Circularidade
cultural e religiosidade popular no Brasil Colonial: uma análise
historiográfica de O
Diabo e a Terra de Santa Cruz
Resumo
Análise
da obra O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), de Laura de Mello e Souza,
procurando verificar as influências teóricas da autora e sua
contribuição para a renovação da historiografia brasileira de
1980 em diante.
Palavras-chave:
Cultura - Religiosidade popular - Historiografia
Abstract
It
analyzes the work O diabo e
a Terra de Santa Cruz (1986), of Laura de Mello e Souza,
trying to verify the author's theoretical influences and your
contribution for the renewal of the Brazilian historiography of
the eighties in before.
Key-Words:
Culture
- Popular Religiosity – Historiography
|
Há
dezoito anos foi publicado O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil Colonial (1986), de autoria de Laura de Mello e Souza. A distância
temporal que nos separa da primeira edição do livro não invalida nosso
ato de debruçar olhares sobre ele, tendo em vista que a crítica
historiográfica é consensual em afirmar seu pioneirismo em termos do uso
da História das Mentalidades enquanto opção teórico-metodológica no
Brasil. Cremos, também, que por mais resenhas feitas sobre a obra em epígrafe,
nenhuma temática se esgota com apenas uma análise. De modo que nossa
incursão pelos fios deste texto se constitui num olhar a mais sobre O
diabo.
Fruto
do Doutoramento em História Social obtido na Universidade de São Paulo
(USP)
em 1986, O diabo procura
investigar determinadas nuances da História do Brasil, que guarda
especificidades justamente por se tratar de uma história
colonial, cujos laços de significação estão fortemente ligados à
metrópole. A escolha, pela autora, da feitiçaria e de práticas mágicas
como objeto de estudo está bastante clara na Introdução
e mesmo no transcorrer das páginas da obra. É fruto, também, da adoção
de fontes manuscritas um tanto inusitadas no trato com a pesquisa histórica
no Brasil: os processos oriundos de Visitações, Devassas Eclesiásticas
e Autos-de-Fé do Santo Ofício, presentes em arquivos públicos de Minas
Gerais e do Rio de Janeiro, além das conferidas no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, em Lisboa.
Antes
de inclinar sua atenção sobre histórias de várias personagens cujas
vidas foram devassadas especialmente pelo Santo Ofício – sem desconectá-las
do contexto em que se desenrolaram, seja na Metrópole, seja na Colônia
–, a autora retoma a discussão que matizou a obra Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento do Brasil, publicada
em 1956. Tal discussão, inaugurada por Sérgio Buarque de Hollanda na
obra acima citada, perscruta sobre o imaginário dos europeus a respeito
das novas terras, “descobertas” depois
do Tratado de Tordesilhas. No caso de O
diabo, Laura de M. e Souza valeu-se de relatos deixados por cronistas,
viajantes e missionários, que falam da terra achada pelo Ocidente entre o
final do século XV e início do XVI. Assim sendo, as obras de Frei
Vicente do Salvador, Frei Jaboatão, André Thevet, Jean de Léry, Pero de
Magalhães Gândavo, Fernão Cardim, Sebastião da Rocha Pita, Ambrósio
Fernandes Brandão, Gabriel Soares de Souza, Gaspar Barléu e Antonil, sem
sermos exaustivos, compõem o corpo textual de onde a autora partiu para
tecer suas considerações.
Poderíamos
anteceder essas fontes com o primeiro registro oficial de que dispomos
sobre os nativos encontrados nas novas terras pertencentes ao Império
Português. Trata-se da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1º de
maio de 1500 e dirigida ao Rei de Portugal. A missiva envolve os índios
numa atmosfera de candura e de ingenuidade, afirmando serem eles
“pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir
ou deixar de encobrir suas vergonhas. Acerca disso são de grande inocência”.
Esse relato mais nos parece uma reprodução ou recriação do texto bíblico
do Gênesis, onde os indígenas, dadas as devidas semelhanças, são
comparados a Adão e Eva. As terras “descobertas”,
por conseguinte, são comparadas ao Jardim do Éden, pela sua grande
riqueza natural, de fauna e de flora. Os nativos a que Caminha
se reporta são selvagens, mas, também, salváveis, pelo que se depreende
de sua exortação ao Rei Dom Manuel: “E portanto Vossa Alteza, pois
tanto deseje acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação
deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!”.
Isto
posto, a justificativa de que os habitantes das novas terras deviam ser
cristianizados (ou trazidos de volta para a Fé, já que alguns os
consideravam filhos de Deus que haviam se perdido de seus irmãos
europeus) andaria de braços dados com as motivações que levavam à
expansão territorial da Colônia pelos povos vindos, em sua maioria, da
Ibéria.
O
paraíso nos trópicos assinalado por Caminha não muito tarde estaria
povoando o imaginário europeu com outros sentidos. O hábito nativo de
andar nu despertou os olhares dos viajantes do Velho Mundo, que viam na
intimidade um grande tabu. A partir do fim do século XVI as crônicas
escritas sobre a América Portuguesa qualificariam os indígenas como
luxuriosos e pecadores. Alie-se a aversão às práticas antropofágicas
dos índios do litoral, rotulados como verdadeiros canibais e sedentos de
sangue. São representativos, aqui, os relatos do missionário calvinista
Jean de Léry, publicado em 1580, do padre francês André Thevet e de
Gabriel Soares de Souza, este último, escrito em 1587.
A
consciência cristã parecia abalada com as notícias chegadas à Europa
sobre os costumes dos nativos, que não mais eram vistos com em inocência
e simplicidade, mas, como as formas mais grotescas possíveis de
humanidade, dada sua predisposição natural à luxúria e ao canibalismo.
O paraíso tropical mais parecia, agora, um inferno verde e essa visão
religiosa que oscilava entre o bem e o mal caracterizaria os escritos
sobre os povos indígenas nos séculos posteriores.
Laura
de M. e Souza demonstraria, no estudo que estamos analisando, como os
relatos ocidentais fariam com que o imaginário do Velho Mundo oscilasse,
nos primeiros séculos da colonização, entre considerar as novas terras
imersas de figurações do Édem Éden ou do Inferno. Para a autora,
A
infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos edênicos
elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno se alternavam
no horizonte do colonizador, passando paulatinamente a integrar, também o
universo dos colonos e dando ainda espaço para que, entre eles, se imiscuísse
o Purgatório. Durante todo o processo de colonização, desenvolveu-se,
pois uma justificação ideológica ancorada na Fé e na sua negação,
utilizando e reelaborando as imagens do Céu, do Inferno e do Purgatório.
À
medida que o sistema colonial ia se complexificando nas fímbrias da colônia
portuguesa na América, índios, negros e posteriormente colonos se
identificariam com as imagens edênicas ou demoníacas oriundas dos
discursos dos viajantes e exploradores, mediados pelas idéias religiosas
da época. Laura de M. e Souza nos adverte, ainda, que tais construções
imagéticas não devem ser dissociadas do contexto global do fim da Idade
Média e início da Época Moderna, caracterizada pelo abandono, na
Europa, do trabalho servil (de base feudal) e adoção do trabalho
assalariado, enquanto que nas colônias se alastrava o trabalho escravo.
Para ela, “(...) a visão paradisíaca foi, neste momento histórico,
instrumentalizada pelas camadas dirigentes, convertendo-se em chamariz de
gente e em elemento constitutivo da ideologia colonizadora. Povoar a colônia
significava, também, purgar a
metrópole: não apenas dos elementos humanos doentes mas ainda das formas
de exploração compulsória do trabalho (...)”
[ grifo nosso]. Por falar em purgação, um interessante tópico de análise
desenvolvido pela autora remete à idéia de que a Colônia não seria
somente céu ou inferno, mas, também, purgatório, onde os pecadores
poderiam pagar suas dívidas até o crítico dia do Juízo Final.
Parafraseando o discurso do jesuíta Antonil, podemos afirmar que nas
novas terras se purgavam tanto o açúcar – gênero de exportação por
excelência nos primeiros séculos da colonização – quanto as almas de
quem punha os pés no mundo colonial, mesmo os degredados ou vindos da
metrópole.
Na
Terra de Santa Cruz, ora edenizada, ora demonizada, as manifestações
religiosas foram as mais diversas possíveis. Conforme apregoa Laura de
Mello e Souza, “Traços católicos, negros indígenas e judaicos
misturaram-se pois na colônia, tecendo uma religião sincrética e
especificamente colonial”.
Todavia, não se trata de um vaso quebrado cuja forma se ignora ou de
longe é vislumbrado. Concordamos com a assertiva da autora, para quem
“(...) toda a multiplicidade de tradições pagãs, africanas, indígenas,
católicas, judaicas não pode ser compreendida como remanescente, como sobrevivência: era vivida, inseria-se, neste sentido, no cotidiano
das populações. Era, portanto, vivência”.
Foi
esse sincretismo descrito nas páginas de O
diabo que permitiu o aparecimento da cafuza Joana Mendes, do pedreiro
Baltazar da Fonseca, do pardo Faustino de Abreu, da calundureira Luzia
Pinta, da índia Sabina, de Adrião Pereira de Faria, de Maria Gonçalves
Cajada – vulgo Maria Arde-lhe-o-Rabo – e de tantas outras personas
dedilhadas pelo lápis de Laura de Mello e Souza.
Coincidentemente, o elemento feminino aparece com mais ênfase nos
processos inquisitoriais, confirmando um lugar-comum do Velho Mundo:
o de que muitas mulheres sozinhas ou que trabalhavam para
sobreviver eram acusadas de serem bruxas ou prostitutas. Na colônia
portuguesa na América, “(...) dentre os que se ocuparam da magia,
talvez a categoria mais estigmatizada com a prostituição tenha sido a
das mulheres que vendiam filtros de amor, ensinavam orações para prender
homens, receitavam beberagens e lavatórios de ervas. Magia sexual e
prostituição pareciam andar sempre juntas”.
Não queremos dizer, com isto, que era predomínio apenas feminino o uso
de práticas mágicas ou feitiçaria na vida cotidiana. O sexo masculino
também povoa, em O diabo, os
relatos acerca dos denunciados ao Santo Ofício, muitos dos quais índios,
negros ou mestiços.
O
diabo foi escrito na metade dos anos
80 do século XX, época em que grandes transformações se processavam no
cenário brasileiro. O regime de exceção que principiara com o movimento
de 1964 começava a soltar seus lampejos, ainda que tímidos, de
fraquejamento. Esses sinais ficaram perceptíveis durante o governo do
General Ernesto Geisel (1974/1979), responsável pelo início da abertura
política, que não pôde ser coroada em sua administração. Avançaria
pelo mandato do General João Batista Figueiredo (1979/1985), desembocando
na eleição para a Presidência – ainda indireta – de Tancredo Neves
e José Sarney. A fatídica doença de Tancredo, que o levaria à morte,
fez com que Sarney assumisse a cadeira presidencial em 1985. A abertura
política somente seria rematada com a Assembléia Constituinte, a
promulgação da Constituição Federal de 1988 e as eleições diretas de
1989, que levariam Fernando Collor de Mello ao Planalto. Entrementes,
alguns fatos marcaram a cena dessa gradual abertura, como a extinção do
AI-5 e mesmo a campanha das Diretas Já.
Pari
passu à abertura política, também
os intelectuais brasileiros começaram a imergir na abertura das ciências
e das letras a novas abordagens. As Ciências Humanas e Sociais, em
particular, viam-se inundadas pelas influências da Terceira Geração da
Escola dos Annales, de origem francesa, cujo maior emblema era a história
das mentalidades. Diferentemente da primeira e segunda gerações dos
Annales, que existiram sob o apanágio de Lucien Febvre e Marc Bloch (a
primeira) e depois Fernand Braudel (a segunda), a terceira geração ou
fase se caracterizava pela fragmentação intelectual e mesmo
institucional.
Procurava-se, como as demais fases, lançar luzes que pudessem nortear a
resolução de problemáticas de pesquisa. A ênfase recaía, agora, nos
temas ligados ao cotidiano e às representações, de onde partiam
premissas capazes de fazer com que amor, morte, família, infância,
bruxaria, loucura, mulher, homossexualidade, corpo, vestuário, lágrimas
e alimentação, verdadeiros “recortes minúsculos do todo social”, se
tornassem motes de estudos historiográficos.
Num artigo em que já desconfiava da validade do conceito e do uso das mentalidades, Jacques Le Goff – um dos representantes da Terceira
Geração – afirmava a abertura dessa corrente teórica a saberes como a
Etnologia, a Sociologia e mesmo a Psicologia Social. Além de definir
alguns pressupostos conceituais, Le Goff afirmou, a propósito, que “o nível
da história das mentalidades é aquele do quotidiano e do automático, é
o que escapa aos sujeitos particulares da história, porque revelador do
conteúdo impessoal de seu pensamento é o que César e o último soldado
de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristóvão
Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum”.
Porém,
é digno de nota ressaltar que houve um certo descompasso entre o ritmo
com que se propagaram as mentalidades, – surgidas nos meados dos anos
60, e suas chegadas ao Brasil. Segundo Ronaldo Vainfas, estas, somente
aportaram com rigor na historiografia brasileira a partir de meados dos
anos 80. Ao contrário do que pensam os críticos mais pungentes dos
Annales no Brasil – que vêem num “suposto atraso de país de
‘terceiro mundo’ “a maior razão para uma “defasagem” entre o
Velho e o Novo Mundo –, esse aportar
deu-se somente nessa época graças a obstáculos como o
constrangimento infundido pelo regime militar na política editorial do país
e mesmo nas Humanidades, o apego às filosofias da história de cunho
marxista nas universidades e a incipiência dos cursos de pós-graduação
na área de história, a que podemos excetuar o da USP.
Gostaríamos de sustentar, também, que, malgrado possa parecer que os
Annales tivessem predominância total sobre os historiadores brasileiros
da década de 80 em diante, como se fosse mesmo uma espécie de monopólio,
tendências historiográficas de origem extra-França também fincaram
suas raízes pouco a pouco. Trata-se das obras do italiano Carlo Ginzburg,
dos ingleses Keith Thomas e Edward Thompson e dos norte-americanos Robert
Darnton e Natalie Zemon Davis.
Não poderíamos deixar de reportar-nos, também, à renovação e crítica
aos paradigmas do saber ocidental proposta por Michel Foucault e também
da Antropologia Estrutural de Claude Lévi-Strauss,
também com tentáculos ancorados entre a comunidade de historiadores do
Brasil.
Essas
influências, francesas ou não, estão presentes no transcorrer de O
diabo. Entretanto, é notável o predomínio do que, até então, era
chamada de “história das mentalidades”, proveniente da Terceira Geração
da Escola dos Annales. Jacques Le Goff, Emannoel Le Roy Ladurie e mesmo
Michel Foucault – que elaborou algumas de suas obras ao mesmo tempo em
que se desenrolavam os trabalhos dessa geração dos Annales, sendo
considerado, por isso, como um dos precursores do que hoje conhecemos como
História Cultural –, são citações correntes no texto de Laura de
Mello e Souza. Se uma das matrizes teóricas da autora é a das mentalidades,
uma inspiração mais do que aparente em seu escrito é a do
historiador Carlo Ginzburg, cujas obras – como O
queijo e os vermes e Os
andarilhos do bem,
em suas versões francesas – são citadas em vários pontos de O
diabo. Algumas das personagens coloniais, cujas histórias de vida são
desenhadas por Laura de M. e Souza, chegam a ser comparados com o moleiro
friuliano Menocchio – objeto de estudo de Ginzburg em O queijo e os vermes –, dada a sua capacidade extraordinária de
criticar os dogmas da Igreja Católica e as atitudes de enriquecimento ilítico
dos clérigos. É o caso do baiano Isidoro da Silva, que foi acusado e
preso pelo Santo Ofício por acusações de heresia nos anos 20 do século
XVIII. Encaminhado para a Inquisição de Lisboa, foi considerado leve
suspeito na fé em 1732, após o que foi condenado a cumprir degredo de três
anos no Bispado de Miranda.
A
autora chega a falar de Menocchios caboclos ao referir-se a vários depoimentos de colonos,
negros, índios, cafuzos ou mamelucos que, por ocasião de seus processos,
deixavam patente críticas ferrenhas ao “edifício da fé e da religião”
católica romana, a exemplo do que fez o moleiro do Norte da Itália no
final do século XVI.
Assim, a chave explicativa de Laura de M. e Souza para entender a
religiosidade popular na colônia portuguesa é a da circularidade
cultural, que Carlo Ginzburg problematizou em sua obra, com destaque para O queijo e os vermes. Para
a autora não existiram práticas rituais exclusivamente cristãs,
africanas, indígenas ou judaicas no Brasil Colonial. Existiram
religiosidades populares sincréticas, mestiças, onde não se podiam
distinguir ou separar os elementos desta ou daquela cultura. Um exemplo
desta circularidade cultural, que tomamos emprestado de Laura de Mello e
Souza para o desfecho deste texto, é o da bolsa de mandinga. Embora esta
remetesse, nos albores da colonização, aos africanos trazidos para a colônia
e nesta escravizados, a partir do século XVIII passaria a designar “uma
forma específica de talismã que reunia práticas européias, africanas
e, de certa forma, também indígenas”,
o que mais uma vez nos remete à circularidade da cultura.
A
lição que O diabo nos quer
passar é que, embora o projeto colonial português fosse o de transmigrar
o mundo ibérico para os trópicos, pelo menos no plano da religiosidade o
que aconteceu foi o fato de diversos tipos de cultos – desde os de
origem nativa até os católicos, afros e judaicos – estarem convivendo
e se contaminando mutuamente nos três primeiros séculos de ocidentalização
do Novo Mundo, cujas práticas refletem-se até hoje na religiosidade
(mestiça) brasileira.
Para comodidade do autor, utilizaremos, a partir de agora, estaremos
utilizando a expressão O diabo para designar a obra O
diabo e a terra de Santa Cruz, para comodidade do leitor.