Educar
para e no pensar – uma reflexão sobre a sala de aula
“Admitindo
até que uma cabeça bem feita escape
ao
narcisismo intelectual tão freqüente na cultura
literária
e na adesão apaixonada aos juízos de
gosto,
pode-se com certeza dizer que uma cabeça
bem
feita é infelizmente uma cabeça fechada. É um
produto
de escola”.
(Gaston
Bachelard)
Resumo
Este
artigo reflete sobre o “lugar” que o pensamento criador ocupa
dentro da maioria das salas de aulas. Para tanto, busca mergulhar
na dinâmica estruturante da relação professor(a)-aluno(a) através
da crítica à organização do trabalho pedagógico hegemônica,
da análise do cotidiano escolar e do processo de formação
continuada de professores(as) que muitas vezes reproduz o que
anuncia desejar ver superado. Em um segundo momento sinaliza,
aproveitando-se de cenas do filme “A Festa de Babette”,
elementos pedagógicos que se apresentam como um convite ao pensar
criador no processo de aprendizagem dentro e fora da sala de aula.
Palavras-chave:
sala de aula, pedagogia emancipatória, relação professor aluno,
cotidiano da escola.
Abstract
This
article reflects upon the “place” where creative thinking
takes place within most of the classrooms. To achieve that, it
investigates the structural dynamics of the relationship between
teachers and students through the critique of the hegemonic
organization of pedagogic work, of the analysis of the school
quotidian and the continuing teacher education process that many
times reproduces that which it wishes to overcome. In a second
moment, it seeks to point out, from scenes of the movie
“Babette’s Feast”, pedagogic elements that present
themselves as an invitation to creative thinking in the learning
process inside and outside of the classrooms.
Key
words:
classroom, emancipatory pedagogy, teacher-student relashionship,
school quotidian
|
O
trecho destacado acima não deve ser tomado como uma afirmação categórica.
Ele pretende ser uma instigação, uma provocação sobre o pensar e o que
se passa na maioria das salas de aula. Onde se localiza, predominante, a ação
de pensar? No professor e professora, nos alunos e alunas, num canto da
sala, suspenso das aulas porque gera muita inquietude e atrapalha o
aprendizado? Para tentar enfrentar essa questão, resolvi percorrer o
seguinte itinerário: pontuar o que parece ser o pensar numa perspectiva
criadora
para o processo de aprendizagem; e apresentar alguns dos possíveis obstáculos
para pensar na sala de aula, este espaço-atividade onde, na maioria das
vezes, a ação de pensar é apresentada como anfitriã.
Saber
pensar é uma potencialidade humana e possui relação com a capacidade de
aprendizagem. “É a teoria mais prática que existe, ou a prática mais
teórica que existe” (DEMO, 2004). Saber pensar é não ter pressa para enquadrar a
realidade, memorizar a fórmula, construir a resenha ou o quadro
conceitual. É um jogo ousado que exige deslocamento de quem pensa: ir ao
encontro do outro e trazer o outro (pessoa, fenômeno...) para si. Jogo
que pode ser percebido em sua dimensão de externar e ressignificar as angústias
e outros sentimentos, como também pode ser percebido como o jogo por
disputa de significados, opiniões e pontos de vistas diferentes.
Saber
pensar na sala de aula é convidar a vida, que mora atrás das teorias,
dos conteúdos curriculares, dos programas de pós-graduação, para uma
conversa franca. Franqueza presente na própria ação de pensar, que na
medida que se reconhece pensando, pode perceber parte de seus limites e
potencialidades. Implica em capacidade de crítica frente ao próprio
saber (DEMO, 1997).
Convidar
a vida que, geralmente e se muito, mora de forma nebulosa no conteúdo
escolar, é recolher o sentido das coisas, refazê-los, ressignificá-los.
Um pensamento criador, também organiza o conhecimento já existente,
classifica, sistematiza, mas para continuar criando. Pensamento criador
está sendo compreendido aqui para além de um pensamento inovador, que
por vezes inova para manter tudo onde está. Deste tipo de inovação, a
sala de aula já está cheia.
A
distinção feita entre pensamento criador e inovador possui o desejo de
demarcar o lugar de onde está se refletindo a questão: a sociedade,
tipificada por muitos como sociedade do conhecimento, de maneira hegemônica, propõe uma
parceria de negócio entre o conhecimento e o capital, parceria que tem se
demonstrado uma admirável inovação em determinados campos e uma
escandalosa exclusão para parte significativa da humanidade.
A
distinção apontada deseja sinalizar que não se está argumentando a
partir da lógica predominante do conhecimento moderno que deseja, a
qualquer custo, o domínio da natureza, fundado no seu desejo de
racionalização extrema de tudo e todos. O pensamento criador parece ser
aquele que mergulha na vida (seus mistérios, contradições e inconclusões)
como se mergulha no mar e não como se atravessa uma parede de concreto
com um potente trator. Muito menos como aquele que atravessa uma ponte bem
construída, limpa de horizontes e sem obstáculos.
Pelo contrário, o caminho do pensar parece-me errático e
tortuoso, condicionado exatamente pela falta de certezas, pela ausência
de “um lugar certo” a se chegar.
A
vida, ora convidada para sala de aula, obriga o pensamento a se refazer, a
se mobilizar. No estático, não se aproxima da compreensão sobre
dinamismo e complexidade que é a vida. Convidar a vida é, em última
instância, convidar os alunos e alunas, os professores e professoras,
suas histórias, anseios e contextos para dentro da sala. Mas as salas já
não estão cheias de alunos(as)? Se tomarmos como referência os índices
oficiais dos últimos anos, em alguns segmentos as salas de aula estão
cada vez mais cheias e, talvez, cada vez mais vazias. Para atender um
convite dessa amplitude, possivelmente será necessário ampliar a sala de
aula. Ela, como um compartimento, parecida ainda com um setor de produção
de uma antiga fábrica e não suporta tanta vida.
A
ampliação/modificação do espaço-atividade sala de aula, pode ser
percebida de duas formas: uma metafórica, no sentido de uma mudança
substancial das atividades que acontecem dentro dela; outra no sentido
espacial concreto. Se notarmos, existem escolas novas do ponto de vista
arquitetônico, mas que já nascem velhas do ponto de vista pedagógico.
Convidar a geografia para nos ajudar a pensar a questão parece ser uma
boa medida: o “lugar”, espaço físico organizado pelo homem e a
mulher, também é revelador e reforçador de uma determinada
cotidianidade. Santos nos mostra, no trecho abaixo, a relação entre a ação
cotidiana e o espaço físico:
A
relação do sujeito com o prático-inerte inclui a relação com o espaço.
O prático-inerte é uma expressão introduzida por Sartre para significar
as cristalizações da experiência passada, do indivíduo e da sociedade,
corporificadas em formas sociais e, também, em configurações espaciais
e paisagens. Indo além do ensinamento de Sartre, podemos dizer que o espaço,
pelas suas formas geográficas materiais é a expressão mais acabada do
prático-inerte. (SANTOS, 1997, p. 254).
Freire,
pensando a partir da questão da palavra e ocupado de maneira marcante com
a questão do diálogo, nos ajuda entender melhor a dimensão do convite
que está sendo sinalizado como desafio para o espaço-atividade sala de
aula. As palavras podem ser tratadas de forma diferenciada no espaço-atividade
sala de aula, como portadoras de significados ou como palavras vazias. A
palavra pode ser dita como um convite, uma porta de entrada para o mundo
que mora dentro dela, ou como um enunciado, bem formulado, mas que deixa,
quando muito, seus significados, histórias, sentidos para quem a
formulou. Madalena Freire nos chama atenção para uma questão já
naturalizada nos discursos pedagógicos: o professor(a) dá
aula e o aluno(a) assiste aula.
Essas palavras são reveladoras do evento que geralmente acontece no espaço-atividade
sala de aula. Na perspectiva apontada e defendida por Freire, a palavra
carregada de significado é práxis, “daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”.
A
existência, porque humana, não pode ser muda, silêncios, nem tampouco
pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os
homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar
o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta
problematizado aos sujeitos pronuciantes,
a exigir deles novo pronunciar.
(FREIRE, 1978:92).
O
pensar criador gera movimento, aquilo que se apresenta como verdade passa
pelo questionamento, o naturalizado vira objeto de problematização e
conhecer se apresenta como uma arte exigente, possível para todos e
todas, que nos instiga sempre. O pensar criador acorda o conhecimento,
planta uma semente de interrogação onde antes morava a arrogância das
certezas e que por vezes nos imobiliza ou adormece.
[...]
mas antes uma prova da sonolência do saber, prova da avareza do homem
erudito que vive ruminando o mesmo conhecimento adquirido, a mesma
cultura, e que se torna, como todo avarento, vítima do ouro acariciado
[...] (BACHELARD, 1996).
O
pensar criador, dentro do espaço-atividade sala de aula, não oferece
seguranças porque desconstrói para reconstruir (DEMO 1997). Ao mesmo
tempo, ele não é devassador como a inovação numa perspectiva mercadológica,
porque se está falando de um espaço educativo e educar é cuidar com
carinho e rigor do pensamento do outro (MARIZ, 2003). O pensar criador
abre espaço para que o já sabido e o ainda não sabido encontrem um
ambiente receptivo para se declarar, se encontrar e desencontrar diante
das declarações dos outros. A ação do pensar criador, no espaço-atividade
sala de aula, é aquela que se faz na medida que se aprende a fazer, e se
refaz na medida em que se dá conta do que está fazendo.
O
pensar, ocupado essencialmente com a criação, acontece de forma que
aprendemos e desconfiamos do aprendido. Aprendemos para melhor questionar
(BACHELARD, 1996). O pensar, na perspectiva que está sendo defendida
exige constantemente um descolamento de si para o outro e do outro para
si, é um movimento tipicamente humano: fascinante, inconcluso e
arriscado. O pensar criador é como “flertar com o abismo”, somente lá
existe uma brisa que nos deixa extasiados e encantados com o mistério que
é a vida, e, por isto, o pensar criador se percebe fundamental para as
transformações e pequeno diante das possibilidades de recolher para si a
plenitude da vida. É um pensar que deseja o que reconhece que nunca
encontrará, pois o encontro tão desejado também significa o seu próprio
fim: cabeça feita é cabeça fechada (BACHELARD, 1996). Bauman, em
entrevista publicada no Caderno Dois da Folha de São Paulo (19/03/03)
reflete sobre esta questão da incompletude:
Creio
que a experiência humana é mais rica do que qualquer de suas interpretações,
pois nenhuma delas, por mais genial e “compreensiva” que seja, pode
exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de conversação com a experiência
humana deveriam abandonar todos os sonhos de um fim tranqüilo de viagem
[...] por trás de cada resposta percebo que novas questões estão
piscando [...] as perguntas mais intrigantes e provocantes emergem, via de
regra, após as respostas. (BAUMAN, 2003).
O
espaço-atividade sala de aula e o pensar criador
Rubem
Alves, em uma crônica do seu livro, “Um céu numa flor silvestre”,
apresenta uma imagem que tomarei emprestada para iniciar a reflexão sobre
o lugar predominante do pensamento criador no espaço-atividade sala de
aula. Para ele, as idéias são como milhos, que sob o calor do fogo, se
transformam em pipocas. Uma idéia seria como uma pipoca que estoura. Esta
transformação é um potencial do milho, mas só acontece quando ele
passa pelo poder do fogo. Existem, ainda segundo o autor, os milhos que,
apesar de passar por processos semelhantes, não se transformam em pipocas
e são conhecidos como piruás.
Transportando
a crônica para o campo da nossa reflexão podemos nos perguntar: por que
alguns milhos não se transformam em pipocas? Sua posição na panela pode
influenciar no resultado? E a quantidade de milhos e óleo dentro da
panela? A intensidade do fogo?
Podemos
iniciar a tentativa de responder as questões acima convidando Bachelard
(1996) que, ocupado com a questão dos obstáculos da formação do espírito
científico, aponta algumas questões. Possuímos uma tendência, segundo
aponta o autor, de considerar mais claro o que utilizamos com maior freqüência.
Como resultante de tal comportamento, nossa idéia diversas vezes
utilizada ganha uma clareza potencialmente ofuscante. O excesso de clareza
ofusca da mesma forma como a falta de luz. Parece-me que aqui encontramos
um desafio para todos e todas que estão no espaço-atividade sala de
aula.
Uma
segunda dimensão é perceber que as aulas são, em sua maioria, momentos
de enunciados e esclarecimentos. Não se trata de uma crítica a aula
expositiva ou uma defesa da aula como espaço de pirotecnias didáticas,
animadas como um show, e nem por isto carregadas de reflexão. Freire já
fez esta crítica em 1970 e, infelizmente, parece-me válida e muito atual
em todos os níveis de ensino:
Quanto
mais analisamos as relações educador-educando na escola, em qualquer de
seus níveis, (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer de que
estas relações apresentam um caráter especial e marcante – o de serem
relações fundamentalmente narradoras,
dissertadoras.
Narração
de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a faze-se
algo quase morto, sejam pelos valores ou dimensões concretas da
realidade. Narração ou dissertação que implica num sujeito – o
narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos. (FREIRE,
1978: 65).
Uma
das questões centrais, pelo que consigo perceber, está no papel de
explicador que é atribuído aos professores e professoras, restando,
quase sempre, aos alunos e alunas serem bons entendedores de explicações,
formuladores de perguntas e, raras vezes, levantando questões novas ao
que já foi cuidadosamente explicado. Tal movimento, segundo Rancière
(2002), caminha para o embrutecimento da inteligência onde a tarefa
principal do aluno ou aluna está em entender a explicação do mestre
explicador, que embrutece seu “interlocutor” a partir de
brilhantes explicações. O aluno ou aluna deixa de se ocupar do exercício
de compreensão da realidade para se ocupar com a compreensão da explicação
sobre a realidade. Para Rancière, a centralidade na explicação faz
parte do mito pedagógico.
Antes
de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola
de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos
maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos. O
procedimento próprio do explicador consiste neste duplo gesto inaugural:
por um lado, ele decreta o começo absoluto – somente agora tem início
o ato de aprender; por outro lado, ele cobre todas as coisas a serem
aprendidas desse véu de ignorância que ele próprio se encarrega de
retirar [...] (RANCIÈRE, 2002: 20).
A
mesma questão pode ser encontrada no tratamento dado ao volume de textos
e livros que são “estudados” para as aulas (especialmente nos
considerados bons cursos de graduação e pós-graduação). Confundimos
volume com intensidade e fazemos dos textos e livros, ou seja, dos autores
e autoras, também mestres
explicadores. O pensar criador, muitas vezes, não encontra espaço
porque a cabeça está cheia de autores e autoras que não estão na posição
de parceiros instigantes. O que os alunos e alunas fazem com a coleção
de textos copiados depois das aulas? Quando voltam aos mesmos? O que
pensam com eles? Pode-se reivindicar a possibilidade de pensar com os
textos, antes e a partir deles.
Eu
digo que ler não é só caminhar
sobre as palavras, e também não
é voar sobre as palavras. Ler
é reescrever o que estamos lendo. É descobrir a conexão entre o texto e
o contexto do texto, e também como vincular o texto/contexto com o meu
contexto, o contexto do leitor [...] Portanto, sou favorável a que se
exija seriedade intelectual para conhecer o texto e o contexto. Mas, para
mim, o que é importante, o que indispensável, é ser crítico. A crítica
cria a disciplina intelectual necessária fazendo perguntas ao que se lê,
ao que está escrito, ao livro, ao texto. Não devemos nos submeter ao
texto, ser submissos diante do texto. A questão é brigar com o texto,
apesar de amá-lo, não é? Entrar em conflito com o texto. Em última análise,
é uma operação que exige muito. Assim, a questão não é só impor aos
alunos numerosos capítulos de livros, mas exigir que os alunos enfrentem
o texto seriamente. (FREIRE, SHOR. 1986: 22).
Tal
dinâmica pode ser reforçada pela a idéia do pós-ocupado (quem sabe um
outro mito da pedagogia). Kosik (1976), a partir da idéia de Heidegger
sobre a questão do preocupado, nos alerta que, ao extremo, não somos
portadores de preocupações, mas elas “nos possuem”. A inversão
proposta pelo autor é mais do que um jogo de palavras. A preocupação,
segundo ele, é o mundo (seus significados, exigências, etc) dentro do
sujeito. Dessa forma, o sujeito se ocupa sem pensar no que está ocupado,
já que, ao mesmo tempo em que se ocupa com algo se encontra preocupado
com outra coisa.
Talvez
a idéia do pós-ocupado também aponte um problema passível de ser
pensado. Estuda-se quase sempre para depois: do ensino fundamental para o
médio, do médio para passar no vestibular, se estuda o texto para aula e
assim por diante. O pensar criador, no volume e velocidade do processo
pedagógico, parece ser convidado constantemente a ficar para depois.
Pensamos para estudar ou estudamos para um dia pensar?
No
frenesi e no volume das explicações (ora “dadas” pelos mestres
explicadores, ora pelos livros) constrói-se uma musicalidade, no espaço-atividade
sala de aula, onde o ritmo dos alunos e alunas é pouco percebido, onde as
contradições do processo pedagógico caminham para naturalização e
encontram, nesse espaço-atividade, o salão propício para ensaiar seus
passos. Vale ressaltar que há a possibilidade de no mesmo salão
encontrar, sob outras condições, oportunidades para composições de músicas
diferentes e construção de outros ritmos para se dançar a vida.
As
questões até o momento sinalizadas podem ser percebidas também pelo ângulo
dos professores e professoras. Se tomarmos a questão dos processos de formação
continuada como porta de entrada verificaremos que a quantidade de
cursos, seminários, oficinas, semanas pedagógicas, parece se constituir
em mais um problema do que uma solução. Como refletir e construir
autoria sobre a práxis pedagógica se os professores e professoras vivem
em cursos, oficinas e buscando a novidade pedagógica lançada na “última
semana”?
O
quanto cotidianamente a práxis pedagógica já em curso encontra espaço
para processos de acolhida, escuta, crítica e aprofundamento? O excesso
de cursos, oficinas e encontros de formação (e sua natureza de trazer
algo de fora para dentro) carregam uma ilusão conteudista, onde horas de
cursos e acesso a conteúdos se transformariam, magicamente, em melhoria
da práxis pedagógica? O que se pode esperar nas relações construídas
nas salas de aula com processos por vezes tão atropelados e continuamente
descontínuos?
...Cada
vez estamos mais tempo na escola (e a Universidade e os cursos de formação
do professorado também são partes da escola), mas cada vez temos menos
tempo. Esse sujeito da
formação permanente e acelerada, da constante atualização, da
reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como
uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo
[...] por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, esse
sujeito já não tem tempo... (LAROSSA, 2002, p.23, grifo nosso).
Possivelmente
as respostas “construídas” através de diversos cursos, seminários,
oficinas, carecem de perguntas. As perguntas sobre e no cotidiano da práxis
pedagógica não poderiam ser a música que construiria sentido às
respostas e as fariam dançar?
Os
professores e professoras passam por um momento inquietante, onde o
conhecimento ganha outras proporções na organização social e existe um
chamado diário a repensar sua prática profissional. Chamado interessante
em tese e aparentemente contraditório quando o percebemos a partir do
lugar da cotidianidade do exercício desta profissão.
Em
síntese, o cenário atual aponta para a diminuição da formação
inicial, ampliação das expectativas sobre a profissão (reforçada
inclusive pelo discurso político que geralmente simplifica a relação
entre qualificação e desemprego), um aumento da carga de trabalho
(formal ou informal) e uma formação continuada no estilo “fast food”
onde o professor entraria numa espécie de microondas e, num ritmo
acelerado, estaria pronto para enfrentar os desafios contemporâneos de
sua profissão.
É
preciso aprender! É preciso aprender sempre! É preciso aprender a
aprender! Essas afirmações quase que imperativas possuem sustentação,
mas é necessário afirmar que é preciso tempo e condições para
aprender. Considerando os elementos sinalizados a partir dos processos de
qualificação dos professores e professoras e a realidade de uma ampliação
de tarefas e precarização das relações de trabalho, seria possível e
legítimo perguntar que Escola a escola está sendo para os professores.
O
pensar criador e a sala de aula com um espaço-atividade da festa
O
pensar criador como potencialidade humana encontra nas contradições e
obstáculos a possibilidade de se realizar. Ele não é fruto de uma
realidade fantasiada onde tudo funciona numa ordem perfeita.
Porém,
parece-me necessário afirmar, para se voltar à questão original do
texto, que esse mesmo pensar criador, considerando a maioria das salas de
aulas em todos os níveis de ensino, encontra-se na janela da sala,
participando da aula quase sempre pelo lado de fora.
O
espaço-atividade sala de aula pode ser um banquete onde se faz e degusta
o pensar criador. Como no filme “A Festa de Babette”, onde as pessoas,
por motivos religiosos e de experiências de vida, se vêem sentadas
frente a um banquete com todo o requinte da culinária francesa,
espantadas e resistentes, experimentando vagarosamente gostos diferentes.
Num movimento de medo e descobertas, de alegria e espanto, elas
experimentam algo semelhante ao movimento de aprender!
Precisamos
de menos textos, aulas e espaços onde predomina a explicação.
Necessitamos de mais experiências, escuta dos limites e potencialidades
do pensar de cada um. O vinho no filme era servido em intensidades
diferentes, na medida do gosto das pessoas da mesa. O banquete apesar de
meticulosamente planejado, era revisto constantemente quanto ao ritmo e
quantidade do que seria servido. O principal não era o planejado, o
principal era garantir a experiência saborosa daquilo que se propôs
fazer.
No
filme a Festa de Babette as pessoas extasiadas pela experiência do
banquete, já fora da casa, resolvem, a partir de uma troca de olhares,
continuar juntos e brincar de roda. É isso que se espera de uma aula: um
convite saboroso, instigante e problematizador, que ajude todos e todas a
pensar/intervir na vida de forma mais criadora. Isso é o que se espera do
espaço-atividade sala de aula: um aperitivo daquilo que sonhamos e, por
vezes, anunciamos para vida em sociedade.
______________
Pensamento criador está sendo tratado no texto com um significado
aproximado ao elaborado por Vázquez quando trabalha a questão da
“práxis criadora” (1986): É importante considerar que o processo
de transformação da realidade não se dá de maneira
“constante”. Vázquez (1986, p. 247) aponta que a “práxis
criadora” é uma práxis tipicamente humana, mas que a repetição
daquilo que foi criado se justifica enquanto outra necessidade ou
desafio não se apresenta. “A
práxis é, por isso, essencialmente criadora. Entre uma e outra criação,
como uma trégua em seu debate ativo com o mundo, o homem reitera uma
práxis já estabelecida” (p.248).