Teatro
e Prisão em fogo cruzado: quando a arte promove encontros e derruba
preconceitos
Resumo
O
presente artigo pretende analisar, a partir da exposição da
trajetória do projeto Teatro nas Prisões, realizado pela FUNAP e
pelo Núcleo Panóptico de Teatro, ao longo de quase sete anos,
promovendo o encontro de populações encarceradas, ou que foram
objeto do sistema penal, com a arte teatral, em processos que
romperam os limites da marginalidade e levaram, a um público mais
amplo, os resultados cênicos produzidos em ensaios que duraram até
mais que um ano.
Palavras-chaves:
Teatro; Prisão; Teatro-Educação
Abstract
This
article intends to analyze, from the exhibition of the history of
the project Theatre in Prison, developed by FUNAP and the Núcleo
Panóptico de Teatro, during almost seven years, which promotes
the encounter of prisoners, or ex-prisoners, with theatre, in
processes that broke the limits of marginality and brought, to a
major public, the rehearsal results.
Key-words:
Theatre; Prison, Theatre-Education |
Prólogo
Desde
março de 2004, um grupo de pessoas se reúne quase que diariamente para
iniciar sua jornada de trabalho, de aproximadamente quatro horas, e
seguiriam sua rotina de forma tranqüila não fossem algumas
peculiaridades: trata-se do Núcleo Panóptico de Teatro, grupo cuja
composição é formada por ex-presidiários, presos em regime semi-aberto
e atores profissionais, totalizando 20 pessoas. Em dezembro daquele ano, o
grupo realizou oito apresentações do espetáculo Muros
no Pavilhão 2 do desativado (mas ainda vivo na memória do sistema penal
paulista) Carandiru, e segue em temporada, com apresentações gratuitas
em diversos espaços da capital paulistana, durante o ano de 2005.
O
espetáculo, dirigido por Jorge Spínola, tomou como pontos de partida o
conto “O Muro”, de Jean-Paul
Sartre e cenas de O Balcão, de
Jean Genet, que se uniram ao trabalho de criação dos atores e do
encenador a fim de produzir um forte discurso cênico cujo objetivo
central era o de manifestar o valor da resistência diante da opulência
dos opressores e da necessidade de se construir um apelo contra as formas
de tortura, seja as que se encontram mascaradas em gestos
assistencialistas, seja nas suas formas escancaradas e humilhantes, como
agressões físicas e manifestações de força injustas, tão comuns no
trato com os indivíduos encarcerados.
O
processo que originou o espetáculo Muros,
é importante que fique claro, faz parte da longa trajetória do Projeto
Teatro nas Prisões, da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel de
Amparo ao Preso – FUNAP, órgão vinculado ao Governo do Estado de São
Paulo cuja missão institucional é promover trabalho, educação e
cultura nos atuais 130 presídios que compõem o corpo principal da
Secretaria de Administração Penitenciária do Estado.
ATO
I – Cena Um.
Desde
1998, após dois anos desenvolvendo um trabalho que buscava promover a
conscientização da população carcerária em relação a doenças
sexualmente transmissíveis (Projeto DST-AIDS) e também estimular o
debate sobre os Direitos Humanos (Projeto Direitos Humanos em Cena), através
de técnicas dramáticas, sobretudo as elaboradas por Augusto Boal e seu
Centro de Teatro do Oprimido CTO-Rio, o Projeto Teatro
nas Prisões mudou de caráter e passou a voltar-se a montagens de
espetáculos, ganhando portanto novas possibilidades de trajetória
educacional, agora mais voltada para as relações entre a cena e as possíveis
repercussões de um processo artístico, ou seja, fundamentado em princípios
de liberdade de criação, e o regime punitivo de privação de
(justamente!) liberdade.
Este
paradoxo, fundamental entre os muitos outros com os quais se lida ao
promover um exercício de criação teatral em uma prisão, está
intrincado no cerne de todas as atividades enquadradas nas propostas
“reabilitadoras” promovidas pelo presídio. Embora a maior parte dos
esforços da instituição penal esteja voltada para o controle da massa
encarcerada e para o combate a manifestações que abalem sua ordem
interna, o discurso defendido pela prisão é outro, o de que sua ação
está voltada para a transformação do infrator em cidadão responsável,
mediante cumprimento da pena.
Sobre
esta questão, Foucault, no célebre Vigiar
e Punir (FOUCAULT, 2004) erige elaborada explanação, demonstrando
que, paralelamente à consolidação da prisão como modelo punitivo que
se sobressaiu no mundo dito civilizado, organizaram-se uma série de
saberes a partir de discursos produzidos pelas mais diversas ciências (a
arquitetura, a psicologia, o direito, a psiquiatria, a pedagogia, etc.). A
soma desses discursos terminou elaborando a Criminologia, responsável
fundamental para a construção do conceito moderno de delinqüência, que
sobrepõe ao ato transgressor,
portanto criminoso, o impulso transgressor,
de tal forma que passa a se debruçar sobre o indivíduo, agora envolvido
em uma série de laudos, exames e testes que vão ligá-lo eternamente a
sua atitude penalizada.
Desta
forma, não resta ao indivíduo penalizado, objeto da ação de todo
aparato técnico-científico elaborado pelo saber penitenciário, outra
alternativa que não carregar eternamente o estigma de ter sido preso, e
sua vida será tolhida de toda sorte de possibilidades oferecidas aos
“normais”, de tal forma
que não restem muitas alternativas que não o retorno ao mundo do crime.
É por essa razão que no Brasil os índices de reincidência penal chegam
ao número alarmante de 70%. Trata-se de um número assustador, sobretudo
se levarmos em consideração que a grande maioria (65%) cumpre pena por
pequenos furtos e roubos. Não são os violentos assassinos que a mídia
insiste em construir, não são os perigosos mentores do crime organizado
a maior parte dos condenados.
Ato
I – Cena Dois.
Quando
vemos uma prisão com suas muralhas altas vigiadas por guardas armados,
quando avistamos as celas com suas janelas gradeadas a ferro, onde às
vezes aparecem as mãos do prisioneiro, é quase impossível deixarmos
de pensar que alguma coisa de absolutamente terrível deve estar
guardada por meios tão drásticos. Nessas imagens, apreendemos o que é
o crime. Não o crime das porcentagens e das estatísticas criminais ou
o mero resultado de um processo da burocracia criminal e da ação do
policial da esquina. O que imaginamos é algo mais forte, mais trágico,
muito mais do lado de uma excepcionalidade assustadora que da ação
rotineira de uma instituição de controle
(ROCHA, 1994: 55).
Diante
de toda sorte de estereótipos sociais e de visões deformadas dos indivíduos
submetidos à prisão, o teatro promove, para além de todas as questões
relativas ao desenvolvimento do potencial artístico daqueles que
participam das atividades e se envolvem na construção do evento cênico,
o momento da troca entre espectadores e artistas, concentrados justamente
no período curto de tempo em que o espetáculo é apresentado e submetido
ao aval da platéia.
Este
momento, esperado ansiosamente durante todo o processo que leva à construção
do espetáculo, catalisa uma série de expectativas produzidas pelos dois
lados que compõem o momento da troca: os atores procurarão entregar o
melhor de si e esperam que a platéia, por sua vez, saia surpreendida e
enriquecida por haver desfrutado do resultado cênico de toda a
experimentação que os atores vivenciaram a fim de chegar na encenação
final.
No
caso específico da atuação do Núcleo Panóptico, não é raro que esta
experiência ganhe outras conotações, uma vez que a platéia está
ciente de que o espetáculo presenciado é composto pelo trabalho artístico
de um grupo de pessoas ao qual se prefere manter a maior distância possível,
uma vez que a segurança “aqui fora” parece ser proporcional ao número
de pessoas trancadas “lá dentro”.
Dessa
forma, não é exagero defender que os aplausos, muitas vezes, não se
dirigem apenas ao espetáculo, mas sobretudo ao fato de se presenciar um
exercício autêntico de possibilidades inesperadas, uma vez que
produzidas por prisioneiros, que durante algum tempo puderam habitar, no
espaço mágico do teatro, outros territórios que não os submundos ao
qual se convencionou a eles atribuir.
Ato
II – Cena Um
Os
três primeiros dos cinco espetáculos aconteceram no antigo Centro de
Observação Criminológica (COC) do Complexo do Carandiru, presídio
destinado à população masculina, em cumprimento de pena no regime
fechado. Foi lá que em 1998 estreava O
Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, em montagem que, por falta de
elenco feminino, acabou colocando na boca de um novo personagem, o
“Arcanjo Gabriel”, as falas que deveriam ser atribuídas à figura da
mãe de Jesus, que inclusive dá nome ao texto. Aparentemente, a solução
não evitou que o intérprete ganhasse o apelido de “anjinho” no presídio,
o que comprova o forte preconceito enfrentado pelo grupo de teatro não só
pelo corpo dirigente quanto pelos próprios presos, que chamavam a
atividade de “balé”.
O
fato é que após três apresentações dentro da própria unidade, o
grupo conquistou a até então inédita possibilidade de apresentar o
espetáculo na Penitenciária Feminina do Butantã, feito que abriu
caminhos para que o grupo ganhasse o direito de mostrar, pela primeira vez
na história do sistema penal paulista, um produto teatral, interpretado
por homens presos, em um espaço distante das malhas penitenciárias: no
TUCA, o Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em
junho de 1999, ao qual seguiram duas apresentações no Teatro Sérgio
Cardoso, em agosto do mesmo ano, ambas com ampla cobertura pela imprensa
escrita e televisiva.
Sobre
a montagem Suassuna escreveu, em sua coluna no jornal Folha de São Paulo:
Um
deles (referindo-se
a um dos presidiários) chegou a
declarar: Em toda minha vida de crime eu nunca senti emoção tão grande quanto a
de trabalhar no teatro. Pois posso garantir, a ele e aos outros, que
minha emoção não foi menor. Lembrado das palavras do Cristo, o
problema do castigo de uma pessoa humana sempre me angustiou; e, mesmo
impotente como seja, sempre foi profunda a compaixão que eu sinto por
qualquer condenado. Assim, fiquei contente ao ver que minha peça tinha
levado um pouco de alegria (e talvez alguns momentos de reflexão) tanto
aos atores que a encenaram quanto ao público de detentos que assistiu
ao espetáculo. Por alguns momentos voltei a ser o menino que, na
pequena cidade de Tapera, sertão da Paraíba, por ordem da tia e da mãe
ia, com outros irmãos, visitar os presos da cadeia local, numa
tentativa (também inócua, sei) de amenizar sua terrível e dolorosa
condição (SUASSUNA, 1999).
ATO
II - Cena Dois.
O
espetáculo seguinte continuou a se aprofundar no universo farsesco e
popular da dramaturgia de Suassuna, com a montagem de A
Pena e a Lei, que iniciou suas apresentações em 2000, e seguiu o
caminho trilhado pela montagem anterior: apresentações dentro da própria
unidade, apresentações em outros presídios e apresentações em outros
espaços, chegando inclusive a levar a encenação para outras cidades que
não a capital paulista, como Sorocaba.
Desta
vez, entretanto, o grupo contou com a participação de uma “atriz
convidada”, Alexandra Tavares, que tinha então vinte anos e
possibilitou uma enorme conquista para o processo, uma vez que o COC era
considerado uma das instituições mais rígidas em todo o sistema.
Dessa
forma, a possibilidade de permitir que uma jovem atriz participasse de
ensaios, considerando obviamente que ela participaria de atividades que
pressupunham contato físico e estudo coletivo para a elaboração das
cenas, tudo isso ganhava alto valor simbólico, visto que consolidava não
só a credibilidade artística do grupo, como ampliava sua
responsabilidade para com a própria manutenção do teatro como atividade
dentro da unidade penal.
Neste
sentido, é imprescindível atribuir ao teatro o caráter agregador e
coletivo inerente a seu exercício. Daí o peso de suas conquistas em um
presídio, instituição total (GOFFMAN,
2001) que prima pela individualização dos que a ele estão submetidos,
ao mesmo tempo em que promove uma forte massificação no trato desses
seres com as regras, que em princípio todos estão submetidos de modo equânime,
promovendo o que Goffman define como mortificação
do eu (GOFFMAN, 2001).
ATO
II – Cena Três.
A
experiência do COC acaba quando o Complexo do Carandiru é desativado, e
seus presos são transferidos, em sua maioria, para a Penitenciária do
Tremembé, no final de 2001.
Mas
durante todo aquele ano, o grupo constrói O
Rei da Vela, de Oswald de Andrade, texto escrito em 1933, mas que só
conheceria os palcos em uma montagem histórica realizada pelo Teatro
Oficina em 1967, quando o contexto político do país renovaria os
significados de um texto que, definitivamente, é um dos mais instigantes
já produzidos pela nossa dramaturgia, e que conquista cada vez mais
atualidade na medida em que as estruturas políticas, sociais e econômicas
do Brasil parecem pouco ter mudado ao longo de todos esses anos que nos
separam do autor modernista.
Esta
montagem representou a conclusão de um longo processo de construção de
sentidos para a possibilidade de inserção de práticas teatrais em presídios,
ampliado justificativas que estivessem vinculadas simplesmente ao caráter
“ressocializador” da arte. O discurso da ressocialização
invariavelmente promoveria um julgamento das atitudes individuais de cada
participante do processo, desviando a atuação da prática teatral de seu
eixo mais interessante: o de promover um exercício coletivo de construção
artística.
O
Rei da Vela foi convidado, pelo próprio diretor do Teatro Oficina, Zé
Celso Martinez Correa, a se apresentar no emblemático edifício que serve
de palco, há mais de trinta anos, para as históricas encenações de um
grupo que é referência na trajetória das lutas de resistência cultural
do teatro brasileiro frente aos problemas financeiros e estéticos que
fazem parte da identidade de nossos grupos teatrais.
A
apresentação obteve grande repercussão e garantiu quase o dobro da
capacidade do teatro, com o público lotando os três andares do espaço
que compõe a área que lhe é destinada, no arrojado teatro projetado
pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi. Lá o público assistiu, além do
espetáculo, aquilo que sempre ficou vedado pelas cortinas: os atores, que
ele insistentemente ovacionou, saírem algemados, escoltados por dois
policiais cada um, direto para o porta-malas do camburão que os levariam
ao presídio.
Ato
III – Cena 1.
Em
2002 e 2003, a construção de um novo espaço e de novos vínculos de
reconhecimento artístico aconteceria na Penitenciária Feminina do Tatuapé
(PFT), ao lado da famigerada unidade da Febem, famosa por promover, junto
a seus 1.600 adolescentes detidos, as mais escandalosas rebeliões do
sistema da Fundação Estadual para o Bem - Estar do Menor.
Ali,
durante dois anos, entre muitas lutas por espaço para ensaios, que
passaram da capela, que virou fábrica e exilou o teatro para o salão de
beleza, do qual foi transferido para uma unidade intermediária entre uma
fábrica de pirulitos e a entrada do pavilhão, ou seja, servia de
passagem, o projeto só conseguiu finalmente ganhar um espaço próprio e
apropriado para o trabalho com as cenas, uma sala do segundo andar do
pavilhão destinado às unidades de trabalho, em meados do segundo ano de
processo.
Como
isso foi conquistado? Pela boa vontade do presídio, infelizmente, não
foi. A FUNAP decidiu, pela primeira vez na história da instituição,
pagar uma bolsa-salário às participantes (este caráter de ineditismo
acontece por que o que está em jogo é uma ação cultural e educativa,
sem caráter de produção de bens que não bens culturais e simbólicos,
o que representou grande passo para a política educacional e cultural
promovida pela FUNAP). Assim, o teatro foi alçado à categoria de
“posto de trabalho”, e não mais de “atividade cultural”, o que
elevou sensivelmente a credibilidade da atividade artística em relação
aos apoios que vinha recebendo da direção e dos funcionários da unidade
penal.
Nos
meses de setembro e outubro, foram realizadas doze apresentações do
espetáculo Mulheres de Papel,
adaptação do texto Homens de Papel,
de autoria de Plínio Marcos, cuja obra sempre esteve voltada para a
exposição das mazelas sociais de nosso país e de suas personagens
marginalizadas.
A
cena, tomada por um grupo de catadoras de papel, decididas a promover uma
greve contra os abusos que vinham sofrendo do comprador do material por
elas recolhido do lixo, tem como conflito principal discussões na ordem
dos limites entre as expectativas individuais e seu confronto com decisões
de ordem coletiva, materializadas no embate entre o grupo e a personagem
Nhanha, que não pretende aderir à paralisação pela necessidade de
conseguir dinheiro para levar a filha ao médico.
Esta
complexa relação entre decisões coletivas, por um lado, e opções
individuais, por outro, acabavam por refletir o próprio processo de
construção das regras que conduziam os ensaios e que, portanto,
definiram o próprio processo de construção do grupo.
Tratava-se de um relacionamento diferente do habitual, para as
presas, com o conceito de regras, que até então não se apresentavam a
elas como um corpo orgânico, passível de alterações em fluxo dinâmico
a fim de atender às necessidades do grupo, e que só teriam sentido se
realmente fossem obedecidas não por medo de punição, mas por serem
essenciais ao pleno funcionamento dos ensaios.
O
espetáculo foi visto por aproximadamente 1000 pessoas, entre presas e público
“de fora”, composto por muitas pessoas que entravam em um presídio
pela primeira vez, o que significava uma clara possibilidade de derrubada
dos muitos muros que a sociedade erige em relação ao universo penal.
Entretanto,
a despeito de toda a repercussão obtida pelo trabalho, o presídio
decidiu proibir as apresentações para o público externo, alegando
impossibilidade do setor disciplinar em revistar com a devida qualidade
todas as pessoas que adentravam na unidade a cada apresentação.
A
conclusão recaiu de forma drástica sobre o próprio trabalho, com a
decisão da FUNAP em retirar o projeto Teatro nas Prisões da Penitenciária
Feminina do Tatuapé, e representou um golpe muito duro para as
participantes do processo. De qualquer forma, a decisão repercutiu em
instâncias mais elevadas na hierarquia da Secretaria da Administração
Penitenciária, que derrubou a diretoria responsável pela saída do
projeto da unidade, o que não deixa de revelar a importância atribuída
ao teatro por figuras importantes na implantação de políticas públicas
destinada a população encarcerada.
Ato
III – Cena 2
Resulta
então que a mais recente incursão do Núcleo Panóptico de Teatro ganhou
a possibilidade de trabalhar não mais submetida às regras das unidades
prisionais, mas fora delas, apesar de estar direcionada a um processo
envolvendo homens e mulheres em regime semi-aberto e egressos do sistema
penal, o que vincula o processo ao mesmo universo, mas com a possibilidade
de abordar determinadas questões com um grau de complexidade que
anteriormente ficava subentendido.
O
conto de Sartre, “O Muro”,
trata do tema, tão caro ao existencialismo, da situação limite. Um
grupo de revolucionários é torturado, das mais diversas formas, a fim de
que se revele o paradeiro do líder do movimento. Transplantado para a
nossa complexa realidade atual, quem seriam os revolucionários, quem
seriam os torturadores?
Partindo
destas indagações e realizando debates que acompanhavam o processo de
improvisações, que procurava estabelecer a aquisição dos códigos e
princípios da linguagem cênica e do trabalho de interpretação teatral,
o grupo realizava instigante processo de elaboração de sentidos para as
ações e diálogos escritos no texto, que ganhavam novas possibilidades a
cada vez que iam para a cena.
Passaram
pelo processo aproximadamente 50 pessoas, muitas das quais acabaram
abandonando o trabalho à medida que conseguiam um emprego, ou
simplesmente não se identificavam com a natureza da prática teatral. Com
os presos em regime semi-aberto, a situação ficava bem mais complicada:
suas vidas ainda estão submetidas à estrutura da prisão, e cada deslize
por eles cometido, seja por chegarem atrasados à unidade prisional, seja
por tentarem entrar na unidade carregando qualquer produto que lhes é
proibido portar, como peças de roupa ou alimentos, eles eram
automaticamente desligados do trabalho.
São
pequenos deslizes que a prisão transforma em grandes delitos, sobretudo
pelo motivo de que o indivíduo em regime semi-aberto vive metade do tempo
com a ilusão da liberdade, e briga por manter o máximo dela durante o
tempo em que ainda ficará atrás das grades, provocando confusões por
coisas que consideramos absolutamente banais, como o direito de levar uma
revista para o quarto (no caso deles, para a cela).
De
qualquer forma, o trabalho obteve grande repercussão graças ao fato de
haver se transformado no último evento que possibilitaria ao público
conhecer parte da antiga Casa de Detenção, o Carandiru, o mais famoso
dos presídios, alçado a monumento da irresponsabilidade de nossos políticos
para com o tratamento do preso, quando cenário do famoso massacre em que
111 homens foram assassinados pela tropa de choque da Polícia Militar,
sob ordem do então governador Luiz Antonio Fleury Filho, no fim de 1992.
As
oito apresentações tiveram lotação esgotada e o projeto, que recebeu o
reconhecimento de instâncias públicas de financiamento, através da
aprovação do trabalho do Núcleo Panóptico pela comissão da Lei de
Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, Lei 13.279-02,
hoje alia às apresentações a continuidade de seu aperfeiçoamento,
através de um novo processo de encenação, desta vez com o grupo criando
o texto coletivamente.
EPÍLOGO
A
incursão de práticas teatrais em presídios tem início, como atividade
aprovada pelas unidades penais, em fins dos anos 70, início dos anos 80,
período em que organizações difusoras de políticas de direitos humanas
e denunciadoras das torturas e abusos do governo militar conseguiram
produzir um leve abrandamento da rigidez modelar das propostas de
encarceramento, produzindo, ainda que de forma irregular e pouco
integrada, algumas propostas diferenciadas no trato com a população
carcerária.
A
trajetória do projeto Teatro nas Prisões e do trabalho do diretor
teatral Jorge Spínola, à frente do Núcleo Panóptico de Teatro, faz
parte dessa história, que ainda permanece marginalizada e pouco debatida
por instâncias mais amplas da sociedade. Perdida entre discussões
concernentes à promoção da reabilitação, portanto centradas em questões
da própria promoção da ressocialização, e temas relacionados a uma
proposta de integração entre arte teatral e processos educativos em prisões,
a prática teatral em universos carcerários corre o risco de se perder na
ingenuidade de propostas que não promovam o envolvimento crítico de seus
participantes, concluindo com apresentações que sirvam apenas aos
intuitos da instituição penal em se mostrar apoiadora de atividades
culturais, ainda que de pouco valor artístico e educacional.
O
Núcleo Panóptico defendeu, inicialmente de forma sutil, a partir de
textos que criticavam a estruturas que mantêm as desigualdades sociais de
nosso país, e atualmente de forma mais escancarada, ao fazer uso de um
texto que revela as estruturas de manutenção da ordem injusta que
permanece embasando a política e manutenção das mazelas nacionais, a
possibilidade de realização de espetáculos que construam notável
qualidade artística e envolvimento real de todos os participantes na
produção de um discurso cênico que irradie questionamento e sentidos
diversos aos que tiverem possibilidade de apreciá-lo.
Para
além do próprio processo teatral, e de todos os problemas que envolvam a
produção de uma encenação dentro de presídios, tendo na população
carcerária seus principais protagonistas, interessa ao Núcleo Panóptico
o momento do encontro com o público, quando este, normalmente
surpreendido pelo poder transformador da arte, reage emocionado à quebra
da expectativa de assistir a um espetáculo com presos, e conhece uma face
que não costuma associar a esse universo: a beleza e prazer da fruição
de uma arte de resistência, que derruba preconceitos e constrói novas
conotações a essas vidas encarceradas.
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