Por CRISTINA HELENA CARNEIRO

Mestranda em Letras (Departamento de Letras – UEM).

 

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A Dupla Objetificação da Mulher em A Escrava Isaura

uma Amostragem do Poder Patriarcal

Cristina Helena Carneiro*

 

Resumo:

O objetivo deste trabalho é analisar a personagem feminina Isaura, do romance escrito por Guimarães, à luz dos estudos pós-coloniais e feministas, focalizando a influência do sistema patriarcal/imperialista na construção da personagem, bem como evidenciando o papel secundário da mulher neste mesmo sistema.

Palavras-chave: objetificação da mulher, patriarcalismo, imperialismo, sujeito-objeto.

Abstract

The double objectification of woman in A Escrava Isaura: a glimpse into patriarchalism. The aim of this paper is to analyze the female character Isaura based on post-colonialist and feminist studies, focusing the influence of imperialist and patriarchal system on the construction of the character and also demonstrating the woman’s secondary role in this system.

Key words: woman objectification, patriarchalism, imperialism, subject-object.

 

Capa da edição francesa de "A escrava Isaura"Introdução

Nosso trabalho aqui pretende abordar um assunto que, embora bastante discutido, ainda é pouco explorado em nossa literatura. Novas teorias surgem, idéias inéditas acerca de textos antigos aparecem como um resgate de ideologias perdidas, podendo sugerir uma diversidade interpretativa, bem como a imortalidade dos escritos. A teoria pós-colonialista vem lançar nova luz sobre trechos obscuros da História e da Literatura, suscitando interpretações inusitadas e abrindo caminho para novos autores e autoras, de todo o globo, buscarem suas identidades e as mostrarem ao mundo sem sofrerem os rótulos inferiorizados marcados pela supremacia da identidade ocidental sobre a diferença.

A literatura pós-colonial designa todo o registro literário produzido por povos colonizados entre os séculos XV e XX. Ashcroft et al. (1998) também consideram que o pós-colonialismo descreve as culturas que foram influenciadas por processos de colonização imperialista que perduram até a atualidade. O Brasil, país colonizado por portugueses, faz parte das nações que sofreram e sofrem o estigma da colônia. Segundo Bonnici (2000) a reflexão pós-colonialista ainda não chegou à literatura brasileira, possivelmente pelo fato de a independência política ter ocorrido no início do século XIX, fazendo com que a marca colonial desaparecesse da literatura, ou seja, a literatura brasileira parece ter se desenvolvido sem salientar seus traços coloniais, embora estes estivessem (e estão) sempre presentes. No entanto, apesar de nossa literatura ser jovem e já possuir uma certa tradição, é possível vislumbrar, em personagens de obras brasileiras, a ideologia do homem branco, ocidental e imperialista que veio para cá dominar uma terra inóspita e transformá-la em fonte de riqueza para a metrópole, então Europa. É fácil perceber essa tendência até mesmo em obras de autoria genuinamente brasileira, como se o homem natural do Brasil houvesse absorvido a essência do ocidentalismo e a considerasse a pátria da alma humana.

A partir de tais pressuposições é que a crítica pós-colonialista pode auxiliar na compreensão do imperialismo e suas influências. É interessante comentar quais são as figuras mais afetadas diretamente por este, digamos, modo de enxergar a vida e as relações humanas. No caso do Brasil, à época de D. Pedro II, período em que se passam os eventos relatados no romance de Bernardo Guimarães, destacamos três personagens atingidas fortemente pelo espírito colonizador/imperialista: o homem branco e rico, a mulher, seja em qual espaço estiver, doméstico, urbano ou rural e o negro escravizado; no entanto há que se enfatizar que foram atingidos de forma diferenciada. Como o estudo do pós-colonialismo leva também ao questionamento do binarismo humano representado pelo sujeito/objeto, poderíamos situar essas três personagens dentro deste binarismo: homem branco e rico como sujeito; mulher e escravos como objetos. Havendo neste último uma diferença marcante com relação à espécie de objetificação.

A opressão e a repressão que a sociedade colonial recebeu são decorrentes de uma ideologia do sujeito. Segundo Sartre (apud Bonnici, 2000) o ser é constituído como sujeito em relação a um outro, mas dependente de uma reciprocidade, ou seja, em ocasiões diversas, sujeito e objeto tomam o lugar do outro, num movimento dialógico de alteridade. Entretanto, esta não é a forma em que as sociedades imperialistas pautaram suas relações humanas; antes, optaram por se organizar numa hierarquia onde prevalece o dominador (sujeito) sobre o dominado (objeto). A voz do discurso não oscila entre sujeito e objeto, como presume Sartre; a voz é possessão do colonizador.

Pretendemos  apresentar uma pequena análise da obra A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, escrita em 1875. Romance muito difundido no Brasil e também no exterior, devido à teledramaturgia, a história focaliza o drama da escravidão, representada, principalmente, por Isaura, escrava, porém, moça educada e de traços brancos que vive perseguida por seu senhor, Leôncio.

É curioso notar que o autor, figura constante dos livros didáticos de literatura, aparece como sertanista romântico, preocupado em descrever um Brasil não-litorâneo e não contaminado pela cultura européia. Como se isso fosse possível. A personagem de Leôncio, no referido romance, é um retrato bastante fiel do que se conhece de um patriarca imperialista. É exatamente neste ponto que a teoria pós-colonialista constitui-se em uma nova estética pela qual os textos são interpretados politicamente, baseando-se numa relação entre discurso e poder. Por isso, é deveras difícil crer que seja possível a imagem de um senhor de escravos desprovida de uma ideologia imperialista. Por mais que o romance não seja ambientado nos centros urbanos do Brasil, da época em que foi escrito, e sim no interior, numa fazenda, não significa que seus personagens estejam totalmente livres de quaisquer influências européias.

A figura de Isaura pode ser analisada sob dois aspectos: Isaura-escrava e Isaura-mulher. Pretendemos mostrar de que maneira a figura feminina é subalterna ao seu senhor, no que diz respeito ao seu papel duplamente inferiorizado. Isaura é escrava, dentro de um sistema escravocrata aceito pela sociedade com naturalidade; é submetida a uma educação refinada, na casa grande, como devem ser todas as filhas de senhores de escravos, fazendeiros ricos e poderosos; recebe, então, o rótulo da mulher branca. Sob este prisma é que percebemos a dualidade da objetificação da mulher na sociedade imperialista, onde o elemento masculino é dominante, e também a impossibilidade de liberdade da mulher que, mesmo livre dos grilhões de sua cor, que no caso de Isaura não faz diferença, pois a cor branca não significa liberdade, devido à descendência negra, ainda é cativa de um sistema social que aprisiona a mulher ao confinamento do lar e à servidão ao esposo.

O homem europeu foi, de alguma forma, convencido de uma superioridade sobre as demais raças e/ou tribos. Tal ocorreu na época da colonização brasileira em relação ao nativo encontrado aqui e, posteriormente, com os escravos traficados da África que para cá foram trazidos para serem simplesmente mão-de-obra escrava. O pós-colonialismo baseia-se, portanto, no estudo da hegemonia européia e na tentativa de erradicarem-se as dicotomias centro-periferia, eu-outro, masculino-feminino, sujeito-objeto, dominante-dominado.

A descolonização pelo discurso apresenta, primeiramente, uma revolta contra a linguagem do colonizador. Depois, a contestação e questionamento da centralidade européia geram um contra-discurso que busca a libertação das amarras do estado de colônia. O questionamento do cânone literário e a releitura de obras puramente colonialistas são uma representação dessa resistência. Nossa análise é uma releitura da personagem feminina, sob a ótica da teoria pós-colonialista, centralizada na observação do papel da mulher como elemento opositor ao masculino e escravizado.

Essa pesquisa, apresentada em forma de análise de texto literário, tem caráter bibliográfico e fundamenta-se na leitura de alguns estudiosos do Pós-colonialismo, bem como da abordagem feminista acerca da relação entre discurso e poder, em textos considerados pós-coloniais. Os autores mais consultados para este trabalho foram Thomas Bonnici, J. Butler, Sergio Buarque de Holanda, Homi Bhabha, Lúcia Osana Zolin, B. Ashcroft, G. Griffiths, H. Tiffin, M. Castells e Gerda Lerner, com vistas a identificar o poder patriarcal, imperialista na objetificação do sujeito, representada pela personagem Isaura.

Uma das contribuições mais profícuas da releitura e interpretação pós-colonial é a possibilidade de repensar a cultura nacional após a retirada do poder imperial, estabelecendo um contraste entre os períodos anterior  e posterior à independência (Bonnici, 2000). A partir dessas contribuições, a análise do texto sugerido, focalizando o papel feminino duplamente submisso, vem buscar o preenchimento de lacunas e tentar responder a questões que possibilitem a compreensão dos ideais imperialistas e sua influenciação sobre outros povos e culturas.

Mesmo que a literatura brasileira ainda não tenha sido, amplamente, interpretada à luz do pós-colonialismo, não há como negar que toda a nossa literatura seja marcada pelo colonialismo. O prisma teórico pós-colonial contribui para que as obras sejam vistas e compreendidas de forma a propiciarem soluções de problemas relacionados à alteridade, à oposição entre sujeito e objeto e também à recuperação da voz do nativo, do escravo e da mulher.

Patriarcalismo X Feminismo

Segundo Lerner (1993), o patriarcalismo teve início antes mesmo da formação da civilização ocidental. De forma gradual, institucionalizou os direitos dos homens na intenção de se apropriar e de controlar os atributos sexuais e reprodutivos das mulheres, passando a estabelecer meios de dominação, como a escravidão, e legitimando um sistema funcional de relações hierárquicas, criando um verdadeiro conjunto de idéias. A partir de então, dessa ordem social e ideológica, o homem se estabeleceu como a norma e a mulher como a subversão. Daí a conseqüente inferiorização do elemento feminino num sistema social que equiparou as funções domésticas da mulher às dos escravos, desde a antiguidade greco-latina. Assim, formou-se uma mentalidade em que os homens assumiram o papel patriarcal, distribuindo entre si as funções sociais mais elevadas e de melhor remuneração. O período medieval reforçou ainda mais essa inferioridade de poder e de educação da mulher com relação ao homem, o que se refletiu, posteriormente, na sociedade capitalista moderna com a institucionalização, por exemplo, de colégios não-mistos, no início do século XX.

O fato de as sociedades, por séculos, terem criado uma mentalidade de que o gênero masculino é superior levou a uma censura da sexualidade feminina, que tem como alvo a satisfação da psique masculina, a qual domina o patriarcado. Em tal organização social a condição humana identifica-se com a condição masculina, ou seja, o referencial de vida respeitado e aceito por todos é aquele do homem adulto do sexo masculino. Possivelmente, esta é uma das primeiras relações conflitantes entre o sujeito e o objeto, pois antecede mesmo o colonialismo e, posteriormente, os estudos pós-colonialistas.

Com relação ao Brasil e à literatura brasileira, como é o caso da análise sugerida por este trabalho, é interessante ressaltar que o patriarcalismo teve caráter dominante no povo brasileiro. Segundo Holanda (1995) tal elemento teve sua origem no meio rural, onde o poder se concentrava de forma absoluta no senhor de engenho, que era a autoridade máxima. A partir de então, passou-se a acreditar que o patriarcalismo fornecia o melhor modelo de vivência e harmonia social. Acabou, portanto, sendo transferido ao meio urbano ao passo que as cidades prosperavam. “Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens”. (HOLANDA, 1995, p.82).

Na obra literária, corpus deste trabalho, o patriarcalismo está bem retratado na figura de Leôncio, fazendeiro rico e poderoso, senhor de escravos e de si mesmo, que não se curva à vontade de ninguém, nem mesmo de quem mais deseja, Isaura. Todos os eventos, engendrados por ele ou não, concorrem consoante a vontade e o arbítrio caprichoso despótico do patriarca. Tais falas comprovam este poder:

- E apresentá-las de joelhos!... Essa é galante!... Se continua nesse papel de galã, declaro-lhe que o ponho pela porta fora com dois pontapés nessa corcova. (GUIMARÃES, 1988, p. 18)

É característica comum e freqüente, nos personagens que se enquadram como patriarcais ou como reflexos do patriarcalismo, atributos como o proceder sisudo, a gravidade do olhar e da voz, o termo honrado como ornamentos que engrandecem o escudo masculino nos possíveis confrontos com o seu opositor, seja este representado pelo subalterno (empregado, servo, escravo ou mulher) ou por qualquer outro representante de sua classe.

Em Leôncio, o fato de deter uma posição de relevo propicia-lhe um sentimento de superioridade, radicalizado por ele numa intensa prepotência, como que a configurar-lhe o caráter:

O violento e cego amor que Isaura lhe havia  inspirado, incitava-o a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa, para obter satisfação de seus frenéticos desejos . Resolveu, pois, cortar o nó, usando de sua prepotência e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria  as justas exigências e exprobações  de Malvina. (GUIMARÃES, 1988, p. 30)

Esta passagem dá mostras claras da impertinência e do poder abusivo da figura patriarcal representada por Leôncio. O que houvesse em jogo, fosse relativo aos seus desejos mais prementes, era posto à frente de qualquer pensamento ou atitude honrosa. Nem mesmo a vergonha, a ameaça à sua reputação desviava seu caráter dos infaustos intentos.

Em contraposição aos arrombos irrefreáveis do excessivo poder masculino e patriarcal encontramos tendências do movimento feminista. Analisando seu histórico, Castells (2000) percebe a grande diversidade de um movimento social. De acordo com suas considerações, esse movimento social transformador lança as bases fundamentais do questionamento ao patriarcado, principalmente no ocidente. Tal movimento vem a ser decisivo na mudança de valores e de práticas sociais entre os gêneros. Apresentou-se como oponente à dominação masculina e buscava, em tese, a redefinição da identidade da mulher.

Tal busca se deu através principalmente da afirmação de igualdade entre homens e mulheres, procurando separar do gênero diferenças biológicas e culturais. Percebemos, então, que essa busca das mulheres é uma forma de construção de uma identidade que fosse capaz de restabelecer sua posição dentro da sociedade. Nesse sentido, a oposição se dirige ao patriarcalismo e à família patriarcal.

Segundo Butler (2003, p. 208), “(...) compreender a identidade como uma prática, e uma prática significante, é compreender sujeitos culturalmente inteligíveis como efeitos resultantes de um discurso amarrado por regras, e que se insere nos atos disseminados e corriqueiros da vida lingüística”. Ainda de acordo com suas considerações, o que vem a ser tarefa crucial do feminismo não é instituir um ponto de vista fora das identidades já construídas: deve, antes, buscar combater as estratégias imperialistas que renegam a sua inserção da cultura.

O patriarcalismo e o feminismo aparecem até aqui como um movimento de resgate da identidade feminina. Exatamente onde é que este último se entrelaça ou se encontra com a teoria pós-colonialista, fundamentadora desta análise? Às vezes parece não haver muita coisa em comum, porém analisando mais a fundo percebemos que há uma interatividade entre os dois discursos. Segundo Bonnici (2000, p.153-154) “o discurso e as teorias pós-colonialistas tiveram não apenas uma grande repercussão sobre a reflexão literária do cânone europeu, mas influenciaram o discurso feminista que por si, não estava relacionado ao pós-colonialismo, contudo, os indícios do feminismo no final do século XVIII (...) aconteceram sintomaticamente no auge do imperialismo britânico”. Ainda de acordo com Bonnici (2000), autoras e autores feministas passaram a usar os conceitos de voz, linguagem, discurso, imitação e silêncio no intuito de investigar o discurso entre a mulher e o patriarcalismo.

Vale ressaltar aqui que há várias espécies de feminismo. Apesar das décadas de 60 e 70 do século XX terem sido fundamentais para a difusão ideológica da teoria feminista, a atitude essencialista do movimento majoritário, no globo, partia do ponto de vista da mulher ocidental, branca e de classe média. O que significa que outras classes e raças ficaram à margem dessas lutas. Spivak (1985) incorpora ao discurso feminista as questões de gênero, raça e classe, a fim de demonstrar que, em todo o mundo, houve diversos feminismos, isto é, os motivos e estímulos que incentivaram a mulher ocidental, foram, em certas instancias, muito diferentes dos da mulher oriental. Também coloca em evidência a questão da mudez do sujeito colonial e da mulher subalterna, em que ambos são destituídos do espaço a partir do qual poderiam se manifestar. 

Segundo Bonnici (2000) há duas fases que caracterizam os objetos feministas: uma primitiva e uma madura. Na fase primitiva, o objetivo é a recolocação da mulher inferiorizada, numa ação de desafio à hegemonia patriarcal. Na fase madura há diversos objetivos, entre os quais estão a descoberta dos verdadeiros critérios que o cânone utiliza para arrolar obras e escritores e, em seguida, questionar esses critérios; a reconstrução do cânone literário e transformação das estratégias de leitura para todos os textos, embora enfrentando muitos obstáculos devido à resistência academicista ainda dominada pelos patriarcalismo e pelas estruturas machistas .

É, pois, pensando nestas considerações de forças antagônicas, que enxergamos com olhos pós-coloniais, isto é, por um lado visualizando o poder patriarcal e, por outro, vislumbrando a reação da voz feminista, a inserção da personagem Isaura, com toda a carga escravocrata e de servidão, nos moldes da teoria pós-colonialista.

Lucélia Santos, interpretou "Isaura" na primeira versão para a TVIsaura escrava: o retrato da mudez

Sem dúvida, a primeira impressão ao reler esta obra (jamais a teria no tempo da primeira leitura, ainda no colegial) foi de uma extrema mudez em relação à protagonista de Bernardo Guimarães. Isaura, embora o narrador dê livre acesso aos leitores dos pensamentos da personagem, não parece experimentar nenhum momento de total liberdade de espírito. A todo instante age como submissa à sua condição e renega todas as dádivas e talentos, por julgar serem as causas de seu sofrimento.

Friamente analisando essas condições, assim poderíamos descrevê-las: nascida escrava, de cor branca, de beleza incomparável, adotada pela senhora da casa grande,

A partir desta descrição, podemos entrever características próprias e tendências comuns às atitudes das personagens escritas pelo narrador, imbuídas da essência colonialista. O nascimento de Isaura já denota o caráter híbrido de sua raça e, conseqüentemente, de sua beleza. Na verdade, sendo filha de uma negra e de um branco, interpreta-se que Isaura possui traços brancos. Sua beleza provém exatamente dessa mistura, que, ao colonizador europeu, surge como um elemento exótico. A cor mulata, decorrente desse hibridismo, é objeto de desejo do homem europeu, transformando-se, inclusive, em motivação de contendas e espoliação. A beleza notável de Isaura pode ser comparada à beleza da América, ao ser vislumbrada pelos europeus: terra indomável, virgem, cheia de tesouros naturais e fontes promissoras de riquezas. A visão de um paraíso terrestre e tropical incitava o espírito ambicioso do colonizador. Assim era o poder que a beleza híbrida de Isaura exercia sobre os homens brancos.

A condição de escrava, desde o nascimento, configura-se numa atitude de tripla discriminação: classe, raça e gênero. O negro era visto como ser inferior, próximo aos animais e, desta forma, jamais lhe seria concedida a possibilidade de mobilidade social. A estratificação da sociedade escravocrata não reservava espaço ao negro, nem mesmo na base da pirâmide.

O fato de Isaura ter sido educada na casa grande, com todas as regalias, não significa que houvesse uma mudança radical em seu tratamento: ela continuava escrava e mucama. A mãe de Leôncio a adota, sem que isso lhe causasse perturbações, porque Isaura tinha pele branca. É provável que, se as características lhe fossem outras, mais próximas à raça negra, a menina nem tivesse acesso à casa grande.

Percebemos, portanto, a magnitude do espírito de Isaura que, apesar de todas as vantagens concedidas a ela, em sua condição de escrava, não era capaz de encontrar alegria e bem-estar em privilégios de ordem material. Sua maior grandeza interior repousa sobre essa qualidade excelsa de ser: o caráter despojado das armadilhas e tentações do convívio social elevado. Entretanto, esse caráter sublime e extremamente submisso é o principal causador de sua vulnerabilidade. Aparentemente, Isaura, ao nascer, foi investida de um manto angelical que a concedeu extrema beleza e doçura que fazem da sua personalidade um escudo contra as vicissitudes das relações humanas, ou seja, a sua única fortaleza são os sentimentos puros e intocáveis que carrega dentro de si. Devido a isso, poderíamos supor que a personagem apresenta-se ao leitor como condenada e livre ao mesmo tempo; no entanto, a liberdade só existe no âmago dos mais profundos anseios de Isaura. Daí a expressão escudo.

Partindo desse pressuposto é que podemos enxergar a exterioridade da personagem, no que concerne aos tratamentos recebidos pelos outros semelhantes e superiores, isto é, conhecendo o íntimo de Isaura, é possível compreender de onde retira a força para suportar as humilhações e os sofrimentos causados por aqueles que a desejam dominar.

Analisando os eventos ao redor de Isaura, podemos encontrar as características mais comuns do patriarcalismo na personagem de Leôncio, seu senhor. Fazendeiro poderoso, carrega no íntimo um amor tresloucado por Isaura que o faz agir de forma indecorosa, não mais se incomodando com as convenções sociais, pois deixa que sua esposa o abandone, sob os maiores sofrimentos, e ainda se apraz do fato de deixar o caminho livre para executar seus planos em relação a Isaura. Leôncio encarna todo o mal que pode advir de sua posição; é autoritário, déspota, livre de sentimentos altivos. As atitudes de Leôncio para com Isaura fazem um paralelo entre o controle do colonizador sobre a colônia e o do patriarcalismo sobre a mulher. A maneira com que o colonizador tratava dos interesses da colônia pode ser descrita como um movimento de cima para baixo e apenas nessa direção. Algo semelhante pode ser dito a respeito do homem para com a mulher: não se posicionavam no mesmo patamar, denotando relações pautadas na desigualdade.

Leôncio exerce, portanto, um duplo poder sobre Isaura: representa o patriarca e também o colonizador. Como há estreita ligação entre o pós-colonialismo e o feminismo, no que diz respeito à busca e resgate da identidade perdida do colonizado e da mulher, percebemos que Isaura é análoga à própria colônia. Na verdade, a realidade interior dos personagens reflete a realidade pública da sociedade patriarcalista retratada no romance, e que, de certa forma, não deixa de estar condizente com a realidade vivida pelo autor, pois a obra foi escrita em 1875, antes da abolição da escravatura. Segundo Bonnici (2003, p. 213), “Na história do Brasil, a mulher sempre foi relegada ao serviço do homem, ao silêncio, à dupla escravidão, à prostituição ou a objeto sexual. Na literatura, muitos são os romances que representam, através de suas personagens femininas, essa situação”. A Escrava Isaura é, sem dúvida, um desses romances.

Desde que o pai o deixara para tomar conta da fazenda e fora embora para a corte, Leôncio se tornou o dono incontestável de todos que ali estavam. O casamento com Malvina fora combinação entre os pais de ambos, entretanto aceito com gosto pelos noivos. Já casados há pouco mais de um ano, porém ainda sem filhos, o casal levara vida tranqüila até que o coração de Leôncio viesse a se inflamar com um sentimento nebuloso em relação à Isaura. O desenlace inicial de Leôncio e Malvina marca o princípio dos sofrimentos mais agudos da escrava, pois já não mais podia contar com a proteção da presença da esposa que, até certo ponto, intimidava as investidas de Leôncio. A partir de então, ele estava livre para agir do modo que lhe conviesse para com sua cativa.

Nos momentos em que Leôncio a importuna, percebemos claramente as tendências colonialistas/imperialistas, herdadas da estrutura sócio-familiar legitimada pela sociedade da época. Leôncio toma para si todo o poder que sua posição lhe permite:

- Cala-te, escrava insolente! – bradou, cheio de cólera. - Que eu suporte sem irritar-me os teus desdéns e repulsas, ainda vá, mas repreensões!... Com quem pensas tu que falas?... (GUIMARÃES, 1988, p. 35)

Isaura, nestes instantes, sempre se mostra submissa e consternada. Aceita a sua condição sem reclamar do seu destino. Mesmo quando responde ao seu senhor, escolhe as palavras mais brandas, os meios mais suaves de protestar contra as investidas de Leôncio. A atitude tão mansa de Isaura evidencia que a moça fora educada e preparada para aceitar com resignação as imposições sociais que lhe diziam respeito, por sua condição de escrava e também de mulher. A maneira como a mãe de Leôncio a criou foi um reflexo da educação que ela mesma recebera quando jovem. Seria improvável que uma criação branda e reta produzisse um espírito conturbado e rebelde. Isaura, realmente, não tinha motivos suficientes para revolta. Muito superficialmente localizamos indícios de resistência e/ou rebeldia. Nestas passagens a seguir podemos ver Isaura nestes dois momentos, ou seja, num momento de extrema servidão e, posteriormente, num momento de efêmero protesto, que, nem por isso, lhe concede a voz do outro numa tentativa de suprimir a voz do sujeito do discurso patriarcal, então Leôncio:

- Perdão, senhor!... – exclamou Isaura, aterrada e arrependida das palavras que lhe tinham escapado.

- E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo... mas não; é muito aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de pedir aquilo que de direito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais ninguém. És propriedade minha; um vaso que tenho entre as minhas mãos e que posso usar dele ou despedaçá-la ao meu sabor.

- Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas por piedade, não queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também tem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seus afectos.

- Afectos!... Quem fala aqui em afectos!? Podes acaso dispor deles?...

- Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio dono.

- Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e, senão cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas por quê? Para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos. Os instintos do teu coração são rasteiros e abjectos como a tua condição; para te satisfazer, far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo dos meus negros. (GUIMARÃES, 1988, p. 35)

O diálogo acima mostra, de maneira evidente, o uso do poder sobre o subalterno. Para Leôncio, nem mesmo o coração de Isaura é livre; todo o seu ser e alma lhe pertenciam. É claro que, nós leitores sentimos que Leôncio tem consciência de que é impossível obrigar alguém a amar; mas é justamente esta impotência que o faz utilizar todos os subterfúgios que o poder masculino imperialista lhe concede. É buscando na materialidade a satisfação de seus desejos insanos que Leôncio aplaca a fúria de um sentimento vil, cunhado por sua personalidade arrogante e pusilânime. Isaura, por sua vez, procura abrandar o coração do seu senhor, mas percebe a impossibilidade de tocá-lo e resigna-se. Tenta impor-lhe a verdade de que jamais terá seu coração, pois até mesmo um dono não pode comandá-lo. São esses os momentos em que a personagem busca a voz perdida do outro, colocado em posição de objeto, porém acaba por provocar a indignação de Leôncio, levando-o a atitudes extremas.

É possível, apesar de serem apenas nuances, perceber traços do que Bhabha (1984, apud Bonnici, 2000) chama de a recuperação da voz do nativo, ou seja, da voz do outro. Segundo o estudioso, o subalterno pode falar e sua voz pode ser resgatada através da paródia, da mímica ou da cortesia ardilosa que tendem a ameaçar a autoridade colonial, neste caso representada pela figura patriarcal de Leôncio. Para Fanon (1990, apud Bonnici, 2000) e Ngugi (1986, apud Bonnici, 2000) o colonizado começa a ter voz somente no momento em que se torna politicamente consciente e confronta o seu opressor. Na verdade, não percebemos em Isaura este confronto em relação a Leôncio. O que é possível vislumbrar são pequenos focos de resistência pela sua condição, porém ainda revestidos de um temor quase mortal em se rebelar contra o sistema no qual nasceu e foi criada. A fala de Isaura parece estabelecer uma ruptura entre a escrava e a mulher. Mostra-se submissa como escrava, nada clamando para si, demonstrando poder suportar qualquer penúria, entretanto, como mulher, uma voz lhe surge para suplicar que seu corpo não seja utilizado para “fins impuros”. Entre outras vezes em que Isaura confronta-se com seu oponente, as falas relacionadas às investidas de seu dono contra seus brios de mulher são as mais significativas, no que concerne à recuperação da voz do subalterno.

Parece-nos que Isaura espera por uma mudança radical, não necessariamente na sua condição de escrava, mas na esperança de se livrar de Leôncio, único ser que realmente ameaça sua paz interior. Temos a impressão, durante toda a leitura do romance, que não é a escravidão nem a sua condição de mulher que a faz infeliz, e sim o fato de pertencer a alguém com os objetivos nefastos de seu dono. Inicialmente porque a personagem de Isaura é apresentada ao leitor de maneira bastante solene, parece não sofrer por causa da escravidão e sim por ser perseguida por um tirano. Isaura demonstra tristeza ao lembrar dos suplícios sofridos pela mãe e também pela ausência da mesma. No entanto, ao mesmo tempo, sente grande ternura ao pensar na felicidade de ter sido criada pela esposa do comendador. Isso nos dá a nítida impressão de que, se não fora por Leôncio, sua vida seguiria tranqüila e normalmente. Por isso é que voltamos a constatar que a personagem Isaura não chega a instaurar-se no processo de agência, pelo qual Fanon (1990, apud Bonnici, 2000) e Ngugi (1986, apud Bonnici, 2000) descrevem que o oprimido é capaz de executar uma ação livremente, transpondo os obstáculos na construção de sua identidade.

Todas as tentativas de mudança ou de resistência não provêm diretamente de Isaura; são os outros personagens que se apiedam da sua condição e procuram meios de ajudá-la. Citamos Malvina, esposa de Leôncio, que pede por sua alforria, várias vezes, primeiro, antes de ter conhecimento do amor que Leôncio nutre pela escrava, por condoer-se da situação da moça que era doce e não merecia continuar cativa, uma vez que fora educada finamente e também por ser desejo da mãe de Leôncio que Isaura fosse libertada após sua morte; porém, em segunda instância, já a par dos sentimentos nefandos de seu marido, Malvina exige a alforria da escrava como condição preliminar de sua permanência na casa, como esposa. Citamos também, Miguel, pai de Isaura, que tenta comprá-la por uma quantia absurda, estabelecida ainda pelo pai de Leôncio, numa atitude caprichosa de mantê-la cativa. Todas foram, portanto, tentativas infrutíferas, pois Leôncio soube se safar de todos os embaraços, mesmo perdendo o decoro.

O pai de Isaura engendra a fuga dos dois para o nordeste e a realiza. Esta passagem também denota a inatividade da personagem de Isaura: a idéia não advém dela, e sim do pai, e todos os arranjos para o sucesso da empresa são feitos por ele; Isaura simplesmente aceita os planos e acata a proteção de Miguel, mas não participa ativamente dos eventos, ou seja, tudo é preparado pelo pai. Os únicos instantes em que pensa em agir, antes da fuga, é no sentido de por fim à própria vida, numa atitude covarde de desespero, por estar presa por grilhões ao tronco. Tal impulso evidencia uma fragilidade imensa, pois ao mesmo tempo em que se mostra forte, devido aos seus sentimentos sublimes e à sua altivez de caráter, ela aparece como um ser fraco e suscetível a atitudes extremadas, quando seu sofrimento passa, além do moral, para o físico.

É bastante compreensível que o sofrimento físico lhe fizesse ter ímpetos a acabar com a própria vida. Não foi criada como as outras escravas; não sentiu as durezas do trabalho pesado; não escutou os impropérios do feitor, nem mesmo o açoite nas costas. Toda a sua educação foi em prol de prepará-la para uma vida de sinhá, afinal tinha todos os atributos em seu favor, inclusive, a cor da pele. Portanto, é mais do que previsível que a personagem agisse em concordância com a criação recebida.

Por tais comportamentos é que enxergamos em Isaura, na construção da personagem, apenas traços distintivos na relação entre sujeito e objeto; traços ou mesmo pistas de que o objeto, o outro pode ter voz, mas que ainda não se encontra com forças o bastante para dar passagem aos ecos dessa voz; é como se estivesse em estado de latência.

Bianca Rinaldi como "Isaura" na versão mais recente para a TV...Isaura Mulher

O outro aspecto a ser abordado por este artigo é outro meio de objetificação do sujeito: a condição feminina de Isaura. Inicialmente, falamos de como Isaura é apagada diante do seu senhor, de como se posiciona tal objeto sem voz perante sua condição de escrava.

Mesmo tendo nascida escrava, negra e pobre, Isaura teve educação primorosa, isto é, no sentido do que se entendia por educação apropriada a uma jovem branca e de certa posição social. Recebeu instrução e meios de garantir, após alforria, e uma posição razoável a partir de algum bom casamento. Era essa a intenção da mãe de Leôncio ao criá-la com tanto esmero. No entanto, a morte ceifou-lhe os desejos de encaminhar a sua menina a um bom partido e apenas deixou a Malvina e Leôncio sua vontade de vê-la livre. Bem, até então, o que Isaura recebera foi exatamente a suposta educação própria das moças de família, ou seja, a educação para o matrimônio, a educação para a servidão ao marido. Além das letras e de alguma poesia, eram incluídas lições de francês, de piano e de prendas domésticas, tais como o bordado, o crochê, a costura. A isso era reduzida a educação das moças, acrescentando-se, no máximo, os ensinamentos religiosos e alguma leitura de romances ingênuos que apenas reafirmavam a estrutura familiar patriarcal. Leituras edificantes que aguçassem a inteligência feminina eram proibidas às moças por, talvez, causarem sentimentos rebeldes que as levassem a atitudes desonrosas. Era um ato de preocupação dos pais ou dos maridos controlar as leituras e as amizades das moças.

Segundo Zolin (2000) as categorias usadas para descrever o comportamento feminino frente aos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal são as denominações de mulher – sujeito e mulher- objeto. Tentaremos, então, situar a personagem Isaura em uma dessas denominações, ou se ela pode oscilar entre elas, pela análise do seu comportamento no decorrer dos eventos que contam a sua história.

A mulher-sujeito é aquela caracterizada pela insubordinação, pela subversão da ordem dos padrões estabelecidos, pelo seu poder de decisão e de imposição da sua vontade. A mulher-objeto é marcada pela resignação, pela conformidade de sua condição inferior, definindo-se pela submissão e subserviência, conseqüentemente desprovida de voz. (Zolin, 2000)

Não é difícil chegar à conclusão de que Isaura se enquadra, quase perfeitamente, nas características que  moldam a  mulher-objeto. Em decorrência de sua aceitação, de seu conformismo e de sua passividade é que as relações de poder permanecem inalteradas. Isaura, mesmo tendo a sorte de encontrar um jovem que a ame de verdade, com sentimentos puros, que a quer livrá-la do jugo de Leôncio, não deixa de mostrar-se o resultado da educação alienante que recebeu. Nesta passagem, fala a Álvaro, jovem escolhido de seu coração, a quem destina as últimas esperanças de um futuro promissor:

- Ama-me, e é essa idéia que ainda mais me mortifica !... De que nos serve esse amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua escrava e devo, sem remédio, morrer entre as mãos do meu algoz... (GUIMARÃES, 1988, p 72)

Vejam que ser a mulher do homem amado significa ser sua escrava. Por mais que o narrador quisesse apenas dar um sentido romântico ao termo escrava, ele está sempre carregado da acepção negativa perpassada pelo regime escravocrata imperialista: escravo é alguém que está absolutamente sujeito a outrem. A mulher, de certa forma, é escrava de seu próprio sentimento pelo homem e, posteriormente, se faz escrava na subserviência do sagrado matrimônio, fruto do sistema patriarcalista. É nesse sentido que Isaura apresenta-se duplamente colonizada; escravizada pelo sistema e, ao mesmo tempo, pelos parâmetros da sociedade patriarcal.

De acordo com Zolin (2000), a crítica feminista mostra, ao longo da história literária, o fato recorrente de obras canônicas que representam a mulher em estereótipos culturais, tais como: a mulher megera, a mulher sedutora e imoral, a mulher anjo sempre pronta a se sacrificar pelos outros. Há vários exemplos em nossa literatura. Queremos destacar o tipo cultural representado por Isaura, a mulher como anjo, indefesa e capaz de sacrifícios em favor dos que a cercam. É interessante notar que a essa representação tradicional da mulher subjaz uma conotação positiva, pois não ofende aos princípios norteadores do patriarcalismo, enquanto que os estereótipos de sedutora, perigosa, imoral ou megera sempre trouxeram uma conotação negativa; demonstram as lutas, interiores ou exteriores, no intuito de se livrar das amarras da inferioridade a que o sistema patriarcal relegou a mulher.

Conclusão

Após tantos anos conhecendo a história de A Escrava Isaura, é bastante engrandecedor o que a teoria pós-colonialista nos permite vislumbrar nas obras de nossa literatura brasileira. Os estudos pós-coloniais podem possibilitar a abertura dos olhos, na busca de outros horizontes em relação a textos já conhecidos, textos que figuram na literatura escolar do país e que, no entanto, alguns ainda apresentam interpretações como se fossem livres de quaisquer ideologias, principalmente em livros didáticos. É de tamanha ingenuidade pensar que a literatura brasileira não traz, em seu bojo, alguma influência européia, do centro literário. Por mais que autores, em diferentes movimentos literários, tenham buscado se libertar dos ditames da metrópole, é clara a imposição ideológica imperialista que moldava a sociedade até alguns séculos atrás. Ora, nosso país é ainda jovem; nossa história é recente na cronologia do mundo e quando falamos dessa literatura escolar, a obra retratada neste artigo é um exemplar de características e padrões comuns à época em que foi escrita, século XIX.

A partir dessas considerações, de cunho pós-colonialista, é que pudemos reler A Escrava Isaura, focalizando sua protagonista, procurando demonstrar como a personagem feminina aparece escravizada de duas formas distintas; uma forma biológica, porém determinada por um regime partidário escravista e outra forma, de caráter social, determinada pelos padrões institucionalizados da sociedade patriarcal.

Isaura é, sem dúvida, retrato fiel da mulher do século XIX, subordinada aos parâmetros sociais vigentes, que não busca, no decorrer do romance, se livrar das correntes que a prendem a uma estrutura alienante. Busca, sim, se libertar da condição biológica que a faz escrava, ainda sob o jugo de Leôncio, pois só deste deseja se livrar. No entanto, a única forma legal de libertar Isaura de Leôncio é arrematando-lhe os bens em dívida, o que faz Álvaro e, desta forma, Isaura passa de propriedade de Leôncio para possessão de Álvaro. É claro que há o elemento romance na obra, representado pelo amor entre Isaura e Álvaro, mas também não há como negar a tamanha conveniência dessa transação ao final do romance. Isaura continua passiva e os eventos lhe acontecem de maneira favorável a que se veja livre do algoz Leôncio, porém, uma vez alforriada, permanece atada aos laços que a unem a Álvaro e a toda uma estrutura familiar patriarcal que vai constituir com o casamento.

Sem dúvida que, ao pensarmos em Isaura representando a colônia, essa colonização é a causa de sua objetificação, tanto pela classe, como pela raça. É em decorrência de uma ideologia do sujeito, onde o eu sobrepõe-se ao outro, que fenômenos sociais como este puderam ter lugar tão privilegiado entre as sociedades. Spivak (1985) fala sobre a ausência de voz no sujeito colonial e também na mulher subordinada. É claro que, somente a partir de uma conscientização existencial, o outro poderá resgatar a sua voz, espoliada há tempos pelo colonizador. A partir dessa nova consciência, processos de resistência e reversão da situação sujeito/objeto podem ser instaurados. As estratégias de resistência ao colonialismo e as suas influências na formação de uma sociedade podem ser o caminho para a subversão radical do eurocentrismo e para a construção da alteridade como sujeito.

Referências

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BHABHA, H. K. A questão do outro: diferença, discriminação e discurso do colonialismo. In:

HOLANDA, H. B. de. (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

BONNICI, T. O Pós-Colonialismo e a Literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2000.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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FANON, F. The wretched of the Earth. Harmondsworth: Penguin, 1990.

GUIMARÃES, B. A escrava Isaura. Chile: Editora América do Sul LDA, 1988.

HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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NGUGI, W. T. Decolonising the mind: The politics of language in African Literature. London: Currey, 1986.

SPIVAK, G. C. Three Women’s texts and a critique of Imperialism. Critical Enquiry. Vol. 21, n. 1, 1985.

ZOLIN, L. O. & BONNICI, T. (Org.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 12 agosto, 2005.