Por ELAINE APARECIDA LIMA

Aluna do Mestrado em Letras da Universidade Estadual de Londrina

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A crônica na ordem do dia: relações entre realidade, história, atualidade e ficção em O quase de Luis Fernando Veríssimo

Elaine Aparecida Lima

 

Exausta , a pobre lesma da vanglória,

Ao atingir o cume do obelisco,

Disse, olhando da própria baba o risco:

Meu rastro ficará também na história!

(Trilussa - poeta italiano)

 

 

Resumo

Trata-se de um artigo voltado para a análise do texto O quase de Luis Fernando Veríssimo. Considerando os elementos estético, político e cultural presentes no escrito mencionado, verifica-se como o autor trabalha o gênero crônica, revelando aspectos das histórias: nacional, universal e literária. Através do confronto do texto literário com textos teóricos, o trabalho verifica a atualidade de temas como: poder dos meios de comunicação, corrupção das pessoas e os bastidores da política, bem como revela os detalhes que transformam personagens e espaços reais em ficcionais, aprisionando a atenção do leitor.

Palavras-chave: Histórias – Política - Mídia – Atualidade - Crônica

Abstract

This is an article about the analyse of the text O quase by Luis Fernando Veríssimo. Considering the esthetic, political and cultural elements present in this writing, it's verified how the author works the chronicle genre, revealing the aspects of the histories: national, universal and literary. Through the confrontation of literary texts and theorical ones, the job verifies the current situation of themes such as: power of means of communication, people’s corruption and politics backstage, as well as it exposes the details that turn real characters and spaces into fictional ones, holding the reader’s attention.

Key–Words: Histories – Politics – Means of communication – Present time – Chronicle

 

Desde seus primórdios, a crônica tem mantido a tradição de recorrer aos acontecimentos de seu presente imediato para arrebanhar suas temáticas. Já no século XIV, por exemplo, com Fernão Lopes, seus temas circundavam os acontecimentos sociais, políticos e econômicos da época.

Há de se salientar, contudo, a ocorrência de mudanças neste gênero, sobretudo na crônica brasileira. O tom altivo de outrora gradativamente foi sendo substituído por uma falsa despretensão, fato que acabou originando uma dessacralização dos acontecimentos e personagens engendrados neste tipo de narrativa.

Dentro deste contexto, vemos, no caso de Luis Fernando Veríssimo, mais precisamente  no texto O quase (VERÍSSIMO, 1992), a crônica, assim como a lesma de Trilussa, deixando seu rastro significativo pela história. História esta que , aqui, pode ser tomada pelo menos em três sentidos: a história universal, a história nacional e a própria história da literatura, da qual, direta ou indiretamente, carrega características.

A crônica de Veríssimo apóia-se, a modelo daquela do século XIV, na história nacional. Não obstante, neste caso, as personagens ilustres, ao enveredarem por suas linhas, são apunhaladas por um tom sarcástico, irônico ao extremo que, mais do que depositá-las eternamente na memória coletiva, visa desmascará-las. Neste sentido, é exemplar a apresentação da personagem principal:

Collor lembra-se de todos os detalhes da visita. De como chegou ao Palácio do Planalto discretamente, vestindo um macacão cor de abóbora, de ultraleve, com uma escolta de seguranças em asas-deltas, e entrou pelos fundos abanando para as câmaras.(VERÍSSIMO, 1992, p. 50)

A história nacional, no texto, não apenas permite colocar em pauta o acontecimento coletivo do dia, mas admite que contemplemos muito mais do que uma história oficial, que  verifiquemos os bastidores malogrados dela. Algo perceptível, já durante o primeiro parágrafo: “Já estava eleito [Collor], mas ainda não tomara posse. Ia ter uma reunião secreta com Sarney.”[1] (VERÍSSIMO, 1992, p. 50)

Lançando mão de um cronista, cuja força, a maneira do narrador contemporâneo, está no olhar, O quase oferece uma apreciação da experiência alheia, uma embriaguez com a experiência do outro. É dentro desta visão do outro que as personagens da crônica ganham maior importância e são, acima de tudo, os alvos principais do comentarista que, discreta e ironicamente, imprime sua opinião sobre elas e, conseqüentemente, sobre o mundo que as cerca, no caso o Brasil: “Agora Collor olha o botão vermelho e se pergunta se chegou o momento. Decide que sim. Tudo deu errado. A crise não tem solução. Ele aperta o botão vermelho. Nada acontece.” (VERÍSSIMO, 1992, p. 51)

Ainda em relação ao narrador, podemos dizer que se distanciando do narrador repórter, ele é marcado pela onisciência. Seu olhar ultrapassa o plano físico, chegando aos pensamentos da personagem central. O trabalho com este plano psíquico gera na crônica o enredo misterioso, criador de expectativas, pois a embriaguez de quem narra está naquilo que já denominamos bastidores da história e não em uma realidade imediatamente observável. É o retrocesso mental de Collor o que determina todo o enredo da crônica e, por conseqüência, dá vez à  descoberta das artimanhas do poder, seja através dos diálogos revividos ou das reflexões da personagem protagonista.

 Com um olhar dionisíaco, bem a gosto do irracionalismo nietzcheano, sobre os fatos, o cronista consegue mostrar as muitas facetas de um mesmo acontecimento. Desta forma, ele evidencia um futuro presidente preocupado com suas aparições na mídia, ao mesmo tempo em que mostra Collor a se irmanar com um político rival: Sarney (a mídia nunca admitira este enlace).

Sobre o narrador é importante salientar, também, que a crônica vem carregada de sensibilidade e estilo próprios a cada cronista. No caso de Veríssimo estas características se traduzem, como já mencionamos, em uma reconstrução dessacralizadora da realidade circundante. Sendo deste modo, acaba ocorrendo na crônica deste autor  uma articulação entre personagens reais e ficcionais. Collor, Sarney e seus respectivos ministros são transformados em seres da ficção, convivendo entre espaços também reais e fictícios, porquanto o Palácio do Planalto é tomado em uma perspectiva alegórica, fantástica, essencialmente em seus recursos. Tudo ultrapassa o cotidiano e, portanto, não é tão somente registro histórico, mas também construção imaginária, literária, encaminhada exemplarmente pelo narrador. Para ilustração, leiamos o trecho em que há a descrição da estrutura de uma das salas da morada governamental:

Sarney apontou para uma fileira de botões em cima da mesa e foi descrevendo para que servia cada um [...]. subitamente Sarney ficou sério. Apontou para um botão vermelho, maior do que os outros [...]. este botão é importantíssimo. Ele aciona um dispositivo que chamamos de ‘Último Cartucho’, ‘Juízo Final’ou ainda ‘PQP'! (VERÍSSIMO, 1992, p. 51)

Imbuída das características mencionadas, a crônica de Veríssimo consegue manter-se sempre atualizada. O mistério que a embriaguez do cronista engendra em um enredo simples leva à identificação do leitor e, correlatamente, permite que mesmo os fatos passados possam ser observados com expectativa. Expectativa que parece aumentar, na medida em que o leitor se reconhece como membro da realidade ali transfigurada e fica ansioso por saber o final literário de uma história real já conhecida. Do mesmo modo, isto ocorre porque, apesar de cronologicamente assinalada pelo passado, o alvo principal da crônica está na discussão de valores universais cotidianamente presentes: a corrupção das pessoas, o poder da mídia, a política descompromissada praticada no mundo, além de temas que possam destes derivar. A preocupação com a história nacional, portanto, é o alicerce para a discussão da história universal.

História esta, aos moldes contemporâneos, marcada pelas relações políticas (no sentido mais simples – o partidário - da palavra) , as quais, na atualidade, estão intimamente ligadas à mídia. A personagem central da crônica, em seu momento de auge, parece ter um espaço cativo nos meios de comunicação, afinal, “na esfera política, as imagens da mídia têm produzido uma espécie de político das frases de impacto descontextualizadas, o que lhe confere posição central da vida política” (KELLNER, 2001, p. 29).

Destarte, a crônica contemporânea acaba tendo como encargo ultrapassar a visão daquilo que é permitido pela mídia, produzir colocações que façam mais do que padronizar pensamentos e/ou comportamentos. Seu intento permanece no desenlace do simulacro do mundo contemporâneo e este desenlace, quando são abordadas personagens retiradas do mundo real (é o caso de O quase), significa a quebra do status divino daqueles, cujas imagens foram criadas pelos meios de comunicação:

Silenciar ao máximo as questões políticas, dar maior  espaço às notícias internacionais, transmitir conteúdos e mesmo informações de forma a conduzir muito mais ao conformismo do que à reflexão, apresentar pessoas, principalmente políticos, rotulando-os tendenciosamente, conduzindo de antemão simpatias e antipatias conforme seus interesses é o papel exercido pela mídia. (ALVES, 1992, p.119-120)

Valendo-se de um enredo marcado pelos mesmos mecanismos da cultura de massa: o tom sarcástico da crônica, que gera o humor[2]; a tendência às soluções fantásticas[3] e a própria linguagem coloquial, o cronista, a rigor, compromete-se política e socialmente com o momento histórico de sua existência, assim como se compromete ao recusar estes mesmos mecanismos. Tal recusa ocorre à medida que aquilo a ser criticado, o tema abarcado, discute os próprios meios de comunicação e sua íntima relação com o poder político. Lembremos como Roberto Marinho, durante conversação entre Sarney e Collor, é referido pelo primeiro como detentor de grande poder perante aos representantes do  Estado:

-Eu controlo a altura da cadeira com um botão aqui embaixo. É para quando recebo as visitas do general Pires Gonçalves ou do Roberto Marinho. Para eles não se sentirem muito superiores.

- E dá certo?

- Não. (VERÍSSIMO, 1992, p. 50)

De uma forma (dentro da cultura de massa) ou de outra (à sua margem), o cronista só tem um compromisso: com a realidade. Este compromisso, decerto, não se esgota em um realismo estreito, de cunho idealista, mas, aos moldes marxistas, tem como escopo a discussão da situação catastrófica para a qual todos foram carregados, após a união desconcertante, à massa popular, de liberais e meios de comunicação.

Com a ânsia de colocar em voga a verdadeira realidade, a crônica O quase tem como recurso primeiro um olhar insólito sobre os acontecimentos. No mundo em que a visão impera, o cronista transforma o fato miúdo: a visita secreta de um futuro presidente ao Palácio do Planalto, em uma hiper-realidade, através da qual os fatos censurados são evidenciados aos olhos, até mesmo, de leitores mais inocentes (toda a ironia da crônica tem este objetivo).

O compromisso estético com a realidade social filtra-se através do imaginário, da fantasia, da pesquisa do subconsciente da personagem, da poesia[4]. A escrita passa a ser sonho gráfico pensado, trabalhado, fato que não lhe impõe o rebuscamento, mas, pelo contrário, distancia-a deste, pois é na escolha bem sucedida de palavras coloquiais e mesmo das gírias: “ ‘último cartucho’, ‘juízo final’, ‘PQP’”(VERÍSSIMO, 1992, p. 51) que o julgamento da realidade mesquinha torna-se ainda mais incisivo. Mesmo como sonho e fantasia, a crônica existe ideológica e politicamente.

Toda a arte é política[5] e por mais que se discuta o valor literário da crônica ela também possui tal engajamento. Mesmo impulsionando o prazer estético (e possivelmente por isto mesmo), a crônica O quase instiga à visão do mundo sem vendas. Sem dúvida, a destruição dos estereótipos, resultante da crônica, é necessária  porque representa um avanço concreto em direção aos anseios básicos da humanidade, fazendo-o por meio de uma intensificação lúdica. Caso modelar desta labuta, é a maneira sutil com que, através da palavra “discretamente”, o cronista clarifica, no segundo parágrafo[6], a personalidade de Collor e, por conseguinte, dá pistas da tragédia vindoura.

No Brasil, levando-se em consideração a nossa especificidade política, depois do golpe militar de 1964, com o seu desdobramento em 1968, e com a situação degradante vivida pelas investigações sobre o governo Collor que culminaram no processo de impeachment, só podemos destacar a importância de autores que, como Veríssimo, estão dedicados ao desvelamento crítico da realidade, sem estarem, entretanto, acorrentados à posição de  homens cultos, letrados. 

Como indica a própria origem da palavra crônica e sua intima ligação com a noção temporal, este tipo de narrativa é uma tentativa de estudo, direta ou indireta, da sociedade e da humanidade, a qual submetida a um longo processo de desumanização tornou-se incapaz de ver além dos fatos.  O papel do cronista encaixa-se, exatamente, nesta lacuna. É ele quem através de observações minuciosas (o olhar minucioso é característica da crônica) sobre o mundo consegue burlar o imediatismo ralo oferecido pelas informações dos meios de comunicação.

 Os significados da crônica não estão diretamente no narrativo, mas permanecem no burilar deste. Ao vermos personagens acuadas, como Sarney, notamos a condição desarmada que o mundo pós-moderno imprimiu à igreja, à escola e, principalmente, à política (SARLO, 1997, p. 102). Quando a personagem presidente revela a inutilidade de todo e qualquer artifício, inclusive fantástico, frente ao nome que traduz (mesmo hoje, após sua morte) o poder da mídia no Brasil: Roberto Marinho, temos a certeza de que “onde quer que cheguem os meios de comunicação, não passam incólumes as crenças, os saberes, as lealdades” (SARLO, 1997, p. 102) 

Um fato importante é que, dentro de produções como a crônica, os meios de comunicação acabam sendo palco de uma luta contraditória. Sendo parte, originalmente, integrante do jornal, a crônica divide o mesmo espaço, muitas vezes, com aquilo que repugna, fator que lhe ajuda a ganhar significado pelo contraste estilístico e mesmo de tom, que possui em relação às demais matérias presentes nos jornais[7]. A crônica, acaba por desligar-se, portanto, de dois âmbitos: distancia-se das notícias jornalísticas e, também, do tom enfático da ficção. Com graça ela articula fato miúdo e literatura, sem ser enfaticamente literária ou  enfaticamente realista. Uma produção que duela com o passageiro, na medida em que o que importa não é o fato em si, mas a sua essência.

Em O quase, podemos, ainda, observar as barreiras entre o público e o privado sendo quebradas e com elas os valores revertidos. A magia evocada pela mídia dá espaço a um cenário em que se vêem misturados interesses pessoais e públicos e onde os primeiros de longe superam os segundos. Ao lançar mão deste recurso a crônica, novamente, envereda pelo dentro e fora da cultura de massa, critica, exatamente, a alteridade e a diferença cultuadas pela mídia, revertendo, assim, posições consagradas no mundo contemporâneo. A ironia da apresentação, já citada, de Collor demarca este aspecto.

Aqui, o homem isolado divide espaço com a ânsia da fama. Ele não é a vítima anônima, mas é o próprio gerenciador do mundo absurdo sobre o qual pensa, em momento de solidão.Toda a crônica de Veríssimo remonta a uma época em que os recursos da mídia “...triunfam, dotados de uma velocidade espantadora e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 2001, p. 58). Trata-se de um instante em que a função da literatura é “a comunicação do que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando, mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da escrita” (CALVINO, 2001, p. 58)

Na crônica em estudo, os sentimentos, como é comum na contemporaneidade, ficam soterrados e cedem espaço às aparências: “... Este aqui é para avisar a Marly que tive um dia terrível e que é para ela preparar a minha tinta de bigode” (VERÍSSIMO, 1992, p. 51).

 Da mesma forma, as atitudes não são frutos de vontades próprias, parecendo serem resultados de imposições de um sistema. É por este motivo que temos Sarney lamentando-se de seus ministros, mas não os “desintegrando” e sim os mantendo, aparentemente sem motivos, em seus cargos. Também, a mecanização das ações, implantada pós Segunda Guerra Mundial, impõe ações impulsivas. A razão cede espaço às atitudes sem reflexão (Collor aperta o botão vermelho em um momento de angústia, impelido por um impulso).

É preciso lembrar que a crônica de Veríssimo, bem como toda literatura contemporânea, traz em si a destruição da idealização romântica de um paraíso terrenal. Ela é, acima de tudo, a representação da visão pessimista da atualidade, um tempo no qual “Nem o botão vermelho está funcionando” (VERÍSSIMO, 1992, p. 51).

Longe de ser adepta da visão determinista do naturalismo, a crônica O quase se vê marcada pelo espectro da dissolução, se vê impregnada da idéia de que somente  o apocalipse do mundo lhe dará soluções. Opostamente às produções literárias de outrora, as quais logo ao final da ditadura enxergavam uma luz no final do túnel, a literatura, pós  anos oitenta, tem se esmerado em sarcasticamente rir do buraco negro em que a humanidade e, correlatamente, o Brasil estão mergulhados. Bem aos moldes do que já faziam os modernistas, vê-se, então, textualizações aguçadas como esta :

Ele aperta o botão vermelho. Nada acontece. Collor lembra a frase de Sarney sobre o momento certo: ‘Quando quase nada mais no país estiver funcionando...’Descobre que deixou passar o momento certo. No governo Sarney faltava o quase. Agora não falta mais. (VERÍSSIMO, 1992, p. 51)

No veio desta literatura corre a decepção com um discurso, a exemplo dos comportamentos, heterodirigido. Todavia, como todas as revoluções sociais primeiramente foram revoluções artísticas, crônicas, como O quase, estão aí para provar que na arte do exagero (o humor da crônica dele resulta) todo o escrito é politicamente comprometido, afinal como disse Luis Fernando Veríssimo: “A própria opção de não ser político é um ato político” (VERÍSSIMO, 1984, p. 8).

Traduz-se, nesta construção literária,  a tentativa, talvez utópica, de reconstituir um Brasil, já que o império dos meios de comunicação tem difundido imagens de  um país irreal, que não podemos ver no cotidiano: “Brasil quem te viu, quem TV” (ALVES, 1992, p. 111).

Trata-se de uma tentativa de, num ritmo nervoso e ágil[8], lograr uma aproximação mais estreita com a história, visando a quebra da reificação e, por conseguinte, como diria Antonio Candido, aludindo a construção de uma identidade que desde suas origens a pátria brasileira  almeja firmar (CANDIDO, 1980).

Enfim, a título conclusivo compete ressaltar que, como dissemos no início deste escrito, a crônica de Veríssimo verifica o encontro de três histórias. Tendo como base a história nacional, ela reflete a história universal e o faz na mesma medida em que contribui para o desenrolar da história estética, literária comprometida com a realidade, mas, especialmente, compromissada com a construção bem elaborada da literatura.

Cabem, ao final, para reafirmar a importância da crônica crítico-criativa, as brilhantes palavras, de Nicolau Sevcenko, a propósito da ligação entre história e literatura:

Todo o discurso criativo assinala um ato fundador, na medida em que nomeia situações e elementos imprevistos, conferindo-lhes existência e lançando-lhes na luta por um espaço e por uma posição (...). Produzir literatura criativa é por isso um gesto de inconformismo. Há, por essa razão, tensões tão fortes entre as diferentes ordens de textos (...). É desse manancial que a literatura se nutre, aí sorvendo toda a sua significação (...) . Foi meditando sobre este processo sutil que um  grande poeta contemporâneo compreendeu e anunciou que: ‘Aquele que souber articular as palavras e citar os sentimentos terá todo o poder’[9]. O autor se refere ao poder simbólico, evidentemente. Mas haverá outra forma de poder mais legítima aos olhos dos homens? (SEVCENKO, 1989, p. 247-248)

 

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[1] Grifo nosso.

[2] A própria conversa entre Sarney e Collor possui esta tonalidade.

[3] Desta disposição o botão vermelho, que se apertado transformaria a crise governamental brasileira, é o exemplo maior. É interessante comentar que o uso do fantástico em O quase é congruente às afirmações de Ítalo Calvino sobre a presença desta modulagem literária, na contemporaneidade. Para ele é possível conceituar a pós-modernidade “como a tendência de usar de modo irônico o imaginário dos meios de comunicação, ou antes como a tendência de introduzir o gosto do maravilhoso, herdado da tradição literária, em mecanismos narrativos que lhe acentuem o poder de estranhamento” (CALVINO, 2001, p.111).

[4] Aqui a palavra tem seu sentido aristotélico

[5] Aqui a palavra política é posta em sua significação mais ampla e, também,  mais eficaz. Ela é tomada como tradução das mais diferenciadas e contundentes formas de luta, em prol dos lemas propagados pela revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

[6] O segundo parágrafo constituiu a primeira citação que fizemos do texto O quase.

[7] Basta lembrar que,  no ano de 1992, os jornais tratavam cotidianamente do caso Collor e que a crônica que aludimos foi primeiramente reproduzida em meio jornalístico.

[8] Toda a crônica alvo é marcada por este ritmo acelerado que envolve tanto as personagens como os acontecimentos.

[9] Nicolau Sevcenko está fazendo referência à fala de Hans Vergérus.

 

Referências Bibliográficas

ALVES, Júlia Falivene. Invasão cultural norte-americana. São Paulo: Moderna,1992.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o novo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,2001.

CÂNDIDO, Antonio. Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1980.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Dp&A, 1999.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Humor nos tempos de Collor. Porto Alegre: L&PM, 1992. 

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Um escritor na biblioteca. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, 1984.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 24 agosto, 2005.