Por AMANDA APARECIDA RODRIGUEIRO MANTOVANI

Discente do Mestrado em Letras, da Universidade Estadual de Maringá

 

_________

 

versão para impressão [arquivo PDF]

 

Clique e cadastre-se para receber os informes de atualização da Revista Urutágua
 

 

Pandolfo Bereba: 

muitas lacunas e uma leitura humanizadora

Amanda Aparecida Rodrigueiro Mantovani

 

RESUMO: A literatura (e outras formas artísticas), pelo caráter plurissígnico da linguagem, possibilita ao leitor inúmeras experiências (leituras), devido aos espaços vazios que convidam o leitor a completá-los, produzindo significações para a obra. Nesse sentido, ela possui um caráter humanizador, porque traz a tona, a experiência humana (com aspectos positivos e negativos), por meio de uma organização ambígua, que relativiza os valores, propiciando uma visão particularizada do objeto proposto pela obra. Embasado nesses pressupostos, este artigo objetiva: a) apresentar algumas reflexões sobre a leitura do texto literário, segundo Candido e Jauss; e das imagens, conforme Ferrara (leitura do texto não-verbal); b) apresentar uma possível leitura da história Pandolfo Bereba, de Eva Furnari, tanto do texto verbal, quanto do não-verbal. Os resultados das reflexões demonstram que a literatura infantil, como a literatura para adultos, se bem escrita, permite ao leitor, por meio de uma leitura interativa, o prazer estético, a reflexão e, portanto, a humanização.

Palavras-chave: literatura, imagem, interação, humanização.

ABSTRACT.  Owing to language’s polysignic characteristics, literature makes feasible a great many experiences (readings) to the reader. This fact is due to the gaps suggested to the reader so that s/he may fill them and give diverse meanings to the text. Literature has thus a humanitarian trait because it brings the human experience in its positive and negative aspects to the surface through an ambiguous organization that relativizes values and gives the reader an idiosyncratic view of the object of the literary work. The aim of current paper is (1) to present certain aspects on the reading of the literary text according to Candido and Jauss; and a reading of images according to Ferrara (reading of the non-verbal text); (b) to present a possible reading of Eva Furnari’s Pandolfo Bereba within the verbal and the non-verbal contexts. Results show that children’s literature, similar to that produced for adults, gives to the reader an aesthetic pleasure, reflections and humanization through interactive reading.

Key words: literature; image; interaction; humanization.

 

Introdução

No campo da literatura, há uma vasta discussão acerca do seu caráter estético e humanizador, bem como do lugar destinado ao leitor no ato da leitura, e há inúmeras posições teóricas que se confrontam e/ou dialogam quanto ao tema. As mais estruturalistas enfocam o texto escrito, como um objeto quase que sagrado, que possui um sentido “pronto”, o qual o leitor deve extrair do texto.  Outras correntes teóricas mais recentes consideram o leitor como um co-participante na produção de sentido do texto; na medida em que o leitor leva para o texto suas expectativas, suas experiências passadas, com as quais seguindo pistas deixadas pelo autor, elabora hipóteses, refutando ou reafirmando idéias e, dessa forma, constrói um sentido para o texto.

Consoante a esse pensamento, Candido (1972) afirma que a literatura é transposição do real para o imaginário, conforme a estilização da linguagem, que se torna plurissígnica e, portanto, relativiza o mundo (os seres, sentimentos, valores etc). Nesse sentido, envolve-a um caráter gratuito e humanístico. Essa gratuidade revela-se tanto por parte do autor, no momento da criação, quanto do leitor ao recebê-la.

Sobre essa noção de leitor, Jauss (1994) afirma que o mesmo recebe a obra e a atualiza com sua leitura. Pautado nas experiências passadas tanto estéticas, quanto nas experiências de mundo o leitor dialoga com a obra, quando busca hipóteses, confirmações; enfim busca sentido (por meio de dados extralingüísticos: seu conhecimento prévio, e lingüísticos: pistas dadas pelo autor) e constrói uma significação para a mesma, que pode corroborar ou não, o  que o autor pretendia inicialmente com esta.

 Nesse sentido, quanto maior a qualidade estética da obra, mais plurissígnica e relativa é a linguagem veiculada e, portanto, mais lacunas ou espaços vazios proporciona ao leitor para que este interaja com ela. E, mais aberta estará às reflexões do leitor, possibilitando-lhe uma dimensão de si e do mundo.

Entretanto, a obra artística num sentido lato, por mais aberta que seja ao leitor, não deixa de ter uma ideologia subjacente; afinal como um produto histórico-cultural acaba refletindo os valores de um autor e de sua época, historicamente situados.

O que é importante ressaltar, é que na verdadeira obra de arte, o trabalho e o efeito estético se sobrepõem a essas ideologias subjacentes, de modo a deixar o leitor tão à vontade para as relativizar, questioná-las, aceitá-las, refutá-las, ampliá-las; enfim, pôr em cheque todas essas questões, por meio da linguagem artística (palavra ou imagem) e, ao final, sair desse “jogo da leitura”, diferente de quando entrou: mais experiente, e por isso mais humano.

Em vista dessas considerações, o presente trabalho pretende, em um primeiro momento, fazer uma leitura da obra infantil Pandolfo Bereba, da autora Eva Furnari, exercendo o papel do leitor ativo, dialogando com a mesma ao tentar preencher algumas das lacunas presentes tanto no discurso escrito, quanto no imagético.

Feita a leitura e produzidos alguns sentidos para a obra, pretende-se, ainda, refletir sobre possíveis ideologias que poderiam perpassa-la e discutir como a obra, do modo em que está disposta quanto ao arranjo verbal e não-verbal; pode exercer a função humanizadora, como a vê Antônio Candido (1972).

Quanto à análise das imagens, essa se justifica devido a sua presença cada vez mais constante nos nossos dias. Isso advém do próprio processo evolutivo da humanidade. Desde os tempos remotos da era pré-histórica, a imagem tinha um papel importante na comunicação (por exemplo, os desenhos feitos pelo homem primitivo, encontrados nas cavernas). Com o aprimoramento da linguagem e do sistema comunicativo, a leitura “sem palavras” está cada vez mais presente com sua multiplicidade de cores e formas, na linguagem cotidiana ou artística.  Nesse processo evolutivo da linguagem, as artes cada vez mais se relacionam, como por exemplo, a literatura e a pintura, embora recorram a recursos expressivos diferentes (palavras, cores e formas), podem ser consideradas “artes irmãs” quanto ao efeito e a produção de sentido, propiciando ao leitor um olhar crítico em constante movimento, capaz de ver, observar, refletir, sentir e criar, uma vez que o escritor não tem o recurso da luz, das cores, do desenho e do signo global imediato, utilizando-se das metáforas, da adjetivação expressiva e dos recursos das figuras para igualar-se às imagens. Nesse aspecto, o estudo torna-se interessante, na medida em que se propõe a discutir a produção de sentido e o efeito causado tanto pelas palavras, quanto pelas imagens presentes na obra literária.

Aspectos Teóricos

Antônio Candido afirma que a literatura, vista sob um ângulo menos estrutural, e mais funcional, exerce uma função humanizadora de forma gratuita, uma vez que ela não só satisfaz a necessidade de ficção, que é intrínseca ao homem; como também contribui para a formação da sua personalidade, na medida em que traz a vida desmistificada, com seus aspectos positivos e negativos, retratada de modo tal, que leva o leitor ao conhecimento de si e do mundo, de modo inconsciente, por meio da fruição, e, nesse âmbito, ela o humaniza:

A literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa, – o Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidas conforme os interesses dos grupos dominantes, para ser reforço da sua concepção de vida.Longe de ser apêndice de instrução moral (...), ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa, como ela - com altos e baixos, luzes e sombras (CANDIDO, 1972: 805).

Em consonância à visão de Candido, quanto ao papel humanizador da literatura, Zilberman afirma que a obra literária rompe com as expectativas do leitor, quando lhe provoca um estranhamento, que pode ocorrer em dois planos: quanto ao modo de expressão, ou quanto à ideologia veiculada; ao romper com padrões vigentes na realidade. Sob essa perspectiva, ela pode ser um objeto de conhecimento, ao ampliar e renovar o horizonte de percepção do leitor, quando traz a tona o conhecimento que a sociedade quer acobertar:

(...) a obra literária rompe com as expectativas do seu leitor e existe para isso. (...) Essa ruptura com certas expectativas pode ser verificada sob dois ângulos: de um lado, significa um rompimento com as modalidades ordinárias de expressão; de outro, com os clichês ou a ideologia de certa época. Assim, um texto autenticamente criativo explora formas de linguagem; porém, como a ideologia – isto é, as noções comuns de circulação num determinado momento histórico – se inscreve na língua, torna-se evidente que a obra pode romper também com os padrões vigentes em termos de visão da realidade. É neste sentido que a literatura pode se constituir em objeto de conhecimento, ampliando e renovando o horizonte de percepção do leitor. E, se ela não reflete passivamente uma sociedade ou uma época, é porque expõe suas contradições, tornando patente suas fissuras, assim como as tentativas, por parte da classe dominante, de acobertá-las (ZILBERMAN, 1981: 60).

Embora a literatura, enquanto manifestação artística, não pretenda ser engajada, no sentido pedagógico, esta, enquanto produto histórico-cultural, acaba refletindo um conjunto de crenças e valores da época em que a obra e o autor se situam. Afinal de contas, não existe um discurso neutro, artístico ou não, porque tudo que alguém fala é reflexo da sua constituição social: seus valores morais, religiosos, políticos culturais são revelados no discurso. Dessa forma, Ana Maria Machado (1994), citando Camus, afirma que seria impossível que a concepção de mundo de alguém não se revelasse em sua obra. Porém, se a obra tiver caráter artístico, a ideologia não estaria presente nas intenções do ato criador, entretanto, não deixaria de fazer parte da experiência de vida do artista. Desse modo, estaria presente nas entrelinhas, independente da intenção do autor.

O relacionamento entre a literatura e outras artes não-verbais (em especial a pintura), é bastante recorrente desde a Antiguidade Clássica, e, Aguiar e Silva (1990) retoma algumas reflexões acerca do diálogo existente entre a literatura e a pintura, que vale a pena suscitar no presente trabalho, uma vez que as ilustrações do texto literário também são objeto desse estudo.

Aguiar e Silva (1990), ao abordar a relação existente entre literatura e outras artes, faz um retrospecto desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias, confirmando a estreita ligação da arte literária com as demais manifestações artísticas. Desde a Antiguidade Clássica, acreditava-se na relação existente entre poesia e pintura, e já Aristóteles abordara a afinidade existente entre a pintura e a literatura quanto ao objeto de imitação, mas esclarecera sobre as diferenças quanto ao meio de imitação utilizado; enquanto a pintura recorria às cores e às formas, a poesia utilizava-se de linguagem, ritmo e harmonia.

As inter-relações entre as duas artes tornam-se mais complexas quando se evidencia o plano semântico e a busca de semelhanças no plano estrutural. Sob esse aspecto, Lessing, citado por Aguiar e Silva, afirma que há distinções claras entre as artes, esclarecendo que na observação de um quadro ocorrem percepções temporalmente sucessivas e a leitura de um texto poético propicia ao leitor uma síntese final, uma vez que os seus elementos existiram simultaneamente.

As características peculiares a cada arte permitem perceber que o texto literário tem princípio e fim topográfica e temporalmente marcados, possibilitando ao leitor uma síntese, ao finalizar a leitura. O texto pictórico embora topograficamente delimitado não tem início e nem fim. Cabe ao leitor mover livremente os seus olhos na obra, mas ao final da leitura, tanto do texto quanto da pintura, não se configura uma visão total da história; a temporalidade e causalidade serão captadas de modo fragmentado. (AGUIAR E SILVA, 1990).

Os estudos concluem que esses novos textos poéticos com a introdução de ícones e figuras revolucionaram a relação entre a poesia e a pintura, o que obrigou o leitor a adotar novas estratégias de leitura, no que diz respeito ao texto não-verbal.

Ainda quanto à leitura do texto não-verbal, Ferrara comenta que a “leitura sem palavras” permeia o dia-a-dia do homem, à medida que se pode considerar desde a vestimenta ou a escolha de um transporte, como um tipo de leitura, pois essas escolhas revelam as preferências, as expectativas sócio-econômicas do homem. (FERRARA, 1993).

Para a autora, o texto não-verbal possui um caráter fragmentado, imprevisto, múltiplo, diluído. E, comparando-se a pintura com outros textos não-verbais, nota-se que ela também recorre a signos não-verbais como a cor, a luz e a sombra; porém não são signos verdadeiramente múltiplos, porque atingem apenas um sentido: o visual. Percebe-se que o texto não-verbal, num sentido lato, não é exclusivamente visual ou sonoro, mas é principalmente plurissígnico. O leitor do texto não-verbal toma para si o árduo trabalho de investigação do texto, haja vista a ampla possibilidade de leitura que esse tipo de texto traz.

Na leitura do texto não-verbal, também se faz necessário entender o seu caráter de movimento e relatividade, entendendo-se que é preciso agir com rapidez para agrupar o que se encontra disperso e acompanhar a rápida associação de idéias que está sobre o espaço (movimento). Em vista disso, ocorre uma certa assimetria entre o que o leitor capta e o que produz enquanto leitura. Daí, o caráter relativo dessa leitura.

Por ser relativa, o que conta na leitura não-verbal é o desempenho e não a competência, porque aquele é mais dinâmico e exige uma leitura sem ordem pré-estabelecida, mas sinestésica. Não é previsível nem infalível e também não produz um saber, entretanto, provoca um processo de conhecimento, a partir da experiência cotidiana.

O objetivo da leitura não-verbal está além da decodificação, ela é apenas o início do processo de leitura, porque vê o leitor como receptor participante tanto da concepção do texto quanto do seu significado, através da projeção de suas experiências e de seu desempenho na operação consciente da linguagem.

A essa noção do leitor enquanto receptor participante alia-se à noção da estética da recepção, segundo a proposta de Hans Robert Jauss:

A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra, nem pela reconstrução da intenção de seu autor. Antes, a experiência denominada “primária” de qualquer obra de arte realiza-se com o seu efeito estético – Einstellung auf - constituído de compreensão fruidora e de fruição compreensiva. Uma interpretação que ignorasse experiência estética primeira seria própria da presunção do filólogo que cultivou a idéia de que o texto foi feito não pelo leitor, mas especialmente para ser interpretado. (JAUSS, 1994).

Nessa proposta, fica clara a primazia dada à importância do efeito e da significação do texto para o leitor.

No que diz respeito ao horizonte de expectativa, Jauss explica-nos que a sua reconstrução se faz necessária na medida em que se estabelece uma relação dialógica entre o texto e leitor. Desse modo, é buscando a pergunta original para a qual o texto foi resposta que percebemos as modificações ocorridas entre a obra e o leitor, devido às inúmeras recepções as quais ele vai incorporando com o passar do tempo. A obra do passado “só diz algo” ao leitor (receptor) se este tiver reconstruído o questionamento para o qual ela foi feita, atualizando-a. Processo esse, chamado por Jauss, de “compreensão produtiva”.

Sobre o efeito estético de um texto o autor afirma que há dois momentos simultâneos no contato leitor/obra: esta, ao mesmo tempo em que provoca uma reação naquele, também muda historicamente, ao ser recebida e entendida de diferentes modos.

Jauss, ao referir-se a Iser e Vodicka, destaca também a importância de se diferenciar os dois modos de concretização da leitura: o horizonte implícito de expectativa proposto pela obra traz orientações prévias e inalteradas devido ao texto ser o mesmo. E o horizonte explícito tem uma recepção condicionada pelo leitor, que dialoga com a obra segundo suas experiências pessoais.

Jauss refere-se aos dois horizontes, respectivamente, o leitor explícito e o implícito, bem como a sua importância na construção do sentido da obra. Acrescenta a necessidade de se perceber os diferentes códigos referentes a esses leitores e privilegiar o código subjetivo do leitor implícito para melhor compreensão das estruturas de pré-compreensão, que diferenciam o código da obra literária do código do leitor.

Desse modo, enfatiza-se também que o efeito estético prescinde da sua recepção, que se dá pela compreensão na sucessão dos elementos do texto (poético, narrativo, pictórico). A partir da compreensão, ocorre a interpretação, nomeada por Jauss de “concretização de uma significância específica” que não se desvincula da primeira, porém é mais objetiva ao intuir o esclarecimento da construção do texto (aspectos verbais e literários), para possibilitar uma compreensão global. A aplicação, o último estágio, liga-se aos dois primeiros elementos na medida em que ilustra um intuito de trazer o texto para dentro do presente, formando um juízo de valor estético que possa convencer outros leitores:

Assim como em toda experiência real, também na experiência literária que dá conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um saber prévio, ele próprio um momento dessa experiência, com base no qual o novo de que já tomamos conhecimento fez-se experienciável, ou seja, legível por assim dizer, num contexto experiencial. (JAUSS, 1994: 28).

Outro aspecto importante abordado pelo autor é o fato de a obra não ser apresentada como totalmente nova. Para chegar a uma interpretação, o leitor deverá atentar para os sinais explícitos ou implícitos, os traços familiares (experiências passadas) que o encaminharão para uma postura individual e bastante subjetiva de leitura. O leitor percebe uma nova obra tanto a partir da sua experiência literária, quanto da sua experiência de vida:

O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público.Denominando-se distância estética aquela que medeia entre o horizonte da expectativa preexistente e a aparição de uma obra nova – cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por conseqüência uma “mudança de horizonte”, – tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia). (JAUSS, 1994: 31).

Trata-se aqui da relação do leitor com a obra e da sua reação perante a mesma, que se dá na relação obra/leitor através da negação do já estabelecido ou colocação de experiências ainda desconhecidas. E essa reação esta intimamente ligada ao horizonte de expectativa, conforme a distância existente entre o horizonte da obra e do leitor. Além disso, o horizonte também determina o valor estético da obra, baseado ainda nessa distância entre o horizonte, a obra e ruptura desse horizonte.

Soma-se a esta questão da qualidade estética da obra ligada ao horizonte de expectativa à função social da literatura, que se efetiva, na medida em que o leitor adquire experiência da realidade através da leitura do texto literário, que por meio de uma nova forma o auxilia a romper com a automatizada percepção cotidiana.

Isso acontece devido à literatura diferenciar-se do histórico não só porque conserva as experiências já vividas, mas também porque antecipa experiências ainda não vividas, ampliando o comportamento social.

Em consonância à teoria de Jauss, pode-se depreender da leitura feita de Wolfgang Iser que a leitura da obra literária necessita da co-participação do leitor, no momento em que lhe exige o preenchimento das lacunas disseminadas pelo texto, por meio da sua experiência e fantasia. Todavia, Iser discute a receptividade da obra literária, sob um viés mais individual quando coloca em questão o seu efeito produzido no leitor que, no ato da leitura, encontra com os chamados “espaços vazios”, sendo induzido a participar na realização do texto:

O lugar vazio permite então que o leitor participe da realização dos acontecimentos do texto. Participar não significa, em vista dessa estrutura, que o leitor incorpore as posições manifestadas do texto, mas sim que aja sobre elas. Tais operações são controladas na medida em que restringem a atividade do leitor à coordenação, à perspectivação e à interpretação dos pontos de vista. À medida que o lugar vazio permite essas operações, evidencia-se a ligação fundamental de estrutura e sujeito, a saber, no sentido dado por Piaget: “Com uma palavra, o sujeito existe porque a qualidade básica das estruturas é geralmente o próprio processo de estruturação”. O lugar vazio imprime dinâmica à estrutura por marcar determinadas lacunas que apenas podem ser fechadas pela estruturação levada a cabo pelo leitor. É neste processo que a estrutura ganha sua função (ISER, 1999: 157).

A leitura de Pandolfo Bereba:

A autora e a obra:

Eva Furnari é uma renomada autora e ilustradora de obras infanto-juvenis. A obra escolhida Pandolfo Bereba faz parte de uma coleção intitulada: O avesso da gente, publicada em 2000, pela Editora Moderna.

A obra conta a história de um jovem e estranho príncipe, chamado Pandolfo Bereba que, graças a uma princesa, nada perfeita, é “salvo” do seu isolamento do mundo.

No reino da Bestolândia, vivia Pandolfo Bereba, um príncipe que tinha um péssimo defeito: observar os defeitos das pessoas e atribuir-lhes uma nota que, geralmente, não passava de seis.

Certo dia, sua alteza, cansado daquela brincadeira, resolveu que queria ter um amigo e fez uma espécie de seleção, para escolher um amigo nota dez. Porém, na sua análise, não achou nenhum candidato à sua altura, pois todos tinham inúmeros “defeitos”: um era bigodudo, o outro se vestia mal, e assim por diante. Desanimado, o príncipe voltou à sua rotina de listar os defeitos alheios.

Até que um dia, teve outra idéia: arranjar uma princesa nota dez. E o processo seletivo, bem como o seu resultado, foram idênticos ao primeiro. Por isso, o príncipe ficou muito triste e largado. 

Um dia, porém, ao passear pelos jardins do castelo, viu uma borboleta amarela e começou a segui-la, saindo do castelo. Quando percebeu a rua e o povo à sua volta ficou admirado, pois não conhecia o mundo fora do castelo.

No mercado da rua, ao pegar uma maçã, foi inquirido a pagá-la e, não sabendo das leis do comércio, também não tendo como pagar pela maçã, ele viu-se obrigado a fugir, perante ameaça e perseguição do povo. Nessa correria, foi salvo por uma moça, que lhe deu um puxão e o escondeu em sua casa.

Ficaram, por toda tarde, conversando sobre os mais variados assuntos, sob os quais concordavam em alguns pontos e discordavam em outros. Ele achou tudo aquilo muito interessante e notou, para o seu espanto, que não havia atribuído nenhuma nota àquela moça.

O príncipe havia encontrado sua linda princesa nariguda.

Casaram-se, brigaram algumas vezes, mas foram felizes.

Pandolfo Bereba, seu estranhamento e seu caráter humano:

A leitura da história Pandolfo Bereba, inicialmente, já causa um estranhamento a partir do título, que é reforçado pela imagem que o acompanha. Tanto o nome quanto à figura, remetem a uma pessoa esdrúxula: um príncipe cujo sobrenome se refere a sua aparência física. O Sr. Bereba possui inúmeras perebas pelo corpo e, sob uma visão metafórica, possui outras tantas perebas interiores (defeitos do tipo: mimado, egocêntrico, preconceituoso, alienado etc).

A atribuição de características negativas ao príncipe, quanto aos aspectos físicos e psicológicos, leva a crer na relativização de conceitos como belo/ feio; desmistificando a figura perfeita do príncipe, ao aproxima-lo do homem comum, no que diz respeito aos seus atributos físicos e aos valores morais.

As características negativas do príncipe, porém, não são reveladas de modo discriminatório, ao contrário disso, o narrador aborda-as sob uma perspectiva bastante natural, como sendo intrínsecas ao homem: “Pandolfo nada entendia de amor ou amizade”, “Por ter sido mal acostumado de pequeno”, “Estava enjoado de ficar só na janela. Sentia-se sozinho e sem graça”, “Ele nunca tinha saído fora dos portões do palácio”, “Sua Alteza nada entendeu, não sabia que se devia pagar pelas coisas...”, “Não ensinam aos príncipes que se deve agradecer quando se é salvo por uma garota”.

Na caracterização do príncipe, as imagens reforçam o texto escrito. Por exemplo, as ilustrações do príncipe apontando para si (p.9), ou no alto da janela, só, olhando sempre de cima (p.7), podem confirmar a visão de alguém egocêntrico, isolado do mundo. Por outro lado, a imagem que o ilustra desolado diante das tentativas frustradas de se aproximar das pessoas (p.14), redime-o, ao passar a idéia de que ele era daquele jeito, não por opção; mas pela realidade circundante. Essa idéia se confirma, no decorrer da história, quando o príncipe vai- se transformando, interiormente, no contato com outras pessoas.  

A mudança de atitude do príncipe é desencadeada quando, “ao acaso do destino”, como cita o narrador, ele segue uma borboleta amarela e, a partir desse feito, entra em contato com outro mundo, totalmente diferente do seu e por isso tão mais interessante.

 Nesse trecho da história, a figura da borboleta pode ganhar um caráter duplamente metafórico. A borboleta pode remeter a atitude do príncipe, que, após uma “fase de incubação” (vivência isolada no castelo), sai do “casulo” (do castelo) para “alçar vôo” (vivenciar fatos diferentes dos que estava acostumado) e ampliar seus horizontes.  Desse modo, o príncipe deixa sua condição de alienado e, no contato com o outro, descobre novos valores, ampliando sua visão de mundo.

Outro sentido que pode ser atribuído para a imagem da borboleta é quanto às suas duas fases: lagarta/borboleta, semelhantemente, o homem passa por transformações (físicas e psicológicas), durante a sua vida.

As ilustrações referentes às pessoas são caricaturais e, sob essa perspectiva, podem ser lidas como um efeito irônico e hiperbólico, para corroborar os defeitos (segundo a ótica preconceituosa do príncipe) ou apenas as diferenças existentes entre as pessoas.

No episódio da escolha do amigo do príncipe, as falas “Todo tipo de gente queria ser amigo do príncipe” (p. 8)  e “Com tanta gente à sua espera, o príncipe sentou-se no trono e preparou-se para escolher o felizardo” (p.9), podem remeter a um valor social: a necessidade de se ter um “amigo” importante. 

O trecho: “Levantou-se, olhou-o de alto a baixo e, com olhos experientes, avaliou sua aparência” e o fato de o príncipe atribuir notas às pessoas, pode remeter a um outro juízo de valor pregado pela sociedade: a boa aparência tem grande valor social e, muitas vezes suplanta outros atributos. Na história, a aprovação social é metaforizada pela notas atribuídas pelo príncipe.

O humor, característico da autora, revela-se na obra, de dois modos bastante distintos, mas que se complementam: no campo das imagens, os desenhos são quase caricaturais, no sentido de exagerarem quanto às formas e proporções de algumas partes do corpo das personagens, aproximando-as do ridículo. No âmbito das palavras, o humor faz-se presente por meio das construções frasais, nos argumentos usados pelo príncipe para descartar os pretendentes: “Uma tinha muito cabelo e pouca bochecha, A outra tinha pouco cabelo e dentes demais” (p.19), “É simpático, mas bigodudo. O bigode até que vai, mas orelhas...” (p.12) e nos nomes das personagens, que são estranhos, pela sua sonoridade e pela singularização dos nomes tão diferentes da realidade costumeira: Pandolfo, Panfúcia, Ludovica.

O humor se evidencia ainda mais na grande ironia presente na atitude do príncipe: um homem cheio de defeitos e sem beleza física, que não se enxergava e exigia dos outros a perfeição. E, pautando-se apenas na aparência física, descartava todas as pessoas. No entanto, quando começa a prestar atenção além da aparência, ao conversar com Ludovica, que ironicamente, não era nada bonita, o príncipe observa outros valores que suplantam a beleza externa e apaixona-se pela moça:

- Seu tonto, a água e a sede são mais importantes que o copo./ Pandolfo encantou-se. Nunca, nunquinha ninguém tinha falado com ele daquele jeito, e tão assim, sei lá como./ Sentaram-se à mesa e foram conversando de tudo (...) / Percebeu que ela tinha lindos olhos claros, boca grande, muitos dentes, um nariz que passava das medidas e, mesmo assim, estava tudo certo (FURNARI, 2000: 26, 28, 31).

A figura da princesa também é curiosa, pois, como o príncipe, relativiza a noção de belo e feio, uma vez que não se enquadra no padrão de beleza clássico. Aliás, nesse momento da história, quanto à caracterização de Ludovica, as imagens não correspondem à descrição feita pelo narrador: ela é descrita como sendo magrela (p.26) e a ilustração demonstra uma moça mais gorda (p.27). Essa discordância, a princípio, causa um estranhamento, contudo poderia ser vista apenas como a divergência de pontos de vista: a moça poderia não ser muito magra, mas sob o olhar de Pandolfo, esta lhe parecia magra. Ou ainda tal divergência poderia estar reverberando a questão da relativização da aparência.

Ludovica reverte os valores não só quanto à aparência, mas, sobretudo, porque, nessa história, é a princesa que salva o príncipe; não de uma ameaça exterior, mas de um perigo interior: Pandolfo não enxergava seus defeitos, pois vivia fechado no seu mundo, e por isso apontava os defeitos alheios, no entanto ao encontrar Ludovica, ele aprende a respeitar as diferenças e os limites das pessoas.

No que diz respeito à ruptura proposta pela obra literária quanto aos padrões vigentes, por meio de elementos que causam estranhamento (seja pelo recurso expressivo e/ou ideologia veiculada - Zilberman, 1981), Pandolfo Bereba apresenta vários aspectos que viabilizam a ruptura. Pois apresenta elementos que causam estranhamento e, a partir daí, abre possibilidades de leituras para o restabelecimento de uma lógica que dê sentido a tais estranhamentos. Dessa forma, estabelece um convite provocante ao leitor para que ele reconstrua sentidos para a obra (numa revisão das ações, atitudes e valores propostos pelas personagens). O título, por exemplo, ao trazer um sentido esdrúxulo que o sobrenome Bereba encerra, provoca o leitor a buscar o porquê de tal colocação, deixando abertas lacunas que, no caso da nossa leitura, pressupõem as “perebas interiores” que o príncipe possui e, por extensão, os homens também as têm. Essa leitura pode ser efetivada pela caracterização do príncipe como alguém próximo do homem comum e, nessa construção discursiva há lacunas que podem levar o leitor perceber-se incluso nas atitudes do príncipe.

Sob essa perspectiva teórica, que considera o leitor co-participante na produção de sentido do texto, a partir das pistas deixadas pelo autor, pelas marcas textuais (lacunas do texto, conforme a proposta de Jauss e Iser); nota-se que essa obra propõe algumas rupturas, que instigam o leitor a rever alguns aspectos e reelaborar idéias, como por exemplo: a) a banalização de uma visão social hierárquica, quando põe o príncipe em pé de igualdade com o povo, no que diz respeito ao aspecto humano; b) o rompimento com visões dicotômicas como bom x ruim, feio x belo, uma vez que apresenta os tais atributos numa mesma pessoa, o príncipe; c) a relativização dos moldes clássicos de beleza em detrimento da diferença e da diversidade, ao propor um príncipe cheio de perebas e uma princesa magricela de nariz grande, etc.

Retomando os preceitos de Jauss (1994) quanto à qualidade estética da obra estar intrinsecamente ligada à questão do distanciamento dos horizontes de expectativas inicial e final do leitor, bem como ao caráter plurissígnico e relativo da linguagem veiculada que possibilita espaços vazios para que o leitor interaja com ela e, com isso, tenha seu horizonte ampliado ao ter uma dimensão de si e do mundo, Pandolfo Bereba, pode ser considerada uma obra de qualidade estética. Pois apresenta uma distância do horizonte de expectativas iniciais do leitor quanto ao que esse espera de um príncipe, de uma princesa e da organização social em que se inserem, e a partir desse rompimento causado pelo estranhamento, produzido tanto pelo arranjo discursivo, quanto pelo desenrolar da trama, produz um outro efeito, o da reflexão, quando este é levado a rever seus conceitos, atitudes e, ampliar seu horizonte.

Para finalizar o trabalho, não a leitura, pois esta possui ainda inúmeras lacunas e sentidos a serem propostos, é interessante comentar que as ilustrações, tendo sido feitas pela própria autora, e fazendo parte da coleção Avesso da Gente, que tem como tema, a reflexão acerca do outro lado do ser humano, que não o exterior, a caricaturização das imagens, poderia ser entendida como um recurso estilístico com o qual por meio do exagero proposital da aparência física, a ponto de torná-la esdrúxula, poderia ser um artifício para pôr em evidência o lado avesso, que é mais importante, porque mais humano.   

Considerações finais

A partir dessas reflexões realizadas, percebe-se que Pandolfo Bereba, como um texto artístico de caráter humanizador, propicia ao leitor, por meio dos espaços deixados, tanto no nível da escrita, quanto no nível das imagens, construir sentidos que o fazem viver novas experiências, dentre as quais, uma reflexão que fica bastante evidente não só nesta obra, mas em toda a coleção, é a consciência sobre o “avesso da gente”. A obra traz à tona, de maneira lúdica, os sentimentos humanos mais pequenos, como o egocentrismo, a discriminação, o egoísmo, ou seja, os defeitos; que podem ser facilmente melhorados, basta conviver e “olhar” o outro, para com ele, aprender a melhorar. E, o mais importante é que tais defeitos humanos são retratados, não de modo moralista, ao contrário, com muita naturalidade, afinal de contas, o ser humano tem o direito de ter defeitos, pois todo mundo tem o lado bom e o seu avesso.

Percebe-se que esses valores humanos aparecem nas entrelinhas, pela voz do narrador ao descrever as atitudes do príncipe em contraposição a das outras personagens; porém não de modo recriminatório, ao contrário disso, tais valores são relativizados e postos como intrínsecos ao ser humano em geral. E o leitor, percebe-os não pela sua identificação com a figura do príncipe, mas pelo seu distanciamento deste.

Nesse sentido, por meio da elaboração de uma linguagem metafórica e irônica, aliada à construção imagética caricatural, a obra rompe com a expectativa inicial. E por meio do estranhamento instaurado em vários momentos da obra, ela provoca o leitor a buscar “caminhos” de leitura que restabeleçam uma lógica para os fatos e ações do príncipe, possibilitando a relativização da beleza, do bem e do mal, da postura e das ações do ser humano. Sob essa perspectiva, a obra, ao deixar lacunas e por meio dessas, instaurar possíveis diálogos com o leitor, exerce um caráter humanizador, porque o faz refletir, por meio da fruição, acerca das suas próprias “perebas interiores”, atitudes em relação a si e aos outros.

Referências Bibliográficas

AGUIAR e SILVA, V. M. Teoria e Metodologia Literária. Lisboa: Universidade Aberta, 1990.

CÂNDIDO, A. A literatura e a formação do Homem. Ciência e Cultura. São Paulo: 1972.

__________. FERRARA, L.D’. Leitura sem palavras. 3a ed. São Paulo: Ática, 1993.

FURNARI, E. Pandolfo Bereba. São Paulo: Moderna, 2000. (coleção o avesso da   gente).

ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético – vol.2 / Wolfgang Iser; Tradução de Jonhannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999.

MACHADO, A M. Ideologia e livro infantil. Conferência congresso Mundial do IBBY. Sevilha, 1994.

JAUSS, H.J. A História da Literatura como provocação à teoria literária.  Tradução de Sérgio Telloroli. São Paulo: Ática, 1994.

ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981.

 

©Copyright 2001/2005 - Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar
 Centro de Estudos Sobre Intolerância - Maurício Tragtenberg

Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá/PR - Brasil - Email: rev-urutagua@uem.br 

Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 19 agosto, 2005.