O Oportunismo de Montaigne
Resumo
O
fideísmo e o ceticismo de Montaigne constituem ainda uma discussão
presente, visto que ele tenha sido o responsável pela retomada do
ceticismo na modernidade. Neste trabalho retomaremos estas duas
linhas de pensamento. Na Apologia de Raimond Sebond essa
discussão se dá em um momento importante da história, ou seja,
o da Reforma Protestante. Se no pensamento de Montaigne predominou
o ceticismo, o fideísmo ou outra linha de pensamento, só uma
investigação mais minuciosa poderá responder.
Palavras
– chave: Montaigne,
ceticismo, Reforma Protestante e fideísmo.
Abstract
Montagne’s
fideism and skepticism are still considered under discussion since
he was responsible for the retaking of skepticism and modernity.
This work aims at retaking the two thoughts. In Raimond Sebond’s
apology, this discussion occurs in a very important moment of
history, the Protestant Reform. Thus, only a detailed
investigation on whether
skepticism, fideism or other ideas were predominant in
Montagne’s thought will be necessary to answer that question.
Key
words: Montaigne,
skepticism, Protestant Reform, fideism. |
Introdução
Michel
de Montaigne foi um filósofo da Renascença, ainda que ao escrever os
seus Ensaios não se julgasse um filósofo. Simplesmente escrevia aquilo
que pensava resultante de seus
estudos e de suas próprias experiências e das
experiências vividas por outros. Seus
ensaios não mostravam métodos, mas uma irreverência e um modo de
escrever muitas vezes bem humorado, mas que atraiam a atenção de seus
leitores e amigos como ele mesmo demonstra:
Uma
palavra acerca desse gênero epistolar em que meus amigos julgam que eu
poderia alcançar algum êxito e que de bom grado teria escolhido para
publicar meus devaneios se soubesse a quem endereçar as cartas. Para
tanto fora preciso que tivesse hoje, como tinha outrora, uma pessoa
com a qual mantivesse relações contínuas, que me agradassem, me
animassem e me inspirassem. Pois raciocinar ao léo como fazem outros, só
o faria em sonho. (MONTAIGNE,
I972, p.126)
Ora,
Montaigne não costumava falar aquilo que não pensava, talvez por isto as
suas epístolas se diferenciavam das do seu tempo, que eram com tantas
cerimônias e delongas, que acabavam por chatear Montaigne e por isso se
abstinha de tal modo de escrita, “aborrece-me parecer adulador, e como
tenho naturalmente a expressão concisa, direta, sem adornos, considera-me
algo desdenhoso quem não me conhece por outros aspectos”. (MONTAIGNE,
1972, P. 126) Segundo Luiz Costa Lima:
A
morte de La Boétie o deixara sem interlocutor; o desdém pela cultura da
glória mais o distanciava da prática epistolar; a necessidade, porém,
de escrever o punha à procura de uma forma. Mas escrever o que, para
quem, para quê? O que tinha a exprimir não era doutrina, o destinatário
era anônimo, se é que existente, a finalidade que perseguiria só
poderia ser a do testemunho. (LIMA, 1993, P. 85)
Em
seus Ensaios é tocante a forma de seus argumentos, no qual, ao mesmo
tempo em que demonstra um desenrolar de um problema apresenta um argumento
contrário. Prova disso são os diversos exemplos que utilizava, tirados
de histórias e experiências não importando a época que aconteceram.
Montaigne cita um exemplo na qual a comiseração ou a valentia pode ter
um mesmo resultado:
A
maneira mais comum de amolecer o coração dos que nos ofendem, quando,
vingança em mãos, eles nos têm à sua mercê, é comovê-los pela nossa
submissão, inspirando-lhes comiseração e piedade. Entretanto a bravura,
a tenacidade e a resolução são meios inteiramente opostos alcançam às
vezes idêntico resultado. (MONTAIGNE, 1972, P. 13)
O
que Montaigne queria provar é que por diversos meios chega-se ao mesmo
fim. Portanto, as circunstâncias podem levar aos resultados mais
diversos, desde que se saiba aproveitar as oportunidades que surgem,
podemos perceber aqui um certo relativismo da parte de Montaigne. E
colocando em pauta a sua expressão pode-se perceber facilmente que a
maioria das vezes que ele escreve sobre determinado assunto, deixa um fio
condutor que pretende levar o seu leitor a algum outro extremo, deixando
transparecer que ele quis dizer algo mais do que se propôs, e que, de
certo modo, ele quer chegar a uma outra explicação daquilo que ele
sugeriu.
Assim,
também, mostra como que a vivência de uma situação dolorosa possa ser
suportada de forma mais amena, dando um exemplo de um homem que, sendo
conduzido para a morte por seu carrasco, disse: “que não lhe bulisse no
pescoço, pois era muito coceguento e poderia ter um acesso de riso”.
(MONTAIGNE, 1972, P. 34) Com muita irreverência, segundo Montaigne, o bem
e o mal só o são, pela idéia que deles temos. Não parece que ele
quisesse viver como um estóico, apenas em algumas situações seria
oportuno um pouco de indiferença.
Montaigne
não se julgue versado no estudo da natureza humana, contudo, nos Ensaios
é patente o seu interesse pelo comportamento humano nas eventualidades da
vida. Talvez para comparar as reações alheias com as suas próprias reações
e daí tirar as suas conclusões. Ou, rememorando as experiências que
vivenciou o levassem a entender o comportamento dos outros em determinadas
situações. Talvez, essa observação também o conduzisse a julgar de
acordo com seu próprio crivo as situações adversas que ocorriam em seu
país naquela época.
Analogicamente
Montaigne igualava-se a um fiel de uma “balança” ao balancear o peso
dos argumentos, ao apresentar os dois lados das questões evidenciando os
seus opostos. Será que essa forma de escrever seria uma evidência de um
suposto ceticismo como aponta Luiz Antônia Aves Eva quando diz haver um
certo paralelismo da obra de Montaigne e o ceticismo pirrônico? Poderemos
ter a resposta mais adiante.
Montaigne
mostra em sua obra uma certa divisão do homem particular e do homem público,
talvez por ter sido um homem envolvido algum tempo com a política como
profissão, acreditava que um homem deveria ser obediente ao seu rei às
leis de seu país e buscar uma conduta honesta. Quanto à religião,
embora filho de mãe judia, e tendo vivido na época da Reforma
protestante, superou as dúvidas e optou pela permanência na tradição,
ou seja, a religião católica, o que não lhe impediu de algumas vezes
criticar alguns exageros praticados pela igreja e seus fiéis, e de
escrever sobre assuntos variados, além de ser um apreciador dos escritos
céticos de Sexto Empírico, o que parecia lhe dar prazer.
Nos
Ensaios é comum perceber o seu gosto por outros escritores como Cícero,
Ovídio e principalmente Sêneca. Além
de fazer inúmeras menções de experiências que vivenciou, que leu, que
observou e que ouviu de outros, ele não deixou muito evidente qual a sua
linha de pensamento, pois com a destreza com que escrevia ficava claro o
seu grande interesse por leituras variadas que lhe acumulasse certos
saberes filosóficos, religiosos, e assuntos gerais, se ele se portava
como um estóico, cético ou epicurista ou fideísta, dependia pelo que me
parece, da necessidade do momento.
Quem
pesquisa os seus Ensaios tem a impressão que ele tenha vivido essas
linhas filosóficas em diversas etapas de sua vida e saboreado um pouco de
cada, como que procurando não um pensamento que pudesse seguir
unicamente, mas para elaborar a sua própria linha de pensamento, livre de
amarras, é como buscar conhecer muitos caminhos a fim de encontrar
inspiração para fazer a sua própria estrada.
A
sua forma de escrever é o que leva os leitores de sua obra a ficarem com
um certo dilema de qual tenha sido as influências de seus Ensaios
principalmente na Apologia de Raimond Sebond, e é nesse tema que
irei ater-me e aprofundar.
A
Apologia de Raimond Sebond trata da obra de um teólogo que
escreveu um livro intitulado: Teologia Natural ou Livro das Criaturas,
na qual o autor afirmava que todos os artigos de fé poderiam ser
comprovados racionalmente, foi uma obra que pretendia defender os artigos
de fé contra os ateus. Contra essa obra se levantaram várias objeções,
tanto dos teólogos quanto dos ateus. Segundo Montaigne, o objetivo de
Sebond foi ousado e corajoso, pois, se propôs a provar contra os ateus,
todos os artigos de fé da religião cristã, baseando-se na razão humana
e natural. Porém os próprios teólogos dirigiram objeções a sua
argumentação.
Por
algum motivo, ainda não evidente, Montaigne se lança em defesa de Sebond,
entretanto a sua defesa é um tanto irreverente como é comum em seu modo
de escrever, pois, quem se aventura a lê-la verifica que em várias
passagens não é claro se ele está defendendo, refutando, ou apenas se
divertindo às custas de Sebond e de seus objetores enquanto põe em evidência
a sua própria opinião. Ora, alguns comentadores se aventuraram a tentar
compreender se Montaigne era um fideísta, ou se era um cético, isto é,
ao mesmo tempo, que defendia a fé com armas teológicas, refutava os
ateus com armas racionais, de modo naturalista e um tanto irônico
utilizando argumentos religiosos e céticos.
A
sua mescla de tradição e ceticismo fazem a Apologia de Raimond
Sebond uma leitura problemática e ao mesmo tempo instigante, já que
mostra um Montaigne livre de amarras externas, ou seja, um filósofo (impremeditado
e fortuito) (EVA, 2001, 9) que não estava preso a nenhum método que
pudesse lhe tirar a liberdade de escrever aquilo que apreciava.
Uma
hipótese do que Montaigne procurava enquanto ser racional com livre arbítrio,
e enquanto dialogava consigo mesmo, na época que abandonou a política e
exilou-se em seu castelo, fosse, quem sabe, encontrar um caminho o qual
ele pudesse seguir em “si mesmo”.
Com
o intuito de melhor conhecer o pensamento de Michel de Montaigne, neste
trabalho eu me proponho a pesquisar e apresentar qual tenha sido o motivo
que levou Montaigne a escrever a Apologia de Raimond Sebond.
Hipoteticamente Montaigne parecia ser um indivíduo oportunista, não de
uma forma negativa, mas, que não perdia oportunidades de defender aquilo
que acreditava:
A
primeira hipótese: por ser um fideísta quis defender a fé e conseqüentemente
a tradição católica.
Segunda
hipótese: por ser um simpatizante do ceticismo aproveitou os
argumentos para embasar as suas opiniões contra os ateus.
Terceira
hipótese: para defender e apresentar as suas próprias idéias,
talvez não por ser cético, ou tão pouco fideísta, mas, um defensor de
sua própria razão.
Agora
se faz oportuno falarmos da Apologia de Raimond Sebond, visto que
é sobre o assunto que versa o presente trabalho.
Michel
de Montaigne morava em um castelo da família e seu pai era constantemente
visitado por homens de ciências. O primeiro contato, que Montaigne teve
com a obra de Sebond foi um exemplar que chegou pelas mãos de um douto
chamado Pierre Buñuel que presenteou o pai de Montaigne. Ironicamente
Montaigne falou que a obra era escrita em espanhol com algumas terminações
latinas. Ora, era interessante notar que esse episódio aconteceu bem na
época que ocorria a Reforma protestante, encabeçada por Martim Lutero,
que renunciando à fé católica forçou uma divisão da igreja, motivada
por seu descontentamento com os dogmas católicos e por causa das vendas
de indulgências que eram muito comuns naquela época.
Acreditava
Pierre Buñuel que aquela obra de Sebond pudesse ser útil naqueles
momentos de transição por que passava a fé, afinal a Reforma, como uma
doença, se alastrava por muitos países, e temia Buñuel que o vulgo por
não “ser capaz de julgar as coisas em si”, se ativessem nas aparências
e terminassem por desembocar em ateísmo. Montaigne tinha uma certa concepção
a respeito, por saber que alguns, ao ter as suas crenças colocadas em dúvida
por algum novo idealismo, eram levados pela incerteza, e não demorariam,
como disse Lucrécio, a “calcar aos pés de bom grado aquilo que mais
veneram”, por mostrar-se precavido a essas abordagens do mundo Montaigne
se decidira “desde logo não mais aceitar o que não tenha antes
examinado e aprovado”. (MONTAIGNE, 1972, P. 209)
A
afirmação anterior parece evidenciar que Montaigne tenha examinado os
problemas da religião em seu tempo e chegado à decisão de continuar na
tradição católica, por não querer se levar por qualquer argumento não
bem fundamentado.
Algum
tempo depois, atendendo ao pedido de seu pai, traduziu a obra Teologia
Natural para o francês e depois a imprimiu, a partir desse episódio
levantaram-se objeções à obra de Sebond.
Dizendo
que para ser útil a algumas senhoras que se atinham a ler tal obra e
temendo que as objeções contra a obra pudessem fazer com que tais
senhoras ficassem em dúvida, Montaigne se propôs a defender as idéias
do autor. Ao primeiro exame disse: “Achei belas as idéias do autor,
sólida a estrutura da obra e piedosa a sua inspiração”.(MONTAIGNE,
1972, P. 209)
Montaigne
se referia assim à obra pela ousadia do autor em “estabelecer e provar,
contra os ateus, todos os artigos de fé da religião cristã, baseando-se
unicamente em razões humanas e naturais” sabendo-se tão pouco desse
escritor, apenas que era espanhol e médico e que vivera há duzentos anos
atrás, Montaigne admirava-o por sua ousadia e o julgava “firme e
brilhante” por tão bela obra.
As
principais objeções contra a obra são duas e estas dividem a Apologia
em duas etapas. A primeira é a refutação contra os teólogos e a
segunda contra os ateus por ambos discordarem das idéias de Sebond.
Quanto
ao primeiro tópico refere-se à objeção diferida pelos teólogos de que
não há como “sustentar com argumentos puramente humanos uma crença
que só se concebe pela fé e por intervenção particular da graça
divina”.(Montaigne, 1972, P. 209) Quanto ao segundo tópico refere-se à
objeção diferida pelos ateus de que “seus argumentos são fracos,
insuficientes para provar o que desejam provar e facilmente refutáveis”.
(MONTAIGNE, 1972, P. 213)
Refutação
aos teólogos
Parece-me
que tal objeção provém de uma exagerada piedade, por isso mesmo irei
refutá-la com tanto maior delicadeza e respeito. (MONTAIGNE, 1972, P.
209)
Embora
Montaigne não se julgasse versado na teologia, não se intimidava com
isso e contando com o auxílio e favor de Deus começa a sua exposição.
Montaigne parecia ser um fideísta
ou seja, acreditava que a fé a si se basta, mas não ignorava as
tentativas humanas de tentar prová-la racionalmente, contudo acreditava
também que em assunto tão divino e este superava a inteligência humana,
só a bondade de Deus poderia iluminar para o entendimento de tais
verdades, ao que diz:
Abandonados
unicamente a nossa inteligência, não seremos capazes, pois, se assim não
fosse, muitos espíritos superiores e privilegiados como os que
floresceram nos séculos passados teriam chegado à fé por intermédio da
razão. (referia-se aos filósofos como Platão e outros que viveram na
antiguidade) (Montaigne, 1972, P. 209)
O
fideísmo de Montaigne levava-o a acreditar que somente com uma intervenção
divina mediada pela fé, é que seria possível a revelação dos inefáveis
mistérios da religião e suas verdades. Entretanto usar as faculdades que
Deus concebeu aos homens para investigar era uma atitude digna que poderia
levar o homem a ampliar os alicerces de suas crenças. Apesar disto não
se abstinha de exortar aos homens de investigação a que não se
deixassem levar e cair na cilada da vaidade e ousar pensar que era o próprio
homem, que por sua razão fosse capaz de adquirir ciência do
sobrenatural, pois essa ciência só seria possível mediante a bondade e
a intervenção divina.
Em
vários momentos Montaigne utiliza-se de argumentos ardorosos e firmes, na
defesa contra os teólogos que deixa por instantes transparecer ou a fé
que de fato tinha, ou o desejo de tê-la e alcançar a união sobrenatural
com Deus para obter as respostas que alvejava nos artigos de fé:
Se
estivéssemos unidos a Deus por uma fé ardente, se a Ele nos prendêssemos
por Ele próprio e não por nós, se nossa fé assentasse em fundamento
divino, as tentações humanas não teriam o poder de nos abalar como têm;
resistiríamos sem dificuldade a tão fracos assaltos.(MONTAIGNE, 1972, P.
210)
Montaigne
parece querer mostrar que uma união pura com Deus poderia levar o homem a
manter a tranqüilidade de espírito, não se deixando aborrecer por opiniões
fortuitas, por idéias políticas, ou mundanas, ou religiosas que surgem
constantemente com o objetivo de abalar as nossas crenças mais firmes,
parece até estar fazendo assim uma insinuação, embora suave aos
reformistas e seus discursos retóricos, que terminariam por levar os
homens frágeis e vulneráveis, a desvirtuar as crenças que sustentam a fé.
Apesar
de professar a religião católica como foi dito anteriormente, Montaigne
não se intimidava em criticar aquilo que observava ser exagero ou falta
de zelo na religião. Estudando as seitas religiosas, ele encontrava
argumentos para criticar certos comportamentos ou atitudes de seus irmãos
de fé, e a isso inferia sem comiseração alguma: “Deveríamos
envergonhar-nos. O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja,
a ela adapta rigorosamente sua conduta, e nós outros cristãos só nos
unimos à nossa divina doutrina por palavras”. (MONTAIGNE, 1972, P. 210)
Montaigne
parece referir-se àqueles católicos que o são apenas por tradição não
seguindo realmente a doutrina religiosa, o interessante é que ele se
incluía nesse meio de cristãos, quem sabe por ele ser como eles, ou por
desejar ser da forma que ele escrevera anteriormente: unido a Deus
fervorosamente, e continua:
Quereis
a prova? Comparai nossos costumes aos dos maometanos e pagãos e vede
quanto os nossos são inferiores, mesmo quando devido à superioridade de
nossa religião deveríamos brilhar extraordinariamente. Cumpriríamos que
dissessem: são justos, caridosos, bons, logo devem ser cristãos.
(Montaigne, 1972, P. 210)
De
modo genérico as outras virtudes religiosas como a esperança, a confiança,
as cerimônias e ritos para fortalecer a fé são comuns nas outras seitas
religiosas até a existência de mártires. O autor dos Ensaios não se
intimida, enquanto supostamente defende Sebond, também aponta as falhas
que observa naqueles que se dizem cristãos fervorosos, mas que fazem isso
apenas por conveniência. “Ora, uns se engenham em fazer crer que crêem;
outros a maioria persuadem-se a si próprios e não sabem o que seja
crer”. (MONTAIGNE, 1972, P. 210)
Assim
expele uma poderosa crítica aos cristãos de tradição e aos ignorantes
de sua fé, que se encontravam indecisos quanto à religião, mas usando
de máscaras diziam-se defensores da fé. Afirmavam isso apenas com os lábios,
o que era comum na defesa de qualquer advogado. Esses cristãos entram em
uma luta séria, mas não possuem fundamentos religiosos que a sustentem,
por pura ignorância. Esses se assemelham a soldados, que entram em uma
batalha vulneráveis, a qualquer momento passar para o exército inimigo
ou simplesmente desertar. Assevera Montaigne: “Ora, Deus deve Seu apoio
extraordinário à fé e a religião e não a nossas paixões. E nessa
luta são os homens que orientam. Para eles a religião é um meio, quando
deveria ser um fim”.(MONTAIGNE, 1972, P. 210)
A
hipótese que tenho é que Montaigne aproveitou-se da oportunidade que
teve de defender Sebond para atacar os reformistas, talvez por julgar que
eles não estavam lutando por causa de motivações religiosas, mas, por
paixões pessoais e idealistas, isto é usando a bandeira de uma reforma
religiosa como um meio para alcançar algum objetivo que não parecia
ainda muito claro.
Tão
direto e nem um pouco delicado como disse no início de sua defesa,
Montaigne se mostra firmemente disposto a fazer o cristão olhar para si
mesmo e para a bandeira que ostenta a fim de fazê-lo se decidir e assumir
as suas atitudes e evitar que tais pessoas: “tome a religião como uma
cera mole, a nossos caprichos, obrigando-a a assumir as formas que
queremos, ao contrário disso convém que nossa opinião é que deve
inspirar nossa conduta e regular nossa vida”.(Montaigne, 1972, P. 210)
Obviamente
Montaigne era um observador da conduta humana, pois, percebia claramente a
escassez de verdadeiros fiéis que permanecem firmes indiferentemente das
vitórias ou fracassos, e que numerosos são os que “ora vão a pé, ora
vão a galope”, insinuando nessa passagem “que a massa obedece a
considerações pessoais e ocasionais, cuja diversidade a impulsiona”.
(MONTAIGNE, 1972, P. 211) Assim a fé e a religião tornam-se um objeto de
conveniência, sendo útil tão somente enquanto ela está submetida a
nossas paixões.
Examinando
profundamente a questão a que se propôs, ele apresentou uma efetiva análise
do homem que se intitulava “cristão”:
Não
há hostilidade mais eficaz que a dos cristãos. Nosso zelo é capaz de
maravilhas quando secunda nossa inclinação natural para o ódio, a
crueldade, a ambição, a avareza, a intriga, a rebeldia. Ao contrário, só
por milagre ou temperamento especial, nada nos induz à bondade, à
benevolência e à moderação. (MONTAIGNE, 1972, P. 211)
Montaigne
aponta a tendência inata do homem para a maldade e a difícil tarefa do
autodominação para o bem, a ponto de acreditar que isso só se daria
através de um milagre, isto é, de uma intervenção divina. E entre
esses dois pólos da natureza humana ficaria a igreja, para equilibrar,
mas o que Montaigne aponta com sagacidade são as controvérsias da religião.
Nossa
religião tem por objetivo extirpar os vícios; mas fazem com que os
dissimule, os alimente e os incentive. É preciso não trapacear com Deus.
Se acreditássemos Nele, não chego a dizer se tivéssemos fé – se tão
somente acreditássemos n’Ele, e com vergonha o digo, se O tivéssemos
em nós como um amigo, por exemplo, nós O amaríamos acima de tudo pela
Sua infinita bondade, e pela beleza que n’Ele resplende. Ao menos
ocuparia Ele o mesmo lugar que ocupa as riquezas, os prazeres, a glória,
os companheiros. O melhor dentre nós, que receia magoar seu vizinho, seus
parentes, seu mestre, não teme ultraja-lo. (MONTAIGNE, 1972, P. 211)
Montaigne
observa que o homem pode até desejar ainda que remotamente despir-se dos
vícios pela esperança de uma vida após a morte com Jesus, mas não
consegue, às vezes por desdém, não consegue se quer renunciar a um vício
que seja; nem pelas promessas de uma vida eterna. Então se entregam aos
prazeres e ignoraram as promessas e os castigos futuros, mas como é comum
na natureza do homem, basta que lhe ocorra algum perigo ou a hora da morte
o espreite, que logo mudam suas convicções. (MONTAIGNE, 1972, P. 211)
Montaigne não admite o aforismo
no verdadeiro cristão. Pois, essas regras só dizem respeito às religiões
criadas pelos homens. Afinal essa atitude mostra tipo de fé, só se
desenvolve em momentos de covardia não há nada de sadio nisso. Ora,
assevera Montaigne: “Linda fé, a que existe somente porque não se tem
mais a coragem de deixar de crer!”. ( MONTAIGNE, 1972, P. 211) Citando
Platão, Montaigne deixa claro o que pensa quando diz: “que pela razão
ou pela força somos sempre levados a crer na existência de Deus”.
(MONTAIGNE, 1972, P. 212)
Nesta
primeira parte, a abordagem da defesa de Raimond Sebond contra as objeções
dos teólogos; Montaigne aproveitou a oportunidade para criticar os teólogos
por seu excesso de piedade, e os cristãos que por não terem uma fé
firme e não se entregarem à bondade divina são presas fáceis de
qualquer discurso retórico e que essas ações são um risco que pode
levar muitos fiéis ao ateísmo, por isso aproveita para mostrar o erro
dessa linha de pensamento nos parágrafos seguintes. Em uma segunda hipótese,
parece usar da defesa de Sebond como subterfúgio para criticar a Reforma
protestante, pois, assim as suas opiniões e argumentos poderiam ser úteis
a muitos para que não se deixassem convencer, nem pela Reforma
protestante e nem pela incredulidade.
Refutação
aos ateus
Montaigne
fez muitas considerações a respeito do ateísmo por considerá-lo uma:
(...)
concepção monstruosa e antinatural, e difícil de ser aceita pelo espírito
humano, ainda que insolente e anárquico, embora se encontre que a
ostente, seja por rebeldia, seja pela vaidade de emitir opiniões
originais e reformadores, mas se esses ateus são bastante loucos para se
dizerem ateus, não são suficientemente fortes para implantar tal convicção
em sua consciência. (MONTAIGNE, 1972, P. 211)
É
como se os ateus assumissem esta linha de pensamento apenas exteriormente
e não conscientemente, pois, se a vida lhes dá uma estocada ao peito,
logo clamam pelo o céu. Montaigne os julgava sem piedade como se fossem
apenas loucos e desequilibrados que através do ateísmo buscavam ser
piores do que as suas próprias forças os permitiam.
Antes
de rebater os ateus fortemente, Montaigne quis, já de imediato, mostrar a
possibilidade da existência de Deus, através das coisas que são
percebidas por nossos sentidos. Ora, apontar as coisas existentes no mundo
como uma prova da existência de Deus é uma forma a posteriori a
qual Montaigne percebe a existência Deus, e utiliza-se deste mesmo
argumento contra os ateus. Afinal se os ateus observassem as coisas do
mundo compreenderiam que alguém as criou, e aquelas coisas que não tem
explicação racional são as evidências de que um Deus existe e também
as fez cada qual de seu modo. Entretanto se os ateus não as percebem,
isso se dá por causa da fraqueza humana que assim os impede. E se Deus
deixa visível tão grandes obras, quantas maiores são as que não estão
visíveis. Poderia o homem através de seu raciocínio alcançar a
compreensão da sabedoria divina?
Parece
que não, visto que Montaigne vê os raciocínios humanos “inertes e estéreis”,
isto é, do ponto de vista físico, contudo “na medida em que Deus, por
meio de sua graça, lhes dá tal oportunidade e lhes determina o valor”,
(MONTAIGNE, 1972, P. 212), ou seja, através da fé, os raciocínios
deixam de serem impotentes, e ganham a graça divina de modo a tornarem-se
úteis como a obra de Raimond Sebond.
A
fé, colorindo e dando brilho aos argumentos de Sebond, dá-lhes consistência
e solidez e os torna capazes de servir de guia a um neófito e conduzi-lo
pelo caminho que leva ao conhecimento da verdade, moldando-o até certo
ponto o predispondo a receber a graça de Deus que lhe fortalece a fé e a
faz perfeita. (MONTAIGNE,1972, P. 212)
De
certo modo, os argumentos de Sebond, segundo os ateístas, são
“argumentos fracos e de fácil refutação”, todavia, um homem letrado
ao lê-los se afastou da incredulidade. Ou seja, ainda que os argumentos
de Sebond fossem apenas fantasias, a piedade que lhe inspirou a escrever e
foram de exímia ajuda para que um certo homem letrado permanecesse na fé.
Então não são os argumentos que têm poder ou peso, mas a graça de
Deus.
Os
argumentos dos opositores de Sebond poderiam mostrar maior eficiência
pelo uso da razão, mas não eram mais eficazes do que os de Sebond, e tão
pouco lhes atribui menor valor. “De sorte que podemos dizer com razão
aos seus adversários:” se tendes melhores argumentos, apresentai-os, se
não, concordai”. (MONTAIGNE, 1972, P. 213)
Os
ateístas julgavam os argumentos de Sebond fracos e insuficientes para
provar o que queriam provar, contudo, Montaigne não fala se esses, além
dessa objeção, apresentaram argumentos que rebateram as teses de Sebond,
ora, é como se os ateus tivessem aberto uma discussão que não levaram
ao fim.
Montaigne
se propôs, em nome Raimond Sebond, refutar tal objeção. Porém, ele se
colocou, ao contrário da primeira, contra os teólogos, pois esses ele
disse responder com delicadeza e respeito, embora tenha sido inúmeras
vezes severo e direto como bem se evidencia como traço de seu caráter.Quanto
aos ateus ele prefere responder com mais severidade ainda, pelo fato dos
ateus deturparem as palavras alheias com o objetivo de valorizarem as suas
próprias.
Ainda
que na refutação anterior, Montaigne tenha evidenciado falhas na igreja,
ele não deixava sempre que oportunamente de defender a religião católica
contra as armas humanas dos ateus, que ele tinha certeza, não atacariam
se “ela lhes aparecesse em todo o seu esplendor, na plenitude da
autoridade e do mando”. (MONTAIGNE, 1972, P. 213) Esses ateus a
obedeceriam sem relutar. O meio que Montaigne empregou para rebater os
ateus foi à razão. E se propôs a:
(...)
humilhar e espezinhar o orgulho e a arrogância do homem, o de lhe fazer
sentir sua inanidade, sua vaidade, seu vazio, de lhe arrancar das mãos as
armas mesquinhas que lhe fornece a razão; de forçar a inclinar-se e
beijar o chão ante a autoridade e imponência da divina majestade.
(MONTAIGNE, 1972, P. 213)
O
intuito de Montaigne era fazer, ainda que metaforicamente, os ateus
beijarem o chão da igreja, como se assim se rendessem a “Divina
Majestade” de Deus, pois só a Ele pertencem à ciência e a sabedoria.
Logo, Deus não permite que ninguém se orgulhe senão Ele, “deitemos,
pois, por terra nossa orgulhosa pretensão, ponto de partida da tirania
que sobre nós exerce o diabo: Deus enfrenta os soberbos e perdoa os
humildes” ( MONTAIGNE, 1972, P. 213). Por isso ainda que a pretensão de
Montaigne se mostrou tanto presunçosa, ele procurou se redimir em sinal
de humildade para não fugir as regras da doutrina religiosa. E conclui:
Por
isso é de grande consolo para o cristão ver nossos instrumentos mortais
e frágeis se adaptarem tão bem ao que exige nossa fé santa e divina,
que, quando os utilizamos nos atos mortais e frágeis como eles próprios,
não se revelam mais adequados nem mais poderosos. (Montaigne, 1972, P.
213)
Os
incrédulos consideram falso tudo aquilo que a razão não pode provar nas
crenças católicas, mas como a exemplo de Santo Agostinho, Montaigne
utiliza-se de exemplos conhecidos, o qual o próprio homem não consegue
explicar, para demonstrar a debilidade da razão, os seus pontos fracos e
a sua cegueira, visto que “o fácil e o difícil são para ela uma só
coisa”, não podendo a razão julgar com competência todos os assuntos
que a ela se apresenta, pois a sabedoria que tudo pode compreender e dar
respostar esta é de Deus.
Por
isso Montaigne considerou o homem: “isolado, abandonado a si próprio,
armado unicamente de graça e conhecimento de Deus, o que constitui sua
honra e toda a sua força, e o fundamento de seu ser, e vejamos do que é
capaz com esse equipamento”. (Montaigne, 1972, p. 213)
Ora,
se o homem olha para o mundo, percebe tudo o que existe, a majestade do céu,
estrelas, percebe que as coisas que existem são para a sua utilidade, mas
também percebe que além de viver e desfrutar de tudo o que existe e
julgar ser para o seu bel prazer, vive a mercê de desastres e
acontecimentos casuais, e é incapaz de explicar as coisas todas que vê,
até os fundamentos de seu ser, como pode então sem conhecer o mínimo
alcançar o máximo por si mesmo?
Mesmo
olhando para o mundo e observando as grandes criações que existem, o
homem não é capaz de explica-las racionalmente, tão pouco é capaz de
evitar as grandes tragédias, pois, nada está verdadeiramente em suas mãos.
Mas por arrogância mesmo assim não procura olhar para o grande
arquiteto, (Deus) o qual criou todas essas coisas, e ao invés, exalta a
sua própria razão.
Por
essa presunção Montaigne, sabe que o homem mesmo pela imaginação pensa
igualar-se a Deus, e por conta própria subestimam até os animais, os
julgando estúpidos, embora não conheçam os interiores deles. Como pode
o homem conhecer coisas tão secretas se não foi o construtor? Comprova
isto quando diz: “quando brinco com minha gata, sei lá se ela não se
diverte mais do que eu?” (MONTAIGNE, 1972, p. 215)
Nesse
contexto Montaigne apresenta inúmeros exemplos de diversas épocas para
elucidar algumas semelhanças existentes nos animais, e citando Lucrécio
que observou que os animais domésticos, como os bichos ferozes, emitem
sons diferentes segundo o medo, a dor ou o prazer que sentem, os animais
embora não tenham voz se comunicam com gestos, assim como também as
crianças, se fazem entender, o mesmo acontece com os mudos e com os
amorosos que se comunicam com gestos e com o olhar, é como se tudo o que
existisse em nós tivesse o poder de se comunicar com o outro. E quem é
responsável por todas essas maravilhas, o homem e a sua razão? Ou algo
que vai além dos raciocínios humanos?
Segundo
Montaigne o que o homem tirou de sua busca foi apenas à certeza de sua
impotência, o que o homem alcança quando se contra põe aos animais, e a
bondade divina é a sua própria ignorância.
A
objeção contra os argumentos de Sebond mostra apenas a incapacidade dos
ateus de conseguirem argumentos melhores, pois o próprio raciocínio lhes
limita irem além. Após as evidências que Montaigne apresentou, ele
esperava uma mudança de opinião dos objetores: “Aconteceu aos
verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo, as quais se
erguem orgulhosamente enquanto vazias, e quando se enchem e amadurecem o
grão se inclinam e dobram humildemente”. (MONTAIGNE, 1972, p. 236)
Assim
fazendo essa analogia Montaigne buscava mostrar aos ateus que sinal de
sabedoria era a humildade, como ensinava a natureza.
A
apologia de Raimond Sebond foi uma oportunidade encontrada por Montaigne
para defender a igreja católica, contra os ataques dos ateus por causa da
vulnerabilidade que a fé estava passando por conta da Reforma
protestante. Minha hipótese é de que enquanto Montaigne supostamente
defendia Sebond, escrevia a sua própria obra contra os ateus.