O
Indivíduo e a Globalização no filme Lost in Translation, de
Sofia Coppola
Resumo
Este
artigo visa a pontuar os significados de subjetividade e
individualidade no atual processo de globalização, através do
filme Lost in Translation,
de Sofia Coppola. Acreditamos ser este o ponto central - e ao
mesmo tempo poético - do filme de Sofia. Os personagens que se
apresentam como estrangeiros no Japão (sintomático país
escolhido como cenário pela diretora) “revelam-se” em um
movimento contrário e “autenticamente humano” em relação ao
atroz (ou não) mundo globalizado, uma vez que a história é um
construto social e genérico que contém em si as possibilidades
de transformação.
Palavras-chave:
cinema, indivíduo, globalização.
Abstract
This
article focuses on approaching the meaning of subjectivity and
individuality in the current process of globalization, through the
movie Lost in Translation by
Sofia Coppola. This is the movie’s main aim, as well as its
poetical feature. The characters are presented as foreigners in
Japan (symptomatic country chosen for the setting by the director),
turning out to be in a contrary move – authentically human –
in relation to the atrocious (or not) globalized world, as history
is a mean of social and generic construction, which holds the
possibilities of transformation.
Key
words: cinema, individual, globalization. |
Introdução
Explica-nos
Lukács (1981) que a substância humana não pode ser compreendida como
uma entidade abstratamente fixa, mecanicamente segregada do mundo e de sua
atividade físico-espiritual. Inspirado nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos de Marx, o autor húngaro expõe que desde o
primeiro ato de trabalho até as menores escolhas, decisões psicológicas
e espirituais, o ser humano constrói a si próprio, ao mesmo tempo em que
constrói o mundo exterior de modo contínuo. Esse é o momento da
passagem da autoposição à autoprodução do ser humano. É também
através desse momento que superamos a mera singularidade natural, biológica,
e construímos nossa subjetividade, nossa individualidade (nos referimos
aqui ao conceito de persona). Acrescentamos, ainda, que indivíduo - enquanto persona -
é um ser que se coloca cada vez mais como singular (único), ao mesmo
tempo em que é genérico.
Em
outras palavras, o reconhecimento incessante e processual da singularidade
humana - e de sua particularidade - é a mediação necessária para a
elevação do gênero ao seu ser-para-si. Por conta disso é que a
singularidade do ser humano, que se constrói em uma autêntica
personalidade individual consciente, tem seu fundamento ontológico no
desenvolvimento social-global. Nesse sentido, a crescente complexidade
ontológica do ser social demanda, como mediação, individualidades cada
vez mais complexas e articuladas, posto que também genéricas.
Reportemo-nos
agora a uma linguagem estética. O poeta Rainer Maria Rilke, numa de suas
mais belas cartas escritas a um outro jovem poeta, Sr. Kappus, em 1904,
anuncia numa passagem que selecionamos:
Não
se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja
sair dela. Justamente tal desejo, se ele se servir tranqüila e
sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua
solidão sobre um vasto território. (RILKE, 1996)
Foram
exatamente estes pontos que nos serviram de “lanterna de Diógenes”
na análise do filme Lost in
Translation, de Sofia
Coppola: a singularidade humana como individualidade autêntica, porque única
e negadora; a solidão rilkeana em contraposição e, ao mesmo tempo,
organicamente ligada à complexa totalidade social-global, a “um vasto
território”.
O
filme Lost in Translation
Filha
do memorável cineasta Frans Ford Coppola, Sofia aparece de forma resoluta
no mundo do cinema. Depois de The
Virgin Suicides (As virgens suicidas, 1999), a diretora produz Lost
in Translation (traduzido no Brasil como Encontros e Desencontros), que aparece pela primeira vez nas telas
em 2003.
Ao
narrar o drama individual e subjetivo no mundo globalizado contemporâneo,
a diretora recoloca de modo atual o velho dilema - expresso por Dante,
Cervantes e outros pensadores - do homem e de seu destino, escolhas e arbítrio.
Partimos
do princípio de que a arte é uma atividade prático-espiritual pela qual
os homens apropriam-se da realidade sem tornar prescindível o momento da
afetividade. Por isso mesmo é que Lukács (apud
Vaisman, 1989, pp. 428-442) adverte que, diferentemente da ciência, a
arte é por excelência antropomórfica. Nesse sentido, é possível
compreender o filme de Sofia também como uma práxis não só crítica,
mas afetiva, a partir do momento em que se revela como uma forma não só
de questionar, mas de ser um movimento próprio de respostas - através da
linguagem estética do cinema - aos problemas que estão sendo colocados
pelo impreciso e complexo mundo social-global.
Para
falarmos um pouco do caso particular da arte cinematográfica, a angulação
e o enquadramento são essenciais para o diretor, tanto quanto as palavras
para um poeta. O enquadramento e a composição das imagens são os meios
pelos quais a personalidade do artista criativo se reflete de forma
instantânea, imediata na totalidade do filme. É possível ainda dizer
que concordamos com Bela Balázs (2003, p.92), quando este sugere que
“os close-ups do cinema são
instrumentos criativos deste poderoso antropomorfismo visual”, e com o
grande cineasta François Truffaut (1994, p. 236) que, ao discutir a
“evolução estética do Cinemascope”, afirma que o cinema é a arte
da visão, que “no cinema, é necessário encher a vista”.
Todavia,
acreditamos ser importante também chamar atenção para o aspecto de que
a liberdade de criação está essencialmente ligada aos condicionamentos
sociais, a um quadro histórico-social concreto, esteja o criador
consciente ou não disto. Ao mesmo tempo, a genialidade do artista reside
na captura desse quadro. Em outras palavras, o artista - ao mesmo tempo em
que expressa o seu momento histórico de forma particular, original –
abre e aponta para as potencialidades humano-genéricas.
Não
queremos afirmar de antemão que o filme em análise seja uma “obra de
arte”. Pode ser, como expressa Jameson (1985), uma “obra de
cultura”. No entanto, não é uma mera coincidência as diversas
características, tão bem apontadas por Ianni (1997), sobre o processo de
globalização, com toda a sua potencialidade negativa e positiva,
facilmente identificáveis em Lost
in Translation. A começar pelo cenário escolhido pela diretora: o
império do toyotismo, o Japão, um dos atuais centros propulsores da
sociedade global, ou melhor, um dos maiores controladores da máquina
produtivo-especulativa global (além dos Estados Unidos, Alemanha e União
Européia). É exatamente num hotel em Tóquio que os personagens centrais
encontram-se por acaso. Os personagens estão ali como hóspedes e com
finalidades distintas: Charlotte (interpretada por Scarlett
Johansson) é uma recém-graduada em filosofia, que está
acompanhando o marido fotógrafo em um de seus projetos, e aproveita para
conhecer o Japão e fazer turismo; Bob Harris (interpretado por Bill
Murray) é um famoso ator que foi contratado pelos japoneses para filmar
um comercial de uísque.
Um
segundo aspecto manifesto no filme é o de os personagens centrais serem
norte-americanos, tendo o inglês como língua materna. É com esta língua
que os dois comunicam-se com os personagens japoneses, e vice-versa. A
forma de se comunicar retrata bem a realidade vivenciada majoritariamente
pelos turistas no Japão e no mundo. O inglês está se transformando cada
vez mais em língua universal. É uma espécie de “língua franca” que
cumpre o papel mediador entre os “indivíduos, grupos e classes, em países
dominantes e dependentes, centrais e periférico, tribais e clânicos,
oligárquicos e democráticos, capitalistas e socialistas, em suas relações
sociais, políticas, econômicas e culturais” (IANNI, 1997, p. 59).
O
terceiro aspecto é o da revolução da informática, da comunicação
cibernética e dos meios midiáticos – essencialmente ligados ao
desenvolvimento tecnológico global. Como sabemos, o Japão é um país
altamente industrializado e sua “grande corrida” de desenvolvimento
teve início na década de 1960. Para se ter uma idéia, o país concentra
hoje, no seu parque industrial, 70% dos robôs existentes no mundo (BATH,
1993, p. 11).
Relacionado
a esse aspecto é possível percebermos várias cenas exibidas no filme.
Algumas mostram a relação, a intimidade cotidiana dos japoneses com os
diversos aparatos tecnológicos, como por exemplo, as cenas: do hospital
altamente equipado; a que mostra a cortina automática do quarto de hotel
de Bob, que abre (se programada) automaticamente ao amanhecer; a da máquina
de exercício físico, que dá os comandos e indica o ritmo dos exercícios
através de uma voz eletrônica, etc. Em relação às cenas diretamente
ligadas à questão do “mundo midiático”, indicamos duas: uma é a do
hilariante ensaio e gravação de Bob Harris fazendo o comercial de uísque;
a segunda, é o da entrevista deste personagem a um talk
show japonês. É interessante chamarmos atenção para o ridículo a
que Bob Harris é submetido. Esta cena, inclusive, fez-nos lembrar a situação
vivenciada pelos atores (interpretados por Giulietta Masina e Marcello
Mastroianni) no filme Ginger e Fred
(1985), do cineasta italiano Federico Fellini. Sofia soube, tal com
genialmente o fez Felinni, expor os personagens ao ridículo da mídia,
como forma de linguagem crítica à sociedade de consumo, à indústria
cultural, à “sociedade pasteurizada”.
O
último e quarto aspecto que gostaríamos de enfatizar no filme, em relação
à modernidade-mundo, é o que Ianni discute como a “desterritorialização”
enquanto processo negador (ou tendencialmente negador) da
sociedade-nacional. Nas palavras do autor:
Na
sociedade global, ao contrário do que se verifica na sociedade nacional,
a desterritorialização é um processo cada vez mais intenso e
generalizado. Há coisas, pessoas e idéias desterritorializando-se todo o
tempo. As relações, os processos e as estruturas de dominação e
apropriação, antagonismo e integração, parecem desenraizar-se. Há
fatos sociais, econômicos, políticos e culturais ocorrendo perto e
longe, não se sabe onde. Manifestam-se em diferentes lugares, situações,
significados, de tal maneira que produzem a impressão de que vagam por
distintas regiões, nações, continentes. Um processo que está evidente
no vasto espaço do mercado, na ampla circulação de idéias, na intensa
movimentação das pessoas. O turismo e o terrorismo são ingredientes
desse processo, conferindo a muitos a impressão de que as coisas, pessoas
e idéias desenraizam-se periódica ou permanentemente (1997, p. 99).
O
Ocidente capitalista estende seus tentáculos por todo o globo terrestre.
Os impactos dessa desterritorialização são inúmeros. Há uma reificação
cada vez mais intensa da vida, uma tendência à padronização do modus
vivendi, da cultura, da arquitetura, etc.
Dentre
as hilariantes cenas do filme que mostram esse novo aspecto, é possível
perceber japoneses com cabelos pintados de amarelo ou laranja, usando óculos
multicoloridos; minúsculos cubículos em algum 30o andar de
algum monstruoso edifício, onde é possível passar a madrugada cantando
músicas norte-americanas em karaokê; boites com dançarinas
nuas e acrobáticas; bares que simulam assaltos com metralhadoras que contém
balas luminosas; restaurantes onde os clientes é que preparam a sua
comida; ruas com milhares de out doors luminosos, com prédios
ofuscantes, verdadeiras arquiteturas de néon. Enfim, estas características
enquadradas por Sofia são extremamente comuns nas grandes metrópoles, em
lugares como a 5a Avenida de Nova York, a Avenida Paulista e as
ruas do La Défense,
para darmos um exemplo mínimo.
Contrapondo-se
ao nosso mundo da práxis fetichista e fragmentada, os personagens
principais são revelados num movimento contrário. Acreditamos ser esse o
ponto genial do filme. A relação desenvolvida por Charlotte e Bob é
autenticamente humana e emocional, colidindo com nossa estranha e alienada
forma de nos reproduzirmos socialmente. Se, por um lado, a câmera
ressalta os aspectos artificiais, fugidios e desamparadores do mundo “pós-moderno”
- enquanto “imensa coleção de mercadorias” -, por outro, ela
enquadra a própria contradição intrínseca desse mundo: a possibilidade
de uma relação autenticamente humana, não mercantil e perene, a partir
do momento em que um faz parte da história do outro e a modifica/constrói
nessa interação.
Gostaríamos
ainda de refletir que - diferente da solidão do indivíduo que não
precisa estar longe para se sentir distante, estrangeiro, ou seja, da
solidão do homem que não se reconhece em seu próprio mundo – a solidão
descrita por Rilke é a própria individualidade, é a própria
singularidade que se sobrepõe enquanto reconhecimento de si, agarrando
com todas as forças o seu destino e abrindo novos caminhos.
Nessa
perspectiva, afirmamos que a manifestação de angústia e solidão
expressa por Charlotte no início do filme (ao falar com sua mãe por
telefone em seus primeiros dias em Tóquio, por exemplo) é,
essencialmente diferente da “solidão rilkeana” que a personagem sente
no final do filme, após a convivência com Bob. Mesmo percorrendo, em lágrimas
e solitariamente, uma rua entre milhares de prédios e pessoas, Charlotte
aparece tal como é: essencialmente singular, com uma história única e
ao mesmo tempo universal.
Talvez
o sussurro de Bob ao ouvido de Charlotte nas últimas cenas do filme tenha
sido exatamente isto: “o quanto ela é especial”. Uma vez que nos é
possível traduzir a nossa solidão como uma manifestação essencialmente
ligada à nossa singularidade - ou seja, somos sós por sermos
intrinsecamente singulares –, “fica mais fácil” termos forças para
não sucumbirmos (mesmo que parcialmente) ao estranho e opressivo mundo pós-moderno
onde, na maioria das vezes, não nos reconhecemos no outro. Talvez seja
esse o meio da não fragmentação do indivíduo. Só assim não nos
perderemos nesta tradução, mas, contrariamente, exercitaremos
cotidianamente a negação desse mundo antagônico e segregador em que
vivemos. Ao concebermos nossa história como social, como o próprio devir
humano, compreenderemos que os nossos destinos estão intimamente
relacionados a nossas escolhas individuais e coletivas.
Considerações finais
Consideramos
que o que há de mais especial no filme de Sofia Coppola é justamente o
modo como a diretora “retrata” a dimensão subjetiva versus
a dimensão global. Ao mesmo tempo em que os personagens principais
(Bob e Charlotte) são estrangeiros em Tóquio, mostram-se únicos e genéricos,
no momento em que se identificam e não se identificam com o mundo ao seu
redor. A “solidão rilkeana”, que se alastra sobre um “vasto território”,
é o ponto essencial e poético do filme. É o ponto de “recuperação”
- e não da perda anônima e inexpressiva - da subjetividade diante desse
atroz (e não atroz) mundo globalizado.