Violência das torcidas e racismo no futebol:
o que a escola tem com isto?
Resumo
O
objetivo deste trabalho é fazer uma abordagem sobre a violência
das torcidas e o racismo no futebol como conseqüências da exclusão
provocada pelo modelo de sociedade e educação calcados no
sistema econômico capitalista neoliberal, e a necessidade de uma
abordagem reflexiva na escola.
Palavras-chave:
educação, sociedade, futebol, exclusão, racismo e violência
das torcidas .
Abstract
The objective of this work is to make a
boarding on the violence of the twisted ones and the racism in the
soccer as consequence of the exclusion provoked for the model who
is based on a society and an education proceeding of the
neoliberal capitalist economic system, and the necessity of a
reflexive pertaining to school boarding.
Keyword:
education, society, soccer, exclusion, racism and violence of
the twisted ones.
|
1
. Introdução
Nos
últimos anos temos presenciado o aumento da violência no futebol, não
apenas entre jogadores no nível profissional, mas principalmente entre
torcedores e estudantes. Em 2004 dois casos graves que ocorreram em São Paulo tiveram
repercussão nacional: o caso do estudante de 16 anos, torcedor
corintiano, espancado por integrantes da Mancha Alviverde no mês de maio
e o caso do torcedor do São Paulo Futebol Clube, também estudante, 17
anos, assassinado em setembro com um tiro dentro de um ônibus,
supostamente por torcedores da Gaviões da Fiel, torcida organizada do
Sport Club Corinthians Paulista. O que estas vítimas tinham em comum eram
a alegria de viver, a adolescência em transição e, acima de tudo, freqüentavam
uma escola.
Diante
das contradições que o futebol apresenta, através de uma pesquisa numa
escola pública da periferia da Grande São Paulo, os alunos das quintas e
sextas séries do Ensino Fundamental foram levados a uma reflexão mais crítica
sobre a violência que invade os estádios e o racismo presente no
futebol. Duas pesquisas foram realizadas para melhor abordagem do tema na
escola: uma bibliográfica e outra através de questionários junto aos
alunos. Portanto, o professor de educação física e a escola devem
desempenhar um papel importante na abordagem dos problemas recorrentes na
sociedade, despertando no aluno a reflexão,
motivando-o e favorecendo oportunidades de inclusão na comunidade
através do esporte.
2
. Educação e reprodução social
Durkheim
mostra que na busca pela afirmação de sua identidade “cada tipo de
povo tem um tipo de educação que lhe é próprio e que pode servir para
defini-lo” (DURKHEIM, 1972, p.79). Esta mesma educação muda conforme
mudam as necessidades e que estas necessidades mudam porque mudam as condições
sociais das quais dependem as necessidades humanas. Há a compreensão que
as múltiplas aptidões e necessidades que a vida social exige não podem
se reproduzir simplesmente de maneira natural e hereditária. O sistema
educacional pode criar no indivíduo um novo ser social, é no sistema
educacional que o sujeito vai ser inserido num modelo de vida em
sociedade, desenvolvendo formas de consenso ou pacto social, tendo
oportunidades de experimentar e exercer certos padrões de sociabilidade,
ou seja, a internalização da moral social e do grupo. Neste entendimento
somente uma educação e uma cultura voltadas amplamente para o aspecto
humanístico pode dar às sociedades modernas os cidadãos de que elas têm
necessidade. De tal forma a sociedade, através da educação, forja em
cada indivíduo o tipo humano adequado para sua conservação e sua
sobrevivência. Não apenas idealiza o modelo que o educador deve formar
como o constrói, “e o constrói segundo as suas necessidades” (DURKHEIM,
1972, p.81).
Assim
a reprodução age como uma necessidade de garantir e renovar qualquer
modelo de sociedade, e esta tarefa é
atribuída à educação. A reprodução transforma o ser individual em
ser social através de uma ação civilizatória da conduta humana, pelo
processo de socialização, preparando o indivíduo para responder às
necessidades da sociedade. Assim se reproduzem na sociedade os ideais, os
valores, a cultura, a educação e o esporte que são próprios da classe
dominante. A perpetuação e a transmissão são funções latentes que as
classes cultas atribuem à instituição escolar, a saber, organizar o
culto de uma cultura que pode ser proposta a todos (BOURDIEU, 1998, p.56).
Esses
valores e ideais variam numa hierarquia que não se repete em momentos
diversos da história. Houve um tempo, na Grécia Antiga, em que a coragem
estava em primeiro lugar, aspirando todas as qualidades que a virtude
militar implica no cidadão; hoje é o pensamento crítico e a reflexão,
amanhã quem sabe que qualidade exaltará a virtude humana? O espírito crítico
que hoje aspiramos foi durante muito tempo considerado perigoso para a
ordem social. A educação é, portanto, o instrumento através do qual a
sociedade renova perpetuamente as condições de sua própria existência
(DURKHEIM, 1971, p.42).
Bourdieu
(1998), ao falar sobre as desigualdades sociais, destaca que os mecanismos
de eliminação e exclusão ocorrem durante toda a carreira escolar, por
meio de democráticas oportunidades de acesso que nada mais são do que
resultado de um processo de seleção discriminatório, cujo peso é
exercido com rigor desigual sobre os indivíduos de diferentes classes
sociais . Atribui uma grande responsabilidade à “escola” pela reprodução
e pela legitimação das desigualdades sociais:
É
provável por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o
sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da
“escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que
ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece
a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança
cultural e o dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, p.41).
A
reprodução da desigualdade torna-se tão eficaz que os objetivos das famílias
reproduzem a estratificação social e os membros das classes populares
tomam a realidade por desejos, baseando-se nas condições objetivas de
vida e excluindo qualquer possibilidade de desejar o impossível
(BOURDIEU, 1998, p.47). É necessário que a escola e o esporte
ofereçam oportunidades objetivas de êxito para que possa existir algum
desejo razoável de ascensão, com esperanças mais objetivas, despertando
nos sujeitos um ethos positivo de ascensão (BOURDIEU, 1998, p.49).
Podemos
usar o futebol como analogia para os outros esportes, pois suas características
apresentam uma fonte inesgotável de estudos e pesquisas de cunho sociológico,
histórico e antropológico. Dentre as possibilidades que se destacam
algumas despertam interesse social relevante, como a questão da ascensão
social, a violência do atleta e do torcedor e o racismo emergente, todas
conseqüências da exclusão.
O
grito de guerra das torcidas organizadas ultrapassa os degraus das
arquibancadas e os alambrados dos estádios de futebol, trazendo disfarçado
apelo ideológico formado por razões e intenções que vão muito além
do gosto pela prática do futebol, carregado de conteúdos preconceituosos
e racistas. Apelo ideológico que nada tem que o identifique com as cores
do clube ao qual faz alusão de identidade. Ideologia exacerbada que faz
apologia à intolerância, que ao invés de reunir os iguais é eficaz
exatamente por unir aqueles que são desiguais.
3
. Racismo no futebol
O
futebol criou uma nova e intensa onda migratória mundial. Embora a
quantidade de jogadores que são enviados ao exterior seja grande,
proporcionalmente à população do país ela é muito irrisória,
manifestando a exclusão existente no esporte. As oportunidades não alcançam
a todos na mesma condição de igualdade. O futebol pode servir como
estratégia para fortalecer as relações de classe entre os
participantes, mas não significa que jogando futebol o indivíduo alcançará
a ascensão social (SADI, 2004, p.27). E a educação física escolar tem
contribuído para o desenvolvimento e perpetuação da desigualdade ao
reduzir as chances dos excluídos de duas formas: ao privilegiar o esporte
de alto rendimento voltado para as competições escolares ensinado, ainda
hoje, nas práticas de ensino das Faculdades de Educação Física, e
através de professores que simplesmente deixam uma bola de futebol com os
alunos, voltando as costas
para a quadra, deixando-os ao lassez-faire sob o pretexto de uma
suposta pedagogia de autonomia, um mero “fazer por fazer” (SADI, 2004,
p.25) .
A
presença de descendentes afros e jogadores originários das regiões
periféricas tem sido cada vez menor, nos dias atuais, em clubes de maior
expressão. Considerando que a maioria de nossos jogadores que vão para o
exterior tem como destino a Europa, Ásia e Oriente, torna-se muito mais fácil
para os clubes realizar suas transferências se eles forem brancos ou
apresentarem traços culturais que facilitem a sua adaptação, se o
jogador tiver ascendência é ainda mais fácil para o clube de destino
naturaliza-lo no país, abrindo vagas para outros estrangeiros em seus
quadros. Neste cenário em que o futebol é puramente negócio a inclusão
da mulher é mais uma ilusão, pois o futebol feminino não tem futuro
neste cenário voltado para o consumo.E mais: não bastasse a crescente
exclusão, e ela é maior devido à ilusão da ascensão social através
do futebol, surgem indícios das mais variadas formas de manifestações
racistas e de intolerância (SADI, 2004, p.27).
O
racismo tem se manifestado no futebol mundial de maneira cada vez mais
explícita, através de atos de torcedores ou de jogadores. Em 1917,
somente o Andaraí e o Bangu eram times multirraciais no Rio de Janeiro,
porque havia um dilema para a elite dirigente do futebol carioca: manter a
eugenia e perder para os paulistas ou reforçar o time e perder a pureza
racial da organização de futebol do Rio. Era
aceitável um jogador “de cor” num clube de futebol, mas na
seleção, que representava a fina flor da sociedade, era discutível
(Agora São Paulo, 21 mar. 2005, caderno Vencer, p. B12). Em 1923 o Clube
de Futebol e Regatas Vasco da Gama venceu o campeonato estadual do Rio de
Janeiro com uma equipe composta por negros e mulatos, todos de origem
pobre. Isto trouxe grandes preocupações e incomodou dirigentes e amantes
do futebol de elite daquele tempo (AZEVEDO, SUASSUNA e DAOLIO, 2004,
p.86).
Em
1938, após a vitória da Itália sobre o Brasil na semifinal da Copa do
Mundo, os italianos manifestavam “saudamos o triunfo da inteligência itálica
contra a força bruta dos negros” (AGOSTINO, 2002, p.65). Outra manifestação, mais recente,
foi em 2001, quando torcedores da Lazio exibiam faixas, slogans e hinos
visando atacar aos jogadores Cafu, Aldair, Antonio Carlos Zago e Jonathan
Zebina, com os dizeres “equipe de negros, corja de judeus” (AGOSTINO,
2002, p.249). Em 2004 várias situações mostravam o crescimento do
racismo nos estádios europeus, entre elas o momento em que o técnico da
seleção espanhola se dirige para seu jogador, o francês Thierry Henry,
“fale para o negro: eu sou melhor do que você, negro di merda”
(Agora São Paulo, 18 mar. 2005, caderno Vencer, p. B6).
Notícias
deste ano, 2005, dão conta de manifestações mais evidentes e próximas
de nós: em jogo válido pela Taça Libertadores da América de 2005,
Quilmes, da Argentina, contra o São Paulo Futebol Clube, do Brasil,
jogadores e dirigentes do clube brasileiro foram hostilizados. O jogador
Grafite reclamou ter sido vítima de racismo: “O Sanchez me chamou de
negro de m... e de macaco”. O fato resultou em manifestações dos
dirigentes de clubes brasileiros e numa carta pedido de desculpas pelo
clube argentino (Agora São Paulo, 18 mar. 2005, caderno Vencer, p. B1).
No segundo jogo entre as duas equipes, desta vez no Estádio Cícero
Pompeu de Toledo, Morumbi, em São Paulo, o jogador argentino Leandro Desábato
foi detido pela polícia, no final da partida, para prestar depoimento após
ser acusado de racismo pelo jogador Grafite, do São Paulo Futebol Clube.
Este caso teve repercussão internacional, exigindo uma posição política
do governo brasileiro. Em nota à imprensa o ministro do esporte, Agnelo
Queiroz, e a secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial da Presidência da República, Matilde Ribeiro, repudiaram qualquer
manifestação de preconceito, discriminação e xenofobia no esporte,
considerando grave o incidente que levou à prisão do jogador argentino
(BRASIL, 2005).
4
. O futebol e a violência das torcidas
O
futebol tem caráter eminentemente moderno e urbano, cuja evolução está
vinculada às condições históricas que marcaram o fim do século XIX e
o início do século XX, atingindo as
diferentes classes sociais. Tão urbano é o fenômeno que faz parte do
cenário o andar em bando, vestindo a camisa do time, diferenciando-se do
todo e construindo para si e para o grupo uma nova forma de sociabilidade
e de identidade (BAUDRILLARD, 1992, p.88).
Considerados
os aspectos sociológicos e antropológicos, o esporte tem servido de
instrumento para desvio de atenção da massa e atenuar as tensões
sociais. Não apenas os governantes mas em todos os níveis hierárquicos
os superiores têm usado o esporte como instrumento de manipulação e
controle social (AZEVEDO, SUASSUNA e DAOLIO,
2004, p.62).
Hoje
lucrativos loteamentos residenciais e industriais engolem terrenos onde
outrora eram campinhos de futebol e as crianças e jovens passavam parte
do dia jogando. Estes campinhos, que já serviram de referências nos
bairros e cidades, deram lugar a estacionamentos ou galpões industriais.
Uma análise mais aprofundada far-nos-á compreender que no sistema
mundial atual, pelas suas características cada vez mais excludentes, o
lugar das classes mais baixas da sociedade no âmbito do esporte é na
arquibancada, como torcedor, atuando como “elemento passivo” diante do
fenômeno do espetáculo esportivo (SADI, 2004, p.19). Mas analisando mais
meticulosamente o capitalismo presente no futebol, este espaço também já
tem dono: aquele que pode pagar por ele e consumir seus produtos.
Embora
o esporte seja para todos, os controladores do futebol buscam um novo tipo
de cliente, os “pós-torcedores”, sujeitos críticos, reflexivos e
formadores de opinião, com potencial de consumo consciente. Estes por
terem ação participativa maior são capazes de romper com a passividade
das antigas e românticas torcidas e “abraçam” a cultura popular com
mais facilidade ao invés de rejeitá-la, sendo consumidores culturais em
potencial. Estão no centro da produção e do consumo presentes na mídia
e na cultura do futebol (GIULIANOTTI, 2002, p.190).
Na
interpretação de Taylor alienação dos torcedores apresenta uma
característica tipicamente mundial: torcedor de classe operária, jovens
de grupos subculturais, crescente violência urbana e resistência inicial
a mercantilização no futebol. Sendo jovens de classe social baixa e
excluída do acesso às melhores oportunidades sociais, formam em geral mão
de obra não qualificada, de baixo nível educacional, gerando a cultura
de arquibancada dos anos oitenta: racismo violento, sarcasmo cruel e
poucas atrações românticas. São jovens fora da influência social de
seu grupo familiar que se ligam a grandes grupos de companheiros com seus
próprios valores subculturais (Taylor apud GIULIANOTTI, 2002, p.64).
O
“hooliganismo”, surgido na Inglaterra, desenvolveu diferenças
perdidas entre os trabalhadores, estabelecendo novas formas de
sociabilidade e acirrando as desigualdades e hostilidades entre torcidas
de agremiações diferentes, demonstrando uma visão de mundo expressa
através de gestos, slogans e cantos transformando-se numa das mais
extraordinárias experiências coletivas vivenciadas no universo dos estádios,
momento privilegiado na projeção da sensação de pertencimento a um
grupo (AGOSTINO, 2002, p.235).
A
prática esportiva e mesmo de torcida constitui momento de expansão das
pulsões primárias reprimidas pelo meio social cotidiano. É no coletivo
da torcida que o indivíduo encontra a oportunidade de extravasar seus
sentimentos e instintos reprimidos pela sociedade (AGOSTINO, 2002, p.20).
E é na escola, instrumento da sociedade para moldagem do indivíduo, que
esta repressão tem início e se manifesta com maior evidência.
Neste
coletivo ele encontra identidade e afinidade para manifestar suas repulsas
e fazer coisas que não faria isoladamente no seio da sociedade, seja por
necessidade de tomar atitudes que o habilitem a pertencer ao grupo, seja
por motivo de ritual de passagem (AGOSTINO, 2002, p.236). É a manifestação
do sentimento de impotência e da frustração pessoal diluídas no
coletivo das arquibancadas.
Na
verdade a violência é inerente ao futebol desde seu período primitivo.
O futebol é recheado de eventos legendários e históricos que apontam
para o lado violento e agressivo de seus praticantes, nasceu como disputa
dual, onde as equipes representavam grupos ou identidades coletivas, nações,
localidades geográficas e culturas específicas. Até hoje predomina a
oposição binária em que cada jogador está comprometido com uma batalha
pessoal com o seu número oposto, o seu marcador, e seu desempenho num
jogo e sucesso na equipe dependerá de sua capacidade de superar seu
rival. Também em cada cidade estão presentes, geralmente, dois clubes de
futebol, representando classes ou grupos diferentes. Neste antagonismo estão
embutidas velhas questões de etnia e classe, expressando a animosidade
entre a classe dominante (GIULIANOTTI, 2002, p. 189).
Há
relatos históricos em que os jogadores participavam de partidas de
futebol portando punhais que causavam ferimentos acidentais e intencionais
não só nos adversários como em seus companheiros de equipe. Eram comuns
socos, pontapés e golpes de lutas, ossos quebrados, ferimentos graves e
morte (GIULIANOTTI, 2002, p. 17). O mais surpreendente é que o futebol
era praticado nas festas religiosas representando ritual simbólico e
figuras da elite dominante.
Numa
perspectiva sociológica de Durkheim os aspectos primitivos do futebol
servem para integrar o indivíduo no âmbito local e manter a ordem
social. A integração do indivíduo funciona como um rito de passagem
celebrado publicamente, confirmando a maturidade de jovens e adultos,
aumentando o sentimento de solidariedade e de responsabilidade sociais,
por exemplo: jogos entre casados e solteiros, cidade versus campo,
cidade versus cidade, paróquia versus paróquia, escola versus
escola (GIULIANOTTI, 2002, p.17). Não é sem propósito que as tabelas de
jogos dos campeonatos esportivos prevêem jogos de “ida e volta”, em
casa e fora de casa.
Numa
análise taylorista, de perspectiva marxista, as causas da violência das
torcidas de futebol estão relacionadas às “mudanças econômicas e
sociais mais amplas” ocorridas no pós-guerra (Taylor apud GIULIANOTTI,
2002, p.63). A influência inglesa dominante na expansão da economia
mundial e do futebol colaborou para a globalização da violência das
torcidas. O futebol praticado enquanto classe operária, lá pelos românticos
e históricos anos finais do século XIX e primeiras décadas do século
XX, de âmbito local, envolvendo comunidades locais ou vizinhas, criava no
torcedor-operário a falsa idéia de que ele exercia influência nas decisões
do clube e considerava a agremiação como uma “democracia
participativa”. Para a elite dominante que administra os clubes o espetáculo
visa atrair expectadores consumistas e não satisfazer os torcedores
apaixonados. A perda da influência direta sobre o clube marca o início
da marginalização do torcedor (AGOSTINO, 2002, p.235). No mercado
capitalista do esporte os clubes perdem a afetividade, porém ganham a
fidelidade consumista do torcedor. E o mesmo interesse opera nas ideologias das torcidas
organizadas.
O
aparecimento da televisão contribuiu para difundir os gritos de guerra,
os cantos, os símbolos, os emblemas e os slogans das torcidas, fazendo
acirrar ainda mais os antagonismos ocultos, ampliando a “arena” de
confronto (AGOSTINO, 2002, p.235).
No
Brasil a história das
torcidas mostra-se culturalmente complexa e ilusória. Tendo origem na década
de 40, era composta de indivíduos socialmente estabelecidos que foram
substituídos ao longo dos anos pela cultura jovem, partidária e
agressiva. Primeiro a torcida do Clube de Regatas Flamengo, no Rio de
Janeiro, depois a torcida do Sport Club Corinthians Paulista, em São
Paulo, constituíram-se em grupos que cresceram muito ao longo das décadas
e estavam fortemente ligados ao hooliganismo europeu nos anos 80 e 90 (GIULIANOTTI,
2002, p. 85). A participação dos torcedores no futebol tornou-se mais
“problemática em razão de um contexto mais complexo e dinâmico que
aquele vivido pelos torcedores símbolos desde a década de 40” (TOLEDO,
1996, p.30). As torcidas latinas, do Brasil e do norte da Europa
principalmente, são consideradas “carnavalescas” pelos estudiosos em
sociologia do futebol por isso vale lembrar Bakhtin: “Os risos do
carnaval sempre carregam consigo a possibilidade de violência” (Bakhtin
apud GIULIANOTTI, 2002, p. 87).
5
. O que a escola tem com isto?
Que
visão podemos ter sobre o esporte escolar neste processo de reprodução,
uma vez que a Educação Física é um componente curricular desta educação
que aí se efetiva? Muitas vezes somos surpreendidos seguindo à risca
certos elementos tradicionais da prática esportiva e da educação física.
A escola é o lugar na sociedade que deve permitir ao indivíduo o acesso
às manifestações culturais e participação na construção de uma
cidadania democrática. Dentro da escola, o esporte deve ser ensinado para
todos, em igualdade de condições de participação, sem qualquer forma
de discriminação. Na escola os comportamentos e as regras da sociedade são
largamente difundidos e onde também podem ser contestados, e construídas
as alternativas através dos valores educativos encontrados no esporte
(Bento apud SOUZA & SCAGLIA, 2004, p.10).
A
violência no futebol não se limita aos torcedores: envolve jogadores
(profissionais que são, contra outros seus iguais), alunos contra alunos
e professores contra professores. Nos jogos entre escolares as observações
têm demonstrado que as menores ocorrências de agressão e violência são
os casos envolvendo aluno-atleta contra aluno-atleta devido ao respeito
entre iguais e quando perdura após os eventos revela outras origens como
gangues e outras rivalidades mais antigas; aluno-atleta contra professor-árbitro
pela dupla autoridade deste e técnico-professor contra árbitro pelo
reconhecimento do domínio técnico deste e neutralidade nas relações diárias.
Os
casos de média ocorrência são entre aluno-atleta contra árbitro por
este ser, em geral, externo
à comunidade envolvida, portanto desconhecido e apresentar neutralidade.
Os casos de maior ocorrência são aqueles que envolvem o técnico-professor
contra o árbitro-professor, manifestando desrespeito entre iguais,
deixando seqüelas graves após os eventos e influenciando negativamente
os alunos.
A
educação física e o esporte na escola devem ser experiências
significativas e desejáveis, envolvendo o aluno no seu contexto social.
Dentro desta perspectiva, em 2004 as aulas de educação física numa
Escola Estadual da periferia da Grande São Paulo tiveram sua realização
voltada para os projetos interdisciplinares da escola. Diante das ocorrências
de violência na escola e a repercussão da morte de jovens torcedores em
confrontos de torcidas após os jogos de seus times, no segundo semestre
foi desenvolvida uma pesquisa entre os alunos das quintas e sextas séries,
concluindo com momentos de discussão e reflexão sobre o assunto.
Inicialmente
a curiosidade era para saber para quais times os alunos da escola torciam
e, num primeiro momento, os alunos saíram em grupos pela escola, de sala
em sala, e aplicaram um questionário a seus colegas, após explicarem os
procedimentos para o preenchimento. Depois surgiu a necessidade de
ampliarmos as informações, por isso esta pesquisa constou de um questionário
com um total de dez perguntas. Numa delas: Quantas vezes você já foi a um estádio de futebol
assistir a um jogo profissional? Nunca,
uma vez, duas vezes, três vezes ou mais, o resultado mostrou que
84,5% dos 374 alunos pesquisados, na faixa de 11 a 14 anos, nunca foram a
um estádio assistir uma partida de futebol profissional oficial. Apenas
9% estiveram num estádio de futebol uma vez e 2% três vezes.
Na
pergunta Para qual time você torce? para levantar quanto ao time
de preferência, 49,5% registrou torcer pelo Sport Club Corinthians
Paulista (SP), 23% para o São Paulo Futebol Clube (SP), 12,5% para a
Sociedade Esportiva Palmeiras (SP), 5,3% não torce por nenhum time, 3% se
abstiveram e o restante foi distribuído entre Santos Futebol Clube (SP),
Clube de Regatas Flamengo (RJ), Clube de Regatas Vasco da Gama (RJ) e Grêmio
Foot Ball Portoalegrense (RS).
Estas
três questões, Você gostaria de participar da torcida organizada do
seu time? Você brigaria por causa do seu time? Você brigaria para
defender a torcida organizada do seu time?, são analisadas
conjuntamente porque apresentam uma relação estreita entre seus
resultados. As respostas deveriam ser assinaladas objetivamente SIM ou NÃO
e assim analisadas: enquanto 70% dos alunos assinalaram afirmativamente
que gostaria de participar da torcida organizada de seu time, cerca de 47%
brigaria para defendê-la e apenas 35,5% brigaria pelo próprio time. Não
ficou evidenciada qualquer relação entre os números referentes às
torcidas de equipes específicas com as ocorrências de violência nos estádios
e jogos de futebol. Isto significa dizer que, embora cerca de metade dos
alunos tenham o Sport Club Corinthians Paulista como o time de preferência,
não seja esta a torcida mais violenta.
Pode-se
constatar pela pesquisa escolar realizada que a maioria dos jovens raríssimas
vezes tem oportunidade de ir a um estádio assistir um jogo de futebol
oficial; poucos não tem preferência em torcer para algum time; embora a
maioria gostaria de integrar a torcida organizada de seu time, cerca da
metade destes brigaria por ela. Percebe-se que a relação de fidelidade
é maior pela torcida organizada do que pelo clube. Outra informação que
aparece é a ocorrência de torcida para equipes de outros estados ou regiões
longínquas, fora da familiaridade dos alunos.
Vale
destacar o caráter pedagógico e que foi o mais importante neste
trabalho: ao saírem de classe em classe distribuindo e recolhendo os
questionários, os alunos passaram por uma experiência de introdução à
metodologia da pesquisa, necessidade fundamental aos estudantes tão
carentes de perspectivas e motivação nos dias atuais.
6
. Considerações finais
Confirmando
a lógica globalizante mundial, está acontecendo aqui o mesmo que ocorreu
na Europa, principalmente na Inglaterra. Os problemas de violência que
atingiram seu ápice, nos anos sessenta, despertando a atenção e grandes
preocupações na Europa, só foram sentidos no Brasil a partir de 1974,
com o advento da transmissão de jogos pela televisão e a profusão de
torcidas organizadas, passando nos anos seguintes pelos mesmos aspectos e
mesmas tentativas de solução ocorridas na Europa, tanto no âmbito político
quanto policial.
No
contexto da violência e rivalidade no futebol, entre torcidas e nações,
é preocupante o evento em que Carlos Alberto Parreira, técnico da seleção
brasileira de futebol, toma água que lhe foi servida
por um comediante argentino. O fator mais relevante foi a revelação,
e a televisão mostrou, de que jogadores argentinos cuspiram no galão de
água, supostamente o mesmo que fora oferecido ao técnico brasileiro.
Encarado no início de forma jocosa por um programa humorístico da
televisão argentina, o evento remonta a um episódio antigo de partida válida
por Copa do Mundo em que jogadores brasileiros foram dopados após beberem
água oferecida pelos argentinos. Também nos faz lembrar uma partida de tênis
válida pelas oitavas de final do Aberto da Austrália de 2005, em que o
argentino Juan Ignácio Chela, derrotado, deu uma cusparada em seu adversário.
O
mais preocupante é sabermos que, mesmo em tom humorístico, certos jargões,
práticas e atitudes do futebol ganham o cotidiano do povo e invadem a
escola. Uma cusparada no chão, no adversário ou num galão de água, e
outros gestos de desagravo demonstram sinais de incivilidade e que beiram
à barbárie. São atitudes e comportamentos que deseducam a sociedade.
Torna-se, portanto, imprescindível “educar o soberano”, preocupação
manifestada por Tamarit (1996) ao referir-se à educação como “uma série
de práticas dirigidas à formação integral do homem, à sua plena
humanização” (TAMARIT, 1996, p.58 e 64) e referindo-se à inquietude
de Sarmiento, compartilhada também por Mitre, sobre a necessidade de
“educar o maior número possível de ignorantes para que a barbárie não
vença” (Mitre apud Tamarit, 1996, p.58).
Portanto
o professor de educação física e a escola devem desempenhar um papel
importante na abordagem dos problemas recorrentes na sociedade,
despertando no aluno a reflexão, motivando-o
e favorecendo oportunidades de inclusão na sociedade através do esporte.
Devem, portanto, estar bem preparados não apenas nas especificidades do
esporte mas também nas questões sociais emergentes que caracterizam a
comunidade onde atuam. Assim poderão integrar a atividade física e o
esporte ao cotidiano da escola e da população com a qual se relaciona. A
preocupação da Escola deve ser contribuir com a formação do homem
enquanto cidadão, através de um processo pedagógico humanizante. Assim
o cidadão será formado e capaz de organizar e praticar o lazer com maior
aproveitamento, difundindo-o na comunidade. Num mundo em que a
violência é barata e, às vezes, gratuita, a paz custa vidas.