Pandolfo
Bereba:
muitas
lacunas e uma leitura humanizadora
RESUMO:
A
literatura (e outras formas artísticas), pelo caráter plurissígnico
da linguagem, possibilita ao leitor inúmeras experiências
(leituras), devido aos espaços vazios que convidam o leitor a
completá-los, produzindo significações para a obra. Nesse
sentido, ela possui um caráter humanizador, porque traz a tona, a
experiência humana (com aspectos positivos e negativos), por meio
de uma organização ambígua, que relativiza os valores,
propiciando uma visão particularizada do objeto proposto pela
obra. Embasado nesses pressupostos, este artigo objetiva: a)
apresentar algumas reflexões sobre a leitura do texto literário,
segundo Candido e Jauss; e das imagens, conforme Ferrara (leitura
do texto não-verbal); b) apresentar uma possível leitura da história
Pandolfo Bereba, de Eva Furnari, tanto do texto verbal,
quanto do não-verbal. Os resultados das reflexões demonstram que
a literatura infantil, como a literatura para adultos, se bem
escrita, permite ao leitor, por meio de uma leitura interativa, o
prazer estético, a reflexão e, portanto, a humanização.
Palavras-chave:
literatura, imagem, interação, humanização.
ABSTRACT.
Owing
to language’s polysignic characteristics, literature makes
feasible a great many experiences (readings) to the reader. This
fact is due to the gaps suggested to the reader so that s/he may
fill them and give diverse meanings to the text. Literature has
thus a humanitarian trait because it brings the human experience
in its positive and negative aspects to the surface through an
ambiguous organization that relativizes values and gives the
reader an idiosyncratic view of the object of the literary work.
The aim of current paper is (1) to present certain aspects on the
reading of the literary text according to Candido and Jauss; and a
reading of images according to Ferrara (reading of the non-verbal
text); (b) to present a possible reading of Eva Furnari’s Pandolfo
Bereba
within the verbal and the non-verbal contexts. Results show that
children’s literature, similar to that produced for adults,
gives to the reader an aesthetic pleasure, reflections and
humanization through interactive reading.
Key
words:
literature; image; interaction; humanization.
|
Introdução
No
campo da literatura, há uma vasta discussão acerca do seu caráter estético
e humanizador, bem como do lugar destinado ao leitor no ato da leitura, e
há inúmeras posições teóricas que se confrontam e/ou dialogam quanto
ao tema. As mais estruturalistas enfocam o texto escrito, como um objeto
quase que sagrado, que possui um sentido “pronto”, o qual o leitor
deve extrair do texto. Outras correntes teóricas mais recentes consideram o leitor
como um co-participante na produção de sentido do texto; na medida em
que o leitor leva para o texto suas expectativas, suas experiências
passadas, com as quais seguindo pistas deixadas pelo autor, elabora hipóteses,
refutando ou reafirmando idéias e, dessa forma, constrói um sentido para
o texto.
Consoante
a esse pensamento, Candido (1972) afirma que a literatura é transposição
do real para o imaginário, conforme a estilização da linguagem, que se
torna plurissígnica e, portanto, relativiza o mundo (os seres,
sentimentos, valores etc). Nesse sentido, envolve-a um caráter gratuito e
humanístico. Essa gratuidade revela-se tanto por parte do autor, no
momento da criação, quanto do leitor ao recebê-la.
Sobre
essa noção de leitor, Jauss (1994) afirma que o mesmo recebe a obra e a
atualiza com sua leitura. Pautado nas experiências passadas —
tanto estéticas, quanto nas experiências de mundo
— o leitor dialoga com a obra,
quando busca hipóteses, confirmações; enfim busca sentido (por meio de
dados extralingüísticos: seu conhecimento prévio, e lingüísticos:
pistas dadas pelo autor) e constrói uma significação para a mesma, que
pode corroborar ou não, o que
o autor pretendia inicialmente com esta.
Nesse sentido, quanto maior a qualidade estética da obra,
mais plurissígnica e relativa é a linguagem veiculada e, portanto, mais
lacunas ou espaços vazios proporciona ao leitor para que este interaja
com ela. E, mais aberta estará às reflexões do leitor,
possibilitando-lhe uma dimensão de si e do mundo.
Entretanto,
a obra artística num sentido lato, por mais aberta que seja ao leitor, não
deixa de ter uma ideologia subjacente; afinal como um produto histórico-cultural
acaba refletindo os valores de um autor e de sua época, historicamente
situados.
O
que é importante ressaltar, é que na verdadeira obra de arte, o trabalho
e o efeito estético se sobrepõem a essas ideologias subjacentes, de modo
a deixar o leitor tão à vontade para as relativizar, questioná-las,
aceitá-las, refutá-las, ampliá-las; enfim, pôr em cheque todas essas
questões, por meio da linguagem artística (palavra ou imagem) e, ao
final, sair desse “jogo da leitura”, diferente de quando entrou: mais
experiente, e por isso mais humano.
Em
vista dessas considerações, o presente trabalho pretende, em um primeiro
momento, fazer uma leitura da obra infantil Pandolfo Bereba, da
autora Eva Furnari, exercendo o papel do leitor ativo, dialogando com a
mesma ao tentar preencher algumas das lacunas presentes tanto no discurso
escrito, quanto no imagético.
Feita
a leitura e produzidos alguns sentidos para a obra, pretende-se,
ainda, refletir sobre possíveis ideologias que poderiam perpassa-la e discutir
como a obra, do modo em que está disposta quanto ao arranjo verbal
e não-verbal; pode exercer a função humanizadora, como a vê Antônio
Candido (1972).
Quanto
à análise das imagens, essa se justifica devido a sua presença cada vez
mais constante nos nossos dias. Isso advém do próprio processo evolutivo
da humanidade. Desde os tempos remotos da era pré-histórica, a imagem
tinha um papel importante na comunicação (por exemplo, os desenhos
feitos pelo homem primitivo, encontrados
nas cavernas). Com o aprimoramento da linguagem e do sistema comunicativo,
a leitura “sem palavras” está cada vez mais presente com sua
multiplicidade de cores e formas, na linguagem cotidiana ou artística.
Nesse processo evolutivo da linguagem, as artes cada vez mais se
relacionam, como por exemplo, a literatura e a pintura, embora recorram a
recursos expressivos diferentes (palavras, cores e formas), podem ser
consideradas “artes irmãs” quanto ao efeito e a produção de
sentido, propiciando ao leitor um olhar crítico em constante movimento,
capaz de ver, observar, refletir, sentir e criar, uma vez que o escritor não
tem o recurso da luz, das cores, do desenho e do signo global imediato,
utilizando-se das metáforas, da adjetivação expressiva e dos recursos
das figuras para igualar-se às imagens. Nesse aspecto, o estudo torna-se
interessante, na medida em que se propõe a discutir a produção de
sentido e o efeito causado tanto pelas palavras, quanto pelas imagens
presentes na obra literária.
Aspectos
Teóricos
Antônio
Candido afirma que a literatura, vista sob um ângulo menos estrutural, e
mais funcional, exerce uma função humanizadora de forma gratuita, uma
vez que ela não só satisfaz a necessidade de ficção, que é intrínseca
ao homem; como também contribui para a formação da sua personalidade,
na medida em que traz a vida desmistificada, com seus aspectos positivos e
negativos, retratada de modo tal, que leva o leitor ao conhecimento de si
e do mundo, de modo inconsciente, por meio da fruição, e, nesse âmbito,
ela o humaniza:
A
literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma
vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa, – o
Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidas conforme os interesses dos grupos
dominantes, para ser reforço da sua concepção de vida.Longe de ser apêndice
de instrução moral (...), ela age com o impacto indiscriminado da própria
vida e educa, como ela - com altos e baixos, luzes e sombras (CANDIDO,
1972: 805).
Em
consonância à visão de Candido, quanto ao papel humanizador da
literatura, Zilberman afirma que a obra literária rompe com as
expectativas do leitor, quando lhe provoca um estranhamento, que pode
ocorrer em dois planos: quanto ao modo de expressão, ou quanto à
ideologia veiculada; ao romper com padrões vigentes na realidade. Sob
essa perspectiva, ela pode ser um objeto de conhecimento, ao ampliar e
renovar o horizonte de percepção do leitor, quando traz a tona o
conhecimento que a sociedade quer acobertar:
(...)
a obra literária rompe com as expectativas do seu leitor e existe para
isso. (...) Essa ruptura com certas expectativas pode ser verificada sob
dois ângulos: de um lado, significa um rompimento com as modalidades
ordinárias de expressão; de outro, com os clichês ou a ideologia de
certa época. Assim, um texto autenticamente criativo explora formas de
linguagem; porém, como a ideologia – isto é, as noções comuns de
circulação num determinado momento histórico – se inscreve na língua,
torna-se evidente que a obra pode romper também com os padrões vigentes
em termos de visão da realidade. É neste sentido que a literatura pode
se constituir em objeto de conhecimento, ampliando e renovando o horizonte
de percepção do leitor. E, se ela não reflete passivamente uma
sociedade ou uma época, é porque expõe suas contradições, tornando
patente suas fissuras, assim como as tentativas, por parte da classe
dominante, de acobertá-las (ZILBERMAN, 1981: 60).
Embora
a literatura, enquanto manifestação artística, não pretenda ser
engajada, no sentido pedagógico, esta, enquanto produto histórico-cultural,
acaba refletindo um conjunto de crenças e valores da época em que a obra
e o autor se situam. Afinal de contas, não existe um discurso neutro, artístico
ou não, porque tudo que alguém fala é reflexo da sua constituição
social: seus valores morais, religiosos, políticos culturais são
revelados no discurso. Dessa forma, Ana Maria Machado (1994), citando
Camus, afirma que seria impossível que a concepção de mundo de alguém
não se revelasse em sua obra. Porém, se a obra tiver caráter artístico,
a ideologia não estaria presente nas intenções do ato criador,
entretanto, não deixaria de fazer parte da experiência de vida do
artista. Desse modo, estaria presente nas entrelinhas, independente da
intenção do autor.
O
relacionamento entre a literatura e outras artes não-verbais (em especial
a pintura), é bastante recorrente desde a Antiguidade Clássica, e,
Aguiar e Silva (1990) retoma algumas reflexões acerca do diálogo
existente entre a literatura e a pintura, que vale a pena suscitar no
presente trabalho, uma vez que
as ilustrações do texto literário também são objeto desse
estudo.
Aguiar
e Silva (1990), ao abordar a relação existente entre literatura e outras
artes, faz um retrospecto desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias,
confirmando a estreita ligação da arte literária com as demais
manifestações artísticas. Desde a Antiguidade Clássica, acreditava-se
na relação existente entre poesia e pintura, e já Aristóteles abordara
a afinidade existente entre a pintura e a literatura quanto ao objeto de
imitação, mas esclarecera sobre as diferenças quanto ao meio de imitação
utilizado; enquanto a pintura recorria às cores e às formas, a poesia
utilizava-se de linguagem, ritmo e harmonia.
As
inter-relações entre as duas artes tornam-se mais complexas quando se
evidencia o plano semântico e a busca de semelhanças no plano
estrutural. Sob esse aspecto, Lessing, citado por Aguiar e Silva, afirma
que há distinções claras entre as artes, esclarecendo que na observação
de um quadro ocorrem percepções temporalmente sucessivas e a leitura de
um texto poético propicia ao leitor uma síntese final, uma vez que os
seus elementos existiram simultaneamente.
As
características peculiares a cada arte permitem perceber que o texto
literário tem princípio e fim topográfica e temporalmente marcados,
possibilitando ao leitor uma síntese, ao finalizar a leitura. O texto
pictórico embora topograficamente delimitado não tem início e nem fim.
Cabe ao leitor mover livremente os seus olhos na obra, mas ao final da
leitura, tanto do texto quanto da pintura, não se configura uma visão
total da história; a temporalidade e causalidade serão captadas de modo
fragmentado. (AGUIAR E SILVA, 1990).
Os
estudos concluem que esses novos textos poéticos com a introdução de ícones
e figuras revolucionaram a relação entre a poesia e a pintura, o que
obrigou o leitor a adotar novas estratégias de leitura, no que diz
respeito ao texto não-verbal.
Ainda
quanto à leitura do texto não-verbal, Ferrara comenta que a “leitura
sem palavras” permeia o dia-a-dia do homem, à medida que se pode
considerar desde a vestimenta ou a escolha de um transporte, como um tipo
de leitura, pois essas escolhas revelam as preferências, as expectativas
sócio-econômicas do homem. (FERRARA, 1993).
Para
a autora, o texto não-verbal possui um caráter fragmentado, imprevisto,
múltiplo, diluído. E, comparando-se a pintura com outros textos não-verbais,
nota-se que ela também recorre a signos não-verbais como a cor, a luz e
a sombra; porém não são signos verdadeiramente múltiplos, porque
atingem apenas um sentido: o visual. Percebe-se que o texto não-verbal,
num sentido lato, não é exclusivamente visual ou sonoro, mas é
principalmente plurissígnico. O leitor do texto não-verbal toma para si
o árduo trabalho de investigação do texto, haja vista a ampla
possibilidade de leitura que esse tipo de texto traz.
Na
leitura do texto não-verbal, também se faz necessário entender o seu
caráter de movimento e relatividade, entendendo-se que é preciso agir
com rapidez para agrupar o que se encontra disperso e acompanhar a rápida
associação de idéias que está sobre o espaço (movimento). Em vista
disso, ocorre uma certa assimetria entre o que o leitor capta e o que
produz enquanto leitura. Daí, o caráter
relativo dessa leitura.
Por
ser relativa, o que conta na leitura não-verbal é o desempenho e não a
competência, porque aquele é mais dinâmico e exige uma leitura sem
ordem pré-estabelecida, mas sinestésica. Não é previsível nem infalível
e também não produz um saber, entretanto, provoca um processo de
conhecimento, a partir da experiência cotidiana.
O
objetivo da leitura não-verbal está além da decodificação, ela é
apenas o início do processo de leitura, porque vê o leitor como receptor
participante tanto da concepção do texto quanto do seu significado,
através da projeção de suas experiências e de seu desempenho na operação
consciente da linguagem.
A
essa noção do leitor enquanto receptor participante alia-se à noção
da estética da recepção, segundo a proposta de Hans Robert Jauss:
A
experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação
do significado de uma obra, nem pela reconstrução da intenção de seu
autor. Antes, a experiência denominada “primária” de qualquer obra
de arte realiza-se com o seu efeito estético – Einstellung auf -
constituído de compreensão fruidora e de fruição compreensiva. Uma
interpretação que ignorasse experiência estética primeira seria própria
da presunção do filólogo que cultivou a idéia de que o texto foi feito
não pelo leitor, mas especialmente para ser interpretado. (JAUSS, 1994).
Nessa
proposta, fica clara a primazia dada à importância do efeito e da
significação do texto para o leitor.
No
que diz respeito ao horizonte de expectativa, Jauss explica-nos que a sua
reconstrução se faz necessária na medida em que se estabelece uma relação
dialógica entre o texto e leitor. Desse modo, é buscando a pergunta
original para a qual o texto foi resposta que percebemos as modificações
ocorridas entre a obra e o leitor, devido às inúmeras recepções as
quais ele vai incorporando com o passar do tempo. A obra do passado “só
diz algo” ao leitor (receptor) se este tiver reconstruído o
questionamento para o qual ela foi feita, atualizando-a. Processo esse,
chamado por Jauss, de “compreensão produtiva”.
Sobre
o efeito estético de um texto o autor afirma que há dois momentos simultâneos
no contato leitor/obra: esta, ao mesmo tempo em que provoca uma reação
naquele, também muda historicamente, ao ser recebida e entendida de
diferentes modos.
Jauss,
ao referir-se a Iser e Vodicka, destaca também a importância de se
diferenciar os dois modos de concretização da leitura: o horizonte implícito
de expectativa proposto pela obra traz orientações prévias e
inalteradas devido ao texto ser o mesmo. E o horizonte explícito tem uma
recepção condicionada pelo leitor, que dialoga com a obra segundo suas
experiências pessoais.
Jauss
refere-se aos dois horizontes, respectivamente, o leitor explícito e o
implícito, bem como a sua importância na construção do sentido da
obra. Acrescenta a necessidade de se perceber os diferentes códigos
referentes a esses leitores e privilegiar o código subjetivo do leitor
implícito para melhor compreensão das estruturas de pré-compreensão,
que diferenciam o código da obra literária do código do leitor.
Desse
modo, enfatiza-se também que o efeito estético prescinde da sua recepção,
que se dá pela compreensão na sucessão dos elementos do texto (poético,
narrativo, pictórico). A partir da compreensão, ocorre a interpretação,
nomeada por Jauss de “concretização de uma significância específica”
que não se desvincula da primeira, porém é mais objetiva ao intuir o
esclarecimento da construção do texto (aspectos verbais e literários),
para possibilitar uma compreensão global. A aplicação, o último estágio,
liga-se aos dois primeiros elementos na medida em que ilustra um intuito
de trazer o texto para dentro do presente, formando um juízo de valor estético
que possa convencer outros leitores:
Assim
como em toda experiência real, também na experiência literária que dá
conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um saber
prévio, ele próprio um momento dessa experiência, com base no qual o
novo de que já tomamos conhecimento fez-se experienciável, ou seja, legível
por assim dizer, num contexto experiencial. (JAUSS, 1994: 28).
Outro
aspecto importante abordado pelo autor é o fato de a obra não ser
apresentada como totalmente nova. Para chegar a uma interpretação, o
leitor deverá atentar para os sinais explícitos ou implícitos, os traços
familiares (experiências passadas) que o encaminharão para uma postura
individual e bastante subjetiva de leitura. O leitor percebe uma nova obra
tanto a partir da sua experiência literária, quanto da sua experiência
de vida:
O
horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna
possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau
segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público.Denominando-se
distância estética aquela que medeia entre o horizonte da expectativa
preexistente e a aparição de uma obra nova – cuja acolhida, dando-se
por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da
conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por conseqüência
uma “mudança de horizonte”, – tal distância estética deixa-se
objetivar historicamente no espectro das reações do público e do juízo
da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de
aprovação, compreensão gradual ou tardia). (JAUSS, 1994: 31).
Trata-se
aqui da relação do leitor com a obra e da sua reação perante a mesma,
que se dá na relação obra/leitor através da negação do já
estabelecido ou colocação de experiências ainda desconhecidas. E essa
reação esta intimamente ligada ao horizonte de expectativa, conforme a
distância existente entre o horizonte da obra e do leitor. Além disso, o
horizonte também determina o valor estético da obra, baseado ainda nessa
distância entre o horizonte, a obra e ruptura desse horizonte.
Soma-se
a esta questão da qualidade estética da obra ligada ao horizonte de
expectativa à função social da literatura, que se efetiva, na medida em
que o leitor adquire experiência da realidade através da leitura do
texto literário, que por meio de uma nova forma o auxilia a romper com a
automatizada percepção cotidiana.
Isso
acontece devido à literatura diferenciar-se do histórico não só porque
conserva as experiências já vividas, mas também porque antecipa experiências
ainda não vividas, ampliando o comportamento social.
Em
consonância à teoria de Jauss, pode-se depreender da leitura feita de
Wolfgang Iser que a leitura da obra literária necessita da co-participação
do leitor, no momento em que lhe exige o preenchimento das lacunas
disseminadas pelo texto, por meio da sua experiência e fantasia. Todavia,
Iser discute a receptividade da obra literária, sob um viés mais
individual quando coloca em questão o seu efeito produzido no leitor que,
no ato da leitura, encontra com os chamados “espaços vazios”, sendo
induzido a participar na realização do texto:
O
lugar vazio permite então que o leitor participe da realização dos
acontecimentos do texto. Participar não significa, em vista dessa
estrutura, que o leitor incorpore as posições manifestadas do texto, mas
sim que aja sobre elas. Tais operações são controladas na medida em que
restringem a atividade do leitor à coordenação, à perspectivação e
à interpretação dos pontos de vista. À medida que o lugar vazio
permite essas operações, evidencia-se a ligação fundamental de
estrutura e sujeito, a saber, no sentido dado por Piaget: “Com uma
palavra, o sujeito existe porque a qualidade básica das estruturas é
geralmente o próprio processo de estruturação”. O lugar vazio imprime
dinâmica à estrutura por marcar determinadas lacunas que apenas podem
ser fechadas pela estruturação levada a cabo pelo leitor. É neste
processo que a estrutura ganha sua função (ISER, 1999: 157).
A
leitura de Pandolfo Bereba:
A
autora e a obra:
Eva
Furnari é uma renomada autora e ilustradora de obras infanto-juvenis. A
obra escolhida Pandolfo Bereba faz parte de uma coleção
intitulada: O avesso da gente, publicada em 2000, pela Editora
Moderna.
A
obra conta a história de um jovem e estranho príncipe, chamado Pandolfo
Bereba que, graças a uma princesa, nada perfeita, é “salvo” do seu
isolamento do mundo.
No
reino da Bestolândia, vivia Pandolfo Bereba, um príncipe que tinha um péssimo
defeito: observar os defeitos das pessoas e atribuir-lhes uma nota que,
geralmente, não passava de seis.
Certo
dia, sua alteza, cansado daquela brincadeira, resolveu que queria ter um
amigo e fez uma espécie de seleção, para escolher um amigo nota dez.
Porém, na sua análise, não achou nenhum candidato à sua altura, pois
todos tinham inúmeros “defeitos”: um era bigodudo, o outro se vestia
mal, e assim por diante. Desanimado, o príncipe voltou à sua rotina de
listar os defeitos alheios.
Até
que um dia, teve outra idéia: arranjar uma princesa nota dez. E o
processo seletivo, bem como o seu resultado, foram idênticos ao primeiro.
Por isso, o príncipe ficou muito triste e largado.
Um
dia, porém, ao passear pelos jardins
do castelo, viu uma borboleta amarela e começou a segui-la, saindo do
castelo. Quando percebeu a rua e o povo à sua volta ficou admirado, pois
não conhecia o mundo fora do castelo.
No
mercado da rua, ao pegar uma maçã, foi inquirido a pagá-la e, não
sabendo das leis do comércio, também não tendo como pagar pela maçã,
ele viu-se obrigado a fugir, perante ameaça e perseguição do povo.
Nessa correria, foi salvo por uma moça, que lhe deu um puxão e o
escondeu em sua casa.
Ficaram,
por toda tarde, conversando sobre os mais variados assuntos, sob os quais
concordavam em alguns pontos e discordavam em outros. Ele achou tudo
aquilo muito interessante e notou, para o seu espanto, que não havia
atribuído nenhuma nota àquela moça.
O
príncipe havia encontrado sua linda princesa nariguda.
Casaram-se,
brigaram algumas vezes, mas foram felizes.
Pandolfo
Bereba, seu estranhamento e seu caráter humano:
A
leitura da história Pandolfo Bereba, inicialmente, já causa um
estranhamento a partir do título, que é reforçado pela imagem que o
acompanha. Tanto o nome quanto à figura, remetem a uma pessoa esdrúxula:
um príncipe cujo sobrenome se refere a sua aparência física. O Sr.
Bereba possui inúmeras perebas pelo corpo e, sob uma visão metafórica,
possui outras tantas perebas interiores (defeitos do tipo: mimado, egocêntrico,
preconceituoso, alienado etc).
A
atribuição de características negativas ao príncipe, quanto aos
aspectos físicos e psicológicos, leva a crer na relativização de
conceitos como belo/ feio; desmistificando a figura perfeita do príncipe,
ao aproxima-lo do homem comum, no que diz respeito aos seus atributos físicos
e aos valores morais.
As
características negativas do príncipe, porém, não são reveladas de
modo discriminatório, ao contrário disso, o narrador aborda-as sob uma
perspectiva bastante natural, como sendo intrínsecas ao homem:
“Pandolfo nada entendia de amor ou amizade”, “Por ter sido mal
acostumado de pequeno”, “Estava enjoado de ficar só na janela.
Sentia-se sozinho e sem graça”, “Ele nunca tinha saído fora dos portões
do palácio”, “Sua Alteza nada entendeu, não sabia que se devia pagar
pelas coisas...”, “Não ensinam aos príncipes que se deve agradecer
quando se é salvo por uma garota”.
Na
caracterização do príncipe, as imagens reforçam o texto escrito. Por
exemplo, as ilustrações do príncipe apontando para si (p.9), ou no alto
da janela, só, olhando sempre de cima (p.7), podem confirmar a visão de
alguém egocêntrico, isolado do mundo. Por outro lado, a imagem que o
ilustra desolado diante das tentativas frustradas de se aproximar das
pessoas (p.14), redime-o, ao passar a idéia de que ele era daquele jeito,
não por opção; mas pela realidade circundante. Essa idéia se confirma,
no decorrer da história, quando o príncipe vai-
se transformando, interiormente, no contato com outras pessoas.
A
mudança de atitude do príncipe é desencadeada quando, “ao acaso do
destino”, como cita o narrador, ele segue uma borboleta amarela e, a
partir desse feito, entra em contato com outro mundo, totalmente diferente
do seu e por isso tão mais interessante.
Nesse trecho da história, a figura da borboleta pode ganhar
um caráter duplamente metafórico. A borboleta pode remeter a atitude do
príncipe, que, após uma “fase de incubação” (vivência isolada no
castelo), sai do “casulo” (do castelo) para “alçar vôo”
(vivenciar fatos diferentes dos que estava acostumado) e ampliar seus
horizontes. Desse modo, o príncipe
deixa sua condição de alienado e, no contato com o outro, descobre novos
valores, ampliando sua visão de mundo.
Outro
sentido que pode ser atribuído para a imagem da borboleta é quanto às
suas duas fases: lagarta/borboleta, semelhantemente, o homem passa por
transformações (físicas e psicológicas), durante a sua vida.
Sob
essa perspectiva teórica, que considera o leitor co-participante na produção
de sentido do texto, a partir das pistas deixadas pelo autor, pelas marcas
textuais (lacunas do texto, conforme a proposta de Jauss e Iser); nota-se
que essa obra propõe algumas rupturas, que instigam o leitor a rever
alguns aspectos e reelaborar idéias, como por exemplo: a) a banalização
de uma visão social hierárquica, quando põe o príncipe em pé de
igualdade com o povo, no que diz respeito ao aspecto humano; b) o
rompimento com visões dicotômicas como bom x ruim, feio x belo, uma vez
que apresenta os tais atributos numa mesma pessoa, o príncipe; c) a
relativização dos moldes clássicos de beleza em detrimento da diferença
e da diversidade, ao propor um príncipe cheio de perebas e uma princesa
magricela de nariz grande, etc.
Retomando
os preceitos de Jauss (1994) quanto à qualidade estética da obra estar
intrinsecamente ligada à questão do distanciamento dos horizontes de
expectativas inicial e final do leitor, bem como ao caráter plurissígnico
e relativo da linguagem veiculada que possibilita espaços vazios para que
o leitor interaja com ela e, com isso, tenha seu horizonte ampliado ao ter
uma dimensão de si e do mundo, Pandolfo Bereba, pode ser
considerada uma obra de qualidade estética. Pois apresenta uma distância
do horizonte de expectativas iniciais do leitor quanto ao que esse espera
de um príncipe, de uma princesa e da organização social em que se
inserem, e a partir desse rompimento causado pelo estranhamento, produzido
tanto pelo arranjo discursivo, quanto pelo desenrolar da trama, produz um
outro efeito, o da reflexão, quando este é levado a rever seus
conceitos, atitudes e, ampliar seu horizonte.
Considerações
finais
A
partir dessas reflexões realizadas, percebe-se que Pandolfo Bereba,
como um texto artístico de caráter humanizador, propicia ao leitor, por
meio dos espaços deixados, tanto no nível da escrita, quanto no nível
das imagens, construir sentidos que o fazem viver novas experiências,
dentre as quais, uma reflexão que fica bastante evidente não só nesta
obra, mas em toda a coleção, é a consciência sobre o “avesso da
gente”. A obra traz à tona, de maneira lúdica, os sentimentos humanos
mais pequenos, como o egocentrismo, a discriminação, o egoísmo, ou
seja, os defeitos; que podem ser facilmente melhorados, basta conviver e
“olhar” o outro, para com ele, aprender a melhorar. E, o mais
importante é que tais defeitos humanos são retratados, não de modo
moralista, ao contrário, com muita naturalidade, afinal de contas, o ser
humano tem o direito de ter defeitos, pois todo mundo tem o lado bom e o
seu avesso.
Percebe-se
que esses valores humanos aparecem nas entrelinhas, pela voz do narrador
ao descrever as atitudes do príncipe em contraposição a das outras
personagens; porém não de modo recriminatório, ao contrário disso,
tais valores são relativizados e postos como intrínsecos ao ser humano
em geral. E o leitor, percebe-os não pela sua identificação com a
figura do príncipe, mas pelo seu distanciamento deste.
Nesse
sentido, por meio da elaboração de uma linguagem metafórica e irônica,
aliada à construção imagética caricatural, a obra rompe com a
expectativa inicial. E por meio do estranhamento instaurado em vários
momentos da obra, ela provoca o leitor a buscar “caminhos” de leitura
que restabeleçam uma lógica para os fatos e ações do príncipe,
possibilitando a relativização da beleza, do bem e do mal, da postura e
das ações do ser humano. Sob essa perspectiva, a obra, ao deixar lacunas
e por meio dessas, instaurar possíveis diálogos com o leitor, exerce um
caráter humanizador, porque o faz refletir, por meio da fruição, acerca
das suas próprias “perebas interiores”, atitudes em relação a si e
aos outros.