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Por GERUZA DE FÁTIMA TOMÉ
Docente
pela Faculdade de Ciências Gerenciais de Dracena; graduada em
Administração de Empresas; especialista em Gestão Empresarial; mestre em
Ciências SociaIs pela Unesp – Marília/SP; doutoranda em Sociologia pela
Unesp-Araraquara/SP
_____________
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Racismo: o negro e as
condições de sua inserção no mercado de trabalho brasileiro no final da
década de 90
Geruza de Fátima Tomé
Resumo
Este artigo tem por
princípio contribuir criticamente para o debate em torno do racismo
brasileiro, que se revela mais explicitamente no mercado de
trabalho. Por meio de um pequeno diagnóstico, procurar-se-á
confirmar a imensa dificuldade da luta em prol de uma legítima
democracia, da igualdade de condições e oportunidades para a
população negra, visto tamanha injustiça social, econômica e
política entre classes, gêneros e raças, contradições estas
intrínsecas ao próprio modelo capitalista de organização e
reprodução da vida objetiva e subjetiva.
Palavras-chave:
racismo, mercado de
trabalho, democracia
Abstract
This article has for beginning to contribute critically for the
debate around the Brazilian racism, that is revealed in the labor
market. By means of a small diagnosis, it will try to confirm the
immense difficulty of the fight by legitimate democracy, of the
equality of conditions and opportunities for the black population,
sees the depth social, economic injustice and politics among
classes, genders and races, contradictions these intrinsic ones to
the own model organization capitalist and reproduction of the
objective and subjective life.
Key-words:
racism, labor market, democracy |
1 Introdução
O racismo no Brasil se apresenta como um dos grandes desafios
a serem superados pela população negra, já que esta condição, acrescida da
distribuição injusta da riqueza e dos inúmeros benefícios gerados pela
política econômica à classe dominante, notadamente “branca”, relegam a
grande maioria negra a condições extremamente precárias de sobrevivência.
Acredita-se que a luta política pela igualdade entre negros e
“brancos” não está desconectada da luta pelo fim de uma sociedade que tende
a homogeneizar culturas, hierarquizar e coisificar as relações entre as
pessoas que, em última instância, estão condenadas a serem reduzidas
simultaneamente a consumidores e mercadorias. Assim sendo, para que homens e
mulheres sejam humanamente emancipados – já que a emancipação política já
ocorreu – e tenham todos as mesmas condições de desenvolver suas
potencialidades e uma autêntica individualidade, se faz necessário, antes de
tudo, repensar radicalmente este modelo de organização da vida econômica,
social e política.
Nesta análise parte-se do pressuposto de que a esfera da luta
política é expressão direta do modelo econômico adotado, sendo impossível
alterar àquela significativamente em prol de uma maioria subjugada,
independentemente da cor da pele e do gênero, sem que o campo de reprodução
da vida, ou seja, a estrutura econômica e produtiva seja alterada em
profundidade.
O sistema capitalista e suas características imanentes: a
centralização e acumulação do capital e, conseqüentemente, a miséria, a
pobreza e o desemprego gerados por essa lógica; a concorrência; o consumo
desenfreado e generalizado que impulsionam as mudanças nas estruturas das
necessidades humanas; a divisão do trabalho e suas hierarquizações que
limitam as alternativas de sobrevivência para os indivíduos singulares, que
independentemente de suas características pessoas, são obrigados a
disputarem uns com os outros, em uma “arena” denominada “livre mercado”, no
qual as próprias pessoas estão expostas à venda como mercadorias.
Em um texto sobre o capitalismo tardio e a sociabilidade
moderna, Mello e Novais tecem uma argumentação que vem corroborar com o
exposto acima:
[...] O capitalismo cria a ilusão de que as oportunidades
são iguais para todos, a ilusão de que triunfam os melhores, os mais
trabalhadores, os mais diligentes, os mais “econômicos”. Mas, com a
mercantilização da sociedade, cada um vale o que o mercado diz que vale.
Não há nenhuma consideração pelas virtudes, que não sejam as “virtudes”
exigidas pela concorrência, a ambição pela riqueza e a capacidade de
transformar tudo, homens e coisas, em objeto de calculo em proveito
próprio. No entanto, a situação de partida é sempre desigual, porque o
próprio capitalismo, a própria concorrência, entre as empresas e os
homens, recria permanentemente assimetrias entre os homens e as empresas
[...] (MELLO e NOVAES, 1999, p.581-582).
Contudo, é preciso reafirmar que o Estado, ou seja, a
organização política e legal é expressão dessa lógica econômica que acaba
legitimando essa condição por meio dos mais poderosos mecanismos ideológicos
como as instituições educacionais e os meios de comunicação de massa, etc.
Sendo assim, ao se tratar da discriminação racial no Brasil
ou no mundo, não se deve perder de vista todo esse contexto, que em última
instância, determina e hierarquiza a forma de relacionamento entre homens e
mulheres, crianças, jovens e idosos, negros e “brancos”.
Embora, como já mencionado, não seja dicotômica a relação
entre política, ideologia e cultura de um lado e economia de outro, por
questões didático-metodológicos inicia-se o diagnóstico do racismo no Brasil
a partir da esfera econômica, tendo em vista o comportamento e as tendências
do mercado de trabalho no final da década de 1990. Em seguida será
analisada, de maneira bastante sintética, os limites das ações políticas
principalmente daquelas voltadas as ações afirmativas, que são encaradas
neste artigo como paliativos, isto é, medidas pouco efetivas na luta contra
o racismo, mas as únicas ações possíveis no interior do sistema capitalista.
Estas ações imediatamente realizáveis são importantes em curto prazo pois
evidenciam algum tipo de mobilização (mesmo que tenham origem na
solidariedade burguesa cristã), mas em longo prazo, podem ser altamente
nocivas para a luta em prol da emancipação humana já que a estrutura de
exploração da vida não é destruída, a lógica dessa forma de organização
social permanece e é constantemente reposta.
2 A população negra e o mercado de trabalho no Brasil do
final dos anos 90
O DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Sócio-Econômicos – publicou em 2001 um estudo que revelou a situação
do mercado de trabalho no Brasil e suas peculiaridades durante a década de
1990. Isto porque estes anos se caracterizaram pelo crescimento
insignificante do PIB, altas taxas de desemprego, e a crescente precarização
das condições de trabalho, terceirizações, subcontratações, crescimento do
setor informal intensificando a heterogeneidade deste mercado de trabalho
(Alves, 2000; Antunes, 1999; Malaguti, 2000).
Contudo, uma pequena parte deste diagnóstico foi dedicado à
discriminação racial no mundo do trabalho brasileiro, ainda muito pouco
estudada pelos institutos de pesquisa em geral.
Desta forma, afirmam que,
[...] as escassas avaliações realizadas recentemente tem
cumprido um papel relevante para o entendimento da realidade nacional,
pois, quando associadas a outras investigações que fogem a visão
tradicional e homogênea do trabalhador, apontam quem são os desiguais,
entre os quais, não raro, a maioria é afro-descendente [...] (DIEESE,
2001, p.127)
Sem dúvida nenhuma, alguns destes dados estatísticos que aqui
serão analisados revelam o quão camuflado é o racismo brasileiro,
desmistificando a tão mencionada “democracia racial”.
No interior de um sistema econômico totalizador,
imanentemente concentrador do lucro advindo da exploração do trabalho não
remunerado (mais-valia), que hierarquiza as relações entre humanos e coisas,
em que posição na estrutura de relações sociais seriam dispostas as pessoas
que historicamente foram relegadas à condição de escravos, pois considerados
inferiores pelo fato de serem negros? A resposta óbvia, segundo a lógica do
próprio sistema, seria a de colocá-los na parte mais baixa da pirâmide
social.
Por este motivo, considera-se que
[...] o mercado de trabalho é uma das esferas em que se
distingue com mais clareza a eficiência dos mecanismos discriminatórios no
Brasil, assim como seu modo sutil de operar. Pois, ocultado por fatores
aparentemente objetivos, derivados de novas e tradicionais exigências
produtivas, velhas questões permanecem: os indivíduos negros estão
sujeitos mais ao desemprego, permanecem mais tempo nesta situação e,
quando tem trabalho, lhe são reservados postos de trabalho de menor
qualidade, status e remuneração [...] (DIEESE, 2001, p.127-128)
Em se tratando da inserção da população negra no mercado de
trabalho no ano de 1999, tendo em vista as seis regiões metropolitanas
estudas pela PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego, os negros representavam
41,3% do total da População em Idade Ativa (PIA), que compreende as idades
de 10 a 40 anos ou mais. Ao analisar separadamente as regiões, constatou-se
que em Salvador os negros eram a grande maioria 82,4% da PIA, seguida por
Recife 65,2%, Distrito Federal 58,8%, Belo Horizonte 53,3%, São Paulo 31,4%
e Porto Alegre 10,4% (DIEESE, 2001, p.129).
Esses dados confirmam o processo histórico de formação
econômica e social, no qual os grandes latifúndios, fundamentados pelo
trabalho escravo, estavam em sua maioria concentrados na região nordeste do
Brasil. Neste caso, explica-se a maior concentração da população negra
nestas regiões.
O estudo também revela a taxa de participação da população
negra no mercado de trabalho. Fica evidente ser a participação dos negros
superior a dos “não-negros”
nas idades entre 10 a 24 anos e também acima dos 40 anos de idade. Já na
idade considerada mais produtiva pelo mercado (de 25 a 39 anos) os
“não-negros” aumentam a sua taxa de participação no mercado de trabalho,
chegando a ser maior em relação aos negros em Recife, Salvador e São Paulo.
Tabela 1- Taxas de participação
da PIA específica segundo cor e faixa etária - Regiões metropolitanas – ano
1999 (em %).
Regiões
|
Belo Horizonte |
Distrito Federal |
Porto Alegre |
Faixa etária |
Total |
Cor Negra |
Cor Não Negra |
Total |
Cor Negra |
Cor Não
Negra |
Total |
Cor Negra |
Cor Não
Negra |
Total |
57,2 |
57,9 |
56,4 |
62,0 |
62,7 |
60,9 |
58,3 |
59,5 |
58,2 |
10 a 15 anos |
7,4 |
8,0 |
6,5 |
6,4 |
6,9 |
5,6 |
7,7 |
(1) |
7,4 |
16 a 24 anos |
67,3 |
69,8 |
64,3 |
68,1 |
69,7 |
65,6 |
69,6 |
69,0 |
69,7 |
25 a 39 anos |
79,8 |
79,5 |
80,2 |
85,4 |
85,9 |
84,7 |
82,0 |
82,70 |
81,9 |
40 anos e + |
50,8 |
52,0 |
49,6 |
57,8 |
59,0 |
56,3 |
53,0 |
56,4 |
52,6 |
Regiões
|
Recife |
Salvador |
São Paulo |
Faixa etária |
Total |
Cor Negra |
Cor Não Negra |
Total |
Cor Negra |
Cor Não Negra |
Total |
Cor Negra |
Cor Não Negra |
Total |
54,0 |
54,3 |
53,5 |
62,0 |
60,7 |
57,8 |
58,3 |
59,5 |
58,2 |
10 a 15 anos |
9,1 |
9,8 |
7,7 |
9,9 |
10,4 |
-(1) |
7,7 |
(1) |
7,4 |
16 a 24 anos |
60,1 |
61,6 |
57,2 |
66,6 |
68,0 |
59,0 |
69,6 |
69,0 |
69,7 |
25 a 39 anos |
77,2 |
76,8 |
78,0 |
84,4 |
84,3 |
85,1 |
82,6 |
82,1 |
82,8 |
40 anos e + |
49,0 |
49,9 |
47,6 |
56,0 |
57,3 |
51,2 |
55,9 |
61,2 |
54,1 |
FONTE: DIEESE, 2001, p131
(1) A amostra não comporta desagregação para
esta categoria
Obs: Negros = pretos e pardos. Não-negros =
brancos e amarelos
Sendo assim, constata-se que os negros têm maior participação
no mercado de trabalho nas faixas etárias mais extremas, antes dos 16 anos e
depois dos 40 anos de idade, o que revela a maior necessidade desta
população se inserir na infância no mercado de trabalho e, por outro lado,
de permanecer por muito mais tempo do que os “não-negros” trabalhando.
[...] o fato de os indivíduos negros manterem uma
mobilização para o trabalho maior que a dos demais segmentos étnicos da
sociedade brasileira não tem revertido, necessariamente, em sucesso. Ao
contrário, são os negros que sofrem mais com o desemprego [...] (DIEESE,
2001, p.134)
Pode-se confirmar com estes dados que quanto mais cedo o
trabalhador se insere no mercado, menos tempo existe para o investimento em
uma educação de qualidade, o que contribui de forma negativa para que este
permaneça em ocupações precárias por muito mais tempo. Auferindo rendimentos
abaixo do mínimo necessário a uma existência digna, é preciso permanecer
trabalhando na velhice e requisitar o auxílio dos mais novos para aumentar a
renda. Esse movimento se torna um círculo vicioso.
Outro dado revela que a taxa de desemprego em 1999 era
elevada em todas as regiões metropolitanas onde a PED é realizada, sendo as
mais baixas em Belo Horizonte (17,9% da PEA – População Economicamente Ativa
– metropolitana), Porto Alegre (19,0% da PEA), e São Paulo (19,3% da PEA).
As taxas mais altas estavam no Distrito Federal (21,6% da PEA), Recife
(22,1% da PEA) e Salvador (27,7% da PEA).
Dividindo-se a taxa de desemprego de cada região entre negros
e “não-negros”, verificou-se que em Belo Horizonte 19,4% da PEA negra
estavam desempregados contra 16,3% da PEA “não-negra”, em Porto Alegre 26,4%
da PEA negra estavam desempregados contra 18,0% da PEA “não-negra”, em São
Paulo 24,3% da PEA negra contra 16,8% da PEA “não-negra”. Segundo análise do
DIEESE, este fosso que escancara as condições desiguais entre negros e
“não-negros” poderiam ser explicados pela presença numericamente inferior
dos negros na região sul do país contribuindo para o alto índice de
desemprego destes. Esta explicação seria convincente se não fosse
diagnosticada essa mesma tendência das altas taxas de desemprego entre os
negros nas regiões onde numericamente eles são maioria. Assim, no Recife
23,3% da PEA negra estavam desempregados contra 19,7% de desempregados da
PEA “não-negra” e em Salvador 29,1% da PEA negra estavam desempregados
contra 21,2% da PEA “não-negra”.
Tabela 2 - Taxa de desemprego por
raça – Regiões metropolitanas em 1999 (em%).
Regiões Metropolitanas |
Total |
Raça |
Negra |
Não Negra |
Belo Horizonte |
17,9 |
19,4 |
16,3 |
Distrito Federal |
21,6 |
23,2 |
19,3 |
Porto Alegre |
19,0 |
26,4 |
18,0 |
Recife |
22,1 |
23,3 |
19,7 |
Salvador |
27,7 |
29,1 |
21,2 |
São Paulo |
19,3 |
24,3 |
16,8 |
FONTE: DIEESE, 2001, p.135
Contudo, argumenta-se tendo em vista este panorama, que essa
condição é devida ao baixo nível de escolaridade da população negra em
relação aos “não-negros”. Este fato fortaleceria a crença de que por meio do
acesso irrestrito do negro a uma educação de qualidade do ensino fundamental
ao superior, suas condições de inserção no mercado de trabalho se igualariam
positivamente ao dos “não-negros”. No entanto, quando comparada as taxas de
desemprego por nível de escolaridade segundo a cor da pele, principalmente
nas regiões onde os negros estão presentes em maior número, como no
nordeste, de acordo com o DIEESE (2001, p.135), “é nítido que negros
apresentam taxas de desemprego maiores que as verificadas para os não-negros
com igual escolaridade”.
Mesmo que no quadro geral se note uma diminuição do
desemprego entre negros e não-negros com grau superior, não se pode negar
que em termos quantitativos a presença do negro é inexpressiva nas
faculdades, o que influencia na diminuição desta distância estatística,
ou mesmo possibilita uma inversão da tendência apresentada como no caso do
Distrito Federal. Assim, fica evidente a preferência do mercado pelos
considerados “brancos”.
Tabela 3 - Taxas de desemprego
total, por nível de escolaridade, segundo a cor – Regiões metropolitanas –
1999 (em%).
Regiões |
Cor |
Analfabeto |
Fundamental Incompleto |
Fundamental Completo |
Médio Incompleto |
Médio Completo |
Superior |
Belo Horizonte |
Negra |
16,7 |
21,3 |
20,3 |
26,6 |
15,7 |
6,9 |
Não Negra |
13,4 |
19,9 |
19,6 |
25,4 |
14,3 |
6,7 |
Distrito Federal |
Negra |
24,8 |
28,5 |
26,4 |
34,3 |
19,0 |
6,8 |
Não Negra |
23,6 |
27,0 |
24,6 |
31,8 |
18,4 |
7,8 |
Porto Alegre |
Negra |
(1) |
28,9 |
26,9 |
(1) |
19,6 |
(1) |
Não Negra |
(1) |
21,1 |
19,9 |
26,6 |
15,0 |
8,9 |
Recife |
Negra |
19,3 |
24,6 |
26,1 |
32,5 |
21,3 |
10,5 |
Não Negra |
15,0 |
23,8 |
22,2 |
28,9 |
19,1 |
9,2 |
Salvador |
Negra |
24,0 |
32,9 |
32,6 |
40,7 |
23,3 |
12,2 |
Não Negra |
(1) |
29,4 |
30,0 |
33,0 |
20,2 |
11,6 |
São Paulo |
Negra |
22,6 |
25,1 |
27,3 |
33,6 |
19,2 |
10,4 |
Não Negra |
18,1 |
19,5 |
20,7 |
27,2 |
15,8 |
8,0 |
FONTE:DIEESE, 2001, p.136
(1) A amostra não comporta desagregação para
esta categoria
Somando-se a cor da pele, outras características acabam por
agravar a situação da população negra no país como o fato de ser mulher e da
já mencionada baixa escolaridade. Isso fica mais evidente quando se analisa
a qualidade da “inserção ocupacional” dos negros em relação aos não-negros,
ou seja, quem tem maior acesso a trabalhos com carteira assinada e todas as
garantias e benefícios sociais derivados do vínculo empregatício.
Em 1999 os dados demonstravam que na hierarquia das relações
sociais as mulheres de modo geral ainda estavam em desvantagem no mercado de
trabalho tendo a maior taxa de participação em ocupações precárias
(trabalhos domésticos, assalariados sem carteira assinada, autônomos que
trabalham para o público, etc). Mas quando os dados são analisados a luz da
cor da pele, mulheres e homens negros em maior número estão ocupando os
postos de trabalhos mais vulneráveis, sendo que em regiões como Recife,
Salvador e São Paulo, as mulheres negras são maioria nos trabalhos
precários, superando a marca de 50% das ocupações em relação às mulheres
consideradas brancas.
Tabela 4 – Proporção de ocupados em
situação de trabalho vulneráveis por sexo e raça – Regiões metropolitanas –
1999 (em%)
Regiões |
Negra |
Não Negra |
Total |
Homens |
Mulheres |
Total |
Homens |
Mulheres |
Belo Horizonte |
39,6 |
33,2 |
47,8 |
32,7 |
27,7 |
36,3 |
Distrito Federal |
34,7 |
26,7 |
43,1 |
25,1 |
19,2 |
30,5 |
Porto Alegre |
39,1 |
30,8 |
47,4 |
33,8 |
30,0 |
38,5 |
Recife |
47,5 |
40,6 |
57,3 |
39,5 |
34,3 |
45,0 |
Salvador |
45,2 |
37,8 |
53,8 |
28,7 |
24,7 |
32,2 |
São Paulo |
42,8 |
33,5 |
53,4 |
33,2 |
29,8 |
37,9 |
FONTE: DIEESE, 2001, p.138.
Sem dúvida vivemos numa sociedade tão racista quanto
machista!
3 Os desafios da luta pela emancipação humana
Os dados que até aqui foram analisados descrevem sumariamente
as características e as condições do campo de luta contra o racismo no
Brasil. Vê-se que mesmo naquelas regiões metropolitanas nas quais a maioria
da PIA (População em Idade Ativa) é negra, como Salvador e Recife, essa
população sofre com a mesma intensidade ou mais as conseqüências das medidas
que os discriminam e os segregam socialmente.
Mais uma vez é essencial destacar que mesmo com idêntica
formação acadêmica ao “branco” a maioria dos negros não consegue ocupações
de alta qualificação e confiança e quando consegue furar este bloqueio, não
são remunerados da mesma forma que o “branco”, auferindo ganhos sempre
menores.
Contudo, o que se pode fazer para que essa condição
extremamente desigual e injusta possa ser eliminada? Quais as medidas que
devem ser tomadas para que o negro tenha as mesmas oportunidades e condições
que os “brancos” de manutenção, produção e reprodução da sua vida objetiva e
subjetiva?
Infelizmente, as várias respostas obtidas ainda estão muito
longe de resolver este dilema, até porque, no interior do sistema
capitalista não há condições de todos os seres humanos em particular
desfrutarem de todos os benefícios e riquezas produzidas socialmente. Esta
forma de organização social é imanentemente injusta, excludente e
hierarquiza as relações entre aqueles que detém o poder político, econômico
e militar – a classe dominante –, e os dominados, aqueles que vivem do seu
trabalho. “Malgrado as contradições sociais se manifestarem materialmente
no espaço, não se pode, no entanto, esquecer que o espaço global de nossa
época revela um amplo predomínio das relações de dominação [...]” (VESENTINI,
1990, p.14).
Contudo, é importante frisar que a lógica do sistema
capitalista e suas contradições não teriam se expandido mundialmente não
fosse a legitimidade política-legal conferida a este por meio do Estado
burguês.
[...] O desenvolvimento do capitalismo e a produção do
espaço não podem ser compreendidos sem ligações com o Estado. Desde a
acumulação primitiva (séculos XVI, XVII e XVIII), processo deflagrador da
produção e da sociabilidade capitalista, que o Estado vem se expandindo e
multiplicando suas funções [...] Além da proteção de um mercado “nacional”
pela fixação de fronteiras e política alfandegária, a ação estatal em prol
da economia capitalista foi intensa e essencial: estabelecimento de regras
que governam as relações sociais de produção internas à sua jurisdição
[...]; a repressão – e o disciplinamento por variados instrumentos
(inclusive o sistema escolar) – da força de trabalho, buscando adequá-la a
racionalidade da produção capitalista [...] (VESENTINI, 1990, p.16)
Toda problemática em torno da mundialização ou expansão
necessária do capitalismo fundamentada pelo Estado, traz a tona uma série de
acontecimentos políticos-econômicos essenciais à efetivação desse objetivo,
entre eles “a partilha e colonização da África e da Ásia pelas potencias
européias” (VESENTINI, 1990, p.21).
Sartre no prefácio de “Os condenados da terra” de Fanon
explicita o que significou a colonização para esta população.
[...] A violência colonial não tem somente o objetivo de
garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los. Nada
deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua
deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é
preciso embrutecê-los pela fadiga [...] Se resiste, os soldados atiram, é
um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o
temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a
personalidade[...](SARTRE, 1979, p.9)
Os desdobramentos subjetivos da ação colonizadora já no
início do século XIX causaram prejuízos irreparáveis à população negra em
todo o mundo. Isto porque ainda hoje, mesmo com a independência formal dos
países, o negro, o índio, não conseguiram se desvencilhar dessa herança
histórica que os reduzem a uma categoria humana inferior.
Ao argumentar sobre a necessidade da descolonização, Sartre
descreve que,
[...] Quando domesticamos um membro de nossa espécie,
diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido
a condição de animal domesticado acaba por custar mais do que produz. Por
esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do
caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado,
subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja
amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um
preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força [...]
(SARTRE, 1979, p.10)
Tendo em vista a supremacia ocidental norte-americana e
branca, é correto afirmar que a humanidade ainda se encontra subjugada a
mesma lógica colonialista de dominação política, militar, econômica e
cultural. O Estado continua a ser um poderoso mediador, fundamental a
legitimação desta lógica de expansão do ideário burguês.
Sendo assim, ao pensar na luta pela promoção da igualdade
entre os seres humanos, e aqui especificamente entre negros e “brancos”, que
tenha como principal parceiro o Estado burguês na luta contra a
discriminação, deve-se levar em consideração que nenhuma medida estatal será
tomada contrariamente à reprodução dessa lógica que se fundamenta pela
exploração, dominação e acumulação do capital em escala planetária. Ou seja,
esperar que o Estado nacional, por meio de medidas legais elimine de fato as
injustiças e discriminações sociais, principalmente àquelas voltadas ao
acesso a postos de trabalho, é no mínimo ingenuidade tendo em vista a
natureza capitalista do Estado.
Ao ser incomodado por um movimento social organizado, mesmo
que desarticulado regionalmente ou nacionalmente como o movimento negro, mas
que de alguma forma consegue dar visibilidade aos graves problemas dessa
população, que com base na constituição federal deveriam, mas não são
tratados como cidadãos o Estado lhes concede algumas concessões que permite,
em última instância, uma certa tranqüilidade a efetivação do projeto
político neoliberal.
Estas concessões favorecem este ou aquele grupo social, mas
não alteram em definitivo a sua condição, pois nada pode interferir
negativamente nos interesses da classe dominante e no seu projeto de
acumulação. Estas medidas, como as ações afirmativas, a descriminação
positiva em prol dos negros, que em muitos casos são tratadas como soluções
para os problemas das “minorias”, serão sempre paliativas, expressão de uma
“vontade política” que jamais deve ser efetivada em sua totalidade.
Em se tratando do racismo no Brasil, são utilizados todos os
tipos de argumentos que dizem respeito à habilidade, capacidade intelectual,
formação, etc., para legitimar a não inserção do negro em ocupações
qualificadas no mercado de trabalho. A ausência incontestável da população
negra nos postos de trabalho mais qualificados e, portanto, nas classes de
nível econômico mais elevado, e a divulgação destas informações impõe a
mídia, a academia e ao governo a emergência moral, mesmo que superficial, de
promover propostas que visem em longo prazo “a promoção da igualdade”
nacional. No entanto, não deixam de ser ações imediatamente realizáveis,
escolhas possíveis no interior das restritas alternativas socialmente
criadas.
Valenzuela (1999, p.173), socióloga e consultora da OIT
(Organização Internacional do trabalho), afirma que essas medidas se
concentram “na orientação, na intermediação e na capacitação para o
trabalho, com admissão focalizada”.
Ela mesma sugere que
[...] As políticas educacionais e de formação para o
trabalho podem entregar as mulheres e aos negros ferramentas necessárias
para um melhor desempenho no mundo do trabalho. São importantes, também,
as atividades de capacitação para o desenvolvimento de carreiras
profissionais que permitam ascender a posições superiores
hierarquicamente, como forma de enfrentar a segmentação do mercado de
trabalho, permitindo seu acesso às ocupações de melhor nível de
remuneração e prestígio” [...]”(VALENZUELA, 1999, p.173)
Mas por tudo o que já foi demonstrado neste artigo, essas
medidas seriam o suficiente para elevar os negros a melhores condições de
vida, ou seja, ao status de burguês? É claro que não! O negro continua sendo
a maior vítima do desemprego e das ocupações precarizadas mesmo quando
possui a mesma escolaridade do “branco”.
Assim sendo, acredita-se que a única forma de promover a
igualdade entre as pessoas, mais especificamente, de eliminar a concepção
generalizada da inferioridade inata da raça negra, é eliminando a estrutura
de organização social que necessariamente precisa inventar os seus
“inferiores” para justificar a miséria gerada pelo sistema, eleger uma
cultura e valores superiores para generalizá-los amplamente e hierarquizar
as relações entre homens e mulheres.
Somente alterando as práticas cotidianas entre as pessoas na
sua totalidade, ou seja, a forma como se organizam para reproduzir a sua
vida material (econômica), é que seria possível alterar as suas concepções e
ideologias, transformando a sua subjetividade. Isso não vai acontecer se
essas pretensas alterações práticas forem realizadas isoladamente, como os
pequenos grupos da chamada economia solidária que surgem no interior do
sistema capitalista, mas que seguem essencialmente o modelo de gestão
empresarial do dominador para poder concorrer no mercado. E o mercado é
capitalista e sua essência é a concorrência e não a solidariedade.
Ainda não há vestígios de melhorias concretas neste terreno,
porque ainda não se conseguiu disseminar de forma eficaz a gravidade e a
urgência de uma discussão nacional e mundial em prol de um novo projeto de
organização social, que priorize o desenvolvimento das potencialidades
humanas e de suas individualidades em detrimento do capital. A degradação
humana é cada vez maior, mas as ideologias patrocinadas pelo Estado e
disseminadas por seus veículos (a mídia, a polícia, a escola, a fábrica,
etc), nublam as vistas e atrofiam a luta contra essa tendência.
Fanon, chega a algumas conclusões importantes sobre o negro e
esta forma de sociabilidade.
[...] Se ele se encontra submerso a esse ponto pelo desejo
de ser branco, é que ele vive em uma sociedade que torna possível seu
complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da
manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de
uma raça, é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades
que ele é colocado em uma situação neurótica [...] (FANON, 1983, p.83)
E continua afirmando que só há um caminho possível para a
transformação dessa estrutura social injusta.
[...] o negro não deve ser mais colocado dentro desse
dilema: tornar-se branco ou desaparecer, mas ele deve poder tomar
consciência de uma possibilidade de existir, ou se a sociedade lhe causa
dificuldades, devido a sua cor, se eu constato em seus sonhos a expressão
de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será
dissuadi-lo, aconselhando-lhe a “manter suas distâncias”; meu objetivo, ao
contrário será, uma vez as causas determinantes esclarecidas, torná-lo
capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira
origem do conflito isto é, a respeito das estruturas sociais [...] (FANON,
1983, p.83-84)
Sendo assim, resta a ciência e aos estudiosos da causa,
pulverizar as informações a respeito das injustiças vividas e sofridas, que
é parte imanente, indissociável do sistema capitalista de organização
material da vida em sociedade. Sem maquiagens, sem falsas ilusões e
soluções, é preciso compreender a realidade e lutar sem perder de vista a
raiz do problema. Sem um projeto que possa dar fim à lógica dessa estrutura
social e suas contradições, jamais se poderá pensar em igualdade e liberdade
em seu sentido etimológico.
______________
Classificação adotada pelo instituto de pesquisa.
Supondo este exemplo fictício, se encontrássemos em uma região 3 negros
com curso superior nos quais todos estivessem empregados e 10 brancos
com curso superior nos quais 7 estariam empregados eu teria uma taxa de
desemprego por grau de escolaridade mais elevada entre os brancos, que
seria de 30%.
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