Apolo e Dioniso disputam a soberania na obra de Antônio
Fraga
Maria
Célia Barbosa Reis da Silva
Resumo
O
objetivo deste ensaio é mostrar a disputa pela soberania dos
deuses Apolo e Dioniso na obra do escritor carioca Antônio Fraga.
Dioniso, deus bastardo, da periferia; Fraga, autor marginal —
ambos corroem a tradição nos costumes e no discurso. Apolo, deus
da cidade, é a voz que legitima o poder e o discurso acadêmico.
Em Desabrigo, no poema dramático Moinho e, e em
outros escritos, o autor mostra suas faces: a de Dioniso, nas ações
e na fala das personagens que vivem à margem, e a de Apolo, na
citação de nomes e na apropriação de trechos de autores
brasileiros e estrangeiros consagrados, e na estrutura do teatro
clássico grego. A “dança” de Apolo e Dioniso pelas páginas
de Fraga reflete a procura do equilíbrio entre o erudito e o
moderno, entre o profano e o sacro, entre a transgressão e a
aceitação, entre a vida e a ficção.
Palavras-chave:
Literatura; Deuses; Cidade, Periferia; Tradição.
Abstract
The
scope of this essay is to show the contention for the supremacy of
divinities—Dionysus and Apollo — on the carioca author’s
books, Antônio Fraga. Dionysus is proscribe god, lives on the
field, on the margin of the city. Fraga and the god of wine
destroy part of the speech and custom from the tradition. Apollo,
god of the city, is the voice of the power that legalizes the
government rules in vigor and the academicals speech.
Fraga’s
books are able to translate the double face of his life and his
fiction — from Dionysus and from Apollo. The dance of Dionysus
and Apollo on the lines or on the margin of the page of his books
reveals a pursuit of equilibrium between ancient and modern,
between law-breaking e acceptance, between life and fiction.
Key-Words:
Literature; Gods: City; On the margin; Law-breaking; Tradition.
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Mito
significa narrativa. Sua abrangência, seus ritos, seus feitos, sua
genealogia, sua procedência são criadas e transmitidas, em seus primórdios,
pelo discurso oral. De boca em boca, o mito vai sendo reconstruído à feição
dos povos que nele vêem sua imagem refletida e supervalorizada. “Se os
deuses vivem uma vida igual à nossa, está justificada a vida humana, e não
há teodicéia que seja mais satisfatória. (NIETZSCHE,
s/d, p.31)
O
convite a Dioniso para participar dos festejos orgiásticos de Antônio
Fraga é feito pelo próprio autor de Desabrigo
em seu texto e contexto tão afinados à trajetória desse deus cuja força
libertadora é capaz de corroer a tradição.
Sob
vários heterônimos – Zagreu, Sabázio, Iaco, Baco e Dioniso – e
disfarces – touro, bode – o deus do êxtase e entusiasmo, auxiliado
por seu pai, Zeus, luta pela vida e pela imortalidade; Fraga sob a máscara
de suas criaturas – Evêmero, Cobrinha, Desabrigo, Miquimba, campônia,
artífice – luta pela revelação da vida periférica sua e de seus
pares por meio de seu discurso.
Ambos
vivem à margem – no campo, no Monte Nisa e no Mangue e adjacências –
incomodam, transgridem, contestam o poder e o discurso que os legitimam.
Os dois, no entanto, desejam ter acesso à polis,
ser recebidos e reconhecidos pelo séqüito de Apolo: deuses olimpianos,
acadêmicos, beletristas. Seus pares marginais de aparência estranha – faunos, sátiros, prostitutas, camponeses,
gigolôs – não lhe bastam ou almejam trazê-los do centro para a
periferia.
Fraga
faz parte do cortejo brasileiro que acompanha o deus da embriaguez e do
delírio. O autor de Moinho e
não é um escritor ingênuo nem individualista. Tal qual Dioniso, deus do
povo da universalidade social, ele é o escritor dos desvalidos. Sua obra
ambiciona estabelecer uma continuidade desse discurso espontâneo, prenhe
de gírias, de ditados populares e de frases feitas, que aborrece e
contesta o domínio apolíneo estabelecido. Suas vidas não devem ser
encarceradas num discurso artificial, acadêmico, preso a regras
gramaticais que não coaduna com o texto oral. A vida desses desprotegidos
é uma construção no discurso de e sobre eles. Destituí-los de voz é
alijá-los do processo social, é lançá-los para a margem da vida e da
ficção.
A
vida e a obra fraguiana coincidem com a saga dionisíaca. Errantes,
fugindo de Hera, dos Titãs ou do aluguel caro, irreverentes e rejeitados
pelo espírito contestador e renovador, procuram um espaço em que possam
celebrar seus feitos, seus ritos e conquistar novos seguidores. Dionísio,
no campo, e Fraga, na Baixada Fluminense, semeiam o solo de onde brotam
uvas e poesias.
Apolo
não se deixa abater, pois, nos sonhos de Fraga, há um espaço por ele
ocupado. O Procurador da Marginália reflete, na vida e na obra, as
contradições da vida vivida e da vida sonhada, da aparência e da essência,
do popular e do erudito. Talvez, o procurado equilíbrio tenha sido
perseguido: ser reconhecido no apolíneo meio acadêmico, como ele e sua
escrita são: dionisíacos.
A
relação complexa do espírito apolíneo com o instinto dionisíaco na
tragédia deveria, pois, na realidade ser simbolizada por uma aliança
fraterna destas duas divindades. Dioniso fala a língua de Apolo, mas
Apolo acaba por falar a língua de Dioniso; e dessa maneira se conseguiu
atingir o fim último da tragédia e da arte. (NIETSCHE,
s/d, p.135)
A
vida vivida
Nas
ruas Senador Euzébio e São Pedro, Antônio brinca sua meninice. De uma
rua próxima, Visconde de Itaúna, vem ao som popular das rodas de samba.
Lá, no número 117, mora Hilária de Almeida, Tia Ciata. O tempo célere
desliza pelas ruas do menino e, logo, a separação dos pais, em 1932, lança-o
na vida. Aos 16 anos, sozinho, resolve seguir rumo próprio. Vai para o
Mangue, templo orgiástico de prazer, onde vende siri e bugigangas úteis
ao “pedaço”. Pelo andar ziguezagueante recebo o apelido de Cobrinha,
personagem da novela Desabrigo, obra que expressa nossa identidade e aproxima a língua
falada da língua escrita, publicada em 1945, quando finda o Estado Novo.
Na
primeira metade da década de 40, a inquietude e a insatisfação em relação
à Segunda Guerra Mundial e à ditadura do Estado Novo movem a produção
intelectual brasileira que, pelas sombras das crises e talvez incitadas
por elas, brota profícua e fluente em artigos, em depoimentos, em crônicas,
na ficção, na pintura e nos bate-papos entabulados dos cafés, nos
bares, nas leiterias, nas livrarias da Cidade do Rio de Janeiro. Década
elástica que, sob a locução “de 45”, aglutina uma geração de múltiplos
perfis, que do final dos anos 30 até meados de 50, revigora o modernismo,
então em fase de saturação, e consolida em prosa e verso suas propostas
de renovação e de pesquisa estética.
Nos
anos 40, quando o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, é o centro
cultural do país, Fraga, andarilho irreverente, circula por diferentes
espaços do centro carioca que – numa dionisíaca geografia, própria de
boêmios, intelectuais, artistas, malandros – se estende da Taberna da
Glória até botecos e cafés do Estácio, do Mangue e da Praça Onze.
A
obra
Desabrigo
literalmente vai a praça. Em 1945, Fraga assume uma atitude semelhante àquela
que anos mais tarde identifica a geração Mimeógrafo: como poucos
livreiros quiseram comprar sua novela, ele resolveu vendê-la nos bancos
da Cinelândia. É o próprio Fraga quem relata esse fato ao jornal O
Globo, em 8 de novembro de 1978.
Fui
para a Cinelândia, botei os livros num banco e comecei a vender ao povo.
Ao lado do banco coloquei um cartaz: um livro, cinco mil réis, dois
livros, quatro e um livro autografado somente mil reis. Considero uma
bobagem esse negócio de autógrafos. O que vale é a obra. A assinatura
de um homem não vale nada.
Muitos
caminhos, sem dúvida, conduzem a Fraga. Muitas vozes – contemporâneas
ou não – dialogam com seus textos. Seus escritos contemplam muitos ismos.
Palavras, expressões e rótulos hodiernos como estudos culturais,
interdisciplinaridade, pluralidade, modernidade, pós-modernidade são
passíveis e possíveis de serem discutidos a partir de seus textos. Como
se trata de uma obra e de um autor quase desconhecidos, escolhi Desabrigo – livro inaugural, livro síntese de uma obra que seria
tecida ao longo do tempo, anonimamente, à margem de editores, de críticos
e de leitores. Em Desabrigo,
estão todos os “ingredientes” – mecanismos e procedimentos literários
– com os quais o porta-voz da marginália elabora suas poções mágicas
ou suas composições poéticas nas quais Apolo e Dionísio disputam a
soberania.
Essa
“quasi-novela” abriga três divisões cujos títulos – primeiro round,
segundo tempo e terceiro ato – sintetizam a idéia principal dos seis
episódios ou contos flagrantes que compõem cada parte da novela. Esses
episódios são como peças de um jogo de armar: atritam-se pelas páginas
do primeiro round e pelos espaços periféricos do Rio de Janeiro de
outrora; depois se aproximam e possibilitam, no segundo tempo, o
entendimento da “arte” do jogo, da literatura; e, no palco da vida, já
no terceiro ato, juntam-se e produzem o sentido do texto, de Desabrigo:
novela curta, episódica que focaliza
instantâneos de personagens transgressores e, ao mesmo tempo,
fracassados, num espaço e tempo determinados – o Rio boêmio da década
de 40.
A
novela narra-se, pois expõe ao leitor os bastidores da criação literária
e/ou a efervescência interior do escritor em estado epifânico. O autor
simula a criação de uma novela dentro da sua e elege Evêmero,
personagem e pseudo-autor, como seu procurador. Evêmero, personagem de Desabrigo,
resgata um outro (ou será ele mesmo?) escritor grego, do final do século
IV e início do século III a.C. A intenção literária de ambos tem algo
em comum: legitimar personagens divinos ou humanos que são refutados
pelas instituições. Evêmero grego escreveu um romance filosófico
– História sagrada (Hicra anagraphe) em que identifica os deuses
com os antigos reis dinivizados, legando aos deuses uma realidade histórica,
Transfigurados em seres históricos, os deuses resistiram ao longo
processo de desmistificação e ao triunfo do Cristianismo. Aqui, cabe a
Evêmero desempenhar o papel de autor da novela e o de crítico que
defende seu ponto de vista sobre a construção da história pelo discurso
que lhe é coerente. Evêmero é efêmero, cá no texto de Fraga, cumpre a
execução do projeto da novela e bate “a bota em mil- novecentos- e
-quarenta- e- dois. Semanas antes de bater
ele disse não sei onde nem quando”, o único ponto de vista
original, feito para legitimar o livro que pretende escrever e que está
sendo escrito sob os olhos do leitor:
...
vou escrever ele todo em gíria pra arreliar um porrilhão de gente. Os
anatoles vão me esculhambar. Mas se me der na telha usar a ausência de
pontuação ou fazer as preposições ir parar na quirica das donzelinhas
cheias de nove horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso
povo não tenha de modo nenhum que dar satisfações a qualquer
sacanocrata não acha? (Desabrigo, p. 16-7)
Os
pontos de vista, que entremeiam os contos flagrantes dos momentos primeiro
e terceiro da novela, não estão vinculados à perspectiva narrativa
tradicional. Exceto o de Evêmero, os demais são fragmentos colhidos e
deslocados da obra de outros autores que inseridos em Desabrigo,
contemplam o intuito de Fraga: discutir a participação da voz dos excluídos
prosaica, fluida, despida de censura – no coro literário. Pela autoria
e pela linguagem formal, esses pontos de vista evidenciam com seu parecer
– favorável ou não – o lado apolíneo do nosso forasteiro literário
e a validade de sua obra.
Há
seis pontos de vista: três, no primeiro round; três, no terceiro
ato. Os pontos de vista primeiro e terceiro, respectivamente, de Campos de
Carvalho e de José Guerreiro Murta não aceitam o linguajar do povo, o
uso da gíria e da linguagem trivial no discurso literário. Os outros,
contextualizados no terceiro ato, são apropriações de fragmentos
de textos de Azorín, Henri Bauche e Luigi Pirandello. Há, nessa última
parte da novela, uma comunhão ideológica que estabelece uma harmoniosa
relação intertextos, isto é, entre o texto centralizador, no caso Desabrigo,
e a unidade textual deslocada. Esses pontos de vista, introduzidos pelo
narrador no curso da narrativa, tanto mostram a coerência entre a obra em
si e o questionamento que se realiza pelas suas páginas, como torna a crítica
- que, normalmente, só tem função fora da obra e após sua conclusão -
parte do texto e, como tal, cúmplice do discurso que o constrói.
Todas
as personagens dialogam com Dioniso e sua corte. No primeiro round, a
trama principal é a briga entre Oscar Pereira, vulgo Desabrigo, e seu
desafeto Amauri dos Santos Silva, conhecido na Zona do Canal do Mangue e
redondezas como Cobrinha. Todos os episódios estão de alguma forma
ligados a essas personagens. A cena de banzé — no boteco de
Coisada — pára quando ele mostra a Cobrinha o jornal que noticia, sob
o título Sururu no Mangue, a briga entre este e Desabrigo. O foco
desloca-se para Desabrigo. Na porta do barraco de Durvalina, sua
preferida, ele "escola a pivetada", contando as façanhas de seu
pai: tocador de cuíca, mulherengo, malandro, capanga de Pinheiro Machado.
A cena primeira continua em Palpites. No Café Bar e Bilhares Flor
do Estácio, Desabrigo, chateado com a carta de rompimento de Durvalina,
esconde-se no W. C. para evitar novo confronto com Cobrinha, mas a briga
repete-se. O primeiro round só termina menos tenso porque um camelô
aproveita o ajuntamento e usa todos os malabarismos verbais para vender a Loção
Mercúrio.
No
segundo tempo, Evêmero chega ao Mangue para conhecer por dentro a
vida que deseja tornar ficção: um livro "sobre todo vagabundo e
mulher da vida" (D. p. 32) - um texto prosaico, com gírias,
sem preocupações ortográficas ou sintáticas. Esse livro, almejado por
ele, já começou a ser contado por um narrador em terceira pessoa, no primeiro
round, mas só é escrito por Evêmero na última página. Os truques
usados por Fraga conferem à novela caráter (meta) ficcional e são-nos
revelados pelo narrador. “Naquele dia anatole tava mais peasado
quedesabrigo na página dezenove (Loção Mercúrio) desta quasi-novela.”
Nessa
parte da novela, não há ponto de vista. Evêmero já externou o seu e o
está pondo em prática: a escritura dessa novela. Anatole, porta-voz de
Apolo, percebe e condena as intenções daquele, sai de bonde pelas linhas
do livro e deixa Evêmero livre para documentar a vida e o patuá "do
marginal "gostorrento como quê" mas que incomoda os "sacanocratas
e beletristas" como Anatole.
(...)
Eis senão quando evitar repetições o autor resolveu botar um bonde
nestas linhas. Botou então anatole aproveitou e disse que ia tomar aquele
bonde porque tinha um encontro urgente marcado na cidade (...) (Desabrigo.
p.30)
De
outro bonde (ou será o mesmo?) Cobrinha, o valentão do primeiro round,
salta floreado, de costas sem pagar passagem e dá uma banana para o
trocador. Banana lembra comida. A fome embaralha a vista, o fonema e o
paladar, e ele come “mão como se fosse mamão” (D. p.30).
Miquimba, atrasado no sexo e na comida, leva um fora da Neguinha, todavia
defende a comida no jogo de bilhar, enganando Desabrigo. Mais adiante,
Miquimba acode “uma vítima do álcool (Evêmero) que vai ser afanada
por uma vítima de si mesmo (Cobrinha)”, (D. p.33) em troca
recebe a caridade sexual da manicura. Evêmero, em estado etílico, nada
percebe e continua contando para o poste – estrangeiro, puritano, cheio
de complexo de superioridade: “Sabe seu poste? Vou escrever um livro bom
à beca...” (D. p.34) Durvalina esquecida da navalhada que
Desabrigo levara no rosto, deseja tirá-lo da prisão onde se encontra
desde a segunda briga com seu desafeto.
O
terceiro ato começa quando “tava chegando o carnaval de 42” (D.
39). Cobrinha encontra
Coisada numa batalha de confete, na Praça Onze. Por lá, passa um
cordão, “cantando o samba maioral de 42” (D. p 46). O samba é
de Cobrinha e fora-lhe roubado no Nice. Desabrigo, instruído por Miquimba,
passa o conto no vigário, passa o conto do vigário, ludibria-lhe
com uma triste história, envolvendo jóias de falso valor, é ilaqueado
pelo padre e por Miquimba e, de novo, vai parar na cadeia. As vozes de
Pirandello e Nietzsche entrecruzam-se no final do terceiro ato. O
último ponto de vista, trecho de Seis personagens à procura de
um autor, de Luigi Pirandello, precede o eterno retorno. Evêmero
– um autor em busca de seus personagens – procura pelo cenário e
pelas personagens de sua novela. Não os encontra. O Rio de Janeiro
apresenta sensíveis modificações em sua geografia física e social. A
Avenida Presidente Vargas desmonta a Praça Onze, parte do Mangue e outras
construções, também, vão, em ritmo acelerado, descaracterizando palcos
por onde zanzam Desabrigo, Cobrinha, Durvalina, Miquimba, Margô e seus
pares na vida e na ficção. Dispersos, soltos pelas ruas de um Rio, nova
face, as personagens perdem o rumo do texto e Evêmero não sabe o que
fazer.
“Então
uma voz que vinha passando e que se chamava verbo”. (D. p.45)
responde criticamente a uma das interpelações de Evêmero, usando um
discurso espontâneo, jocoso, bem coadunado com o espírito da obra, com o
comportamento e com a fala das personagens. Se “no princípio era o
Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”, o verbo, na novela,
numa acepção profana, é o criador, Antônio Fraga. Ele cobra, de certa
forma, de Evêmero (ou será de si próprio?) a criação de um texto
capaz de reunir as personagens, de liberar Desabrigo e de reconstruir um
Rio atropelado pelo progresso. “Evêmero então foi indo para casa e foi
pensando. “É preciso fazer alguma coisa – agir agir agir...” (D.
p.50). É preciso ler esse momento, registrá-lo, torná-lo texto, pois
“sacanocratas ensangüentavam o horizonte como um novo sol” (D.
p.50). Meia-noite. “rodas de bonde chiavam em sua imaginação”. (D.
p.50) O bonde que tantas vezes passa pelas linhas do livro traz a inspiração.
“Evêmero arregaçou as mangas da camisa ( metralhadoras metralhadoras
metralhadoras) e metralhou na reminton” (D. p. 50) a novela. É o
caminho de ida e de volta, ou nas leituras dos textos e do mundo. O começo
é também o fim, ou vice-versa: forma espácio-circular recorrente na
obra de Fraga. O fim e o começo imbricados unem a vida à ficção, o
homem aos deuses, traçando um ciclo em que o devir assinala o não-fim.
Vozes
sobre vozes num eterno retorno do diferente mostram o papel da
intertextualidade na produção artística, notadamente neste século:
produzir um discurso em que vários textos se contextualizam no texto
aglutinador, sem perder sua memória primeira. O ritual intertextual exige
uma determinada coerência entre texto/ contexto de onde expressões,
nomes, citações e idéias foram deslocados e o texto/ contexto marginal
em que agora se inserem.
Fraga
declara por Evêmero seu propósito de escrever um livro sobre o espaço
urbano-marginal, sem academizar o falar malandro nem o fluxo de seu
pensamento transmitido pelo narrador. Sua novela é permissiva, nela cabem
todos os deslizes comuns à fala, principalmente, à de um segmento social
que quase nunca possui o domínio da língua culta. Em todo o livro,
exceto nos pontos de vista, ele não utiliza a vírgula, os dois pontos e
o ponto final, contudo demarca a pausa com iniciais maiúsculas, usa reticências,
ponto de exclamação e de interrogação. Os nomes próprios nada valem,
logo devem ser grafados com minúscula. Sua redação, distante das regras
gramaticais, revela plena sintonia entre o discurso e a vida de
personagens cotidianos, despidos de heroicidade, de Apolo, (pontos de
vista), fá-los bailar em nova coreografia frasal e em nova sonoplastia
vocabular. Com seu olhar-câmara, o autor de O louva-a-deus, novela
inédita, redimensiona as primeiras propostas modernistas de 22 e de 30,
emprestando-lhe um novo enfoque calcado na sua vivência e na sua
potencialidade ficcional. Substitui o culto do folclore pela valorização
da fala e da existência daqueles que vivem à margem. Assim, extrai as raízes
de nacionalidade de outro solo, tão fértil, tão brasileiro e, até tão
marginal quanto o solo de onde emergiram o negro, o índio, o nordestino,
o caipira.
O
debate acerca da linguagem, presente nos primeiros textos modernistas –
de manifestos ou de ficção – é exposto verbalmente em Desabrigo:
de um lado, salvo o de Evêmero, a linguagem da tradição, do poder
mostrada nos pontos de vista; de outro lado, a voz da marginália que
infringe os padrões lingüísticos pela espontaneidade da gíria, da
linguagem obscena e pela desarticulação da sintaxe que denota o próprio
comportamento social e opõe-se à linguagem da tradição. Desabrigo
fica, no nível ficcional, como um manifesto modernista, que torna a
literatura assunto de si mesma.
A
intertextualidade é um meio pelo qual o autor mobiliza um coro de vozes
– afinado ou não com a escritura do século XX – para produzir um eco
uníssono, que, mesmo desafinado ideologicamente, abra novas perspectivas
formais, rompa com os ismos anteriores ou aclimate-os agora e
pregue, até por opiniões adversas, uma linguagem literária nossa,
comprometida com todos os seguimentos sociais, inclusive com aqueles
postos quase sempre à margem.
Tudo
explode ao mesmo tempo. É tempo de guerra no mundo. É tempo de Estado
Novo no Brasil. Os barulhos coincidem.A novela está sendo datilografada.
Máquinas destroem casas, dispersam malandros e prostitutas. A construção
da Avenida Presidente Vargas abre uma nova trilha para o centro do Rio de
Janeiro. “Metratrabalhadoras” ideologizam um novo tempo, marcado pelo
culto do trabalho, sem espaço para a coreografia de Dioniso.
Metralhadoras sonorizam o segundo round bélico do mundo em ruínas.
A arte coloca em cena uma época e um século conturbado, em que seres
marginais, ficcionais ou históricos, aparecem como eternos pingentes da
sobrevivência.
A
violência marca presença no livro: a briga entre Cobrinha e Desabrigo
ratifica o malandro bambambã, destemido. A luta, travada entre esses
elementos produtores da linguagem malandra, mostra o desejo do autor de
chocar beletristas, sacanocratas com uma obra que ataque as normas
gramaticais, o decoro público e todos aqueles que não revelam o negativo
da vida. As prostitutas, nomeadas na obra ou anônimas, são obrigadas a
deslocarem-se e espalham-se para o centro, o que causa protestos na
sociedade burguesa, pseudomoralista; outros prostitutos, os da guerra,
oriundos de várias partes do mundo, lutam e “doam” seu corpo em prol
de uma causa que desconhecem e de um poder que jamais lhes pertencerá.
A
vida e a ficção patrocinam o espetáculo: mães chamam pela volta dos
filhos que partiram para a guerra: Evêmero procura pelas suas
personagens, dizimadas na área periférica do Mangue em prol do progresso
e da moral, ou encarcerados numa folha de papel por ajudarem a um escritor
“que tava se devorando para se conservar” (D. p.50).
Desabrigo
é um texto literário cercado de outros textos. Por suas páginas
circulam termos e expressões populares provenientes de um texto pulsante,
falado e composto de forma coletiva na vida. Antônio Fraga usa a paráfrase
em virtude da identidade que o aproxima do linguajar do povo. A paródia
é a própria finalidade desse discurso na vida e na ficção:
desconstruir e corroer o discurso oficial e todas as normas que por ele são
instituídas. Desabrigo é fragmento de uma obra maior, construída
pelo povo na rua, no dia-a-dia.
Moinho
e denominado pelo próprio autor de poema dramático: versão moderna
dos cultos da fertilidade. Essa composição em versos se enquadra, de
certa forma, no drama surgido na França, no século XVIII, que consistia
na fusão dos gêneros maiores, comédia e tragédia, num gênero único.
Denis Diderot em seus Discursos sobre a poesia dramática
“advogou a necessidade de as peças apresentarem personagens contemporâneos,
bem como contemporâneos os problemas
abordados, para que interessassem direto ao espectador comum”
(VASCONCELOS,1987, p. 71-2).
O
drama de Fraga apresenta divisão e personagens em sintonia com o teatro
grego. Há o prólogo, seguido de dois atos, respectivamente com seis e
cinco cenas e o epílogo. As personagens – despidas de nome próprio –
misturam elementos do teatro grego (corifeu, artífice, arauto) com os do
teatro vicentino (faladeira, campônia).
O
prólogo – à semelhança do teatro grego – fornece, pelo diálogo
entre o coro e o corifeu, dados prévios elucidativos da peça. O coro,
surgido pela primeira vez nas festividades comunais dionisíacas, explica
e desdobra o título da peça por meio de uma cadência rítmica, cujas
aliterações remetem ao movimento e ao som do moinho “no som
arredondando sempre” (M, p.1). O moinho circula nas páginas em
versos quase concretistas, formados por vocábulos cujo campo semântico
acende as tochas e anuncia a presença de Dioniso à frente de seu tirso.
O
moinho roda, tritura o trigo que faz o pão. O moinho move-se ao som da
flauta. A flauta compõe os paramentos dos deuses naturalistas,
principalmente, de Pã, divindade dos pastores, guardião da natureza, ser
híbrido, integrante do cortejo de Dioniso. A flauta é feita de fêmur,
osso único da coxa: coxa de Zeus onde Dioniso completa sua gestação.
Dioniso – semente, pingo, grão colhido do ventre de Sêmele. Do grão
do trigo, brota uma curiosa versão da deusa do trigo, Deméter, e de sua
filha Core ou Perséfone. Deméter, a filha de Crono e Réia, é a
divindade da terra cultivada, a ela cabe a tarefa de ensinar aos homens a
semear o trigo, a colhê-lo e, finalmente, usá-lo na feitura do pão.
Core, no entanto, é raptada, e Deméter “decidiu não mais retornar ao
Olimpo, mas permanecer na terra, até que lhe devolvessem a filha.
Finalmente, os deuses chegaram a um consenso: Core passaria quatro meses
com o esposo e oito meses com a mãe”. (BRANDÃO, 1991, v.1, p. 273-4) A
instituição dos Mistérios de Elêusis celebra o reencontro das duas
deusas. Os ritos iniciáticos de Elêusis terminam com Hierofante
explicando os mistérios e exibindo à multidão o símbolo do mistério:
a espiga de milho. Os mistérios de Elêusis representam a morte simbólica
de Perséfone e seu retorno triunfante como semente, grão que morre no
seio da terra e dele nascem novos rebentos.
A
fala do coro apresenta os símbolos ligados à semântica da fertilidade
e, de forma implícita, às divindades as quais estão vinculados. O
corifeu, mestre do coro e representante do povo, ratifica o coro e
contesta a aparência , a forma bela, acabada. Exalta a essência, a
origem “na raiz/ o aroma/ da flor” (M, p.16), a musicalidade das
palavras “no sopro/ lento lindo longo limpo/ da avena” (M,
p.17), os prazeres, o sexo, a mulher, a fertilidade “do sexo/ no sexo/
cadência/ orgânica/ dispersa/ fêmea/ igual/ ritmo/ vário” (M, p.16),
pênis/ ancas em festa/ leito noturno/ berço/ cantigas/ de ninar” (M,
p.18). É a homenagem à vida ardente que emana dos “sonhadores dionisíacos”.
Não
é somente a aliança do homem com o homem que fica novamente selada pela
magia do encantamento dionisíaco: também a natureza, alienada, inimiga,
subjugada, celebra a sua reconciliação com o filho pródigo, o homem.
Espontaneamente, a terra oferece as suas dádivas, e as feras das
montanhas e dos desertos aproximam-se pacíficas. (NIETZSCHE,
s/d p.23-40)
O
culto a Dioniso está em cena. A forma apolínea, bela estática,
individualizada é rejeitada pelo artífice: “modelada/ toda asa é imóvel/
a brisa é no grão/ estática/ cala/ a flauta sem vento/ sem trigo o
moinho/ pára” (M, p.23). A natureza e o homem sabem
dionisiacamente que o teor da vida é empreitada coletiva e harmônica:
“esculpido no ar/ o pássaro é vôo/ o vento em sua origem/ foi ondear
de espigas/ trilo/ do mesmo/ trigo” (M, p.21)
Em
todo o poema dramático de Fraga, predomina a dança de Dioniso. Apolo,
todavia, também entra em cena. A desmedida dionisíaca e o endosso apolíneo
do poder espelham-se na relação do moço com a camponesa, contada pela
faladeira ao artífice: “sopa/ odor de vegetal cozido/ boca/ barroca/
oca/ de alimento/ do faminto/ a comer/ rosas/ repolhudas/ rosas/ e as róseas/
carnes/ da campônia” (M, p.27). O lamento da camponesa, na
terceira cena do primeiro ato, denota a sua falta de perspectivas e o seu
desejo do retorno às origens: “por entre feras e fezes/ sonhar de
sonhar um sonho/ beber o vinho nas uvas/ comer o pão nas espigas” (M,
p. 29)
O
diabo, representante defensor do opressor, ratificado pelo coro, prega os
mandamentos ao contrário, numa clara desconstrução do discurso bíblico:
“ganharás o teu pão/ e o pão do teu patrão/ com o suor do teu corpo/
trabalharás/ nos seis dias da semana/ e no domingo/ farás o resto do
serviço / e aceitarás de joelho/ com um sorriso nos lábios/ o teu ínfimo
salário? (M. p.32-3). A bruxa, detentora do oráculo, profetiza:
“dorme nenezinho/ mamãe te agasalha/ a fralda de linho será tua
mortalha/ das tábuas do berço/ farei teu caixão/dorme eternamente/ não
desperta não”(D, p.39-40). O primeiro ato termina sob o signo da
desilusão e da morte. Dioniso, na coxia do palco, lamenta o grito de
decepção da camponesa: “ A vida não merece os nossos sonhos” (M,
45)
O
segundo ato inicia-se “ensolarado”, mas há alguns signos de Tânatos
que nublam o palco e roubam a cena do deus do vinho. Dioniso retoma seu
lugar, anda/ sacode as cinzas dos Titãs e ri/ como um deus/ que com
engenho e arte/ manipula os sons/ e organiza as palavras (Adaptado de M.p.3).
O arauto, precedido por tambores, divulga para as musas que “ninguém
poderá mais/ sob pretexto algum/ ocultar alvoradas/ entrem de braço
dado/ pelo caule das flores/ soltem as borboletas/ libertem os tambores”
(M, p. 63). “Fulguração intensa”, “guizos e atabaques”
anunciam a entrada epifânica de Dioniso que, enfim, ganha a peleja e
proclama: “A vida é riso” (M, p.64), “moinho e/ colheita/
como é branca/a farinha/ prodigada/ às bocas pela/ aberta corola/ do
moinho!/ guizo/ solto/ no ar/ avena/ baile/ festa/ e as crianças na
terra/ a respirar o trigo” (M, p. 7-6)