Por CLAUDIO REIS

Cientista Político, Mestre em Ciências Sociais pela FFC/Unesp, bolsista CAPES. Doutorando em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp, bolsista CAPES

 

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Herança Histórica como Elemento da Questão Nacional em Antonio Gramsci

Claudio Reis

 

Resumo

O tema proposto no presente texto, está relacionado a uma leitura da obra pré-carcerária do autor italiano Antonio Gramsci, tendo uma delimitação enquadrada entre 1910-1926. A partir de seus escritos, tentou-se melhor analisar a relação entre questão nacional e herança histórica. E mesmo que o autor esteja com um enfoque determinado historicamente, ainda sim se pode ampliar sua visão tanto no tempo quanto no espaço. Em outras palavras, o texto busca realçar as contribuições teóricas de Gramsci para uma maior compreensão histórica da Nação moderna.

Palavras-Chave: Gramsci; Questão Nacional; Herança histórica

Abstract

The subject considered in the present text, is related to a reading of the period before the jail in Italian author Antonio Gramsci, having had delimitation the years between 1910-1926. From its writings, it was better tried to analyze the relation between national question and historical inheritance. Same that the author is with a definitive approach historical, still yes if can in such a way extend its vision in the time how much in the space. In other words, the text searchs to enhance the theoretical contributions of Gramsci for a bigger historical understanding of the modern Nation.

Key Words: Gramsci; national question; historical inheritance

 

Ainda aos 19 anos Gramsci escreveu, num trabalho escolar, o seguinte: “Nós os italianos adoramos a Garibaldi; desde criança nos ensinam a admirá-lo; Carducci nos tem entusiasmado com sua fábula garibaldina. Se alguém perguntar às crianças italianas quem gostariam de ser, a grande maioria escolheria certamente o loiro herói.” (SACRISTÁN, 1970, p. 9).

Como se sabe Garibaldi foi um dos principais personagens do processo de unificação do Estado-nação italiano. E como se pode notar, exercia uma enorme influência cultural sobre os italianos. Todavia à medida que Gramsci se insere no debate político-social do seu país, a figura de Garibaldi é recolocada de modo mais crítico perante o seu significado para a história da Itália.

Antes mesmo da prisão, no momento em que se dá sua militância política, Gramsci já sentia o quanto de influência o passado exercia sobre o presente da vida nacional italiana. O que, de certo modo, impulsionava-o para o difícil e complexo entendimento da história do seu país. Isso poderia ser decisivo numa tomada de decisão mais imediata imposta pela realidade. O conhecimento do passado italiano poderia ajudá-lo na condução das suas análises e também das suas ações sobre o presente. Entretanto, esse retorno à história fez Gramsci sugerir suas primeiras noções sobre o significado da nação.

Na maioria dos casos, o autor se utiliza do passado como uma forma de analisar e também combater determinados acontecimentos históricos do presente, identificando-os segundo uma herança nacional a qual, muitas vezes, era necessário a sua superação. Sobre a particularidade da Itália, a herança histórica tinha como predomínio as forças regressivas, anti-populares e a-nacionais. Mesmo existindo exemplos de avanços sociais, o que de fato predominou ao longo da história italiana, segundo as reflexões de Gramsci, foram os movimentos conservadores e elitistas. Portanto, a herança histórico-nacional da Itália assume um sentido próprio, ou seja, a aversão a tudo que é popular.

Com essa abordagem é que se percebe algumas colocações de Gramsci sobre o fascismo, sobre a diferença social entre Norte e Sul, sobre as representações partidário-sindicais dos operários, sobre a presença e importância da Igreja Católica no seu país, sobre a relação entre os intelectuais e as classes subalternas, etc. Em outras palavras, o momento presente se inseria dentro de um longo processo histórico, marcado por diversos conflitos e contradições muitas vezes mal resolvidos.

Sobre o movimento fascista e seu líder Benito Mussolini, Gramsci, em 1924, faz o seguinte enquadramento histórico, em seu texto Lênin, líder revolucionário publicado no L’Ordine Nuovo:

Temos na Itália o regime fascista, liderado por Benito Mussolini; temos uma ideologia oficial na qual o ‘líder’ é divinizado, declarado infalível, apregoado como organizador e inspirador de um Sacro Império Romano renascido (...) Mussolini era então, como o hoje, o tipo concentrado do pequeno-burguês italiano: raivoso, mistura feroz de todos os detritos deixados no solo nacional por vários séculos de dominação dos estrangeiros e dos padres (...) Benito Mussolini conquistou o governo e o mantém por meio da mais violenta e arbitrária repressão. Não teve de organizar uma classe, mas somente o pessoal de uma administração. Demonstrou algumas engrenagens do Estado, mais para ver como eram feitas e para aprender como usa-las do que por uma real necessidade. Sua doutrina está toda contida na máscara física, no modo de girar os olhos nas órbitas, no punho fechado sempre ameaçador... Roma não desconhece estes cenários pioneiros. Ela viu Rômulo, viu César Augusto e, quando do seu declínio, viu Rômulo Augusto. (GRAMSCI, 2004, pp.238-39-40)

Portanto, para o autor sardo, o fascismo – mesmo não sendo um fenômeno puramente de seu país, já que deve ser entendido num cenário europeu e mundial do pós-guerra – insere-se num amplo processo histórico da vida nacional italiana que, em última análise, tem suas origens nas ditaduras do Império Romano, mas que também passa pela presença da Igreja Católica e do domínio estrangeiro sobre a península, durante toda Idade Média. Além disso, seu ponto de vista histórico faz com que as raízes de classe do fascismo sejam desvendadas no tempo e no espaço.

Com similar abordagem, Gramsci refletiu sobre diversos temas de seu país, indicando que muitas questões sociais correspondentes a uma determinada nação não podem ser analisadas fora de um contexto de herança histórico-nacional. Como se cada ponto da realidade cotidiana estivesse inserido numa linha do tempo-espaço, repleta de contradições, dinamizando as lutas do presente e determinando o surgimento do novo. Aqui certamente está presente a tese marxiana de que “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Assim, quando Marx afirma que “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (MARX, 1978, p.329), Gramsci o “traduz” para os problemas da nação italiana. Para as formações sociais estruturadas já há muitos séculos na península, e que lança ao presente um complexo peso histórico.

Aliás, em muitos casos, essa presença do passado na vida cotidiana dos italianos impedia a vitória das forças progressistas, quer dizer, fundamentavam-se numa tração regressiva que puxava o presente para trás. Obviamente que esse movimento não significava, para Gramsci, a derrota de toda e qualquer tentativa de construção histórica, mas sim, exigia uma complexa alteração das correlações de forças sociais e políticas entre passado e presente, construindo uma maior autonomia para o segundo. Em outras palavras, era necessário que a “nação italiana” resistisse e superasse o domínio do seu próprio passado. Para concretizar tal objetivo, Gramsci pensou diversos elementos capazes de desvendar um novo rumo histórico para seu país, na tentativa de impulsionar e expandir os aspectos emancipatórios da realidade presente que estivessem contidos e, de certa forma, reprimidos pelo passado. Aqui poderiam ser citados, entre outros, o Partido Comunista Italiano, o novo tipo de intelectual, o L’Ordine Nuovo com sua inovadora proposta de se entender a cultura em sentido comunista, etc, todos pensados como fundamentais para a consolidação do novo.

Ainda sobre o movimento fascista ele afirma, em sua intervenção na Câmara dos Deputados, em 16 de maio de 1925, que “as classes rurais que no passado estavam representadas pelo Vaticano estão representadas hoje, sobretudo pelo fascismo...” (GRAMSCI, 2004, p.300). Na verdade, o domínio dessas classes sobre o conjunto da sociedade italiana no decorrer da sua história, não revelava outra coisa senão a continuidade do atraso. O fascismo submetia à regressão social até mesmo o pouco avanço político que a burguesia italiana havia posto em prática. O projeto de nação dos fascistas, portanto, estava marcado mais pela união das forças regressivas do país do que pelo seu desenvolvimento histórico.

Num plano mais imediato, todo esse movimento geral da história italiana sobre o presente, no qual se inseria o autor, indicava dois significados, de um lado, a intenção de combater o fortalecimento do proletariado que ganhavam cada vez mais centralidade organizativa e com isso melhores condições sociais, do outro, a permanência de um sistema capitalista frágil e incapaz de solucionar diversos problemas estruturais como, por exemplo, a questão meridional e o predomínio do latifúndio. Portanto, lutava de um lado contra o novo e de outro pela manutenção do velho.

Frente à questão do Sul italiano, Gramsci tenta identificar mais profundamente as raízes históricas dessas forças anti-progressistas da península. Numa primeira afirmação, pode-se colocar que na sociedade italiana o atraso está concentrado na região Sul, ou seja, a vitória de um projeto nacional-inovador passa pela solução de uma questão geográfica.

Mesmo depois da sua “unificação nacional” – num processo dinamizado no final do século XIX, conhecido como Risorgimento – a Itália continuou vivendo sob duas realidades sociais bastante diferenciadas: a do Norte e a do Sul. No entanto, Gramsci não acreditava na existência de “duas Itálias”. Para ele as duas formas de sociabilidade, na maioria dos casos, assumiam um caráter de inter-dependência. Então, a sugestão dada é que a unificação não teve o predomínio das classes realmente afetadas com a desigualdade estrutural dessas regiões, mas a presença de interesses voltados apenas para o domínio, no âmbito estatal, das elites e dos movimentos não-revolucionários. 

Como Gramsci já afirmava, em seu texto O sul e a guerra de 1916, as origens da disparidade entre as duas regiões estavam no seguinte:

A nova Itália encontrara em condições absolutamente antitéticas os dois troncos da península, meridional e setentrional, que se reuniam depois de mais de mil anos. A invasão longobarda rompera definitivamente a unidade criada por Roma; no Norte, as Comunas haviam dado um impulso especial à história, enquanto no Sul o reino dos Svevo, dos Angiò, da Espanha e dos Bourbons lhe deram um outro impulso. Em uma parte, a tradição de uma certa autonomia criara uma burguesia audaz e cheia de iniciativas; e existia uma organização econômica similar a dos outros Estados da Europa, propícia ao ulterior desenvolvimento do capitalismo e da indústria. Na outra, as administrações paternalistas da Espanha e dos Bourbons nada criara: a burguesia não existia, a agricultura era primitiva e não era sequer suficiente para abastecer o mercado local; não havia estradas, nem portos, nem utilização das poucas águas que a região, pela sua especial conformação geológica, possuía. (GRAMSCI, 1987, p.62)

Portanto, em sua análise da história, Gramsci consegue identificar as origens da complexa questão geográfica que se impõe a qualquer projeto nacional para a Itália. Uma questão presente no interior da sociedade italiana há pelo menos mil anos e que somente com uma ruptura radical poderia ser superada. Ao contrário do que foi feito pelos dirigentes do Risorgimento, isto é, pretenderam resolver um problema estrutural e milenar da “nação italiana”, sem alterar de fato seus fundamentos histórico-concretos. Em outras palavras construíram um prédio sobre um enorme pântano. Aquela burguesia “audaz” do Norte acabou cedendo espaços frente aos interesses das classes latifundiárias do Sul.

Assim, a “nova Itália” que Gramsci faz referência, na verdade não significa o surgimento de um novo momento sócio-cultural do seu país, mas sim a permanência, sob outras formas, do mesmo conteúdo histórico alimentado e reproduzido, por um longo período de tempo, pelos diversos movimentos conservadores que nela existiram.

Do ponto de vista das classes subalternas, a vantagem na relação Norte-Sul estava com o primeiro, pois era nele que se concentra a maior dinâmica histórica da península. Era neste local, fundamentalmente em Turim, que se encontrava a maior parte da classe operária do país. Lugar em que a luta de classes ganhou mais força na Itália e de onde poderia surgir um novo movimento nacional. Era no Norte que se encontrava o maior desenvolvimento econômico, político e social do país, quer dizer, o Sul acabou sendo o elo mais frágil da corrente de forças econômicas e políticas da Itália. Já entre os “sulistas”, o que se via era uma grande massa de camponeses miseráveis, propiciando assim o desenvolvimento de relações embrutecedoras em seu cotidiano. E é partindo desse cenário concreto que Gramsci afirma a necessidade de se romper com a tradição permanente - alimentada e difundida pela idéia de avanço nacional fundamentado sobre a eliminação do atraso do Sul. Para ele “é preciso que, como sempre ocorre, não sejam os vasos de argila os que se quebram entre os vasos de cobre que a nave tomada pela borrasca sacode e agita.” (GRAMSCI, 1987, p. 64) Era necessário alterar a ordem das coisas não apenas sobre a relação Sul-Norte, mas também sobre o vínculo Sul-mundo. Para Gramsci, o Sul da Itália era o lugar em que sempre as crises da economia mundial capitalista se disseminava com mais facilidade. Era nesta região onde a vida social sentia com mais exatidão os impactos das turbulências estruturais do capital nacional e mundial.

De qualquer modo, em Alguns temas da Questão Meridional, de 1926, Gramsci afirma algo interessante, referente à resistência dos camponeses do Sul. Para ele, uma revolução silenciosa estava em curso na parte meridional da península. Graças as enormes emigrações características do século XX, muitos camponeses dessa região se dirigiram aos outros países, principalmente da América, devolvendo grandes quantidades dinheiro à terra natal. Entretanto, o Estado interveio pondo fim ao processo. “o governo ofereceu bônus do tesouro com remuneração garantida; com isso, os emigrantes e suas famílias, de agentes da revolução silenciosa, transformaram-se em agentes para dar ao Estado os meios financeiros para subsidiar as indústrias parasitárias do Norte”. (GRAMSCI, 2004, p. 429)

Devido à debilidade do capitalismo italiano – que não demonstrou força o suficiente para eliminar os problemas estruturais do Sul, herdados do passado – vários tipos de ideologias foram construídos e difundidos pela burguesia e seus representantes político-culturais, na tentativa de submeter, principalmente o campesinato, ao seu domínio social. Aqui os “povos do Sul” eram identificados como bárbaros, criminosos, indivíduos inferiores mentalmente, etc. Devido a isso, a região Sul estava comprometida ao atraso natural, à estagnação e à barbárie. A classe operária do Norte, de certa forma, foi o principal alvo desse pensamento, já que a sua aliança com os camponeses poderia colocar em risco o domínio das elites burguesas. Em reposta, os camponeses identificavam, os operários do Norte como sendo seus principais inimigos, ou seja, o conflito de classe assumia uma forma bastante obscura para um movimento realmente “nacional-popular”. Na verdade, as elites burguesas da Itália transferiram a contradição entre capital-trabalho para o combate entre trabalho-trabalho. Até mesmo o Partido Socialista Italiana (PSI) contribuiu para a difusão de tais idéias entre os operários do Norte. Para Gramsci, o Partido Comunista da Itália (PCd’I) deveria rejeitar radicalmente essa herança ideológica da burguesia, com o objetivo de recolocar a contradição central do sistema capitalista, entre capital-trabalho. Caso contrário, qualquer avanço por parte do movimento operário seria certamente combatido pelos camponeses do Sul, instigados pelo pensamento contra-revolucionário das elites burguesias. Em outras palavras, para obter êxito é necessário que o PCd’I

desenvolva uma intensa obra de propaganda inclusive no interior de sua própria organização, para dar a todos os companheiros uma consciência exata dos termos da questão, que, se não for resolvida de modo clarividente e revolucionariamente sábio por nós, permitirá à burguesia, derrotada na sua zona, concentrar-se no Sul para fazer desta parte da Itália a praça de armas da contra-revolução... (GRAMSCI, 1987, p. 132)

Portanto, a herança histórico-nacional da Itália não se manifestava apenas por meio do fascismo, quer dizer, a presença do passado na sociedade italiana ia muito além da política e da economia, passando pela cultura, pela educação, pela filosofia, etc.

Dentro desse enquadramento, um outro fato específico e importante dessa herança histórica italiana, condiz com a presença da Igreja Católica em seu âmbito nacional. Numa Carta endereçada ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, em 1926, Gramsci afirma que a realidade dos camponeses de seu país concentra um grau de complexidade maior que em outros países, inclusive em relação à Rússia, devido à presença do catolicismo. Na verdade, os trabalhadores do campo herdavam da Igreja uma tradição sócio-cultural de mais de dois mil anos, o que interferia profundamente em sua vida política nacional.

Em Alguns temas da questão meridional ele propõe que “o primeiro problema a resolver, para os comunistas turineses, era o de modificar a orientação política e a ideologia geral do próprio proletariado, enquanto elemento nacional que vive no conjunto da vida estatal e sofre inconscientemente a influência da escola, do jornal, da tradição burguesa”. (GRAMSCI, 2004, p. 409) Em outros termos, o foco de análise sobre a nação deveria ser difuso e múltiplo, capaz de captar os vários elementos sócio-culturais. Somente assim, o projeto de superação das heranças históricas poderia ser vitorioso.

Para o avanço histórico do proletariado italiano, a sua união com o camponês era indispensável. A construção de um projeto consensual entre os dois se apresentava de modo fundamental para a edificação de uma nação nova italiana, ou seja, o entendimento e a solução da questão camponesa era uma das principais tarefas a ser cumprida pelo movimento operário do Norte. Continuando em seu Alguns temas da questão meridional, Gramsci declara que

a questão camponesa na Itália está historicamente determinada, não é a ‘questão camponesa e agrária em geral’; na Itália, a questão camponesa, como conseqüência da específica tradição italiana, assumiu duas formas típicas e peculiares, ou seja, a questão meridional e a questão vaticana. (GRAMSCI, 2004, p. 409)

E isso deveria estar claro para a classe operária e para seus representantes político-culturais, como forma de evitar equívocos programáticos. Para o pensador italiano, o proletariado tinha que incorporar as duas questões, traduzindo-as e devolvendo-as à realidade nacional com um profundo caráter revolucionário.

A questão dos intelectuais também observada por Gramsci, da mesma forma, contribui para a maior compreensão dos problemas nacionais da Itália, tendo em vista as conseqüências da sua herança histórica. Principalmente na região Sul, ainda permanecia de modo considerável o predomínio do “velho tipo de intelectual”, que na verdade é uma forma de manutenção das milenares relações sociais entre os indivíduos. Avesso ao trabalho braçal dos camponeses, este intelectual luta pela sua inserção no aparato burocrático do Estado ou da Igreja Católica. Membros da burocracia local, padres, militares, advogados, professores, etc, todos permaneciam presos às antigas formas de sociabilidade. Com este tipo de intelectual, o Sul revela a frágil penetração do capitalismo em suas estruturas sócio-econômicas. Para Gramsci, o desenvolvimento das forças do capital fez emergir um novo tipo de intelectual: “o organizador técnico, o especialista da ciência aplicada”. (GRAMSCI, 2004, p. 424)

No campo ideológico, esta organização social era legitimada por outros intelectuais, muito mais dotados de conhecimento e persuasão sobre toda a estrutura “sulista” – que segundo Gramsci era composta, de baixo para cima, pelos camponeses, pelo “velho tipo de intelectual” da pequena e média burguesia rural e pelos grandes proprietários e intelectuais. Os grandes intelectuais eram os centralizadores desse “grande bloco agrário”. E como figuras expoentes de tal domínio podem ser citados Giustino Fortunato e Benedetto Croce. No entendimento de Gramsci eles eram “as bases de sustentação do sistema meridional; e, num certo sentido, são as duas maiores figuras da reação italiana”. (GRAMSCI, 2004, p. 423) Então, os intelectuais meridionais também ajudavam a identificar a presença das heranças histórico-nacionais não-populares da sociedade italiana.

Na leitura de Gramsci, a filosofia de Benedetto Croce possui um significado contraditório para a vida nacional italiana. Por um lado, Croce se apresenta como fundamental para a elevação cultural dos jovens intelectuais meridionais. Com ele, muitos acabaram saindo do provincianismo regional e intelectual, alcançado o espaço nacional e europeu. Por outro, como na Itália não se deu a Reforma religiosa protestante, quer dizer, um vínculo maior entre intelectuais e massa, a influência dada pela filosofia croceana não atingiu as camadas populares da sociedade italiana, muito menos do Sul. Assim, os intelectuais que seguiram suas idéias o fizeram de modo descolado das massas, sem qualquer compromisso com o movimento popular. Portanto, o movimento “nacional” criado por Croce, deu-se pelas idéias, pela filosofia, em última análise pelo alto, sem vínculo com as amplas camaradas subalternas.

Mesmo diante disso, Gramsci coloca que essa foi a “única Reforma historicamente possível” na Itália. E se por um lado esse movimento não teve sustentação popular, por outro foi absorvido pelas elites, “pela burguesia nacional e, em conseqüência, pelo bloco agrário” do Sul. Então, ao mesmo tempo em que Croce retira do provincianismo a cultura do Sul, lançando-a ao âmbito nacional o faz de modo cosmopolita, sem vínculo popular. Por isso quando Gramsci afirma que Croce “cumpriu uma elevadíssima função ‘nacional’”. (GRAMSCI, 2004, p.431), ele se utiliza de aspas sobre o nacional.

Aqui, portanto, surge uma outra questão referente às heranças histórico-nacionais da Itália, ou seja, a não efetuação de uma Reforma religiosa popular na península, fez com que a relação intelectual-massas continuasse como no tempo do Renascimento – que é outro ponto analisado por Gramsci, principalmente no Quaderni del carcere – tendo com Croce sua expressão moderna. E é contra o referido movimento, no qual o nacional sempre surge sob aspas que Gramsci busca romper.  

A confirmação dessa leitura está presente na seguinte abordagem do autor:

L’Ordine Nuovo e os comunistas de Turim, ainda que num certo sentido possam estar unidos às formulações intelectuais a que aludimos, e portanto também tenham sofrido a influência de Giustino Fortunato e de Benedetto Croce, representam entretanto, ao mesmo tempo, uma completa ruptura com esta tradição e o início de um novo desenvolvimento...” (GRAMSCI, 2004, p.431)

Em sua mente estava certamente o proletariado, ao lado dos camponeses, como o principal sujeito histórico criador desse novo. Entretanto, a ruptura com o significado do pensamento de Croce, não se dava apenas em relação aos comunistas, intelectuais de outras posições teórico-filosóficas também sentiam a importância da classe operária como representante de uma história nova para a Itália, como foi o caso de Piero Gobetti. Morto pelas squadri fascistas, Gobetti era um liberal-democrático que percebia o significado histórico progressista do proletariado para a nação italiana.

No entendimento de Gramsci, então, a questão dos intelectuais era fundamental para a construção de um movimento realmente nacional e popular para o seu país. Sem a presença dos intelectuais, a classe operária e os camponeses teriam grandes problemas em suas organizações político-culturais. Era necessário inflamar uma cisão no interior das camadas tradicionais de intelectuais da Itália que carregam o peso da negação sobre as massas. Era preciso lançar os intelectuais às massas, tirando-os o elemento puramente individual e inserindo-os à “organicidade” das camadas subalternas. Somente dessa forma, os intelectuais poderiam entrar em contato direto com as forças “nacionais e portadoras do futuro” da Itália, isto é, com “o proletariado e os camponeses...”. (GRAMSCI, 2004, p.435) Estas são exatamente as últimas palavras de Gramsci em seu texto inacabado “Alguns temas da questão meridional”.

Aqui, o autor já expõe seu ponto de vista sobre quais seriam as bases de classe para a construção de uma nova história-nacional italiana, quer dizer, ele identifica os sujeitos dessa construção e, conseqüentemente, como deveria ser feita. E será por meio desse processo que se poderá chegar ao seu entendimento sobre o significado de nação tanto num plano mais geral quanto no específico da Itália.

Até o momento, pode-se notar que as reflexões desenvolvidas pelo autor sobre seu país, sugerem a existência de várias questões nacionais, ou seja, a nação não se configura somente com uma questão nacional. Isto fica evidenciado com os elementos até aqui ressaltados: questão geográfica, questão camponesa, questão meridional, questão vaticana, questão dos intelectuais, entre outras. Todas dando indícios sobre como Gramsci entende a nação e como ele a compreende no caso italiano. Ao que tudo indica, existe a intenção, por parte do autor, em “desmembrar” o âmbito nacional para, em seguida, enxergar quais são suas estruturas concretas e quais seus impactos para um projeto político-social de fato nacional. Na verdade, ele busca “iluminar” toda a dinâmica entre os vários aspectos componentes de uma nação como a Itália, frágil em seu desenvolvimento capitalista e inserida num momento tenso da história mundial.

No entanto, esta forma de analisar os problemas nacionais, tendo em vista a relação passado-presente, é somente um dos elementos, que compõem o procedimento de entendimento sobre determinada nação. Em outras palavras, o reconhecimento da herança histórico-nacional para as forcas político-ideológicas da luta diária e também a construção do novo é apenas um ponto do procedimento sugerido por Gramsci para se analisar o nacional. Um outro fator indispensável para a compreensão dessa questão está no impacto de determinados movimentos e tendências culturais externos à vida nacional de um país específico.

Afinal de contas, um país somente ganha particularidade quando comparado com outros. No caso italiano, Gramsci sente a necessidade de colocá-lo em diálogo histórico com os países da Europa centro-oriental, fundamentalmente França, Alemanha e Rússia, mas também com o extremo Ocidente, ou seja, os EUA. Obviamente que ele não se fecha na influência destes, pois outros países são recorrentes em suas análises, entretanto, o destaque sempre vai para aqueles.

Muitas vezes, Gramsci parece sugerir que no caso particular da Itália os elementos progressistas presentes em sua dinâmica nacional não tiveram configurações próprias, mas sim foram incorporados de fora da sua história individual, quer dizer, frente a uma tradição interna predominada pelos movimentos anti-populares, as referências externas passam a ganhar maior relevância. A Reforma protestante, a Revolução Francesa, a Revolução Russa e as inovações técnico-produtivas dos EUA, talvez sejam os principais exemplo utilizados por Gramsci para detectar as heranças histórico-nacionais anti-populares e atrasadas de seu país. Claro que como ele mesmo ressalta, muitos obstáculos colocados para o desenvolvimento da sociedade italiana têm suas origens na presença do estrangeiro em suas estruturas sociais. No entanto, a maioria dos exemplos de movimentos populares lembrados pelo autor, parecem estar fora das fronteiras italianas.

Portanto, em países como a Itália, pode-se dizer que o seu avanço nacional vem de fora. Daí a grande importância dada pelo autor sobre uma outra questão, aprofundada no período carcerário, que é a da tradução.

Referências

GRAMSCI, A. Oprimidos y Opresores, in: Antologia, (Org.) Sacristán, M., Ed. Siglo Veintuno, México, 1970.

__________. Lênin, líder revolucionário (1924), Escritos Políticos, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2004, V.2.

___________. Origens e finalidades da lei sobre as associações secretas (1925), Escritos Políticos, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2004, V.2.

 _________. El programa de L’Ordine Nuovo, in: Antologia, (Org.) Sacristán, M., Ed. Siglo Veintuno, México, 1970.

__________. O sul e a guerra, in: A questão meridional, (Org.) Felice, Franco de, Parlato, V., Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1987.

__________. A questão meridional (1926), Escritos Políticos, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2004, V2.

__________. Informe sobre o III congresso (Lyon) do partido comunista, in: A questão meridional, (Orgs.) Felice, Franco de, Parlato, V., Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1987.

MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, in: Os Pensadores, (Org.) Giannotti, J. A., Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1978.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 18 agosto, 2005.