A
Propósito da Exposição Malfatti, Edição Revisitada
Resumo
O
artigo investiga o porquê de o escritor e crítico Monteiro
Lobato ter atacado violentamente a pintora expressionista Anita
Malfatti em seu artigo "Paranóia ou mistificação?",
por ocasião da exposição individual da artista em 1917. O fato
teve grande repercussão e serviu como um dos motivos que levaram
os jovens modernistas a organizarem a Semana de Arte Moderna no
teatro Municipal de São Paulo, em 1922. Parece que o motivo foi
pessoal, afinal, Lobato também queria ser um grande pintor.
Palavras-chave:
arte, moderno, crítica
Abstract
This
article researches why the writer and critic Monteiro
Lobato has raided hardly on the expressionist painter Anita
Malfatti in his article called "Paranoia and mystification?"
by her individual exhibition in 1917. That fact resulted in a
great repercussion and it was one of reasons for the young
modernists organized the Modern Art Week at Municipal Theater of São
Paulo, in 1922. It seems the reason was personal, because Lobato
also wanted to be a great painter.
Key-words:
art, modern, criticism
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O
presente artigo tem sua origem a partir das seguintes indagações:
"O que levou Monteiro Lobato a falar tão mal da obra de Anita
Malfatti? Ele entendia de arte a ponto de fazer tal crítica?" É
importante relembrar o ocorrido, pois trata de um episódio importantíssimo
para a cultura brasileira: o estopim do Modernismo.
É
claro que Monteiro Lobato, no ápice de sua erudição e no cargo que
exercia no tradicional e respeitável jornal O Estado de São Paulo,
tinha plenas condições de exercer a função de crítico; até porque,
na época, um jornalista se fazia por talento ao lidar com as palavras, e
não simplesmente porque possuía um diploma do curso de jornalismo.
Em seu artigo "Paranóia ou mistificação? A propósito da
Exposição Malfatti", publicado em 20 de dezembro de 1917 – fato
que, paradoxalmente, imortalizaria a obra da artista – Lobato declara
sua total preferência pela arte clássica:
"Há
duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as
coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos
ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas,
os processo clássicos dos grandes mestres. (...)"
Na
seqüência dessa afirmação, Lobato cita, entre outros, Praxíteles,
Rafael, Rembrandt, Rubens, Rodin, como modelos a serem seguidos, revelando
razoável conhecimento de História da Arte. Mas é assim imediatamente
definida por ele a outra "espécie de artista":
"formada
pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de
teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes,
surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (...)"
Seu
repúdio às novas tendências artísticas, as chamadas Vanguardas Européias
- fonte da técnica desenvolvida por Anita - , fica claro nesses trechos:
"Essas
considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti onde se
notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no
sentido das extravagâncias de
Picasso e companhia."
e
mais:
"Sejamos
sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não
passam de outros tantos ramos da arte caricatural. (...) Caricatura da
cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva,
ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o
espectador."
Essa
"arte efêmera" à qual se refere Monteiro Lobato era, em seu
artigo, considerada fruto ou de paranóia ou de mistificação, tal qual
se encontram desenhos desconexos nas paredes dos manicômios. Talvez essa
tenha sido a maior ofensa para Anita: ter sido chamada, mesmo que
indiretamente, de louca, psicótica, possuidora de um "cérebro
transtornado". Nem mesmo alguns elogios ao seu talento serviram para
aplacar a ofensa, porque há momentos em que Lobato se rende ao seu
talento: Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum; mas
logo aponta o aspecto caricatural de sua obra: Entretanto, seduzida
pelas teorias do que ela chama de arte moderna, penetrou nos domínios dum
impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço
duma nova espécie de caricatura.
Embora
os trechos aqui transcritos não dêem a dimensão real das palavras que
provocaram a reação de desolamento de Anita, ainda assim, convém
investigar os reais motivos que levaram o escritor Monteiro Lobato a ser tão
ríspido em sua crítica, o que resultou em um trauma que ela carregou
para o resto de sua vida.
Encontrei
parte da resposta nos estudos de Mário da Silva Brito,
um incansável pesquisador do Modernismo brasileiro, que compilou
importantes documentos da época.
Primeiramente,
é preciso ficar claro que o conjunto das obras de Anita, expostas no salão
da Rua Líbero Badaró, 111, assustou também aos próprios familiares e
amigos próximos da pintora e, principalmente, ao então diretor do jornal
o Estado de São Paulo, Nestor Pestana. E foi este quem encomendou
a Lobato a crítica. Ao que foi relatado em depoimento a Paulo Duarte,
Nestor Pestana, amigo pessoal da família de Anita, depositava nela grande
expectativa. Contudo, frustrado com o que vira na exposição, em virtude
de seu extremo conservadorismo, teria confiado ao articulista Monteiro
Lobato, a crítica em tom de "pito",
aproveitando-se do fato de Monteiro Lobato, apesar de jovem, ser
"velho de sensibilidade"
Foi
o casamento perfeito entre o desgosto de Pestana e a hostilidade de Lobato
às estéticas modernas. Segundo Mário da Silva Brito, o conhecimento de
Lobato acerca de arte limitava-se às lições acadêmicas e tradicionais.
Sérgio Milliet, notável modernista, anota que a crítica de Lobato se
baseia na concepção primária de uma pintura fotográfica,
numa escultura naturalística, o que se origina por certo da ingênua
convicção dum progresso contínuo, na superioridade de nossa civilização
ocidental sobre as demais.
Silva
Brito ainda relembra-nos de que o tom mordaz de Lobato está mais para a
caçoada do que para sátira. Lobato confessara em vários contos e
artigos que suas "observações zombeteiras" não passavam de
vinganças pessoais. Mas o que haveria de vingança pessoal no caso
Malfatti? Eis a descoberta que pode completar a resposta às nossas indagações
iniciais: Monteiro Lobato, além de escritor e jornalista, era também
pintor, ou como diz Silva Brito, "queria ser pintor", tanto que
a primeira edição de sua obra Urupês teve ilustração por seu
próprio punho. Na verdade, era um pintor com traços acadêmicos,
tradicionais mas que, apesar disso, não atingiu o êxito no campo das
artes plásticas, o que resultaria no seguinte comentário de Menotti del
Picchia:
Lobato é um grande contista com fama de mau pintor.
Assim sendo, parece ser consenso entre alguns de seus contemporâneos que
Lobato, além de defender um estilo abraçado convictamente, alimentava um
certo "despeito"
pelo sucesso de novos talentos, e em particular, os modernos.
Todavia,
há quem defenda essa postura de Lobato, entendendo que sua crítica era
proveniente de sua formação positivista, determinista e liberal (Cf.
PENTEADO, 1997), oriunda de
leituras fundamentais para sua formação ainda na Faculdade de Direito de
São Paulo, dentre elas Spinoza, Fichte, Hegel, Voltaire, Taine, Spencer,
Darwin e Nietzsche. Isso justifica seu repúdio à "influência
estrangeira exacerbada", por meio da crítica aos "ismos"
importados (CAMARGOS, 1999). A autora ainda pondera sobre Lobato:
"Na
verdade, para ele, o artista brasileiro não se encontrava suficientemente
amadurecido para apreender criticamente os modelos artísticos das
vanguardas européias. E, sem esse amadurecimento, corria o sério risco
de cair no imitativismo puro e simples." (Idem, p. 135)
O
criador do símbolo nacionalista desprovido de idealizações românticas,
a personagem Jeca Tatu, tinha uma convicção nacionalista voltada para
uma realidade à qual as elites davam as costas. Nesse afã de buscar a
verdadeira identidade nacional, sem influências estrangeiras, longe das
cidades litorâneas como o Rio de Janeiro ou próximas ao litoral, como São
Paulo, Lobato voltou-se para o interior. A partir disso, Lobato
passou a defender a idéia de que a modernidade era o progresso, o
saneamento, o acesso à educação e à cultura, não a reprodução de
movimentos artísticos europeus, que ele considerava apenas modismos
passageiros. Por outro lado, o grupo de modernistas tinha uma preocupação
similar, contudo sem repudiar a influência estrangeira européia, nem a
influência negra, nem a indígena, como é possível notarmos na
antropofagia oswaldiana, tão bem articulada em Macunaíma, de Mário
de Andrade, e tão bem sintetizada na obra de Tarsila do Amaral.
A
diferença entre Lobato e os modernistas é de questão formal, como
assevera Antônio Cândido (1985:120):
"No
campo da pesquisa formal os modernistas vão inspirar-se em parte, de
maneira algo desordenada, nas correntes de vanguarda na França e na Itália"
(...) aprenderam a psicanálise
e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão,
reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe
brasileiro."
Eis
o ponto de divergência entre a modernidade de Lobato e a dos modernistas:
a forma de expressão. Se a preocupação desses dois pólos era
eminentemente o Brasil, sua identidade, sua nacionalidade, seu povo e sua
língua, eles seguiam por caminhos distintos. Lobato era a favor de uma
forma, no que tange à pintura, tradicionalista. As novas formas de
expressão vindas dos emergentes artistas europeus agradavam àqueles que
queriam, por meio de uma nova linguagem nas artes visuais e na literatura,
fazer repensar o Brasil de um novo século, inserindo-o num mundo que
valorizava cada vez mais a velocidade e a
mecanização crescente. Ao
contrário disso, a opção e a opinião de Lobato ficaram claras em seu
artigo. E assim estava instaurada a polêmica que teve como ponto nevrálgico
a obra da jovem e sensível Anita.
Embora
o nome de Anita Malfatti tenha entrado para a história do Modernismo por
causa desse episódio, tudo isso representou para ela, enquanto artista e
também enquanto mulher – não podemos nos esquecer de que somente nessa
época é que os nomes femininos começavam a adentrar um campo
anteriormente quase que exclusivo dos homens – além do enorme choque
psicológico, um grande prejuízo material: quadros já vendidos foram
devolvidos e aulas de pintura foram canceladas. Apesar de tudo, Malfatti não
parou de pintar, apenas recuou às suas lições acadêmicas anteriores:
paisagens e naturezas mortas, ainda que impregnadas de ímpetos
impressionistas.
Em
conferência proferida por Anita na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em
25 de outubro de 1951, a artista desabafa:
"Em
São Paulo, as exposições individuais, grandes e pequenas, já surgiam
então sem interrupção. Muitos artistas como Pedro Alexandre, Almeida Júnior
e Benedito Calixto não representavam surpresa alguma."
A
pintora ainda relembra a exposição de Lasar Segall, pintor com fortes
traços expressionistas, realizada em 1913, sob a tutela do senador
Freitas Valle, que em nenhum momento causou qualquer tipo de
estremecimento no meio artístico e cultural da época (Cf. AMARAL,
1979:73). Quanto a esse fato,
Mário de Andrade, contudo, afirmou que "a presença do moço
expressionista era por demais prematura para que a arte brasileira, então
em plena unanimidade acadêmica, se fecundasse com ela."
Mas
nem tudo foi desolação para Anita. Ela recebeu apoio incondicional dos
modernistas, em especial de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade.
Este, por sinal, foi o único que realizou uma defesa por escrito à crítica
de Lobato. Assim, Oswald, como colunista do Jornal do Comércio,
contrapôs-se à noção de paranóia propagada por Lobato:
"Possuidora
de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para
a apaixonada eleição dos seus assuntos e de sua maneira, a vibrante
artista não temeu levantar com seus cinqüenta trabalhos as mais
irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. (...) A sua arte
é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia. (...) e a nós deu uma
das mais profundas impressões da boa arte."
O
posicionamento de Oswald, num caminho inverso de Lobato, torna-se explicável
à medida que sua postura era de luta pela renovação artística, atuando
como divulgador de uma estética nova, completamente dissociada dos padrões
pré-estabelecidos. Além disso, sua atuação não tem como ponto de
partida uma transformação social, embora não se despoje disso, como é
possível verificarmos nas palavras de Lúcia Helena (1985:32):
"Sua
luta pela renovação artística, principalmente no ângulo em que ele se
apresenta como representante maior de nossa arte alegórica, compreendendo
que a arte não é uma forma imediata, mas dialetizada, de transformação
social, e de que sua finalidade não é a "salvação das
massas", isso também o coloca na postura dos que saudavelmente
ampliam, para além das sofisticadas (ou, na maioria dos casos,
infelizmente, grosseiras) teorias do reflexo, a compreensão das relações
entre a arte e o social-político."
Já
Mário de Andrade, embora não tenha escrito nada de imediato, deu seu
ombro amigo, seu apoio pessoal e, por meio das cartas que trocaram, é
possível notar o imenso carinho que havia entre eles. Esse carinho todo
despertou uma secreta paixão em Anita por Mário, mas que nunca teria uma
definição por parte dele. Ainda assim, mais tarde, em 30 de maio de
1942, em conferência proferida no Salão de Conferências da Biblioteca
do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no Rio de Janeiro, Mário
fez sobre ela uma defesa pública, indagando:
o
que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita
Malfatti, que em plena guerra, vinha nos mostrar quadros expressionistas e
cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E
ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou
quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o
"Homem Amarelo", "A Estudanta Russa", "A Mulher
de Cabelos Verdes".
E
em particular, a respeito de "Homem amarelo"
e "A estudanta russa", comentou Mário de Andrade: são quadros cheios
dessa disponibilidade para o sofrimento que os sensitivos corajosos
descobrem nas sombras projetadas à luz pelos seres e elementos.
O
fato é que Anita foi realmente audaciosa e que, no conjunto da vida e da
obra, o seu fraquejar diante da dura crítica não apagou o legado deixado
pelo ímpeto criativo revelado em obras como as que causaram a grande
querela da exposição de 1917. Quanto a Lobato, embora jamais tenha
conseguido adentrar o mundo das artes como pintor, deixou também inegável
conjunto de obras para a literatura brasileira.
O
aspecto irônico desse episódio é que, talvez sem a crítica de Lobato,
o Modernismo brasileiro não tivesse acontecido, pelo menos naquele
momento e da maneira como aconteceu. Nenhum movimento que envolva a arte
moderna se deu de maneira tranqüila, sem impacto, sem sustos e sem
choques. A aceitação da estética moderna no Brasil aconteceu
paulatinamente ao longo do século XX, e teve seu ápice quando o mundo
adentrava a fase pós-moderna. E ambos, tanto Monteiro Lobato, quanto
Anita Malfatti deram sua contribuição para a construção da
modernidade, cada um a seu modo.
_________________
Referências
bibliográficas:
AMARAL,
Aracy. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Perspectiva,
1979.
Fontes
iconográficas:
Fig.
1 – Rua Líbero Badaró – www.prolam.sp.gov.br/dph/spimagem/spimag16.htm
Fig.
2 – "Lalive" - www.cyberartes.com.br/edicoes/126/artista.asp
Fig.
3 – "O homem
amarelo" - www.baixadafacil.com.br/artesine/index-3.shtml
Fig.
4 – "A estudanta
russa" - www.pitoresco.com.br/anita/anita27.htm