Por MARCUS VINICIUS GARCIA TRIVELONI

Mestrando na UNESP de Assis, na Área de Literatura e Vida Social. Desenvolve um projeto na área de Literatura Comparada.

 

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A cidade cria “heróis”e destrói os “fracos”

Marcus Vinicius Garcia Triveloni

 

Resumo:

O presente trabalho é o resultado de um ensaio de mestrado em Letras apresentado no final do ano de 2004 como exigência parcial da Pós-Graduação da UNESP de Assis para obtenção de título de mestre. O texto faz uma breve comparação entre os personagens Rubião de Quincas Borba (Machado de Assis) e João Romão de O cortiço (Aluísio de Azevedo) levando em conta o contato de ambos com o meio social carioca. Visando a um estilo ensaísta, o texto aqui apresentado aborda alegoricamente as atitudes humanas sob as asas dos cientificismos presentes no ambiente fluminense no final do  século XIX. A linha básica do texto defende a idéia de que a metrópole carioca coroou os malandros exploradores e eliminou os explorados ingênuos. As degradações do meio e dos sujeitos aliadas às negações dos antigos valores éticos e morais serviram de argumentos para que nossos escritores criassem teses sociológicas e enredos miméticos a fim de promover a obra literária como um reflexo do ambiente social brasileiro. O objetivo aqui presente é levantar pressupostos e reflexões acerca dos dois romances produzidos no Realismo/Naturalismo brasileiro e apontar a influência que o ambiente urbano exerce sobre seus habitantes.

Palavras-chave. Romance, Literatura, Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Meio urbano.

Abstract: The present work is the result of a post graduation essay presented in the end of 2004 as a partial request of UNESP in Assis in order to get the master title. The text brings a brief comparison between the characters Rubião in Quincas Borba, of Machado de Assis and João Romão, in O Cortiço, of Aluísio de Azevedo. Taking into account the contact of both characters with carioca social environment. Having as object a essay style, the text represented approaches of human attitudes under scientific wings presented in Fluminense environment in the end of nineteenth century. The basic line of the text defends the idea that Rio de Janeiro’s metropolis erowned the explorer “malandros” and vanished the fool ones. The environment and subject environment joined with the denial of old ethic and moral values with were used as arguments so that our writers created sociological theses and plot in order to promote the literature as a reflex of the Brazilian social environment.

Key–Words: Novels. Literature. Machado de Assis. Aluísio de Azevedo. Social environment.

 

I

Uma análise, mesmo que de menor fôlego, deixará transparecer aquilo que os estudiosos afirmam:  o Realismo/Naturalismo demonstrou em suas páginas uma pintura deturpada do modelo vivo social do final do século XIX. Ora retratando homens e animais como idênticos, ora tentando comprovar teses científicas, os escritores dessa Escola Literária realmente expressaram o poder das ciências, das metrópoles e da sociedade sobre as castas humanas; castas que abusaram da exploração do homem pelo próprio homem. Os avanços científicos e financeiros trouxeram à tona um individualismo que visava a um triunfo social... a competição entre os homens começou a ser uma regra, seja por aspirações à riqueza ou, simplesmente, pelo instinto e pela fome. O Positivismo de Augusto Comte, o Evolucionismo de Charles Darwin e, principalmente, o Determinismo de Hypolyte Taine galvanizaram as intelectualidades do final do século XIX. Começa a existir uma quantidade notória de textos em prosa que vai expor o psicológico das personagens  diante de situações deploráveis em cidades que estão parte em ascensão financeira, parte em decadência moral. Deveras, um retrato fiel de uma sociedade maquiavélica, que usou a “virtude” de forma desonesta, o ser humano é visto como um animal voraz que “devora” seus semelhantes, e a cidade, como um “habitat” que seleciona os mais fortes.

Esse trabalho procura satisfazer o enlace da relação entre personagens e ambientes, levantar questões acerca do envolvimento da sociedade com dois personagens construídos pelos mais belos representantes dessa fase da literatura brasileira:   Machado de Assis e Aluísio de Azevedo.

Esse tipo de romance experimental vai surgir com o francês Émile Zola que, dentre outras coisas, vai apontar conclusões sociais por meio de exposições espelhadas nas camadas sociais inferiores, vai também enfatizar as reflexões embasadas em teorias biológicas e filosóficas.

Embora o Realismo se distancie um pouco disso que acima foi exposto, é também característica dessa Arte Literária a observação dos indivíduos para uma possível conclusão científica e/ou moral sobre a sociedade urbana.

O Realismo “clássico” originou-se também na França, com Gustave Flaubert;  é um tipo textual mais documental, ligado à moral dos indivíduos de classes sociais mais privilegiadas, contudo, o espaço das narrativas sempre será o mesmo: a cidade, com exceção, principalmente, do Verismo Italiano – que foi um movimento literário contemporâneo  influenciado pelo Realismo/Naturalismo Francês, mas que teve o espaço rural como ambiente e uma Itália devastada como tema. Aqui, poucas vezes o ambiente rural será usado como ponto de partida para as indagações miméticas, a nossa manifestação artística tem o Rio de Janeiro como espaço e uma atmosfera que apresenta a gravitação entre a  “plebe” e  o “clero”, entre a ascensão burguesa e o fim da escravidão.

Mas, será que essa arte realmente ajudou a melhorar a vida das grandes cidades? Será que essa intervenção literária no urbano por meio de considerações cientificistas foi proveitosa? Sob uma ótica literária foi totalmente proveitosa, no entanto, não chegaremos a conclusões indiscutíveis, porque as respostas são demasiadamente complexas. Devido a isso, vamos apenas tentar expor duas possibilidades de reflexão: 1) o indivíduo vence a torpeza da cidade e torna-se  financeiramente estável  e sociável.  2)  A cidade engole seus filhos – para usar uma expressão bem ao gosto de  Émile Zola.

O  presente trabalho vai tentar  abordar  uma possível relação entre duas personagens da literatura brasileira com o ambiente que as cercam, não há de se perder de vista as características teóricas dessa Escola Literária, mas também não há de se prender totalmente a questões de ordem histórica e  de entrechos das narrativas citadas.

Nos espelharemos também em algumas teorias e análises recentes sobre os romances, acreditamos que, embora não seja um trabalho de grande fôlego, como já frisado,  poderemos apontar como o meio influenciou diretamente na ascensão do “herói desonesto” João Romão, de O Cortiço, e na destruição do “fraco, apaixonado e puro” Pedro Rubião de Alvarenga, de Quincas Borba.

Aluísio de Azevedo e Machado de Assis, os respectivos autores das obras supracitadas, são os mais importantes escritores do Realismo/Naturalismo brasileiro, ambos sofreram influências externas para elaborarem seus enredos.

Entretanto, o ambiente é tipicamente nacional e a maioria das personagens que cercam os protagonistas também é brasileira. Essa é uma das vertentes que vai servir de base: o ambiente social carioca do final do século XIX.

II

De uma forma didática, apresentaremos as linhas biográficas relevantes de ambos e, para simples contextualização,  os enredos resumidos dos dois romances; panorama histórico que ilustra a relação obra – escritor – tema.

Machado de Assis nasceu em 1839 no Rio de Janeiro, aos quinze anos começa a publicar versos e a trabalhar como tipógrafo, posteriormente torna-se jornalista. A primeira etapa da vida de Machado de Assis como escritor inicia-se em 1870, com a publicação de Contos Fluminenses. Em 1878 finaliza sua fase Romântica com Iaiá Garcia. Foi a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) que Machado desenvolve o seu realismo psicológico e torna-se um grande nome na literatura brasileira. Seu último escrito é Relíquias da Casa Velha, de 1906, morreu em 29 de setembro de 1908. Quincas Borba (1891) é um romance realista que tem como figura central  Rubião, ex-professor primário da cidade de Barbacena (interior de Minas Gerais). O protagonista recebe uma herança de Quincas Borba, um amigo filósofo que criou a teoria filosófica do “Humanitas”.

Além da herança e da teoria – da qual Rubião será o exemplo fiel    há também um cão, cujo nome é idêntico ao do seu antigo dono (ótimo exemplo, tanto no texto quanto na realidade,  de que o cão é o melhor amigo do homem). Após recebida a herança, o protagonista parte para a cidade do Rio de Janeiro a fim de resolver a administração de seu dinheiro, conhece Cristiano Palha e sua esposa Sofia, tornam-se amigos. Cristiano vê em Rubião uma oportunidade financeira e usa sua mulher para seduzi-lo e corrompê-lo. Apaixonado, o protagonista começa a ser manipulado e acaba enlouquecido; sintetizando a teoria: a qual a possível divisão enfraquece as partes, ao passo que, após a disputa, a conquista coroa o mais apto; o mais forte.

Não nos prenderemos somente à composição narrativa nem tão menos na estrutura metafórica do enredo, entretanto, usaremos, de uma forma sintetizada tais características, como por exemplo; a verossimilhança, as teorias vigentes do final do século XIX, a feição social de morais e costumes das personagens e, principalmente, a “epopéia” de Rubião presente na obra.

Aluísio de Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão em 1857, transfere-se para o Rio de Janeiro aos 19 anos e torna-se caricaturista, em 1881 publica o primeiro romance Naturalista brasileiro, O Mulato.

Posteriormente torna-se diplomata e abandona a literatura. Morre em Buenos Aires em 1913. Também escreveu romances de folhetins, contos e  peças teatrais. O Cortiço (1890) é um romance Naturalista que tem como uma das figuras centrais João Romão, português ambicioso que compra um pequeno estabelecimento no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.

Ao lado morava uma negra, escrava fugitiva que possuía uma quitanda. Bertoleza e João Romão começam a morar juntos e a aumentar o espaço em que vivem, constroem pequenas casas e começam a alugá-las. O cortiço começa a se formar e a dar lucros ao seu proprietário, ao lado muda-se outro Português, Miranda, já estável financeiramente. Inicia-se uma disputa entre os vizinhos – João Romão aspira à riqueza, Miranda, já rico, aspira à nobreza – há também o interesse do dono do cortiço pela filha do patrício. Peripécias que fazem o enredo ficar cada vez mais enigmático. Ao passo que o cortiço vai englobando os variados tipos de pessoas, ocorre também diversos tipos de disputas e alguns homicídios. Após um incêndio proposital, o cortiço de João Romão torna-se um “Hotel” e o seu proprietário casa-se com uma mulher “elegante” e de fina educação; a vizinha.

Bertoleza tem um desfecho fatal, assim como outras personagens, João Romão torna-se uma pessoa importante social e financeiramente. Esse nosso herói usa de artifícios malignos para ascender socialmente, tais peripécias são conseguidas por meio da ajuda da sociedade que o cerca, sociedade urbana que, de certo modo, vê como legítima a ascensão de seus “ilustres filhos”, independentemente das circunstâncias.

A proposta aqui  será a de questionar e refletir sobre a conquista de João Romão e a derrota de Rubião, estamos apontando situações que fazem a honestidade e a moral serem vistas como motivos de decadência financeira, ao passo que a “malandragem” é o caminho mais curto para a ascensão social em um Rio de Janeiro aparentemente patriarcal e conservador. Sendo assim, seria justo afirmar que a metrópole carioca do final do século XIX coroou os “malandros” e eliminou os “ingênuos”? Não abandonaremos “a Dialética da malandragem”, mas acreditamos que o metropolitano é, na literatura,  o verdadeiro manipulador  dos desvalidos.

III

Podemos afirmar que ambos os romances tratam das possibilidades de ascensão financeira de personagens diversas em uma grande metrópole. Nos dois textos há, por parte dos narradores, características similares.

O narrador de Quincas Borba aponta a ingenuidade de Rubião e o d’O Cortiço deixa clara a “malandragem” de João Romão: o primeiro protagonista acreditou nas pessoas e se impressionou com uma sociedade carioca aparentemente amigável.

O segundo explorou as pessoas e deturpou a sociedade em que vivia, ambos são exímios exemplos das teorias cientificistas da época.

Quincas Borba é um romance de consciência histórica, o enredo começa a se desenvolver em 1871 e apresenta um tempo hábil para haver a possibilidade de passagem de uma classe social para outra.

O Cortiço é um romance que tem seu enredo datado na época monárquica final de D. Pedro II. Suas personagens estão reunidas sob as asas de João Romão: há todos os tipos brasileiros – bons e maus –  e quase todos são explorados. O desfecho da trama de Azevedo propõe a desonestidade como liberdade e a submissão como castigo, a ascensão ocorre quando as personagens ou exploram ou especulam o meio em que vivem.

Confrontando os protagonistas dos dois romances, podemos afirmar que o estrangeiro toma de empréstimo a idéia de colonização e se sobressai sobre os grupos de brasileiros inferiorizados (João Romão), enquanto o ingênuo interiorano que veio procurar o “tesouro” será sempre explorado quando está diante de ambiciosos  “malandros” cariocas  (Rubião). O leitor atento também perceberá que não há sentimento de injustiça por parte do narrador d’ O Cortiço. Já em  Quincas Borba, o narrador dá certos indícios e antecipações que vão de encontro ao final quixotesco do protagonista.

Não nos prenderemos somente nas belíssimas páginas de John Gledson, que ensaiou uma perfeita representação de Rubião, mas é pertinente percebemos que o “interiorano” representa a transição entre dois momentos; transição que se deu tanto no local como no universal. João Romão também é representativo, como apontou Antônio Cândido, pois Portugal estava preste a perder sua colônia. A verdadeira natureza da sociedade aqui tratada é representada, sobretudo, pela exploração: Cristiano e Sofia Palha usufruem de Rubião; João Romão usufrui não só de seus inquilinos, mas também de todos aqueles que o cercam, inclusive o Português.

Num sentido lato, perceberemos que os brasileiros pobres retratados no romance de Azevedo estão acostumados com a exploração, os brasileiros de classe média do romance machadiano visavam ao enriquecimento, e nada mais propício para tais acontecimentos que uma grande metrópole em ascensão financeira.

A cidade vai fornecer as possibilidades; em Quincas Borba, a “ajuda” oferecida ao interiorano recém chegado serve como pressuposto para a composição da trama, no Cortiço de João Romão, a “ajuda” da negra Bertoleza só tem fins egoístas, pois como é sabido, ela, além de ser enganada, continuou escrava.

A relação da comparação demonstra como a sociedade trata os fracos e oprimidos, e como os escritores brasileiros usaram a cidade em seus enredos. A ironia não só dos narradores, mas também da própria sociedade, serve como sondagem da ambição e da vaidade humana. Ambos os protagonistas têm vontades egoístas, no entanto, João Romão usa de sua ganância para ascender, enquanto Rubião, diante de uma falta de  lealdade e esperança amorosa, se evade para a loucura. Não há espaço para grandes sonhos amorosos dentro de uma sociedade capitalista. Num ambiente totalmente individualista, todos se dispõem a engolir o próximo. Em Machado, Rubião é engolido, enquanto em Azevedo, João Romão é aquele que engole, ou seja, aquele que se sobressai, que vence os obstáculos e com a ajuda do meio prevalece soberano.

O Cortiço traz dentro de si uma completa caricatura do ambiente carioca. Há diversos tipos sociais que direta ou indiretamente ajudarão João Romão a conquistar seus objetivos. Quincas Borba tem também alguns tipos sociais que demonstrarão, ora por meio de discurso direto ora por meio do narrador, qual é a verdadeira intenção da amizade do casal Palha com o protagonista. Essa sociedade vai permanecer condizente com seus exploradores. Não haverá manifestações contrárias às atitudes de João Romão nem tampouco às enganações do casal Palha.

O ambiente carioca é, nos romances, fator sine qua non para a ascensão social dos “malandros”. A sociedade, vista como personagem,  faz  seus “heróis” e “destrói” os puros e ingênuos.

As degradações são também ocasionadas pelos fatores torpes existentes nas cidades: mentiras, sexo, desejos ilícitos, bebidas e violência fazem a promiscuidade ser ora condição para a destruição ora condição para a loucura. Quem as pratica será punido; quem as comanda será beneficiado em um sistema marginalizado, mas nem por isso inexistente em um Rio de Janeiro pecaminoso e capitalista, conservador e monárquico. Outro fator presente nas duas obras é a coexistência entre o explorador e o explorado. Mesmo que em Quincas Borba a exploração se dê mais sutilmente, o casal Palha e o protagonista usufruem, na maior parte do romance, do mesmo ambiente físico, similar ao cortiço de João Romão, ou seja, a sociedade.., a cidade, só vê distinção quando há ascensão. Caso contrário, estão todos confinados num mesmo ambiente, cujo nível é totalmente inferiorizado.

A acumulação de riqueza é a verdadeira forma de emancipação no ambiente social carioca, não há questionamentos sobre a forma que se dá tal enriquecimento, pois a sociedade, como já foi dito, é o meio que determina as possíveis mudanças de classes sociais.

Numa conclusão ampla, podemos afirmar que a exploração praticada por João Romão em O Cortiço e a sofrida por Rubião em Quincas Borba são, deveras, situações aceitáveis em uma sociedade capitalista que se deparava com um início de revolução política.

Mas, novamente, frisamos a total independência acerca  das questões políticas, religiosas e, sobretudo, morais. Das quais não nos prendemos totalmente, nem para tentar apontar uma única vertente literária que prezará as feições conservadoras de uma metrópole que serviu como exemplo decadente, nem de um país que estava em ascensão e ao mesmo tempo em emancipação.

Nessa nova etapa, o fraco falhará diante das mudanças e o “malandro” vai se adequar às novas possibilidades políticas, o representante do velho sistema – interiorano “puro” de Barbacena – não consegue permanecer em uma sociedade que suga os valores morais, o contato com uma grande cidade faz o protagonista perder sua unidade de sentido, embora a retome no final da trama.

Já o Português, acostumado com uma sociedade capitalista e iniciado na “arte da exploração” – ‘já que tudo vale a pena se alma não é pequena’, conquista seus objetivos financeiros e sociais. Em uma visão mais cômica, podemos traçar quais foram os objetivos dos protagonistas em cada uma das narrativas: João Romão quer ascender socialmente e casar-se com a vizinha Zulmira – filha do Português Miranda. Por meio de intrigas, explorações e mentiras, vence o meio e torna-se “quase um nobre carioca”. Rubião queria administrar a herança, cuidar do cão Quincas, ter Sofia Palha como esposa e, num delírio de grandeza, ser “imperador”. Após ser enganado e explorado, perde todo o dinheiro, não se casa com Sofia, esquece a sua responsabilidade sobre “o melhor amigo do homem” e, num momento de sandice e desejo, coroa-se imperador.

Ou seja, o tipo “malandro explorador” é que acaba por ser coroado pela sociedade, já o puro e honesto homem cai diante de uma cidade que seleciona os indivíduos mais fortes. A sociedade realmente destrói os fracos e os pobres, talvez por isso que ela se tornou condizente com as atitudes torpes das personagens criadas pelos dois ficcionistas brasileiros.

Não nos causa surpresa, hoje, o fato de que os planos de conteúdo dos dois romances estavam ligados diretamente à sociedade que os cercavam. Ambos os personagens aqui tratados têm como influência o meio em que estão vivendo e a sociedade que em um coage e em outro é coagida. Talvez, a manipulação das classes inferiores seja mais viável, mais fácil; explicando assim a “vitória” de João Romão.

Contudo, Rubião parece alcançar o reconhecimento aristotélico antes de seu desfecho fatal, um pouco tarde em se tratando de plano de expressão. Acreditamos que em ambos os casos os autores tinham a plena noção do que aqui foi tratado, mesmo que tais pressupostos contidos nesse trabalho tenham se apresentado de forma rápida, superficial e concisa.

A cidade e seus habitantes formam uma sociedade egoísta que visa somente a ascensão financeira, temos, num pano de fundo, mesmo que sutilmente, um sistema capitalista que ou emperra ou funciona perfeitamente, o que determina a evolução ou a estagnação desse sistema é a forma como os indivíduos o controlam. Especificamente aqui, vimos que a evolução se deu por meio de atitudes torpes, a coroação ou a deposição dos “ilustres filhos” caracteriza como os exímios escritores brasileiros do final do século XIX viam o Rio de Janeiro : um lugar deplorável e sórdido, onde os desonestos exploradores ascendiam social e financeiramente, enquanto o homem cordial e honesto era enterrado com o sistema monárquico e com o fim do século XIX.

Tais considerações são pressupostos de uma análise espacial de dois romances significativos da Escola Literária Realista/Naturalista. Não apontamos verdades indiscutíveis nem possibilidades questionáveis. A priori, pretendíamos relacionar dois protagonistas com a sociedade carioca que os cercavam para, a posteriori, constatar a influência que o ambiente exerce sobre seus habitantes.

Independentemente de se apoiar demasiadamente em questões morais, demonstramos como o pensamento coletivo existente dentro das obras poderia ser relacionado com o modelo vigente exterior, lançamos questões de ordens práticas sociais e teóricas, não para serem respondidas, e sim  refletidas.

Se Aristóteles afirmou que “o personagem trágico é o homem bom que cai” e algum tempo depois Shakespeare concluiu afirmando que há uma “vontade invisível que empurra a humanidade para o chão”, tentamos ilustrar tais pensamentos. Rubião era um bom homem, puro e cordial, que em contato com os malefícios da sociedade carioca tomba, definha-se. João Romão se apóia na ‘vontade invisível que empurra a humanidade’ para baixo e constrói seu “império” por meio de mentiras e exploração. Vira um “herói” para a sociedade que o cercava,  não aquele clássico, que já vem fadado pelos oráculos, mas um herói moderno que, por meio de atitudes torpes e deploráveis, torna-se um representante do modelo capitalista social carioca.

Aquilo que se parecia justo e certo na literatura – que é o meio mais representativo das atitudes sociais de determinada época – aparece como avesso. Não temos mais questões morais nem éticas, parece-nos que a evolução da humanidade dentro das obras aqui tratadas vai se dar por meio da exploração. O capital é o único objetivo do homem; não há questionamento sobre os meios, somente o fim é analisado.

Se pensarmos que a arte realmente imita a sociedade – para usarmos um antigo clichê, mas nem por isso ultrapassado – definitivamente temos em Machado de Assis e Aluísio de Azevedo uma pintura canônica social, que vai ser lida, estudada e analisada por mais cem anos.

Referências Bibliográficas

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 18 novembro, 2005.