A
“criança problema” e a normatização do cotidiano da educação
infantil
A criança não se pode antecipar, nem se projetar,
nem se idealizar, nem se determinar. A criança não cumpre nada, não
realiza nada, não culmina nada. É um limite, uma fronteira, um salto, um
intervalo, um mistério.
Jorge Larrosa
Resumo:
Este
texto relata uma pesquisa que teve o intuito de investigar os
sentidos da produção discursiva por meio da qual a educação
infantil (re)produz o lugar institucional da “criança-problema”.
A
perspectiva institucionalista de inspiração foucaultiana foi o
referencial teórico-metodológico de análise do material
discursivo, obtido por meio de observações e entrevistas
em uma creche e uma EMEI.
As
análises mostraram que as práticas concretas da educação
infantil sinalizam um caráter normativo da ação pedagógica aí
desenvolvida, indicando que a subjetividade que nelas se produz é
crivada pela norma desenvolvimentista. Como conseqüência,
a criança que se distancia da norma, seja por excesso,
seja por falta, é interpretada como desigual e anômala.
As
análises demonstram como certas crianças criam estratégias
sutis de resistência à normatização, desenhando singularidade
na forma como nela se inserem e mostrando que esperam ser vistas
com um olhar que as reconheça como alteridade e diferença.
Palavras-chaves:Educação
Infantil, “criança-problema”, discurso, alteridade.
Abstract:
This
text reports a survey which had the purpose of investigating the
senses of discursive production by which the children’s
education (re)produces the “problem child” institutional place.
The
institutionalist perspective of Foucaultian inspiration was the
theoretical methodological referential of discourse matter
analysis, obtained through observations and interviews in a day
nursery and one EMEI (Municipal School of Children’s Education).
Analysis
evidenced children’s education concrete practices show a
normative character of pedagogical action there developed,
indicating the subjectivity produced in them is sifted by the
development rule. As a consequence, the child who moves away from
the rule by excess as well as by lack is interpreted as unequal
and anomalous.
The
analysis demonstrated how certain children create subtle
strategies of normativeness resistance, drawing singularity in the
way they insert in it and showing they hope to be seen with a look
which recognizes them as alterity and difference.
Key-words:
“problem child”, children’s educational, discourse, alterity.
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Um
outro olhar sobre a Educação Infantil: as práticas discursivas
O
período pós-LDB vem demonstrando que não bastam apenas conquistas
legais para que a educação infantil
supere concepções arraigadas em sua história e em suas práticas
concretas, consideradas como obstáculos à conquista de sua identidade
educativa.
O
discurso da “dicotomia” assistir/educar que diferenciou o papel da
creche e da pré-escola, sustentou a história da educação infantil no
Brasil, desde o seu surgimento. Produzindo uma imagem cindida sobre o seu
papel, a educação infantil veio considerando, ao longo de sua história,
a educação da primeira infância como uma superação de fases,
dificultando uma visão do trabalho integrado com a criança de zero a
seis anos bem como a construção de propostas pedagógicas adequadas e
fruto de reflexão sobre sua própria ação educativa.
Partimos
do pressuposto de que o “discurso da dicotomia”
engendrou práticas discursivas concretas tanto nas creches quanto
nas pré-escolas. Nascidas da (na) vivência cotidiana, as práticas
discursivas colocam em evidência o imaginário institucional,
constituindo-se na dimensão não prevista, cujos efeitos permanecem nas
relações cotidianas entre adultos e crianças nessas instituições de
educação infantil.
A
imagem fragmentada que a educação infantil construiu sobre o seu papel
contribuiu para a fragilidade da identidade institucional da educação da
primeira infância realizada na esfera pública e permitiu que os seus
objetivos se tornassem permeáveis aos objetivos de outras instituições,
como os da família e do ensino fundamental, que têm influenciado na
definição de seu papel educativo. Tal realidade tem dificultado à educação
infantil pensar a especificidade
de sua ação educativa a partir da própria criança – ser concreto,
histórico e capaz.
As
instituições de atendimento à primeira infância, buscam hoje superar a
divisão entre momentos educacionais e de cuidado, em nome da globalidade
da experiência da criança; buscam firmar-se como espaço público
diferente da família, complementar a ela mas não igual, assim como
buscam também se firmar como um espaço educacional articulado ao ensino
fundamental, porém diferenciado deste e adequado às necessidades específicas
da criança pequena.
Nesta
busca muitas têm sido as conquistas, contudo, as relações vividas
no cotidiano da educação infantil parecem indicar que este não
tem sido tão somente um lugar acolhedor que propicia à criança
possibilidades de expressividade que lhe são “roubadas” quando esta
chega no ensino fundamental. Torna-se relevante considerar que, em seu
cotidiano, a educação infantil tem negado a assimetria existente na relação
adulto/criança, efeito de demandas diferenciadas, inerentes às
relações entre
adultos e crianças. Essa assimetria refere-se à realidade social que
marca essa relação, que se caracteriza pela dependência total da criança
ao adulto, o que, para Charlot (1979), é um fato social contra o qual não
se pode lutar, pois a criança somente conquista sua autonomia
progressivamente.
A
relevância dessa característica para as instituições de educação
infantil vem sendo apontada por alguns autores, como o aspecto levantado
por Foni (1998). Muito embora se reconheça na criança que se relaciona
com o adulto “competências
comunicativas, capacidades de articular modalidades diversificadas de
relacionamento com adultos e colegas, motivações para explorar, conhecer
e fazer bem mais precoces do que se prevê até os três anos de idade”
(p.145), para a autora, a expressão dessas potencialidades está
vinculada aos comportamentos com os quais os adultos dirigem as
oportunidades e experiências da criança.
As
relações adulto-criança têm sido uma das principais temáticas
presentes hoje nos estudos sobre o cotidiano da educação infantil,
instituição que inaugura a entrada da criança no “espaço público”
representado pelo sistema educacional e que tem tido como tendência de
reprodução do “modelo escolarizante”, característico do ensino
fundamental, em sua prática educativa.
As
concepções que fundamentam o modelo de ensino-aprendizagem que estrutura
o ensino fundamental se originam predominantemente da Psicologia.
Permeando as práticas educativas, o desenvolvimento cognitivo, sugerido
como uma progressão contínua, linear e homogênea de etapas, parece
pautar os pressupostos de aprendizagem da criança.
Com
a utilização de instrumentos nascidos no interior de uma única
disciplina corre-se o risco de se concretizar, na prática, uma única
modalidade com a qual as características e necessidades das crianças
podem se percebidas, conforme destaca Foni (1998). Segundo a autora, o
emprego, na educação infantil, de categorias como “desenvolvimento
motor”, “desenvolvimento cognitivo” e “desenvolvimento social”,
tem demonstrado, na prática educacional, ser redutor da realidade que se
pretende detectar e promover.
Esse
período anterior ao ingresso no ensino formal tem sido definido como dinâmico
e criador. Contudo, os efeitos da adoção de um modelo que não reconhece
o lúdico como forma de participação e produção cultural da infância,
são destacados quando se investiga o cotidiano. Segundo Esteban (1997),
na prática, não é tão evidente o senso comum de que “na pré-escola
se aprende brincando”. Por meio das atividades chamadas lúdicas do pré-escolar,
sempre avaliadas a partir de um modelo de desempenho esperado,
as crianças muito aprendem sobre como se adaptar
à monotonia da vida escolar.
Ainda
como reflexo do modelo escolar, o papel desempenhado pela avaliação nas
práticas da educação infantil demonstra a necessidade de se classificar
o desenvolvimento da criança em termos de sua evolução. Voltada
para os progressos da criança, tendo inerente a idéia de
“metas” a alcançar, a avaliação visa instrumentalizar o adulto na
adequação de conteúdos aos objetivos que pretendem promover o
desenvolvimento de habilidades e a promoção de aprendizagens.
Como
efeito da avaliação que visa “mapear” o pensamento da criança, para
que ela avance nos conhecimentos, há, no cotidiano das instituições de
educação infantil, o predomínio
de atividades centradas no desenvolvimento cognitivo. Estas se revelam
pouco desafiadoras e subestimam a capacidade da criança.
Além disso, a falta de incentivo à autonomia e à relação
adulto/criança resulta em ausência de diálogo, retratando os equívocos
da educação infantil quanto aos interesses e necessidades
da criança pequena.
Muitos
são os valores, normas e modelos aos quais as crianças vão sendo
diariamente adaptadas nas instituições de educação infantil. Mas
quando isso não acontece? Quando a criança não se enquadra nas normas e
padrões estabelecidos? Quando não corresponde aos objetivos traçados?
Que expectativas surgem por parte do adulto? Que planos vão sendo traçados
para ela na instituição? Como vão se constituindo
suas possibilidades futuras?
“Criança-problema”
: um lugar
A
pesquisa procurou compreender como essa criança torna-se o “lento”, o
“excepcional”, o “tagarela”, o “agressivo”, o “terrível”,
enfim, a “criança-problema”.
Sem
tomá-la como objeto de intervenção ou diagnóstico, a criança foi
considerada como sujeito que tem sua existência fundada na rede de relações
vividas diariamente nessas instituições, por meio de um recorte teórico
que possibilita a análise dos efeitos discursivos das práticas concretas
no cotidiano educacional. Nessa perspectiva, a educação infantil pública
do município de São Paulo foi enfocada tendo como referencial teórico a
Psicologia Institucional de Guirado (1987) e a leitura institucional das
práticas educativas, proposta por Aquino (1996 a e b).
O
conceito de instituição, que sustenta tal referencial, a define como um
conjunto de práticas sociais que
tendem a se reproduzir, envolvendo um bem abstrato específico, que
Albuquerque (1978) denomina “objeto institucional”. O objeto
institucional “é aquilo do que a instituição se apropria
imaginariamente, reclamando a soberania de sua posse ou guarda, e sobre o
qual reivindica o monopólio de sua legitimidade” (Aquino, 1995, p.10)
– no caso da instituição escolar este seria o conhecimento.
O
que define a existência de uma instituição é a prática contínua em
torno da apropriação de um objeto. Para essa perspectiva teórica,
instituição não é uma empresa, uma organização ou uma entidade. Esta
é concebida como “um conjunto de práticas ou relações sociais que são
marcadas pela repetição. Práticas/relações que, ao se repetirem,
legitimam-se” (ibid, p.10).
Guirado
parte da premissa de que sujeito e instituição se constituem mutuamente
no plano do imaginário, e que é sempre no interior de relações que se
tece a subjetividade humana, na dinâmica de intersubjetividades
institucionais específicas.
Definida
como um conjunto de práticas sociais, é no movimento de repetição e
legitimação que se traçam os contornos de uma instituição. É pela
imagem positiva que ela produz sobre sua existência que esta se torna
naturalizada e alheia aos sujeitos concretos. Por exemplo, professores,
alunos e toda a equipe de uma escola, “perpetuam um certo cotidiano,
porque o ‘vivenciam’ como relações naturais: como tendo sido sempre
assim, e como tendendo a se repetir sempre dessa forma porque educação e
ensino é isto” (Guirado, 1987, p.73).
Toda
prática institucional se caracteriza, portanto, por um conjunto de relações
especificas marcadas por um plano discursivo que estrutura essas relações.
Esse plano se expressa, a partir da imagem de si e do outro na relação,
nos lugares/posições simbolicamente definidos e assumidos pelo sujeitos.
Busca-se, dessa forma, na perspectiva institucional, “compreender as
relações, mas não como elas se dão materialmente, mas como elas são
imaginadas, percebidas, representadas pelo sujeito” (ibid, p.71).
Quando
as educadoras entrevistadas falam de si e das crianças às quais se
relacionam, o fazem a partir de idéias (re) construídas a partir da própria
relação, desenhando portando, contornos de subjetividade que sustentam o
seu lugar e o lugar do outro na relação. Portanto, as relações
sociais, tecem redes de discursos que produzem o âmbito imaginário de
toda prática institucional.
As
representações dos educadores sobre a instituição evidenciam uma produção
imaginária. Tal análise requer compreender como as pessoas se
“localizam” nas relações que vivem, que imagens constituem a
respeito do lugar (simbólico) ou do papel que nelas desempenham, pois
estas “nascem no conjunto das relações vividas, a partir da ordem simbólica
de lugares atribuídos e assumidos” (Guirado, 1987, p.36).
Por
sua vez, a forma como os atores se identificam com suas práticas indica o
que reconhecem e o que desconhecem acerca das relações instituídas. Na
análise das representações investiga-se, então, “os lugares que os
sujeitos se atribuem e que se lhes atribuem no decurso das práticas;
movimento este que vai lentamente tecendo os processos institucionais de
subjetivação” (Aquino, 1996a, p.18).
Na
qualidade de atores sociais, as pessoas estão presentes nas instituições
não como indivíduos, mas ocupando alguma posição dentro de um conjunto
de práticas. Portanto, o que se privilegia não são as capacidades
individuais ou pessoais. As dificuldades e inadequações não são
consideradas como sintoma de um indivíduo, mas reflexo da forma como posições
imaginárias se articulam na estrutura institucional (Guirado, 1987).
O
conceito de “lugar” foi um dos nortes do estudo. Nele está implícita
a idéia de que não há sujeito fora da instituição (escola, família,
casamento, religião), assim como também não há instituição sem os
sujeitos que a fazem no cotidiano, por meio de suas práticas discursivas.
Trata-se de um sujeito singular mas também um sujeito efeito de
representações que nascem de relações concretas. Sujeito que se
reconhece a partir de uma subjetividade que se institui em relações
sociais específicas.
Nesse
sentido, a “criança-problema” é compreendida como um lugar imaginário
que se institui na estrutura
de relações entre os lugares instituídos. Compreende-se que no discurso
das educadoras materializam-se as representações destas acerca da criança
que não corresponde ao que dela se espera. Na análise dessas representações
procurou-se compreender, portanto, como se dá a metabolizacão imaginária
da “criança-problema”.
O
Modelo Escolarizante e a normatização das práticas com a criança
pequena
Partiu-se
do pressuposto teórico-metodológico de que uma instituição, como prática
social, nesse caso práticas educativas em torno da criança de zero a
seis anos, também é produzida pelo discurso sobre
seu papel. Esse discurso produz uma ideologia nascida na própria
prática, que lhe atribui sentidos reconhecidos e desconhecidos. Assim, o
discurso sobre a prática se produz e reproduz nas relações diárias,
legitimando socialmente uma instituição.
Na
educação infantil, o entendimento de que seriam distintos os papéis da
creche e da pré-escola, sendo que à primeira caberia assistir e à
segunda educar, caracterizou-se como o discurso que distinguiu a tarefa da
educação infantil representada por essas instâncias. No entanto,
torna-se relevante considerar, na contramão do discurso da
“dicotomia”, a presença de objetivos igualmente educacionais,
representados pela concepção educacional assistencialista, tanto na
creche quanto na pré-escola pública.
No
resgate histórico do discurso sobre o papel da educação infantil, a análise
realizada por Kuhlmann Júnior (1998), aponta para o
caráter educacional da Assistência Social, e contribui para
desmistificar a idéia de que assistência não é educação. Para esse
autor, o assistencialismo configura-se como uma concepção educacional
destinada às classes populares. Sempre prevendo um futuro trágico para a
criança pobre - a
marginalidade - a Assistência
tinha como objetivo educacional tirar a criança da rua protegendo-a desse
perigo, culminando, dessa forma, com uma prática de implementar um
atendimento de baixa qualidade à população pobre. Para o autor, é
necessário levar-se em conta
a existência de intencionalidade nas concepções educacionais,
representadas pelo assistencialismo, que sustentaram historicamente as práticas
de creches e escolas de educação infantil públicas.
A
intencionalidade presente em suas práticas não foi levada em conta na
história da educação infantil. Ao contrário, na década de 1970 o
discurso da dicotomia, considerou que as EMEIs “evoluíram” em relação
às creches. Entendeu-se que, após Creche e EMEI terem percorrido juntas
um período igualmente assistencialista, a pré-escola teria essa fase
superada com sua inserção ao sistema de ensino.
O
percurso do discurso pedagógico das creches
e das EMEIs permite observar que ambas instituições atenderam a
mesma clientela. A análise de Kramer (1995) sobre a política pré-escolar
da década de 1970 demonstrou que a concepção educacional que tinha como
objetivo suprir as carências
(e evitar um futuro sombrio) das crianças das camadas mais baixas da
população, sempre permeou as práticas de ambas as instituições.
Pode-se supor que tal concepção não será superada apenas com
conquistas legais, sem que se considere também os efeitos
produzidos nas suas relações cotidianas. Isto porque, em seu
percurso histórico, Creche e EMEI, constituíram a imagem de sua
clientela. Essa imagem, nessas práticas, nasce marcada pelo olhar
preconceituoso com relação à origem social da criança.
O
efeito do discurso da dicotomia parece residir na crença, ainda hoje
presente no cotidiano da creche e pré-escola públicas, de que seu papel
educativo vem sendo construído superando etapas. Contudo, este estudo
constatou, ao contrário do que se supõe, a presença, também na EMEI,
da herança assistencialista em seu cotidiano, no qual permanece uma
imagem ambígua com relação às potencialidades da sua clientela, que,
assim como a da creche, é oriunda das classes populares.
Pode-se dizer que na interface dessa imagem outra se compõe: a de
que quando se ascende a uma educação dita superior, à verdadeira educação,
a clientela não se enquadra. Imagem esta que vem permeando o cotidiano do
ensino fundamental e sendo uma das facetas do fracasso escolar,
conforme pesquisas de Collares & Moysés (1996) e Aquino
(1997).
Como
efeito, essa imagem, gestada historicamente, de ascensão a uma etapa
educacional, dificultou à educação infantil a visibilidade sobre seu
papel. Este se constituiu por meio de uma permeabilidade discursiva às
concepções sobre o seu papel formuladas por outras instituições,
principalmente a família e o ensino fundamental. Essas concepções traçam
imaginariamente hoje o “objeto institucional” que a educação
infantil produz, isto é, a “educação da criança de zero a seis anos
fora do âmbito familiar”. Como efeito dessas influências, a educação
infantil exerce hoje
sua função educativa, por meio da produção de um modelo
escolarizante em suas práticas.
Com
a descoberta da primeira infância como objeto pedagógico e o surgimento
da “função pedagógica de mãe” entre as classes superiores (Chamboredon
e Prévot, 1986), surgem as representações da família sobre o papel das
instituições de educação infantil. Esse discurso se prolifera na década
de 1980 entre todas as classes, com o debate ocorrido sobre a democratização
da educação pública. É possível afirmar que o “discurso da família”
sobre o papel da educação infantil constituiu-se com base na função
preparatória, tendo como objetivo primeiro a alfabetização,
representando, pois, um obstáculo à construção de uma ação
educacional específica nessas práticas.
O
“discurso escolar” sustenta hoje as práticas educativas na educação
infantil. Representando um ponto de referência por constituir-se em
modelo com contornos definidos, esse modelo tem significado para a educação
infantil “contágios
inadequados de pedagogias limítrofes” (Bondioli & Mantovani, 1998).
Privilegiando o desenvolvimento cognitivo, um dos efeitos do “discurso
escolar” tem sido olhar para a criança da educação infantil como
aluno, esperar dela comportamentos e aprendizagens que serão exigidos na
etapa escolar posterior.
As
Instituições de educação infantil vêm reproduzindo em suas práticas
um modelo escolar que prioriza o desenvolvimento. Dessa forma, a
psicologia exerce predomínio nas práticas com crianças pequenas, tendo
poder normatizador por meio de um sistema que prevê o que é “certo”
e o que é “errado”, e cujo controle é exercido visando
classificar, adequar e corrigir.
Segundo
Walkerdine (1994), a psicologia tem fornecido à Educação “aparatos”
de classificação, monitoração da observação e promoção das
capacidades psicológicas individuais,
produzindo nessas práticas o desenvolvimento como pedagogia.
Ao
explicar o desenvolvimento humano, a psicologia, como representante da ciência,
produz um discurso que pertence ao “domínio disciplinar”. Tal domínio,
exercido pelas disciplinas modernas, tendo a Medicina como sua
representante maior, representou, segundo análise de Foucault (1984), a
estratégia de poder na modernidade. Esses mecanismos disciplinares têm-se
constituído em formas de controle e poder na sociedade moderna na medida
em que veiculam o discurso do que é a
“norma” e seu avesso.
Por
meio de práticas de classificação, regulação e normalização, a
psicologia do desenvolvimento produz a “criança em desenvolvimento”
como objeto do seu olhar. Ao produzir
“aparatos” para a produção da verdade sobre a aprendizagem, a
psicologia do desenvolvimento produz
o que significa “aprender” (Walkerdine, 1994).
Reproduzindo
os mesmos padrões e modelos pedagógicos presentes no ensino fundamental,
a educação infantil vem caracterizando sua prática por meio de um
modelo que não possibilita à criança pequena o acesso ao conhecimento
por diversas formas de linguagem e a sua reprodução parece estar em
consonância com a educação assistencialista, quando ratifica o
preconceito com relação à criança que não se adapta ao padrão de
desenvolvimento esperado.
No
ensino fundamental, não corresponder ao padrão de desenvolvimento e
aprendizagem esperados tem como significado erro e fracasso. Estes têm
sido explicados por meio de discursos médico, psicológico e sociológico,
considerados científicos e comprovados. Essa forma de “explicar” o
erro/fracasso tem sido denominada “patologização do cotidiano
escolar” (Collares & Moysés, 1996).
É
por meio de um processo de “importação” de outros discursos que a instituição
escolar explica o
erro/fracasso, e que tem resultado na (re)produção imaginária do
“aluno-problema”, que seria uma
espécie de “imagem” e ao mesmo tempo um “conceito” que tem se
alastrado e despotencializado os limites e possibilidades concretas da ação
pedagógica (Aquino, 1997).
Esse
processo significa uma apropriação imaginária de discursos científicos
produzidos além dos muros escolares. Isso representa atribuir causas para
o erro/fracasso que ultrapassam a abrangência de sua prática. Como
conseqüência, a escola vem alimentando a figura do “aluno-problema”
e desviando-se da possibilidade de buscar soluções a partir de sua ação
pedagógica (ibid).
Nessa
perspectiva, ao adotarem um modelo único e supostamente científico de
criança, aprendizagem e desenvolvimento, esses discursos justificam hoje não só o “aluno-problema” no ensino fundamental, mas
também a imagem de “criança-problema” na educação infantil, como
um dos efeitos do modelo escolarizante que sustenta hoje suas práticas.
Dessa
forma, o olhar da pesquisa foi para o “imaturo”, o “lerdo”, o
“difícil”, o “excepcional” da educação infantil como um sujeito
que tem sua subjetividade marcada pela história das relações por ele
vivida nessas práticas educacionais.
As
análises demonstraram que, do ponto de vista do “discurso científico”,
não existem diferenças de concepção educacional entre a Creche e a
EMEI pesquisadas. Ao contrário, o olhar desenvolvimentista para com a
criança parece normatizar as práticas concretas da educação infantil
representadas por essas instituições.
Os
Enredos Discursivos
Nas
entrevistas, a preocupação das professoras e ADIs parece dirigir-se às
resistências ao disciplinamento que a criança apresenta quando, na
creche, resiste em ser “acalmada” e desenvolver-se no tempo
“certo”, bem como, na EMEI, quando não corresponde à disciplina e às
expectativas de desenvolvimento cognitivo.
Ao
descreverem sua prática, as educadoras da Creche e da EMEI representam o
próprio lugar e o lugar destinado à criança nas relações. O
desenvolvimento da criança parece ser a tônica do objetivo tanto das
ADIs, na Creche, quanto das professoras, na EMEI. Essas agentes se
reconhecem em sua ação, embora de forma diferenciada, com a
responsabilidade de desenvolver a criança. Na Creche, o seu
desenvolvimento é acompanhado e observado até o momento de encaminhá-la
à EMEI. Na EMEI, por sua
vez, a imagem presente é a de que a criança é formada e enviada para o
ensino fundamental, pronta para o exercício da cidadania.
Quando
falam da criança real, não daquela que aparece nos “objetivos
oficiais”, mas na relação concreta, seu lugar parece ser de
prolongamento da ação das educadoras. Na Creche, a criança é contida,
preenchida, acalmada, para ser desenvolvida, enquanto na EMEI ela é
incompleta, em formação, e precisa ser disciplinada para ser
estruturada.
Na
Creche, por sua vez, quando falam sobre seu trabalho, surge para as ADIs
a imagem de que não há obediência cega na relação com a criança.
Criança disciplinada severamente, sem direito a voz, parece ser
considerado algo inapropriado “pedagogicamente”, algo que as ADIs
somente admitem em casos extremos, quando, como forma de castigo, excluem
do grupo a criança que precisa “pensar sobre o que fez”. O mais comum
é a educadora se utilizar da estratégia de chantagem afetiva, em que a
criança, com medo de perder o afeto da “tia”, cede ao controle.
As
ADIs acreditam firmemente que conversa também é uma forma eficiente de
disciplinar e controlar a criança, que, na creche, precisa ser obediente
mas não submissa. Contudo, nas representações “in loco”, as crianças
“na roda” ouvem muito sobre como devem se comportar, mas para
conversar sem nenhum “objetivo” parece não haver tempo, porque na
creche há muito que se fazer, mesmo no tempo livre, para que a criança
se desenvolva bem.
Nesse
imaginário despontam estratégias de normatização do comportamento da
criança, justificadas para que seu desenvolvimento aconteça. Valendo-se
da imagem da “criança sossegada”, as educadoras da Creche e da EMEI
representam uma relação em que a criança não obedece cegamente. Criança
sossegada é importante, na creche, para que o desenvolvimento aconteça,
e na EMEI também; mas no terceiro estágio é importante mesmo para que a
lição “entre na sua cabeça”.
Na
Creche, a criança deve conversar na hora da conversa, momento em que lhe
são “transmitidos conceitos” e em que, segundo representam as ADIs,
ela expressa suas idéias. Na EMEI, a imagem é de que a criança sabe que
deve fazer silêncio para fazer a lição e entende quando isso é necessário.
Essas estratégias de normatização da conduta, via conversa e
conscientização, produzem uma imagem de que não há controle e submissão
na relação. No entanto, estratégia de “deixar a criança pensando”
é adotada por ambas educadoras, quando a conversa “não
funciona”.
Na
EMEI, por sua vez, as professoras, acreditam promover a relação com a
criança de forma bastante democrática, isso porque a EMEI tem como
objetivo transformar a criança em uma criança autônoma. A ambigüidade
dessa imagem de democracia nas relações, que tornariam a criança autônoma,
aparece no vivido. De forma bastante diferente, na prática, a professora,
conforme se observou, apenas cumpre a regra.
Dessa
forma, na EMEI, assim como na Creche, o disciplinamento da criança no
dia-a-dia é parte do trabalho normativo. Na EMEI, os mais modernos
conceitos teóricos, justificam o desenvolvimento cognitivo da criança,
assim como a necessidade do bom comportamento justifica o castigo. A
autonomia da criança parece se restringir a participar adequadamente da
seqüência de atos necessários ao desempenho das atividades diárias.
Para a criança que não entende o que deve ser feito, utiliza-se uma
estratégia de controle mais elaborada,
requisitando-a a ajudar a professora, como oportunidade para que
esta reconheça que “atrapalhou” o trabalho dos outros.
A
idéia de “passagem”, recorrente nas representações das professoras
e ADIs, sugere não existir, nessas práticas, tempo e espaço para a
criança de “aqui, agora”. Para a criança de “hoje”, devido às
suas “origens”, parece haver um objetivo de formação moral. Esse
objetivo, na Creche, justifica-se pelas características da clientela que
“vem de casa sem conceito de nada”, e, na EMEI, porque a criança
chega “sem os valores humanos” necessários como alicerces
para o futuro.
Moralizar
a clientela, objetivo de uma concepção educacional assistencialista,
parece somar-se hoje na educação infantil ao objetivo de desenvolvimento
cognitivo, representando formas de normatização de sua prática que
coexistem e se complementam nas ações cotidianas da Creche e EMEI
pesquisadas. Tal “mão-dupla” normatizadora, que foi constatada por
Aquino no ensino fundamental, parece repetir-se também nas práticas da
educação infantil, como efeito do “modelo escolarizante” que ela
(re)produz.
Todas
as educadoras ouvidas e observadas, destacando as dificuldades encontradas
em seu trabalho, se referiram às crianças que, por vários motivos e de
várias formas, não correspondiam àquilo que para elas foi almejado.
Essas
crianças tornam-se para as educadoras um “caso-problema”, que, na
Creche, as ADIs se esmeram, amparadas por um cabedal psicológico, em
diagnosticar. Demonstrando, nesse momento, a ausência de fronteiras dessa
prática, estas se empenham inclusive em diagnosticar o problema da família
da criança, que geralmente é a suposta razão de sua inadequação.
Na
EMEI, o diagnóstico, também psicológico, a princípio parece se
localizar mais na criança e em suas dificuldades de aprendizagem da
leitura e escrita, ou melhor, justifica-se a criança que ainda não
atingiu o estágio esperado de desenvolvimento da escrita como aquela que
tem em si mesma a explicação para tal “defasagem”. É nesse momento
que o diagnóstico, na EMEI, inclui a família. A criança que não se
encontra na seqüência de desenvolvimento esperada, não dispõe de família
em condições de colaborar com a professora, com uma alfabetização que
começa fora da escola. Motivos de ordem cultural parecem justificar essa
“ausência” da família na educação da criança. E, por conseguinte,
a falta de contato com objetos culturais é conseqüência da origem sócio-econômica
da família, e, por tabela, da
criança.
O
diagnóstico parece, tanto na Creche quanto na EMEI, contribuir para que
as educadoras se desincumbam de buscar, nas relações produzidas nessas
práticas, as causas dos problemas, sempre alojados na criança.
Na
EMEI, parece não haver dificuldade com o caráter moralizante da norma,
talvez porque a criança, em termos de comportamento, corresponde às
expectativas e, segundo imaginam as professoras, “entende” a regra.
Por outro lado, em termos de desenvolvimento cognitivo as professoras
encontram muitos obstáculos. Definindo sua tarefa educativa de forma ambígua,
as professoras afirmam não ter como objetivo primeiro a alfabetização
da criança. Por outro lado, ao adentrarem no tema, adentram no imaginário
da norma, afirmando que a maioria das crianças somente apresenta condições
de serem atingidas até determinado ponto. A partir daí, a professora,
parece, então, deparar com os inúmeros problemas que a criança carrega
e que a impedem de dar continuidade ao desenvolvimento da linguagem
escrita.
A
Normatização do Cotidiano da Educação Infantil
Nas
observações, de maneira geral, pôde-se constatar o
um nítido “controle” do tempo,
do espaço, da linguagem e do corpo, e na qual as crianças
pareciam saber o que se espera delas, e corresponder. Na Creche, na hora
do almoço, tudo transcorre conforme o esperado.Tudo parece cronometrado:
o tempo de almoçar, escovar os dentes e dormir.
Na
EMEI por sua vez, crianças e adultos pareciam estar em sincronia perfeita
nas situações observadas. Uma continuidade de gestos, falas e
comportamentos parecia dificultar o estranhamento daquela prática, na
qual tudo parecia transcorrer na mais perfeita “ordem”. Tudo parecia
estar harmoniosamente “em construção” e nada parecia perturbar.
Apesar
da disciplina sutil, da permissão de circulação e conversa moderada
entre as crianças nas salas, estas pareciam conhecer e submeter-se às
regras que instituíam aquelas práticas e diziam “o que é uma EMEI”.
O “lugar” destinado à criança parecia estar sendo ocupado da forma
como se espera. Nas salas, principais locais de atividades, o importante
parecia ser que a lição fosse feita. A lição parecia normatizar
as relações.
Em
alguns momentos, foi possível observar as crianças do segundo estágio
brincando na sala de brinquedos, sentadas no chão, com montinho de
ligue-ligue entre as pernas, sem saírem do lugar o tempo todo. Ao final
da atividade foram elogiadas pela professora que as definiu para a
pesquisadora como sendo muito tranqüilas.
Nesse
momento, percebe-se que não somente o desvio é apontado. As crianças
que correspondem ao padrão também o são. Inserir-se conforme o esperado
na subjetividade “criança tranqüila” merece destaque, principalmente
para essas crianças que não ousaram rompê-la, nem mesmo na sala de brinquedos.
Em
alguns momentos surgiam representações de uma criança que devia seguir
as ordens, acompanhar o grupo, pois os pequenos desvios eram punidos com
castigos, como excluir a criança da atividade.
Numa
atividade de ensaio do terceiro estágio para a festa da primavera,
pode-se observar uma professora retirar do ensaio dois meninos e
encosta-los na parede, por não
estarem cantando nem balançando o chocalho. E os meninos permanecerem
encostados na parede até que o ensaio terminasse. Portanto, mesmo sob a
aparência do lúdico, a criança parecia ser severamente disciplinada.
Quando resiste à normatização, por meio de estratégias como a
“recusa” ou “desinteresse”,
não sobra lugar para contestação. A criança submete-se passivamente.
A
subjetividade presente nessas práticas é a da norma, ou seja, criança
que se desenvolve e se comporta conforme o padrão. O saber produzido pelo
modelo de desenvolvimento, cujo objeto é a criança em desenvolvimento,
normatiza as práticas na educação infantil na medida em que constitui
um modo de observação e vigilância, bem como fornece ao adulto formas
de interpretar as ações da criança. Pode-se supor que o caráter
normatizador dessas práticas vem restringindo, na educação infantil, a
diversidade e a diferença a duas formas de existência: normalidade e
anormalidade.
As
crianças que se destacaram nas observações, como personagens,
representaram formas de exclusão presentes na Creche e na EMEI
pesquisadas, falando, por isso, também
da norma.
Esses
personagens mostraram que, ao serem vistas a partir de um padrão, este
transforma em deficiência, moral ou psicológica, da família e, por
conseguinte, da criança, tudo aquilo que não corresponde ao esperado.
Por meio do disciplinamento que controla, identifica e contribui para
classificar e comparar uma criança à outra, engendra-se uma
subjetividade em que a singularidade da criança aparece como algo
desigual.
Dessa
forma, a imagem da “criança-problema” que é vislumbrada, aponta para
a norma e o seu produto. Por meio desse lugar atribuído à criança, é
possível constatar o que é a medida da norma bem como aquilo que dela é
considerado desvio.
Por
meio dos personagens foi possível
constatar como a prática normativa é engendrada. Ao apontar o desvio, se
exclui a criança, alimentando o preconceito e o estigma com relação à
clientela, sempre “repleta de problemas”. Nesse momento, não
corresponder ao padrão pode também significar pertencer à classe
popular. É a norma servindo para justificar a inadequação da clientela.
Os
Personagens fazendo a diferença
Durante
o trabalho de campo, as crianças se constituíram em “personagens”
que foram surgindo na própria “trama” discursiva, contribuindo para
explicitar a forma como é gestada no imaginário institucional a
subjetividade, a norma, o padrão,
o desvio, o “problema”.
Nossos
personagens demonstraram que nas práticas de educação infantil é
atribuída uma subjetividade desviante às crianças que não correspondem
aos padrões e modelos esperados. As análises demonstraram como as crianças
resistem a essas marcas, imprimindo singularidade à subjetividade que lhe
atribuem.
A
criança que bate ou xinga os colegas, expressando seu entendimento do que
é “resolver problemas”, utiliza-se da estratégia de resistência e
contra-controle que mais comumente representa o passaporte para o lugar de
“problema” na Creche. Conforme mostrou um dos personagens, essa estratégia
foi considerada “indisciplinada” pela ADI e apontada como desvio por não
corresponder às expectativas de bom comportamento. Nesse caso, desvio
pelo que do padrão esperado lhe falta, ou não é alcançado.
Na
EMEI, os personagens demonstraram a diferença sendo apontada como deficiência.
Algo “falta” à criança para que atinja a norma.
Um
dos personagens, apontado pela professora por ser excepcional, evidenciou
o quanto um imaginário pode ser sustentado por uma premissa que atribui
à criança uma deficiência mental por ela não ser capaz de falar. Relações
e práticas se naturalizavam naquele cotidiano apenas por suposições
de que a criança “parecia” ter deficiência. Representações
circulavam na EMEI sustentando o “diagnóstico” da professora (e por
conseguinte da instituição) que para o menino
sentenciava: ausência de linguagem é igual à deficiência
mental.
Os
personagens da EMEI também apontaram para os objetivos duplos de
normatização do seu cotidiano e da conseqüência que se desviar destes
pode acarretar. Estar no terceiro estágio, não estar alfabetizado, ser
do período integral e, além disso, exercer resistências ao
disciplinamento xingando a professora, são estratégias de resistência que podem produzir efeitos mais drásticos à criança,
efeitos que um dos personagens conheceu muito bem quando a professora o
avisa de que será impedido de entrar na escola caso não se ajuste às
regras.
No
entanto, é necessário ressaltar, que o lugar do adulto, nessas instâncias
educativas, guarda uma certa ambivalência. Muito embora a tônica das
representações das educadoras tenha sido a imagem de desenvolver a criança
para o futuro, na interface dessas imagens, aparecem esparsas intenções
de estar com a criança, brincar com ela, não seguir modelos de
alfabetização que não sejam fruto de uma prática educativa refletida e
construída por seus próprios agentes.
A
análise indicou porque, em seu imaginário, a educação infantil pública
parece não reconhecer o lugar “criança-problema”. Isso porque, a
Creche tem como recurso encaminhar seus “casos” para o psicólogo que
ratifica o diagnóstico da instituição, ou, ainda, encaminhar os
“desviantes” para a EMEI, considerando
que estes, quando em grande quantidade e rebeldes ao disciplinamento,
precisam de “novos horizontes”. Anuncia-se, então, que, estando de
passagem para a EMEI, essas crianças não são mais sua incumbência,
podendo, então, transferir o “problema”, que não é seu, para
frente.
A
EMEI, por sua vez, diagnostica sua clientela “defasada”, e, ao final,
argumenta que seu papel não é alfabetizar, transferindo assim seus
desviantes para o ensino fundamental. A falta de visibilidade sobre sua prática
excludente parece residir no fato de que, em sua ação normatizante, a
educação infantil se empenha em diagnosticar o “problema da criança”
apartada das relações vividas em seu cotidiano.
Conclusões
Em
consonância com o discurso pedagógico contemporâneo, fundado nos
preceitos da ciência, as práticas da educação infantil controlam e
classificam, de acordo com as competências desejadas e estabelecem
modelos e padrões, tendo como intuito conhecer “a criança”. O
produto dessas práticas tem sido a normatização do seu cotidiano e das
suas relações, normatização esta presente nas práticas escolares, em
cujo processo a escola produz o “aluno-problema” como o avesso da
norma. Marcado por tal subjetividade, esse lugar se reproduz na educação
infantil, com idêntica força.
Na
busca hoje de contornos nítidos para o lugar “educador de infância”,
é necessário observar a ambigüidade que o suporta. Se, de um lado, as
educadoras, ADIs e professoras, se vêm no papel de desenvolver e preparar
a criança para a instância educativa seguinte, surgiram também
representações indicando imagens singulares que sinalizam um campo de
conflitos, em que essas educadoras vêm o seu fazer cotidiano invadido por
demandas externas às relações concretas vividas por crianças e adultos
na Creche e na EMEI, mostrando a fragilidade existente nos contornos que
configuram o lugar do profissional de educação infantil.
Contudo,
ocupando seu lugar com autonomia, expressando nele o que têm de si, sendo
instituintes em sua ação, as educadoras poderão ver a criança como o
“outro”. E produzir sentidos em sua prática que nasçam das relações
que diariamente constituem essas
instituições.
E
na medida em que a educação infantil abrir mão de buscar em causas
alheias às relações vividas concretamente, as justificativas para suas
“crianças-problema”, poderá acolher a diversidade humana presente em
seu cotidiano e aproveitar a chance para “fazer a diferença”. E poderá
ainda, como primeira prática educativa da esfera pública, ser um lugar
de acolhimento não só no sentido privado, que protege do mundo, mas também
no sentido público, que mostra o mundo. Pode instituir não apenas uma única
possibilidade, previamente “dita”, de ver o outro, mas instituir a
vontade de conhecer o “outro”. E com sua tarefa educativa, desempenhar
o papel ético de incluir democraticamente todas as crianças.