Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA

Docente no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá; Doutor em Educação (USP) e editor da Revista Espaço Acadêmico.

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TRAGTENBERG, Maurício. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2004 – 215p. (Coleção Maurício Tragtenberg; v. 1)

 

Educação e Política Libertária

Antonio Ozaí da Silva*

 

“Os trabalhos de Maurício Tragtenberg se caracterizam pela erudição meditada, pela heterodoxia tolerante e pela autonomia intelectual. Estes são traços constantes numa obra sempre influente, dispersa em longo período de tempo e variada no assunto, mas que preserva sua agudeza e atualidade de maneira, por vezes, dramática”

(da apresentação, p. 7)

 

O primeiro volume da Coleção Maurício Tragtenberg, dirigida pelo Prof. Evaldo A. Vieira, é composto por artigos, debate e depoimentos, publicados originalmente em 1982, pela Cortez Editora e Autores Associados, sob o título “Sobre Educação, Política e Sindicalismo”. A coleção prevê ainda a reedição dos livros, ensaios e artigos publicados em revista e na grande imprensa, inclusive os escritos publicados na coluna “No Batente”, no jornal Notícias Populares.

Maurício Tragtenberg (1929-1998), de formação autodidata, professor na Unicamp, Fundação Getúlio Vargas (SP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e militante desde a adolescência[1], é um daqueles intelectuais que não se enquadram nos padrões formais e burocráticos do campo acadêmico. Os artigos deste primeiro volume expressam a crítica mordaz à universidade burocrática e, simultaneamente, a exigência do comprometimento ético do intelectual diante dos dilemas do mundo.

Numa época em que a sociedade se dilacera em uma crise ética e política, a qual balança os fundamentos que alicerçaram as crenças políticas de muitos nos último vinte e cinco anos, os escritos de Maurício Tragtenberg, infelizmente, são de uma atualidade dramática. É um tempo em que os intelectuais, salvo exceções, batem em retirada para a segurança da suas consciências individuais e/ou se apegam em sofismas para justificar o apego ao poder burocrático, seja no campo acadêmico e/ou do Estado. Não por acaso, predomina o silêncio e a busca das prebendas através da competição cada vez mais desenfreada pelos recursos públicos e/ou por processos disfarçados de privatização do público.

Tragtenberg denominou este processo de “delinqüência acadêmica”.[2] Neste artigo, que inaugura a obra, ele discute a relação entre dominação e saber, entre o intelectual e a universidade enquanto uma instituição burocrática de caráter elitista e vinculada aos grupos sociais dominantes na sociedade. Ao contrário dos que imaginam ser o espírito contemplativo acima das querelas dos simples mortais, dos conflitos de classes ou de grupos sociais internos e externos ao campo acadêmico, e que advogam uma santa e ingênua neutralidade intelectual pairando acima dos dilemas sociais e políticos, Tragtenberg afirma que a universidade não é neutra, mas sim “uma instituição de classe, na qual as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores, ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais”. (p. 12)

Em “A delinqüência acadêmica”, Tragtenberg analisa como, historicamente, se firmou a ideologia da neutralidade, isto é, a passagem de uma universidade mandarinesca e pretensamente humanista para uma universidade tecnocrática. Neste processo, ocorre a domesticação da crítica – mesmo dos denominados cursos críticos – e o mecanismo para a dominação tecnocrática é o sistema de exames e o controle dos estudantes. Ele assemelha este tipo de universidade a uma “fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder” (p. 13).

Há na postura de Maurício Tragtenberg não apenas a crítica à universidade que produz e reproduz a dominação, uma universidade que forma servos; há também em seu âmago uma proposta pedagógica libertária que desmonta o sistema burocrático fundado no exame e na pretenso saber superior do professor. Como afirma Maurício: “O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta”. É a instituição do exame que impõe uma barreira quase que intransponível a uma pedagogia que privilegie a formação na autonomia e liberdade do educando, uma pedagogia na qual o educador também se educa. “A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse batismo burocrático do saber”, enfatiza. (p.14)

A concepção pedagógica libertária é retomada nos demais artigos. Nestes, destaca-se a contribuição de pensadores e educadores vinculados a esta perspectiva, em especial, o resgate da contribuição de Francisco Ferrer. Os títulos dos artigos fornecem uma idéia ao leitor do material crítico que ele encontrará na obra. Além de “A delinqüência acadêmica” temos:

O saber o e poder;

A escola como organização complexa;

A aplicação das teorias de Weber, Selznick e Lobrot à educação;

Universidade e Hegemonia;

A democratização e a representação discente;

Etapa crítica dos estudantes;

Exorcismo aplicado no combate à UNE;

Os caminhos da democratização da universidade;

Mobral e CEBs;

Pós-graduação e consciência social;

Pós-graduação, bode expiatório;

FMU: a escola do regime;

Francisco Ferrer e a pedagogia libertária.

 

Não há condições nem espaço para esmiuçarmos os artigos elencados (há, ainda, uma segunda parte referente ao debate sobre o vestibular e a última, com duas entrevistas, sobre a função da escola e burocracia no campo educacional). O leitor, porém, pode ter a certeza de que encontrará palavras que instigam o pensar e se distanciam da mesmice formalista e academicista. São palavras escritas em outra conjuntura e, como bem definiu a professora Agueda, são palavras de combate[3] e reflexão, um combate que permanece atual. A não ser, é claro, que se faça profissão de apolítico, um argumento falacioso próprio dos que escamoteiam a responsabilidade social. Novamente, Tragtenberg é enfático: “a ideologia do acadêmico é não ter ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder” (p.17). No cerne da sua crítica está a necessidade da coerência entre pensamento e ação. “A separação entre o “fazer” e “pensar”, afirma Maurício, “se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica”(pp. 17-18).

O leitor tem aqui, e nos concentramos apenas em um dos artigos deste volume, os aspectos principais de um pensador crítico e instabilizador, mas ao mesmo tempo, defensor de uma alternativa pedagógica e política que, a nosso ver, merece ser resgatada, tanto em seus aspectos teóricos quanto nas possibilidades práticas que ela nos oferece. A leitura desta obra pode representar uma contribuição importante aos que não se domesticaram, aos que acreditam que a história é um campo em aberto e, portanto, a realidade construída pelos homens e mulheres pode ser tranformada.

Concluamos com as palavras de Maurício Tragtenberg:

“A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que se oponha à esclerose burocrática da instituição.

A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examinam, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: um diploma acreditativo que em si perde valor à medida que perde sua raridade.

A participação discente não se constitui num remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização” (pp. 18-19).

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Referências bibliográficas

SILVA, Doris Accioly e, e MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: Uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

TRAGTENBERG, M. “Memorial”. In: Revista Pró-Posições, nº 4, março de 1991, Campinas: SP, FE/UNICAMP, pp. 79-87; Revista Educação & Sociedade, 65, dezembro de 1998, pp. 07-20; e, Revista Espaço Acadêmico, nº 30, novembro de 2003: http://www.espacoacademico.com.br/030/30mt_memorial.htm.

__________. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo: Escuta, 1999. (Organizado por Sonia Alem Marrach)

__________. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Editora da UNESP, 2004.

[1] Sobre a biografia de Maurício Tragtenberg, sugerimos a leitura do Memorial, escrito em 1990, por ocasião do seu concurso para professor titular na Faculdade de Educação da Unicamp; a obra autobiográfica organizada por Sonia Marrach Alem; e Maurício Tragtenberg: Uma vida para as Ciências Humanas, organizado por Doris Accioly SILVA e Sonia Alem MARRACH (ver a bibliografia).

[2] Este trabalho foi publicado no livro “A delinqüência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder”. Maurício Tragtenberg cedeu os textos para os alunos do quinto semestre de Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de S. Paulo, os quais, em conjunto com os professores das disciplinas pertinentes ao tema, os editaram e publicaram, em junho de 1979.

[3] A Profª Agueda B. B. UHLE afirma: “Observei que a maioria dos artigos escritos no final da década de 1970 e início da década de 1980 tem uma característica comum: são textos de militância, ou textos de combate, melhor dizendo. (...) São pequenos artigos escritos com o objetivo de participar de um debate político ou mesmo de estabelecer um debate, provocando os responsáveis pela educação, sejam eles do poder público ou de empresas privadas. Trata-se sempre de manifestação do intelectual sobre os problemas mais relevantes no campo do seu trabalho”. (In: SILVA e MARRACH, 2001: 152)

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 18 agosto, 2005.