Os “Catadores do Lixo” na construção de uma
nova cultura: a de separar o lixo e da consciência ambiental
Resumo
Desde
a Segunda Guerra Mundial, a globalização, as novas tecnologias têm
criado riqueza para alguns, e o desemprego tem aumentado para
aqueles sem as habilidades necessárias para atender ao novo
mercado. Para sobreviver, os excluídos criaram novas
alternativas. Os “catadores do lixo” são um exemplo deste
novo fenômeno. A cidade de Uberlândia, centro de negócios e
importante referencial econômico do Estado de Minas Gerais,
reconhecida nacionalmente, tem muitas pessoas vivendo em situação
de exclusão. Algumas destas são “catadores do lixo”,
encontraram uma maneira de sobreviver, mas também de fazer
desenvolver uma atividade que forneça benefícios importantes à
sociedade: reciclagem de papel, papelão, plástico, vidro. Não
sendo lançados no solo, nem nos rios, colaboram à preservação
ambiental. Seria interessante pesquisar se estas pessoas são
conscientes de sua contribuição ao meio ambiente, e se seu
exemplo incentiva a sociedade a separar os materiais recicláveis
do lixo.
Palavras-chaves:
Catador de lixo, Materiais recicláveis,
Cooperados, Autonomia, Meio Ambiente
Abstract
Trash
catchers constructing a new culture: separating the trash and
ecological importance
Since
the Second World War, globalization and new technologies have
created wealth for a few, and increased unemployment for those
without the needed, specialized skills. To
survive, those left out have created new ways to earn a living.
Trash catchers are an example of this new phenomenon. In Uberlândia,
a nationally important and successful business center in the state
of Minas Gerais, there are also people living a marginal existence.
Some of these are trash catchers, who have found a way to survive,
but in doing have also developed an activity that provides
important benefits to society: recycling paper, cardboard, plastic,
glass and fiberglass. Because these items do not end up in
landfills and rivers, the ecology and society benefit. It would be
interesting to determine whether these people understand their
important contribution to the environment, and whether their
example will encourage the greater society to recycle more
materials.
Word-keys:
Trash catchers, Recycle material, Cooperated, Autonomy,
Environment
|
O
mundo mudou muito ao longo do século XX. A partir da Segunda Guerra
Mundial, desenvolveu-se um amplo processo de globalização das relações,
processos, estruturas de dominação e apropriação; antagonismo e
integração. Todas as esferas da vida social, coletiva e individual, de
certa forma, são alcançadas pelos problemas e dilemas de tal era.
O
desemprego é uma questão importante, pois é conseqüência histórico-social
de um modo de produção que é eficiente na geração de riqueza para uns
na medida que é eficiente na exploração do trabalho, precarização da
mão-de-obra e o empobrecimento da população.
Há ainda desobrigação crescente do Estado em competências, como
saúde e educação, marcas do neoliberalismo.
A
introdução de novas tecnologias nos processos produtivos em muitos países,
com objetivo de elevar os níveis de produção e a redução de custos,
é um elogio ao saber técnico e racional, peculiar à sociedade
capitalista. Estas por sua vez são apropriadas pelos detentores do meio
de produção, que as utilizam com o intuito de melhorar a qualidade de
seus produtos e reduzir seus custos para competir no mercado. Exigem, com
isso, a qualificação e escolaridade mínima. E, àqueles que não têm
acesso a essa especialização, resta a marginalização ou exclusão do
sistema, resultado do progresso econômico, não acessibilidade aos bens
de consumo e serviços. Soma-se a tal processo a insuficiência de
oportunidades que possibilite um movimento contrário a este cenário.
O
desemprego é um dos problemas mais sérios apresentado neste estudo,
assolando de forma trágica principalmente aqueles que possuem baixa
escolaridade, pouca ou nenhuma qualificação técnica: mulheres, negros,
idosos e deficientes físicos, uma vez que são os mais afetados neste
processo de restrição de oportunidades. A resposta encontrada por esses
atores, por não terem condições de competir por vagas no mercado
formal, é o subemprego, a ocupação precária do espaço urbano e o
‘inchaço’ da economia informal.
“Coletar
lixo” é uma alternativa encontrada por alguns desses excluídos. Como não
atingem a qualificação exigida pelo mercado, vêem nessa função uma
estratégia de sobrevivência. Ainda sendo uma forma de trabalho vista
como degradante pela sociedade, os “catadores de materiais recicláveis”
fizeram do lixo uma forma de obter a renda para o próprio sustento.
O
talento desses homens e mulheres para viver é inquestionável, mas ainda
assim encontram dificuldades e discriminação social. Podemos notar ao
caminhar nas ruas, o olhar da maior parte das pessoas em relação aos
“catadores do lixo”, algo que perpassa de sentimentos humanitários a
repulsa aos mesmos. A imagem do “catador do lixo” é provocadora por
expor de forma pública a pobreza. São os marginalizados, restritos às
encostas, circulando nos bairros comerciais e espaços centrais da cidade.
É esse o confronto travado, o desconforto causado por passantes. São
estereótipos e modelos retificados que impedem a superação e o
amadurecimento das relações cotidianas na cidade.
Entretanto,
apesar de estarem buscando uma forma de inserção no mundo social e do
trabalho, e serem discriminados, os “catadores do lixo” realizam uma
atividade muito importante para a sociedade e o meio ambiente.
Destacando
o sentido ecológico de tal atividade, a readequação dos materiais
selecionados, devido a sua natureza diversa, impedirá a contaminação do
solo, dos lençóis freáticos e nascentes de rios, pois alguns desses
materiais levam anos ou mesmo décadas para serem consumidos pela
natureza, oferecendo assim uma alternativa aos “lixões”.
Nesse
contexto, os “catadores do lixo” despontam como atores indispensáveis,
afinal eles são os responsáveis pela separação e triagem do material
que sai do lixo e que é vendido às indústrias de reciclagem. A partir
daí, transforma-se em matéria-prima para novos produtos, poupando os
recursos naturais. Reconhecer a diferença dos materiais que normalmente são
jogados indiscriminadamente no lixo (como plásticos, vidros, papéis...)
é imprescindível para a coleta racional e seletiva do lixo. Com essa
atitude, o gesto cotidiano de descartar o lixo seletivamente e entregá-lo
à reciclagem torna-se um fator importante na conservação do meio
ambiente. Sob essa forma de percepção todos são agentes modificadores
no processo de degradação ou conservação da natureza. Contudo a coleta
seletiva não é habitual entre a população, muitas vezes pelo
desconhecimento do processo e seus benefícios. Sendo assim, seria
interessante destacar o papel do “catador” como disseminador de uma
nova cultura e buscar analisar a sua própria consciência enquanto
importante agente ambiental do meio social e um possível trabalhador que
pode mudar a consciência de indivíduos alienados lutando pela autonomia
de ser.
A
pesquisa em Uberlândia
A
cidade de Uberlândia foi tomada por base para testes empíricos por ser
uma cidade de médio porte, com cerca de 539.162 habitantes urbanos (IBGE
2000), e ser um pólo de influência regional. Tem ótimas referências
universitárias, possuindo boa infra-estrutura comercial, o que resulta em
um grande fluxo de pessoas com possibilidades de trocas de experiências.
Conseqüentemente, Uberlândia desfruta de uma posição favorável no cenário
nacional e de Minas Gerais. Inserida nessa conjuntura, a população
uberlandense enfrenta problemas com a grande quantidade de lixo produzido
e a não disponibilidade de uma coleta seletiva de lixo satisfatória.
A
pesquisa foi executada no período de 15 de Agosto a 30 de Outubro de 2004
no centro da cidade e nos bairros: Brasil, Santa Luzia, Tibery, Santa Mônica,
Planalto, Daniel Fonseca e Jaraguá. Estes bairros foram escolhidos
por serem onde se concentra a classe média uberlandense, e que,
segundo o depoimento dos próprios “catadores”, é onde se encontra
maior número de lixo reciclável, como garrafas PET, caixinhas de leite,
frascos de iogurte e outros.
Os
“catadores” foram abordados aleatoriamente não importando o sexo ou a
idade, cooperados ou não. Previamente foram levantados os horários em
que ocorria maior incidência da presença dos “catadores” nas ruas
(no período da manhã, às segundas, quartas e sextas-feiras, dias em que
o caminhão do lixo faz coleta, razão pela qual há muitas “lixeiras
cheias” nas ruas) facilitando assim o encontro, a abordagem e a
entrevista.
A
amostra de entrevistados, 53 catadores, corresponde a 2% da população
destes em Uberlândia, que atualmente somam com aproximadamente 2.500
pessoas (Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Uberlândia – MG, 2004).
As
questões norteadoras para a abordagem desta problemática foram as
seguintes: Sendo a coleta de lixo pouco freqüente em Uberlândia, mas de
fundamental importância para a preservação ambiental, como a prática
dessa modalidade é compreendida pelo catador de lixo e por esta
sociedade? O Trabalho dos “catadores do lixo” então pode ser visto
como elemento disseminador de uma cultura (separar o lixo) ambientalista e
econômica que pode levá-los à autonomia, a partir de uma estratégia
que do ponto de vista do catador é, muitas vezes, apenas de sobrevivência?
Do
grupo de entrevistados, os
homens são maioria na coleta seletiva do lixo, representando 70% do
total, enquanto as mulheres são 30%. Entretanto, no
trabalho da coleta seletiva do lixo, as mulheres apresentam qualidades
diferenciadas em relação à atividade praticada pelo homem. “(...) As
mulheres são muito caprichosas, é possível aproveitar quase tudo o que
elas catam, por isso elas ganham mais do que os homens (...)”, diz o
presidente da Cooperativa dos Catadores do lixo de Uberlândia, Sr.
Francisco. Para o novo setor isso significa rentabilidade para que
continue funcionando a todo o vapor.
É
imprescindível que o material a ser reciclado esteja em boas condições
de reaproveitamento. Por exemplo, é preferível que o papelão esteja
seco e não muito rasgado, que as garrafas PET não estejam muito sujas e
nem danificadas, e que os objetos coletados estejam separados por
material. E isso, segundo o Sr. Francisco, as mulheres fazem com muito
rigor (CORU- Cooperativa de
Reciclagem de Uberlândia-MG, 2004).
Para
a indústria de reciclagem, esta especialização caracterizada no
trabalho da mulher - que tem muito a ver com o trabalho doméstico e a
sensibilidade de cuidar dos detalhes – tem sido uma nova forma de
extrair a mão-de-obra de pessoas que antes estavam confinadas ao espaço
privado dos lares e agora se encontram nas ruas buscando alternativas de
sobrevivência. Algo que, já de imediato, coloca-nos a pensar que apesar
destas mulheres estarem buscando alternativas de sobrevivência fora do
mercado formal de trabalho estabelecido pelo capitalismo, ainda seguem o
mesmo padrão de exploração sob o qual foram colocadas por este.
A
maior parte dos “catadores” (68%) tem idade superior a 30 anos,
concentrando-se na faixa etária adulta da vida. E o desemprego, conforme
45% destes, apresentou-se como o motivo maior por estarem na atividade. A
grande maioria dos entrevistados (91%)
possui dependentes de sua renda. E 60% obtêm renda média de um
salário mínimo, ao passo que os demais não ultrapassam os quatro salários
mínimos. As necessidades básicas ainda são o motivo principal que levou
estas pessoas para a “coleta do lixo” – 90% deles. Entre os
entrevistados, 56% são de Uberlândia, sendo os demais migrantes
provenientes de áreas rurais e das regiões Norte e Nordeste do país. O
grau de escolaridade deles é relativamente baixo - 25% são analfabetos,
37% cursaram até o ensino básico, 32% fizeram até o ensino fundamental,
6% até o ensino médio. Do público alvo da pesquisa, 69% vivem apenas da
coleta do lixo, enquanto 23% têm esta atividade como complementar de
renda.
De
acordo com os dados levantados, pode-se concluir que o motivo maior por
estarem na coleta seletiva do lixo é o de sobrevivência. Pessoas com
idade ativa, entretanto, com baixa escolaridade, sem chances de concorrer
por uma oportunidade no mercado local de trabalho, partiram para esta
atividade. O fator “migração” também denota que pessoas
provenientes de áreas rurais e de outras partes do país vieram para
Uberlândia em busca de oportunidades. Não encontrando trabalho formal,
debandaram para o mercado informal. As suas características não atendem
às necessidades desta cidade, que se baseia na indústria, no comércio e
no agrobusinesses, requerendo pessoas mais bem habilitadas a operarem as
novas tecnologias do mercado.
A
reciclagem de lixo, bem como a função dos “catadores”, é atividade
recente. Em Uberlândia, 42% dos catadores entrevistados exercem esta
atividade há menos de um ano, que é desenvolvida por uma questão de
necessidade econômica, colocada pela dificuldade destes indivíduos de se
inserirem no mercado de trabalho formal, assim como foi mencionado acima.
Quanto
à consciência ambiental, 32% dos entrevistados declararam que catam lixo
para sobreviver e também por que acreditam que isto preserva o meio
ambiente. Entretanto, nenhum deles declarou “catar” lixo somente para
preservar o ambiente. Do mesmo modo, 81% deles declaram separar o lixo de
suas próprias casas, o que ao menos demonstra que a própria atividade
serviu para estabelecer neles uma nova cultura: a de separar o lixo; 19%
disseram que não separam, enquanto 40% disseram estar conscientes da
importância de sua atividade ao meio ambiente. Enquanto isso, 28%
acreditam que não tem importância alguma. E 32% acreditam que contribui
um pouco. Por outro lado, 55% dos entrevistados sabem o destino do
material que coletam nas ruas e 45% não sabem o destino do lixo,
demonstrando que a maior parte deles, mesmo inconscientemente, sabe que
seu trabalho tem alguma utilidade para o meio ambiente.
A
respeito da modalidade do trabalho, 87% dos entrevistados declararam-se
autônomos, enquanto 9% têm vínculo com cooperativa. E 4% se dizem
empregados privados de alguma empresa que coleta lixo na cidade.
Apesar
da maior parte deles se declarar autônomo, os dados deste estudo
demonstram que ainda não há formas de
pensamento e auto-instituição desses indivíduos frente ao sistema.
De acordo com o que Castoriadis coloca em sua obra “Da Ecologia a
Autonomia”, uma nova sociedade só é possível quando há autonomia na
forma de pensar e de ser dos indivíduos. E conforme o que foi observado
nesta pesquisa, o “catador” têm aspirações e “necessidades” de
inclusão social nos esquemas tradicionais instituídos, reproduzindo a
ordem vigente, não agindo para que a sociedade mude no que diz respeito
à economia e autonomia frente à exploração que sofrem do sistema
capitalista. Buscam na coleta seletiva do lixo algo que não conseguiram
dentro da sociedade, uma vez que foram excluídos pelo sistema da mesma.
Para que pudessem ser vistos e tidos como autônomos na maneira de pensar
e ser, precisariam demonstrar formas de pensamentos que os direcionasse
contra o que está instituído, que proponha uma mudança nas estruturas
sociais.
Conclusões
gerais
O
sistema capitalista criou e continua criando significações imaginárias
sociais: a sociedade cria um conjunto de “necessidades”, desejos
individuais e padrões do modo de vida. Fazendo assim com que os indivíduos
fiquem presos aos padrões estabelecidos, e tudo o que façam, mesmo que
seja um meio alternativo de sobrevivência, fique adequado aos moldes, às
necessidades que fazem com que o sistema permaneça vivo, explorando e
aprisionando as pessoas.
A
atividade da coleta de lixo, mesmo sendo uma técnica alternativa de
trabalho que garante a sobrevivência de vários indivíduos fora dos
moldes tradicionais de trabalho (vínculo empregatício, relação patrão-empregado,
jornada de trabalho...) estabelecidos pela sociedade capitalista, só é
possível porque esta mesma sociedade produz o lixo e precisa que o mesmo
seja coletado. Cada sociedade cria sua técnica e seu tipo de saber, em
específico na sociedade capitalista há uma forma de expansão ilimitada
das forças produtivas da burguesia e do capital, o que resulta
inevitavelmente num consumo exacerbado da população, produzindo lixo e
necessitando de mecanismos que eliminem pelo menos parte deste lixo.
Os
“catadores do lixo” buscam outras formas de sobrevivência diferente
daquelas que estão postas pelo sistema técnico-produtivo, o que não
significa que estão sendo autônomos no seu processo de sobrevivência. Só
buscaram tal alternativa porque não conseguiram se incluir nos padrões
estabelecidos pelo sistema. E, quando saem às ruas para “catar” lixo,
não saem por uma nova consciência, com o desejo de mudança. Pelo o que
foi constatado nesta pesquisa, eles saem às ruas, trabalhando nesta
atividade, para, de certa forma, se manterem incluídos no sistema, para
adquirirem os bens de consumo postos por este.
Sendo
assim, é preciso muito mais do que práticas alternativas. São necessárias
mudanças de pensamento, de consciência, de cultura, mudanças sociais
para que possamos recriar nossos costumes e hábitos em prol da existência
da vida humana, fora deste sistema que faz escravizar as pessoas que nele
se incluem e marginalizar os que não se enquadram em seus padrões.
Quanto
ao meio ambiente, é óbvio que a atividade deles tem trazido benefícios
à natureza, e na atitude das pessoas quanto à cultura de separar o que
é reciclagem do que é rejeito. Pois, uma vez que eles mesmos já separam
o lixo de suas casas, percebe-se um grande avanço nesta sociedade,
quando, há pouco tempo atrás, quase ninguém se atentava ao que poderia
degradar o solo, a natureza. E, ao passo que estes “agentes” trabalham
nas ruas, acabam por estimular as pessoas a separarem os seus lixos. Com o
tempo, certamente teremos este hábito incutido no cotidiano das pessoas.