Sobre
um suposto direito de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e
Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos
Resumo
Os
Filósofos, Immanuel Kant, Benjamim Constant e Arthur Schopenhauer,
divergem quando se trata de um suposto direito de mentir. Cada um
defende uma maneira através da qual os indivíduos praticariam ações
moralmente boas; Kant acredita que os indivíduos não têm
direito de mentir, Constant, defende que devemos dizer a verdade
quando o ouvinte tiver direito a ela, e Schopenhauer, acredita que
temos o direito de mentir em determinadas condições. Neste texto
encontra-se uma breve análise das concepções de boa conduta de
cada autor, com relação ao direito que um indivíduo tem, ou não,
de mentir em algumas situações ou em nenhuma.
Palavras-chave:
Filosofia, Immanuel Kant, Benjamim Constant e Arthur Schopenhauer |
Um
suposto direito de mentir
É
comum nos depararmos com questões éticas do tipo: "Devemos praticar
determinadas ações?" ou "Devemos proferir determinada sentença?".
Em muitos casos a linha que divide as ações em "moralmente
boas" e "moralmente ruins"
é invisível. Um médico, por exemplo, deve contar ao seu paciente
que este provavelmente só tem seis meses de vida, no caso de encontrar um
câncer em fase terminal, sendo que, no caso da opção por um tratamento,
o mesmo só adiaria a sua morte e transformaria seus dias em um profundo
martírio? Ou deve acalmá-lo e deixar que viva tranqüilo e com dignidade
os dias que lhe restam? No caso do paciente questionar sobre sua própria
saúde, o médico deve proferir exatamente aquilo a que se refere à questão,
ou deve discursar de forma a explicitar todo o problema. Um médico pode
omitir? Pode mentir? Desde que a omissão ou mentira seja para o bem do
paciente... talvez. E nós, pessoas comuns?
Podemos mentir? Podemos negar que tenhamos visto a mulher do nosso melhor
amigo com outro, no caso de termos visto? Temos o dever de contar ao
marido traído espontaneamente, ou apenas quando questionados a respeito
do assunto? Algumas vezes esse assunto pode parecer insignificante, uma
mentirinha aqui, uma distorção da verdade acolá, ou até algumas
mentiras maiores, das quais nos perdoamos, pois tínhamos um
"bom" motivo para proferi-las... coisas sem importância, que,
na nossa opinião, não refletirão sobre a vida das pessoas. Banalidades,
quando consideradas em proporções maiores, como nos exemplos
supracitados, podem causar danos irreparáveis... Podemos mentir? Em quais
situações?
Os
Filósofos Immanuel Kant, Benjamim Constant e Arthur Schopenhauer
defendem, cada um, uma opinião diferente sobre este assunto: Um suposto
direito de mentir. As argumentações de cada um deles são baseadas na
concepção que cada um deles têm da natureza do direito, isto é, a
questão que se discute é se o indivíduo tem ou não o direito de
mentir.
Questão
de grande importância para a ética, o problema da mentira nos leva a
indagar a respeito dos conceitos de dever, direito e justiça. Destacamos
esta questão para estudarmos não apenas as posições dos autores
mencionados acima sobre a questão da mentira, mas também, para o
esclarecimento dos conceitos de direito e justiça nas concepções
kantiana e schopenhaueriana, esclarecimentos, que têm grande importância
para a Filosofia Moderna, pois, se referem, em grande parte, ao pensamento
iluminista que tinha como ponto central a difusão da razão, isto é, a
confiança na capacidade da razão humana de explicar racionalmente os fenômenos
naturais, sociais e a crença religiosa.
Para
Kant, um indivíduo não deve mentir em hipótese alguma, pois a mentira
pode induzir o ouvinte a praticar determinada ação que não corresponde
à sua vontade e sim à vontade daquele que proferiu a sentença não
verdadeira, privando o ouvinte de fazer uso da sua total liberdade de ação,
isto é, violando o conceito de direito como um todo e violando o direito
do ouvinte de saber a verdade. Sobre direito, podemos dizer que, é a
limitação da liberdade de cada um, para que haja harmonia no convívio
entre todos, isto é, é a restrição de algumas ações para que os
indivíduos possam exercer suas liberdades mutuamente.
O
horror à mentira em Kant é derivado do imperativo categórico "Age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal".
Ao mentir um indivíduo prejudica não somente àquele que o ouve, mas a
idéia de direito, pois age de
forma que a máxima de sua ação não pode ser tomada como lei universal
e apenas como um dos meios para se alcançar um fim particular, usando o
ouvinte também como meio para determinado fim e não como fim em si
mesmo; pois para Kant todo ser racional existe como um fim em si mesmo e não
deve ser tratado como meio; isso faria com que os indivíduos não
tivessem valor absoluto, isto é, valor por si mesmos, e se todo valor
fosse adquirido conforme os interesses alheios, não poderia haver um
princípio prático supremo para toda razão.
(...)
em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas
que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm somente
um valor condicional, pois, se não existissem as inclinações e as
necessidades que nela se baseiam, o seu objeto seria sem valor.
(KANT)
Em
1797, Benjamim Constant escreve um artigo contestando sobre o direito de
mentir e/ou o dever de se dizer à verdade. Dado o exemplo: Um assassino
bate à sua porta com a intenção de matar seu amigo que está em sua
casa. Você deve dizer a verdade quando o assassino perguntar sobre o
paradeiro do seu amigo, ou deve mentir e dizer que o amigo não se
encontra no local? Para Constant, junto ao conceito de dever está o
conceito de direito e onde não
há direitos, também não pode haver deveres, isto é, se o assassino tem
a intenção de infringir a lei e matar seu amigo, tirando-lhe a
liberdade, você não tem o dever de dizer a verdade porque o assassino não
tem o direito a ela.
Onde
nenhum direito existe também não há deveres. Por conseguinte, dizer a
verdade é um dever, mas apenas em relação àquele que tem direito à
verdade. Nenhum homem, porém, tem o direito a uma verdade que prejudica
outro.
(CONSTANT)
Para
Kant, o primeiro erro fundamental de Benjamim Constant está em atribuir
ao indivíduo um suposto direito à verdade, pois a verdade é uma questão
lógica e objetiva e não psicológica e subjetiva, isto é, a verdade não
é algo subjetivo que pode pertencer ou não a determinado indivíduo, ela
é por si própria. Verdade, para Kant, é quando o conhecimento é
adequado ao seu objeto. O que temos direito é de proferir asserções que
não correspondem à verdade de fato. O que um indivíduo tem direito é
sua própria veracidade, isto é, a verdade subjetiva, pois objetivamente
a verdade não depende da vontade
do indivíduo para ser.
Kant
subdivide o exemplo em duas questões: primeiro, se o dono da casa, no
caso de não poder deixar de responder com uma afirmação ou uma negação,
tem o direito de dizer uma não verdade ou não; segundo: se ele não é
obrigado a dizer uma não-verdade para proteger o amigo e prevenir um
crime que ameaça a si e ao amigo.
Quanto
à primeira questão, Kant afirma que não podemos evitar dizer a verdade
em relação a qualquer pessoa, mesmo que esta verdade provoque
desvantagem para nós ou para outro. E se proferimos alguma inverdade,
mesmo com a intenção de poupar a vida do outro, cometemos, desta forma,
injustiça para com o indivíduo que nos pressiona a proferir uma declaração.
E no caso de não ser uma injustiça com aquele que nos pressiona,
cometemos, através da mentira, que é uma declaração intencionalmente não
verdadeira, uma injustiça para com o próprio direito (dos juristas),
isto é, deixamos de fazer a nossa parte para que as declarações tenham
crédito e para que os contratos sejam válidos, o que é uma injustiça
para com a humanidade. O indivíduo que mente, trata as pessoas como
meios, e o conceito de humanidade, por si mesmo, diz que somos um conjunto
de seres racionais e devemos ser tratados como fim. O mentiroso atenta
contra o conceito de humanidade; podemos elucidar melhor com as próprias
palavras de Kant:
Por
conseguinte a mentira define-se como uma declaração intencionalmente não
verdadeira feita a outro homem e não é preciso acrescentar que ela deve
prejudicar a outrem, como exigem os juristas para sua definição - A
mentira é a declaração falsa em prejuízo de outrem. Com efeito, ela
sempre prejudica outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas sim a
humanidade em geral, ao utilizar a fonte do direito.
(KANT)
Com
relação à segunda questão, Kant argumenta dizendo que mesmo uma
mentira "bem intencionada" não deve ser proferida, pois no caso
do dono da casa negar a presença do amigo, convencer o assassino a se
retirar e amigo ter saído pela porta dos fundos, o dono da casa será
responsável se o assassino encontrar o amigo na rua, pois se ele tivesse
dito a verdade, o assassino entraria na casa em busca do amigo, enquanto
este teria mais tempo para ir embora ou se refugiar em outro lugar. Quem
mente, mesmo com boa intenção, é sempre responsável pelos fatos que
decorrem depois.
Para
Kant a verdade é um dever que tem de ser considerado como base de todos
os outros deveres.
Se há um dever ele é incondicionado, pois senão não seria um dever.
Dever é uma necessidade da ação, que deve ser válida para todos os
homens, por meio da representação da lei. Age por dever aquele que
pratica ações sem nenhuma motivação egoísta.
Benjamim
Constant argumenta da seguinte maneira: quando um princípio verdadeiro
parece inaplicável à sociedade (como no caso da posição de Kant) é
porque não vemos os princípios intermediários que se encontram nele
camuflados, isto é, Benjamim Constant diz que tais princípios podem
sofrer modificações. Por exemplo: o princípio "não deves
mentir" quando tentamos aplicá-lo na sociedade notamos seus princípios
intermediários e concluímos que em certas situações, como no caso do
assassino que bate à sua porta a procura do seu amigo, podemos fazer uso
da mentira, pois a mentira só se dá quando a falsa declaração
prejudica a alguém. Aqui entendemos por princípios intermediários,
lacunas, dentro de um princípio, que deixariam a possibilidade de, em
certas situações, o indivíduo agir em desacordo com o que indica o
princípio moral. Como no caso do assassino que bate à porta, o dono da
casa poderia mentir para salvar a amigo.
O
princípio moral – é um dever dizer a verdade –, se se tomasse
incondicionalmente e de um modo isolado, tornaria impossível qualquer
sociedade. Temos disso a prova nas conseqüências muito imediatas que
deste princípio tirou um filósofo alemão, o qual chega ao ponto de
afirmar que a mentira dita a um assassino que nos perguntasse se um amigo
nosso e por ele perseguido não se refugiou na nossa casa seria um crime.
(CONSTANT)
Kant
diz que todos os princípios devem conter uma verdade rigorosa, pois no
caso de conterem princípios intermediários, nós não saberíamos quais
seriam os parâmetros para delimitarmos em quais situações deveríamos
fazer uso dessas exceções que, supostamente, os princípios intermediários
proporcionariam. Independentemente de quais danos uma verdade causará, e
a quem causará, ela deve ser proferida em caso de necessidade, só assim
o dano ocorrerá ao acaso e não por responsabilidade do indivíduo
mentiroso, isto é, não com base nos parâmetros subjetivos que o indivíduo
considerou para proferir a sentença mentirosa.
O
que aqui se deve apenas compreender não é o perigo de causar dano, mas
em geral o de cometer injustiça: o que aconteceria se eu subordinasse o
dever da veracidade, que é totalmente incondicionado e constitui nas
declarações a suprema condição do direito, a um dever condicionado e
ainda a outras considerações;(...)
(Kant)
Schopenhauer
Em
Schopenhauer não podemos tratar da mentira sem passar pelos conceitos de
justiça e injustiça e, conseqüentemente, sobre o conceito de dever,
conceitos estes que se encontram explicitados mais adiante.
Para
Schopenhauer, injusto é aquele indivíduo que provoca dano a outrem,
tanto com relação à sua liberdade, quanto à sua pessoa, ou com relação
à sua propriedade, ou à sua honra. A omissão diante de uma ação que
somos obrigados a praticar é uma injustiça, isto é, cada dever que
deixa de ser cumprido é uma injustiça, e toda injustiça é uma agressão,
podendo esta, ser física ou verbal, ou seja, o dever está nos casos nos
quais, se deixarmos de praticar uma determinada ação, provocaremos danos
a outrem, o que só ocorre nos casos em que a pessoa que deixou de
praticar determinada ação estivesse obrigada a fazê-lo. Por isso, o
conceito de dever repousa sobre o conceito de dívida.
Podemos
praticar uma injustiça fazendo uso de dois instrumentos: a força e a astúcia.
Podemos, através da força, obrigar alguém a fazer qualquer coisa, mas
também podemos obrigá-lo através da astúcia, isto é, fazendo uso da
mentira; apresentando ao intelecto alheio elementos falsos que seriam
motivos agindo sobre o caráter do indivíduo, e que o obrigariam a
praticar algo que ele não faria caso não tivesse acesso a tais informações.
Quando
mentimos temos um motivo para fazê-lo, mas este motivo, na grande maioria
dos casos, é um motivo injusto, pois se mentimos é porque não podemos
usar de outro artifício para fazer com que o outro aja de acordo com
nossa vontade.
Para
Schopenhauer há certas situações, nas quais, podemos fazer uso da
mentira sem injustiça. Estes são os casos nos quais usaríamos a força
para nos defendermos de uma agressão, isto é, podemos fazer uso da astúcia
quando precisarmos da força para nos defender, mas não pudermos contar
com ela, ou seja, quando não formos fisicamente fortes o suficiente para
nos defendermos da agressão física.
O
Filósofo deixa claro que no exemplo citado na primeira parte deste texto,
não seria injusto mentir sobre o paradeiro do amigo procurado pelo
assassino, pois aquele que promete algo sob coação, através da força,
ou acreditando em falsas premissas, não é obrigado a cumprir a promessa;
e, no caso exemplificado, o dono da casa está sendo coagido pelo
assassino.
Schopenhauer
afirma que temos o direito de mentir para nos livrarmos de assaltantes e
violentos de qualquer espécie, para defendermos nossa própria vida,
nossa liberdade, nossos bens ou nossa honra.
A
argumentação Schopenhaueriana, a favor do uso da mentira em determinados
casos, vai mais além. Schopenhauer diz que podemos mentir em qualquer
situação, na qual, uma pergunta seja intromissiva , indevida,
indiscreta, ou se refira a algo que não nos convém dizer. E quando a
manifestação de não querer responder a determinada pergunta puder vir a
causar suspeita, também podemos mentir para preservar nossa intimidade
contra a curiosidade alheia.
"Pois
como tenho o direito de previamente contrapor, quando há perigo de dano,
à vontade malvada de outrem e, pois, à violência física presumida uma
resistência física e, portanto, de guarnecer o muro de meu jardim com
pontas aguçadas e de soltar cães bravos no meu quintal e, mesmo, sob
certas circunstâncias, de pôr armadilhas e armas que disparam sozinhas,
cujas más conseqüências o invasor tem de atribuir a si próprio, também
tenho o direito de manter de todo modo em segredo aquilo cujo conhecimento
me poria a nu diante da agressão do outro e também tenho causa para
isto, porque admito aqui como facilmente possível a vontade má do outro
e tenho de encontrar antes as providências contrárias."
(SCHOPENHAUER)
Podemos
portanto, ao nos deparar com a possibilidade de sofrer danos por meio de
astúcias, apresentar uma astúcia prévia como defesa para não
precisarmos dar satisfações às pessoas curiosas e indiscretas, e nem
indicarmos o ponto no qual se encontra algo perigoso a nosso respeito,
dizendo que algo é segredo, e dando a possibilidade de uma maior
intromissão, das coisas que nos dizem respeito, ao indivíduo curioso. No
caso de isto ocorrer, de usarmos uma mentira como "defesa", o
risco da nossa declaração levar alguém ao engano, é de total
responsabilidade dele mesmo, pois, este não nos deixa nenhuma alternativa
para nos proteger da sua curiosidade.
O
Filósofo afirma que existem casos em que é nosso dever mentir; os
exemplos Schopenhauerianos são os casos da medicina, isto é, do médico
para com o paciente e outras inverdades nobres como no caso em que um
indivíduo quer que seja atribuída a si a culpa que é de outro. Um bom
exemplo é o que Schopenhauer cita do Novo Testamento em João (7, 8), no
qual Jesus disse aos seus discípulos que subissem sós até a festa dos
Judeus que queriam matá-lo, porque ele não iria. E depois que os discípulos
todos estavam lá, Jesus subiu sozinho e passou desapercebido em meio ao
povo até chegar em um lugar privilegiado para, então, de lá, falar
sobre suas boas intenções e convencer os Judeus a não aniquilarem sua
vida.
Mas
Schopenhauer atenta para o limite que devemos respeitar para não
tornarmos a mentira um instrumento perigoso e abusivo. A possibilidade de
fazermos uso da mentira está nos casos nobres e de autodefesa e apenas
nestes. "Mas como, apesar da
paz no país, a lei permite a todos levar armas e usá-las, a saber, no
caso da autodefesa, assim a moral consente, para o mesmo caso, e só para
este, o uso da mentira."
(SCHOPENHAUER).
O
conceito de direito
Para
delimitar mormente o conceito de direito precisamos primeiramente citar o
conceito de injustiça: a injustiça se dá devido ao caráter da atuação
de um indivíduo, atuação esta, na qual o indivíduo estende a afirmação
da vontade que se manifesta na sua pessoa, até o ponto de negar a vontade
manifesta em outra pessoa.
Na
filosofia shopenhaueriana, os limites de onde começa e onde termina a
injustiça são especificados através de exemplos gerais. O conceito de
injustiça é primordial e positivo, enquanto o conceito de direito será
derivado e negativo, isto é, o direito é a mera negação da injustiça,
encontramos o direito em toda ação na qual não há a negação da
vontade alheia com intenção de afirmação da própria vontade. Tanto o
justo como o injusto são determinações éticas que são válidas para a
consideração da ação enquanto tal.
Esta
definição de direito é baseada em uma interpretação puramente ética
que impõe limites entre as ações justas e injustas. Enquanto uma ação
não invade a esfera da afirmação da vontade alheia, negando-a, é
considerada justa, isto é, aquele que apenas afirma sua vontade sem negar
a vontade de outrem, age de acordo com o direito e, portanto, sem cometer
injustiça.
A
injustiça
Com
relação à injustiça devemos nos ater ao conceito de vontade de viver,
que consiste na afirmação do próprio corpo, isto é, a vontade se
manifesta no tempo através das ações dos indivíduos, o que supõe uma
expressão da vontade no espaço, pois as ações são concretizadas pelo
indivíduo que possui um corpo e que, conseqüentemente ocupa um lugar no
espaço. A afirmação da vontade de viver está, em princípio, na
manutenção do corpo e no uso das suas forças. Num segundo momento, a
afirmação da vida vai além da simples manutenção do corpo e passa a
buscar a satisfação do impulso sexual, ato que representa a afirmação
da vontade de viver em um indivíduo, sem que ocorra a negação da
vontade de viver que se manifesta em outro, isto é, a injustiça. A renúncia
espontânea que há no ato sexual e a satisfação desse impulso sexual
supõem uma certa negação da vontade de viver, mas não vamos nos ater a
este ponto.
Considerando
que a vontade representa a auto-afirmação do próprio corpo em muitas
pessoas ao mesmo tempo, pessoas estas, nas quais, impera o egoísmo como
motivação para as ações, em muitos casos a vontade de um indivíduo
ignora a afirmação da vontade em outro, chegando à negação da
vontade, isto é, a mesma vontade que se manifesta em um indivíduo é
negada em outro; nestes casos a vontade de um determinado indivíduo
“a” infringe o limite da
área de atuação da vontade de um indivíduo “b”, lesando-o. Em
alguns casos esse indivíduo “b” pode constrangido de tal forma que
seja fortemente induzido a usar suas forças a serviço de sua vontade
retirando-as da vontade que se manifesta em um corpo estranho (“a”) ,
forças estas, que
ultrapassam seu próprio corpo em função da vontade manifesta em seu próprio
corpo, afirmando sua vontade por cima de si mesmo através do sentimento
de remorso provocado no outro a partir da ação que este outro cometeu
que é a negação da vontade manifesta no indivíduo “a”, isto é,
aquele que sofre a injustiça sente-se invadido na esfera da afirmação
de seu próprio corpo, mas sentindo uma dor de caráter espiritual e não
físico, enquanto o indivíduo que pratica a injustiça sente-se mal por
ter invadido a esfera de afirmação do indivíduo que sofreu a injustiça
e por ter satisfeito seu egoísmo, no primeiro caso há a injustiça e no
segundo a negação da vontade alheia pelo sentimento de remorso. Neste
caso dizemos que há a negação da vontade do indivíduo que praticou a
injustiça por causa deste sentimento causado pela manifestação da
manifestação da vontade, isto é, pelo indivíduo que sofreu a injustiça,
com tal intensidade que ultrapassa os limites e as forças do próprio
corpo (dele mesmo) chegando até a negação da vontade numa outra
manifestação. Em outras palavras, considerando a justiça como determinação
ética que se aplica à ação, o significado ético da ação do indivíduo
“a” atinge sua consciência fazendo com que ele se sinta aflito por
ter cometido a ação injusta.
A
injustiça materializada pela violência não resulta, para quem a comete,
tão grande desonra como a realizada conforme a astúcia, uma vez que,
enquanto a violência é evidente pela força física, a mentira causa
desonra em quem a comete em função da fraqueza da evasão.
A
mentira
A
noção de mentira é constituída quando um indivíduo tem a intenção
de estender o domínio da sua própria vontade sobre os indivíduos
alheios, negando a vontade deste para melhor afirmar a sua. A mentira,
enquanto tal, parte da injustiça para chegar até a maldade através da
malevolência.
Encontramos
a mentira , muitas vezes, quando impera a astúcia, que faz com que haja
uma causalidade baseada em um conhecimento, isto é, crio motivos falsos
em um indivíduo para que ele aja de acordo com a minha vontade,
imaginando fazer o que ele quer. Para ter um motivo precisamos ter um
conhecimento, e a mentira se dá quando oferecemos um conhecimento falso a
um indivíduo que provavelmente fará uso de nossa informação para
direcionar sua ação, ou seja, a mentira tende influir sobre o
conhecimento alheio não somente com intenção de fornecer uma informação
errada, mas também, de forma a determinar a vontade e a ação do indivíduo,
isto é, tenho a intenção de induzir a vontade manifesta em outro a agir
segundo os fins de meu interesse. Segundo Schopenhauer, não há como
mentirmos para nós mesmos pois, uma vez que somos providos de vontade, e
a mentira atua enganando a vontade, só podemos dirigir uma mentira a
outro que não nós mesmos, pois só podemos interferir no conhecimento
alheio e não no nosso próprio conhecimento, pois para mim, a mentira não
constitui um motivo, isto é, não tem influência sobre mim, nem pode
mover minha vontade. Vejamos, se temos a intenção de fazer algo,
fazemos, isto é, porque iríamos querer fazer com que a nossa própria
vontade agisse baseada em informações falsas proporcionadas por nos para
atingir fins que são do nosso próprio interesse? Em outras palavras, não
precisamos enganar a nós mesmos, ou, não podemos, isto é, isto não
constitui um motivo para meus fins, a mentira só pode atuar sobre o
querer e o faze alheios; isto é válido para toda mentira que tenha sua
origem num interesse egoísta e para aquelas derivadas de pura maldade que
são consumadas por aqueles indivíduos que se deleitam com as dolorosas
conseqüências da dor alheia propiciada pela mentira; também se inclui
nestes casos aquelas mentiras através das quais o indivíduo tem a intenção
de engrandecer a si mesmo com a estima e o respeito dos outros contando
vantagens, mentira esta que o indivíduo que a pratica não deixa de
querer atuar sobre o conhecimento e prováveis atitudes alheias. Assim,
pois toda mentira supõe uma influência sobre a vontade alheia mediada
pelo conhecimento alheio e sempre tem o propósito de induzir a vontade
alheia a agir segundo nossos próprios fins e não segundo sua própria
vontade.
Negar-se
a expressar uma verdade, a declarar algo, não representa em si injustiça
alguma: quem se recusa a mostrar o induto correto ao viajante perdido, não
comete nenhuma injustiça para com ele; mas sim aquele que indica o
caminho errado. Disso se deriva que toda mentira supõe tanta injustiça
como qualquer ao de violência, as duas ações se diferenciam apenas pela
escolha dos meios, a mentira, assim como a violência, tem o propósito de
estender o domínio de nossa vontade ao atuar do indivíduo estranho,
afirmando minha vontade mediante a negação da dele. Nota-se que a
veracidade, a sinceridade e a franqueza sejam reconhecidas e estimadas de
imediato como nobres qualidades psíquicas, pois quem as possui, não se
interessa em praticar injustiça, nem possui desejos maldosos.
A mentira mais
comum é o “quebramento de contrato“, nestes casos são mais evidentes
todas as determinações da mentira que foram citadas anteriormente: ao
realizar um contrato, a promessa alheia de cumprir algo com relação a nós
infere imediatamente que devemos cumprir com nossa parte do compromisso. O
compromisso de cumprir com o estipulado pelo contrato é de cada uma das
partes contratantes que assumem o contrato. Quando um dos indivíduos
quebra o contrato não executando o prometido, engana o outro contratante
e manipula a vontade deste conforme sua vontade; por meio de uma mentira
bem planejada, estende-se o domínio da vontade de um determinado indivíduo
“a” sobre o outro determinado
indivíduo “b”, neste caso se dá a injustiça. A legitimidade ética
e a validez dos contratos se fundam nestes exemplos: conforme vimos, toda
mentira supõe tanta injustiça como qualquer ato de violência; o
rompimento do contrato representa a expressão de uma perfeita mentira.
O
direito coercitivo
Algo
pode ser considerado um direito coercitivo quando se trata da negação de
uma injustiça, isto é, quando um determinado indivíduo “b” sofre
uma injustiça de “a”, tem o direto de praticar uma ação qualquer
que, considerada fora de contexto, seria uma injustiça também, neste
caso, a brutalidade desprendida dessa ação seria injusta se considerada
isoladamente, o que não ocorre nestes casos, pois o indivíduo lesado
pela primeira injustiça, tem sua ação justificada pela ocasião. Quando
um indivíduo vai tão longe na afirmação da sua vontade que invade a
esfera da afirmação de outro indivíduo, negando-a, o indivíduo lesado
tem o direito de negar esta negação, o que representa, no caso do indivíduo
lesado, a simples afirmação da sua vontade. Para Schopenhauer, isso
significa que temos o direito de negar uma negação de nossa vontade com
a força necessária para neutralizá-la, sendo que a intensidade desta
negação pode chegar até o extremo de levar à morte do indivíduo que
causou a primeira lesão, e mesmo nos casos de morte, enquanto a negação
da negação esteja sendo equivalente à primeira negação, a ação não
deve ser considerada injustiça, mas um direito, e, sendo um direito, não
se infiltra na esfera da afirmação da vontade alheia, pois é apenas a
negação da negação. Quando nossa vontade, tal como está manifesta em
nosso corpo e tal como se aplica para a manutenção do mesmo, se vê
negada por uma vontade alheia, então nos cabe coagir esta vontade
alheia para fazê-la desistir, negando-a, o que seria uma injustiça
apenas se não houvesse esta contextualização.
O
direito de mentir
Em
todos os casos que possuímos o direito coercitivo, ou seja, posso negar a
negação da minha vontade, usando a violência, também podemos fazer uso
da astúcia, caso a violência não seja suficiente. Nestes casos nos é
permitido pelas determinações éticas citadas no trecho que se refere à
justiça, desviar o objetivo da vontade manifesta no indivíduo alheio de
negar a minha vontade, apresentando ao seu conhecimento motivos ilusórios,
de tal maneira que poderíamos dedicar-lhe violência, se isso bastasse,
sem praticarmos injustiça alguma. A conclusão schopenhaueriana a
respeito deste tema é que temos o direito de mentir, assim como temos a
direito de praticar violência e coagir caso a esfera da nossa afirmação
da vontade de viver seja atingida.
Da
mesma forma, uma promessa arrancada pela, força, violência, coação ou
mentira, não é válida, dado que, se quem padece coação tem direito de
livrar-se de seus opressores chegando até a matá-los, pode também, com
muito maior utilidade, enganá-los através da astúcia. Quem não pode
recuperar sua propriedade roubada mediante violência, não pratica
injustiça alguma no caso de recuperá-las através da astúcia, novamente
o que muda é apenas a escolha do meio. A tese schopenhaueriana demonstra
que, tanto a astúcia como a força, representam originariamente uma
injustiça que se converte em direito quando há uma situação na qual um
indivíduo queira apenas afastar a injustiça alheia.
___________
Bibliografia
KANT.
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dos Costumes", Trad. Paulo Quintela, ed. Edições 70,
Lisboa-Portugal, 1986.
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"Sobre um suposto direito de
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"A paz perpétua e outros opúsculos", Trad. Artur Morão,
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SCHOPENHAUER,
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________
"Sobre o Fundamento da
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“Metafísica de las costumbres”, Trad. Roberto R.
Aramayo, ed. Trotta, 1.ª edição, Madrid, 2001.
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Aspectos da querela a respeito de um presumível direito de mentir" ,
inédito.