já externou o seu e o
      está pondo em prática: a escritura dessa novela. Anatole, porta-voz de
      Apolo, percebe e condena as intenções daquele, sai de bonde pelas linhas
      do livro e deixa Evêmero livre para documentar a vida e o patuá "do
      marginal "gostorrento como quê" mas que incomoda os "sacanocratas
      e beletristas" como Anatole.
      (...)
      Eis senão quando evitar repetições o autor resolveu botar um bonde
      nestas linhas. Botou então anatole aproveitou e disse que ia tomar aquele
      bonde porque tinha um encontro urgente marcado na cidade (...) (Desabrigo.
      p.30)
      
      
      De
      outro bonde (ou será o mesmo?) Cobrinha, o valentão do primeiro round,
      salta floreado, de costas sem pagar passagem e dá uma banana para o
      trocador. Banana lembra comida. A fome embaralha a vista, o fonema e o
      paladar, e ele come “mão como se fosse mamão” (D. p.30).
      Miquimba, atrasado no sexo e na comida, leva um fora da Neguinha, todavia
      defende a comida no jogo de bilhar, enganando Desabrigo. Mais adiante,
      Miquimba acode “uma vítima do álcool (Evêmero) que vai ser afanada
      por uma vítima de si mesmo (Cobrinha)”, (D. p.33) em troca
      recebe a caridade sexual da manicura. Evêmero, em estado etílico, nada
      percebe e continua contando para o poste – estrangeiro, puritano, cheio
      de complexo de superioridade: “Sabe seu poste? Vou escrever um livro bom
      à beca...” (D. p.34) Durvalina esquecida da navalhada que
      Desabrigo levara no rosto, deseja tirá-lo da prisão onde se encontra
      desde a segunda briga com seu desafeto.
      O
      terceiro ato começa quando “tava chegando o carnaval de 42” (D.
      39).  Cobrinha encontra
      Coisada numa batalha de confete, na Praça Onze. Por lá, passa um
      cordão, “cantando o samba maioral de 42” (D. p 46). O samba é
      de Cobrinha e fora-lhe roubado no Nice. Desabrigo, instruído por Miquimba,
      passa o conto no vigário, passa o conto do vigário, ludibria-lhe
      com uma triste história, envolvendo jóias de falso valor, é ilaqueado
      pelo padre e por Miquimba e, de novo, vai parar na cadeia. As vozes de
      Pirandello e Nietzsche entrecruzam-se no final do terceiro ato. O
      último ponto de vista, trecho de Seis personagens à procura de
      um autor, de Luigi Pirandello, precede o eterno retorno. Evêmero
      – um autor em busca de seus personagens – procura pelo cenário e
      pelas personagens de sua novela. Não os encontra. O Rio de Janeiro
      apresenta sensíveis modificações em sua geografia física e social. A
      Avenida Presidente Vargas desmonta a Praça Onze, parte do Mangue e outras
      construções, também, vão, em ritmo acelerado, descaracterizando palcos
      por onde zanzam Desabrigo, Cobrinha, Durvalina, Miquimba, Margô e seus
      pares na vida e na ficção. Dispersos, soltos pelas ruas de um Rio, nova
      face, as personagens perdem o rumo do texto e Evêmero não sabe o que
      fazer.
      “Então
      uma voz que vinha passando e que se chamava verbo”. (D. p.45)
      responde criticamente a uma das interpelações de Evêmero, usando um
      discurso espontâneo, jocoso, bem coadunado com o espírito da obra, com o
      comportamento e com a fala das personagens. Se “no princípio era o
      Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”, o verbo, na novela,
      numa acepção profana, é o criador, Antônio Fraga. Ele cobra, de certa
      forma, de Evêmero (ou será de si próprio?) a criação de um texto
      capaz de reunir as personagens, de liberar Desabrigo e de reconstruir um
      Rio atropelado pelo progresso. “Evêmero então foi indo para casa e foi
      pensando. “É preciso fazer alguma coisa – agir agir agir...” (D.
      p.50). É preciso ler esse momento, registrá-lo, torná-lo texto, pois
      “sacanocratas ensangüentavam o horizonte como um novo sol” (D.
      p.50). Meia-noite. “rodas de bonde chiavam em sua imaginação”. (D.
      p.50) O bonde que tantas vezes passa pelas linhas do livro traz a inspiração.
      “Evêmero arregaçou as mangas da camisa ( metralhadoras metralhadoras
      metralhadoras) e metralhou na reminton” (D. p. 50) a novela. É o
      caminho de ida e de volta, ou nas leituras dos textos e do mundo. O começo
      é também o fim, ou vice-versa: forma espácio-circular recorrente na
      obra de Fraga. O fim e o começo imbricados unem a vida à ficção, o
      homem aos deuses, traçando um ciclo em que o devir assinala o não-fim.
      Vozes
      sobre vozes num eterno retorno do diferente mostram o papel da
      intertextualidade na produção artística, notadamente neste século:
      produzir um discurso em que vários textos se contextualizam no texto
      aglutinador, sem perder sua memória primeira. O ritual intertextual exige
      uma determinada coerência entre texto/ contexto de onde expressões,
      nomes, citações e idéias foram deslocados e o texto/ contexto marginal
      em que agora se inserem.
      Fraga
      declara por Evêmero seu propósito de escrever um livro sobre o espaço
      urbano-marginal, sem academizar o falar malandro nem o fluxo de seu
      pensamento transmitido pelo narrador. Sua novela é permissiva, nela cabem
      todos os deslizes comuns à fala, principalmente, à de um segmento social
      que quase nunca possui o domínio da língua culta. Em todo o livro,
      exceto nos pontos de vista, ele não utiliza a vírgula, os dois pontos e
      o ponto final, contudo demarca a pausa com iniciais maiúsculas, usa reticências,
      ponto de exclamação e de interrogação. Os nomes próprios nada valem,
      logo devem ser grafados com minúscula. Sua redação, distante das regras
      gramaticais, revela plena sintonia entre o discurso e a vida de
      personagens cotidianos, despidos de heroicidade, de Apolo, (pontos de
      vista), fá-los bailar em nova coreografia frasal e em nova sonoplastia
      vocabular. Com seu olhar-câmara, o autor de O louva-a-deus, novela
      inédita, redimensiona as primeiras propostas modernistas de 22 e de 30,
      emprestando-lhe um novo enfoque calcado na sua vivência e na sua
      potencialidade ficcional. Substitui o culto do folclore pela valorização
      da fala e da existência daqueles que vivem à margem. Assim, extrai as raízes
      de nacionalidade de outro solo, tão fértil, tão brasileiro e, até tão
      marginal quanto o solo de onde emergiram o negro, o índio, o nordestino,
      o caipira.
      O
      debate acerca da linguagem, presente nos primeiros textos modernistas –
      de manifestos ou de ficção – é exposto verbalmente em Desabrigo:
      de um lado, salvo o de Evêmero, a linguagem da tradição, do poder
      mostrada nos pontos de vista; de outro lado, a voz da marginália que
      infringe os padrões lingüísticos pela espontaneidade da gíria, da
      linguagem obscena e pela desarticulação da sintaxe que denota o próprio
      comportamento social e opõe-se à linguagem da tradição. Desabrigo
      fica, no nível ficcional, como um manifesto modernista, que torna a
      literatura assunto de si mesma.
      A
      intertextualidade é um meio pelo qual o autor mobiliza um coro de vozes
      – afinado ou não com a escritura do século XX – para produzir um eco
      uníssono, que, mesmo desafinado ideologicamente, abra novas perspectivas
      formais, rompa com os ismos anteriores ou aclimate-os agora e
      pregue, até por opiniões adversas, uma linguagem literária nossa,
      comprometida com todos os seguimentos sociais, inclusive com aqueles
      postos quase sempre à margem.
      Tudo
      explode ao mesmo tempo. É tempo de guerra no mundo. É tempo de Estado
      Novo no Brasil. Os barulhos coincidem.A novela está sendo datilografada.
      Máquinas destroem casas, dispersam malandros e prostitutas. A construção
      da Avenida Presidente Vargas abre uma nova trilha para o centro do Rio de
      Janeiro. “Metratrabalhadoras” ideologizam um novo tempo, marcado pelo
      culto do trabalho, sem espaço para a coreografia de Dioniso.
      Metralhadoras sonorizam o segundo round bélico do mundo em ruínas.
      A arte coloca em cena uma época e um século conturbado, em que seres
      marginais, ficcionais ou históricos, aparecem como eternos pingentes da
      sobrevivência.
      A
      violência marca presença no livro: a briga entre Cobrinha e Desabrigo
      ratifica o malandro bambambã, destemido. A luta, travada entre esses
      elementos produtores da linguagem malandra, mostra o desejo do autor de
      chocar beletristas, sacanocratas com uma obra que ataque as normas
      gramaticais, o decoro público e todos aqueles que não revelam o negativo
      da vida. As prostitutas, nomeadas na obra ou anônimas, são obrigadas a
      deslocarem-se  e espalham-se para o centro, o que causa protestos na
      sociedade burguesa, pseudomoralista; outros prostitutos, os da guerra,
      oriundos de várias partes do mundo, lutam e “doam” seu corpo em prol
      de uma causa que desconhecem e de um poder que jamais lhes pertencerá.
      A
      vida e a ficção patrocinam o espetáculo: mães chamam pela volta dos
      filhos que partiram para a guerra: Evêmero procura pelas suas
      personagens, dizimadas na área periférica do Mangue em prol do progresso
      e da moral, ou encarcerados numa folha de papel por ajudarem a um escritor
      “que tava se devorando para se conservar” (D. p.50).
      Desabrigo
      é um texto literário cercado de outros textos. Por suas páginas
      circulam termos e expressões populares provenientes de um texto pulsante,
      falado e composto de forma coletiva na vida. Antônio Fraga usa a paráfrase
      em virtude da identidade que o aproxima do linguajar do povo. A paródia
      é a própria finalidade desse discurso na vida e na ficção:
      desconstruir e corroer o discurso oficial e todas as normas que por ele são
      instituídas. Desabrigo é fragmento de uma obra maior, construída
      pelo povo na rua, no dia-a-dia.
      Moinho
      e denominado pelo próprio autor de poema dramático: versão moderna
      dos cultos da fertilidade. Essa composição em versos se enquadra, de
      certa forma, no drama surgido na França, no século XVIII, que consistia
      na fusão dos gêneros maiores, comédia e tragédia, num gênero único.
      Denis Diderot em seus Discursos sobre a poesia dramática
      “advogou a necessidade de as peças apresentarem personagens contemporâneos,
      bem como contemporâneos os problemas
      abordados, para que interessassem direto ao espectador comum”
      (VASCONCELOS,1987, p. 71-2).
      O
      drama de Fraga apresenta divisão e personagens em sintonia com o teatro
      grego. Há o prólogo, seguido de dois atos, respectivamente com seis e
      cinco cenas e o epílogo. As personagens – despidas de nome próprio –
      misturam elementos do teatro grego (corifeu, artífice, arauto) com os do
      teatro vicentino (faladeira, campônia).
      O
      prólogo – à semelhança do teatro grego – fornece, pelo diálogo
      entre o coro e o corifeu, dados prévios elucidativos da peça. O coro,
      surgido pela primeira vez nas festividades comunais dionisíacas, explica
      e desdobra o título da peça por meio de uma cadência rítmica, cujas
      aliterações remetem ao movimento e ao som do moinho “no som
      arredondando sempre” (M, p.1). O moinho circula nas páginas em
      versos quase concretistas, formados por vocábulos cujo campo semântico
      acende as tochas e anuncia a presença de Dioniso à frente de seu tirso.
      O
      moinho roda, tritura o trigo que faz o pão. O moinho move-se ao som da
      flauta. A flauta compõe os paramentos dos deuses naturalistas,
      principalmente, de Pã, divindade dos pastores, guardião da natureza, ser
      híbrido, integrante do cortejo de Dioniso. A flauta é feita de fêmur,
      osso único da coxa: coxa de Zeus onde Dioniso completa sua gestação.
      Dioniso – semente, pingo, grão colhido do ventre de Sêmele. Do grão
      do trigo, brota uma curiosa versão da deusa do trigo, Deméter, e de sua
      filha Core ou Perséfone. Deméter, a filha de Crono e Réia, é a
      divindade da terra cultivada, a ela cabe a tarefa de ensinar aos homens a
      semear o trigo, a colhê-lo e, finalmente, usá-lo na feitura do pão.
      Core, no entanto, é raptada, e Deméter “decidiu não mais retornar ao
      Olimpo, mas permanecer na terra, até que lhe devolvessem a filha.
      Finalmente, os deuses chegaram a um consenso: Core passaria quatro meses
      com o esposo e oito meses com a mãe”. (BRANDÃO, 1991, v.1, p. 273-4) A
      instituição dos Mistérios de Elêusis celebra o reencontro das duas
      deusas. Os ritos iniciáticos de Elêusis terminam com Hierofante
      explicando os mistérios e exibindo à multidão o símbolo do mistério:
      a espiga de milho. Os mistérios de Elêusis representam a morte simbólica
      de Perséfone e seu retorno triunfante como semente, grão que morre no
      seio da terra e dele nascem novos rebentos.
      A
      fala do coro apresenta os símbolos ligados à semântica da fertilidade
      e, de forma implícita, às divindades as quais estão vinculados. O
      corifeu, mestre do coro e representante do povo, ratifica o coro e
      contesta a aparência , a forma bela, acabada. Exalta a essência, a
      origem “na raiz/ o aroma/ da flor” (M, p.16), a musicalidade das
      palavras “no sopro/ lento lindo longo limpo/ da avena” (M,
      p.17), os prazeres, o sexo, a mulher, a fertilidade “do sexo/ no sexo/
      cadência/ orgânica/ dispersa/ fêmea/ igual/ ritmo/ vário” (M, p.16),
      pênis/ ancas em festa/ leito noturno/ berço/ cantigas/ de ninar” (M,
      p.18). É a homenagem à vida ardente que emana dos “sonhadores dionisíacos”.
      Não
      é somente a aliança do homem com o homem que fica novamente selada pela
      magia do encantamento dionisíaco: também a natureza, alienada, inimiga,
      subjugada, celebra a sua reconciliação com o filho pródigo, o homem.
      Espontaneamente, a terra oferece as suas dádivas, e as feras das
      montanhas e dos desertos aproximam-se pacíficas. (NIETZSCHE,
      s/d p.23-40) 
      
      
      O
      culto a Dioniso está em cena. A forma apolínea, bela estática,
      individualizada é rejeitada pelo artífice: “modelada/ toda asa é imóvel/
      a brisa é no grão/ estática/ cala/ a flauta sem vento/ sem trigo o
      moinho/ pára” (M, p.23). A natureza e o homem sabem
      dionisiacamente que o teor da vida é empreitada coletiva e harmônica:
      “esculpido no ar/ o pássaro é vôo/ o vento em sua origem/ foi ondear
      de espigas/ trilo/ do mesmo/ trigo” (M, p.21)
      Em
      todo o poema dramático de Fraga, predomina a dança de Dioniso. Apolo,
      todavia, também entra em cena. A desmedida dionisíaca e o endosso apolíneo
      do poder espelham-se na relação do moço com a camponesa, contada pela
      faladeira ao artífice: “sopa/ odor de vegetal cozido/ boca/ barroca/
      oca/ de alimento/ do faminto/ a comer/ rosas/ repolhudas/ rosas/ e as róseas/
      carnes/ da campônia” (M, p.27). O lamento da camponesa, na
      terceira cena do primeiro ato, denota a sua falta de perspectivas e o seu
      desejo do retorno às origens: “por entre feras e fezes/ sonhar de
      sonhar um sonho/ beber o vinho nas uvas/ comer o pão nas espigas” (M,
      p. 29)
      O
      diabo, representante defensor do opressor, ratificado pelo coro, prega os
      mandamentos ao contrário, numa clara desconstrução do discurso bíblico:
      “ganharás o teu pão/ e o pão do teu patrão/ com o suor do teu corpo/
      trabalharás/ nos seis dias da semana/ e no domingo/ farás o resto do
      serviço / e aceitarás de joelho/ com um sorriso nos lábios/ o teu ínfimo
      salário? (M. p.32-3). A bruxa, detentora do oráculo, profetiza:
      “dorme nenezinho/ mamãe te agasalha/ a fralda de linho será tua
      mortalha/ das tábuas do berço/ farei teu caixão/dorme eternamente/ não
      desperta não”(D, p.39-40). O primeiro ato termina sob o signo da
      desilusão e da morte. Dioniso, na coxia do palco, lamenta o grito de
      decepção da camponesa: “ A vida não merece os nossos sonhos” (M,
      45)
      O
      segundo ato inicia-se “ensolarado”, mas há alguns signos de Tânatos
      que nublam o palco e roubam a cena do deus do vinho. Dioniso retoma seu
      lugar, anda/ sacode as cinzas dos Titãs e ri/ como um deus/ que com
      engenho e arte/ manipula os sons/ e organiza as palavras (Adaptado de M.p.3).
      O arauto, precedido por tambores, divulga para as musas que “ninguém
      poderá mais/ sob pretexto algum/ ocultar alvoradas/ entrem de braço
      dado/ pelo caule das flores/ soltem as borboletas/ libertem os tambores”
      (M, p. 63). “Fulguração intensa”, “guizos e atabaques”
      anunciam a entrada epifânica de Dioniso que, enfim, ganha a peleja e
      proclama: “A vida é riso” (M, p.64), “moinho e/ colheita/
      como é branca/a farinha/ prodigada/ às bocas pela/ aberta corola/ do
      moinho!/ guizo/ solto/ no ar/ avena/ baile/ festa/ e as crianças na
      terra/ a respirar o trigo” (M, p. 7-6)