Viagem e turismo cultural
Sandra
Maria Pereira do Sacramento
Um
dia
Ainda
eu hei de morar nas terras do fim do mundo.
Cobra
Norato Raul Bopp
Resumo:
Este
trabalho vincula o tema viagem ao turismo cultural, na medida em
que países colonizados, como o Brasil, superaram
a condicionante existencial que estabelecia uma cartografia
balizadora capaz de não levar em conta a alteridade.
Palavras-chave:
Turismo cultural – Alteridade e Literatura.
Abstract
This
work ties to the subject trip with the cultural tourism, in the
measure where colonized countries, as Brazil, had surpassed the
existencial condicionante that established a cartography maker
capable not to take in account the alteridade
Key-Words:
Cultural tourism - Alteridade and Literatura |
1.
A recorrência do tema viagem na literatura
Os
estudos acerca da identificação de identidades
em culturas de países colonizados, como o Brasil, lidam, a partir
do arcabouço teórico dos estudos culturais e pós-coloniais,
dimensionando as nossas idiossincrasias , em uma perspectiva de dispersão,
contrária às abordagens passadas centradas
em um conceito de brasilidade que em nada nos representava.
O
tema da viagem na literatura esteve presente desde as produções da Antigüidade.
Na epopéia homérica Odisséia, encontramos a narração das
desventuras de Ulisses em sua volta a Ítaca. Após a guerra de Tróia,
Odisseu singrou os mares por vinte anos até chegar à sua terra natal,
tendo passado por toda sorte de intempéries; entretanto, como a fase
retratada encerra um cunho mítico-trágico, o herói agia movido pelo
comando dos deuses pagãos, nunca questionados, que lhe conduziam o
caminho. Nesta dimensão, o herói encarna a noção de super-homem (Übermensch)
nietzschiana. Para Nietzsche, em Genealogia da moral (1988) e em Além
do bem e do mal (1992), a divisão entre o pensamento trágico-mítico
e o racional socrático-platônico instaurou a moral dos escravos, de rebanhos,
dos homens acovardados, porque renega a vida, na medida em que subjuga os
instintos em nome da paz e do repouso; tornando-os assim enfraquecidos,
ressentidos e impotentes diante da vida. Essa moral é falsa e subsidiou a
tradição religiosa judaico-cristã.
A
questão mítica em Homero justifica-se no pensamento pré-racional e
refuta o conceito dualista entre bem/mal, pois bom e belo são os heróis
protegidos pelos deuses, uma vez que estão condicionados à Moira ou
Destino. Mesmo fora de equilíbrio psíquico, Agamenon reconhece o domínio
da vontade divina como condutora de seu destino:Ninguém me lançará
ao Hades contra as ordens do destino! Garanto-te que nunca homem algum,
bom ou mau, escapou ao seu destino, desde que nasce.
Assim,
o herói não possuía vontade pessoal, uma vez que lhe faltava o
livre-arbítrio, preso ao racional. Por outro lado, o homem-fera,
domesticado pelo ascetismo, condicionado ao controle racional das paixões,
torna-se desconfiado. Por isso, Nietzsche propõe uma perspectiva além do
bem e do mal, entretanto: “A dimensão das forças, dos instintos, da
vontade de potência, permanece fundamental. O que é bom ? Tudo que
intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a
própria potência. O que é o mau? Tudo que provém da fraqueza”. (MACHADO,
1984, p.77)
Nesta
perspectiva, mau é o desprezível e não o troiano inimigo. Na Odisséia,
como na Ilíada também, todos os valores correntes na época
se fazem presentes. Têm uma função didática e estão comprometidas com
os referenciais gregos da civilização micênica, que vai do segundo milênio
a. C ao século XII a. C, ligada à importância da cidade de Micenas. O
espaço relatado evoca o estabelecimento dos gregos na costa da Ásia, do
mundo conhecido, não indo a viagem além do Mar Egeu. Tal período forma
simbolicamente o imaginário ideológico dos conquistadores helenos e sua
empresa expansionista. O mundo grego do período micênico, narrado por
Homero, circunscrevia-se a pequenos e grandes reinos de Esparta, Atenas,
Pilos, Micenas e Tebas. Estes eram independentes, com o poder centralizado
em grandes palácios, subordinados ao reino de Agamenon, em Micenas.
Antes
de alcançar as praias da Feácia, para finalmente encontrar sua esposa
Penélope e seu filho Telêmaco, Odisseu sofre o seu último impedimento
imposto por Poseidon, uma vez que o guerreiro havia cegado o único olho
de seu filho, o Ciclope Polifemo.
Mal
terminara de falar, descomunal vaga desprendendo-se sobre ele, atingiu a
jangada e a voltou. Ulisses foi arrojado longe da embarcação, e deixou o
leme fugir das mãos; o mastro fendeu-se em dois, devido à terrível violência
dos ventos, que de todos os lados o acossavam , e espalharam ao longe os
restos; o castelo da popa desmoronou-se no mar.
(HOMERO,1979, p.56)
Entretanto,
Odisseu se salva com a interferência da ninfa Ino que lhe oferece um véu
com o qual deveria cingir sua cintura. Esse assim o faz, abandonando o
barco e nadando por dois dias até a foz de um rio, quando finalmente
encontra a praia. Antes, porém devolve o véu ao mar para que a ninfa
pudesse recolhê-lo.
No
início da Idade Moderna, há a expansão da cartografia planetária e Os
Lusíadas de Luís de Camões promovem o mapeamento etnográfico e político,
preso ao ideário do metalismo corrente. Os Lusíadas narram a
viagem de Vasco da Gama às Índias, dimensionando a ampliação dos domínios
portugueses na Ásia e, posteriormente, na África, legitimando o
Absolutismo e os interesses europeus, postos sobre as terras recém-alcançadas.
Em narração in medias res, tomamos contato com o início da
viagem, relatada, após esta já estar em pleno desenvolvimento.
Já
no largo Oceano navegavam,
As
inquietas ondas apartando:
Os
ventos brandamente respiravam,
Das
naus as velas côncavas inchando; (Canto
1; estância 19)
A
frota segue no Mar Índico, próximo a Madagascar, e chega a Moçambique.
Ainda que o governador de Moçambique trabalhasse
contra os portugueses, e contasse com o apoio de Baco, entretanto,
os lusos saem vitoriosos. Continuam a viagem, contornando Quiloa e chegam
a Mombaça.
No
mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas
vezes a morte apercebida;
Na
terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta
necessidade aborrecida!
(Canto 1, estância 106)
É
interessante notar que a visão do outro se faz presente
em Os Lusíadas.No Canto 2, quando a armada ancora em Mombaça,
o rei manda a seguinte mensagem aos viajantes:
E
porque está em extremo desejoso
De
te ver, como cousa nomeada,
Te
roga que, de nada receoso,
Entres
a barra, tu com toda a armada. ( estância 3)
Ser
cousa nomeada é ser conhecida. De alguma forma o
rei conhecia o espaço delimitado por seu reino e o contato com a
esquadra significava a ampliação do limite territorial. Em outra
passagem, já na canto 4, reportando à saída da Torre de Belém, aparece
o Velho do Restelo. Essa fala alinha-se à voz da alteridade, que
vislumbra outra intenção dos navegadores, além da expansão da fé e a
suposta correção civilizatória que soia aos povos que se
encontravam mais avançados como os europeus. Camões na Proposição de Os
Lusíadas coloca as intenções virtuosas do povo lusitano:
As
armas e os Barões assinalados
Que,
da Ocidental praia Lusitana,
Por
mares nunca dantes navegados
Passaram
ainda além da Trabobana,
Em
perigos e guerras esforçados
Mais
do que prometia a força humana,
E
entre gente remota edificaram:
E
também as memórias gloriosas
Daqueles
Reinos que forma dilatando
A
Fé, o império e as terras viciosas
De
África e de Ásia andaram devastando.
E
aqueles que por obras valorosas
Se
vão da lei da Morte libertando:
Ora,
o povo civilizador detém todos os atributos
hegemônicos do etnocentrismo. Suas obras são valorosas, dilataram
a Fé e o império, enquanto que as
terras viciosas de África e de Ásia necessitavam de correção. Essa
empreitada ensejou a expansão colonialista do mercantilismo e do
imperialismo, não menos colonialista, do capitalismo. Sua duração foi
estendida à guerra fria, após a Segunda Guerra Mundial; quando o
neo-colonialismo se impôs, disseminando o american way of life .
Tal
visão, porém, ganha em Montaigne, em seus Ensaios um
distanciamento do referencial imposto pelo colonizador diante do novo.
Montaigne critica a certeza racionalista do logos vigente e, ao
colocar suas indagações em forma de ensaios, instaura também uma nova
forma de pensar o mundo que dispensa
o definitivo dos discursos hegemônicos e funda a noção de
incompletude.
Em
A arte de viajar, o relativismo cultural se faz presente
porque, para ele, cada uso tem a sua razão e adverte: Penso que há mais
barbárie em comer um homem vivo do que morto, em destroçar por tormentos
e torturas um corpo cheio de sentimentos. (cap.xxxi,p.239). Entretanto,
Todorov insiste em encontrar uma aporia no pensamento de Montaigne, na
medida em que este utiliza o termo bárbaro, tanto do ponto de vista
positivo e histórico, quanto negativamente e ético, isto é, aquele
capaz de causar o mal por sua crueldade. Subjacente ao texto de Camões,
encontramos aquilo que Said afirma em Cultura e Imperialismo (
1995):
Na
expansão dos grandes impérios ocidentais, o lucro e a perspectiva de
mais lucro foram, evidentemente, de enorme importância, como provam
amplamente os atrativos das especiarias, açúcar, escravos, borracha,
algodão, ópio, estanho,
ouro e prata ao longo dos séculos.(p.41)
Tal
mecanismo ideológico radicava-se na necessidade de construção imaginária
da realidade, como viu Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas
(2001), cujos efeitos influenciadores exerceram, subsidiariamente, um
instrumento precioso para a interpretação histórica das terras recém-descobertas,
empenhada em cimentar uma consciência coletiva de pertencimento. Ainda em
Os Lusíadas, fazemos menção à cena idílica da Ilha dos Amores,
quando os navegadores folgam com as nereidas, no retorno da Índia:
Três
formosos outeiros se mostravam
Erguidos
som soberba graciosa,
Que
de gramíneo esmalte se adornavam,
Na
formosa ilha alegre e deleitosa.
( Canto 9, estância 54)
E
Vasco da Gama é conduzido por Tétis a um monte em amorosa entrega:
Sereis
entre os Heróis esclarecidos
E
nesta Ilha de Vênus recebidos.
( Canto 9, estância 95)
Mesmo
que o relato guarde a dimensão do maravilhoso pagão, há toda uma pronta acolhida aos grandes feitos heróicos, com a
recepção das deidades marinhas a conduzi-los à ira honesta (Canto 9,
estância 83). A permanência desse discurso vai se manter na literatura
informativa de viagem do início da nossa colonização. Tanto na Carta
de Caminha, no Tratado da Terra do Brasil de Pero de Magalhães
Gândavo, no Tratado da terra e gente do Brasil de Fernão Cardim,
como em História da América portuguesa de Rocha Pita encontramos
uma leitura pormenorizada do local e de seus muitos atrativos
à espera de alguma intervenção.
Em
nenhuma outra região se mostrou o céu mais sereno, nem madrugada mais
bela a aurora; o sol em nenhum outro
hemisfério tem raios tão dourados, nem reflexos noturnos tão
brilhantes; (... ) é enfim o Brasil terrenal Paraíso descoberto, onde têm
nascimento e cursos os maiores rios, domina salutífero clima, (...), que
fazem fértil e povoado de inúmeros habitantes. (PITA,1965:12)
Não
menos paradisíaca é a terra descrita pelos demais. Quanto aos seus
habitantes, estes foram definidos sempre pela falta, pelo exotismo de seus
costumes se comparados aos do europeu.
[...]
E em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
tudo por bem das águas que tem, porém o melhor fruto que nela se pode
fazer me parece que será salvar esta gente e esta deve ser a principal
semente que vossa alteza em ela deve lançar. (Pero Vaz de Caminha)
( grifo nosso )
A
formação discursiva se repete também em Gândavo:
A
língua deste gentio toda plea Costa he, huma: carece de três letras –
scilicet , não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto,
porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem sem
Justiça e desordenadamente.Estes índios andão nus sem cobertura alguma,
assi machos como fêmeas, não cobrem parte nehuma de seu corpo, e trazem
descoberto quanto a natureza
lhes deu. [...] ( 1980:18)
Todorov,
em Nous et les outres (1989), fala acerca do paradoxo constitutivo
que caracteriza o olhar europeu diante da terra recém-descoberta.
Trata-se de um conhecimento meramente superficial que não caracteriza de
fato aquilo que lhe era desconhecido. Por isso, contradições nos
enfoques se fazem presentes, sendo o índio, muitas vezes, elogiado e, ao
mesmo tempo, chamado de selvagem (aquele que habita a selva), mas também
de canalha e de muitos adjetivos negativos que em nada contribuíram para
entender o habitante da terra. O canibalismo,
por exemplo, não era visto pelos europeus como um ritual em que só
os inimigos corajosos eram devorados, em situações especiais, sendo em
muitos relatos visto como algo costumeiro, violento e banal.
Houve
o imperativo da legitimação da posse, isso porque ao real descoberto
(sem-sentido), colocavam-se prementes a fantasia (imaginação) e,
enquanto legitimação da posse (imaginário), a ideologia (imaginário).
Em Discurso de Fundação (2003), organizado por Eni Orlandi, há a
seguinte afirmação:
Todo
o percurso em busca do Eldorado é uma relação com a loucura, com a
conquista, com os sentidos do sem-sentido. Romper com o Velho Mundo e
instalar o Novo a partir “ daquilo” que encontravam. Nomes eram dados
arbitrariamente, assim como eram arbitrários os limites que impunham ao
acaso para ter um “ país” configurado: as terras da margem esquerda
pertencem ao país, as da margem direita, não. Porque dar sentido é
construir limites, é desenvolver domínios, é descobrir sítios de
significância, é tornar possíveis gestos de interpretação. ( p.15)
As
narrativas dos viajantes,assim, no início de nossa colonização,
constituem relatos preciosos que explicitam o olhar etnocêntrico europeu
diante do desconhecido. A noção de classificação e a absolutização
dos lugares enunciativos, ancoravam-se em discursos legitimadores em que o
dissenso e a fragmentação eram banidos em nome da ordem e da exclusão.
O mito da construção da nação também se faz presente nas construções
discursivas das nações colonizadas, que, em um determinado momento de
suas histórias, precisavam balizar suas culturas e seus territórios e,
no caso da Literatura brasileira, ocorre durante a Independência política
em relação a Portugal.
Uma
obra do Romantismo brasileiro que foge completamente
ao ideário de construção de um mapeamento simbólico da nação,
na qual se faz presente a temática da viagem é O navio negreiro
de Castro Alves. Esta obra dialoga com as epopéias ocidentais como a Odisséia
de Homero e Os Lusíadas de Camões, quando narram as viagens
empreendidas por Odisseu, em sua volta à Ítaca e pela esquadra lusa rumo
às Índias. Nas três obras os fatos ocorrem em pleno mar, entretanto, o
tom épico se dilui em O navio negreiro em nome da denúncia
travada contra o escravismo.
Desce
do espaço imenso. ó águia do oceano!
Desce
mais... inda mais... não pode olhar humano
Como
o teu mergulhar no brigue voador!
Mas
que vejo aí... Que quadro d’ amarguras !
Que
cena infame e vil... Meu Deus! Meus Deus! Que horror! (p.184)
O
Oceano singrado é o Atlântico e não há possibilidade de impor uma visão
idílica dos acontecimentos. A viagem é, ao mesmo tempo, fator de
desagravo aos valores postos de civilidade e a reivindicação, por parte
de um colonizado, em que se faça valer o imperativo categórico, preso à
trilogia do liberalismo Liberdade, Igualdade e Fraternidade, em
questionamento. Há, na verdade, uma indagação ao ideário da
Modernidade que pregava o livre arbítrio e a razão com reguladora do
espaço público e do privado. Em O navio negreiro o tom
continua grandiloqüente da épica, entretanto, há a presença da indignação
do eu poético.
Senhor
Deus dos desgraçados!
Dizei-me
vós, Senhor Deus!
Se
é loucura... se é verdade
Tanto
horror perante os céus?!
Ò
mar, por que não apagas
Co’o
esponja de tuas vagas
De
teu manto este borrão?...
Astros!
Noites! Tempestades!
Rolai
das imensidades!
Varrei
os mares, tufão!
Quão
distante se encontra esta obra das indianistas, de cunho ufanista e
ajustada ao conteúdo programático
da construção da nação. Em nenhum momento encontramos o endosso da
tradição, com ocorria nas epopéias
anteriores, em que o poeta colocava-se como porta-voz da nação e
defensor dos referenciais legitimados coletivamente. Há a clara apreensão
de que a verdade, como qualquer valor, tem o seu caráter contingente
assim como a sua representação como algo historicamente constituído.
Se
recorrermos ao discurso da ciência, no processo interpretativo da
realidade sócio-histórica, veremos que quase sempre são discursos
amparados em uma racionalidade constitutiva que disfarçam arbitrariamente
os cortes e são incapazes de redimensionar algumas escalas, legitimadas
em valores perenes. O discurso do estruturalismo, presente em Antropologia
Estrutural, texto de 1958, por exemplo, que esteve na base da
antropologia, tem o mérito de ter aberto de alguma forma a possibilidade
de ver o significado em uma dimensão social e histórica, quando Lévi-Strauss
defende as raízes das estruturas no próprio cérebro humano, mas, ao
mesmo tempo, em uma dimensão não-histórica, pouco circunstanciada,
universaliza as leis da mente, usando noções como
paralelismo, oposições, inversões... Tal prática se deve à
dificuldade de dissociar pensamento conceitual de progresso.
Tristes
Trópicos, publicado primeiramente em 1955, é livro de viagem,
contendo a descrição das impressões do antropólogo sobre o Brasil,
quando veio como professor convidado da USP. Nesse apanhado, o olhar
esquematizador, científico se faz presente. Calcado em um princípio
epistemológico, Strauss atribui ao pensamento mítico dos chamados povos
primitivos uma organização da realidade estabelecida à bricouler, isto
é, distanciado da noção de progresso teleológico, posto pela ciência
naquele momento. Tal visada evidentemente não contempla a multiplicidade
dos eventos. Em Saudades do Brasil (1994), por outro lado, o sentido da
diferença já se coloca e, questionando
qualquer pretensão auto-centrada, quebra a hierarquia dos valores
eurocêntricos. Essa obra
cobre o período entre 1935 e 1939, quando a industrialização
se expandia em nosso país e a fase modernista de 1922 já havia
instaurado o repensar da nação em perspectiva bastante heterodoxa, se
levado em conta o ponto de
vista do colonizador.
Eneida
Maria de Souza em Crítica Cult (2002) destaca o distanciamento
operado pela última obra em relação aos Tristes Trópicos, em um
processo deliberado de valorização do saber plural e o culto do convívio
em espaço amplo pautado na bricolagem.
Lévi-Strauss
se entrega à árdua tarefa de percepção das estruturas inconscientes
que regem os esquemas mentais e à abertura para a alteridade. Estava para
sempre selada uma das maiores contribuições que o estruturalismo podia
oferecer aos estudos das ciências humanas, ao serem quebradas as
fronteiras etnocêntricas e dado início ao processo de descolonização
cultural. (p.28)
Neste
momento, há a releitura do estatuto cultural do índio, desconstruindo,
assim, a imagem etnocêntrica delineada pela colonização européia.
2.
A assimetria discursiva :
Oswald
de Andrade, da mesma forma que Mário de Andrade, enquanto produtores de
cultura local, na década de 20 do século passado estavam imbuídos da
necessidade de repensar o conceito de brasilidade e conseqüentemente, de
identidade nacional. O tema da viagem na obra de ambos, tanto no plano artístico,
quanto no ensaístico, não deixa de estar comprometido com indagações
acerca de nossa gênese, na condição de ser brasileiro
Antonio
Cândido em Oswald viajante, publicado em Vários Escritos
(1995) reforça o raciocínio de que:
Na
sua obra, talvez as partes mais vivas e resistentes sejam as que se
ordenam conforme a fascinação do movimento e a experiências dos
lugares. Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte
Grande se desenrolam em torno do deslocamento de personagens entre o Novo
Mundo e o Velho Mundo, experimentando a posição do homem americano, que
ele viveu com intensidade, ao adquirir consciência da revisão de valores
tradicionais em face das novas experiências de arte e de vida (p.61)
Essa
revisão de valores da nacionalidade tem no tema viagem, enquanto busca e
ânsia pelo novo, pelo desconhecido, a chave da descoberta. Neste momento,
os intelectuais brasileiros já haviam superado qualquer sentimento de
inautenticidade que nos
caracterizou, por sermos colonizados. O deslocamento, como procura do ser
brasileiro, ocorre com a volta à Europa, não para colocá-la como
redentora de nossa identidade. Em Serafim Ponte Grande, fica a
mensagem de que não é no porto que deve estar o sentido, mas no caminho.
Passaram
a fugir o contágio policiado dos portos, pois que eram a humanidade
liberada. Mas como radiogramas reclamassem, El Durasno proclamou pelas
antenas, peste a bordo. E vestiu avessas ceroulas e esquecidos pijamas
para figurar numa simulada quarentena em Southampton. Todos os passageiros
se recusaram a desembarcar... (1975,p. 264)
Tal
desiderato também se faz presente em Macunaíma, sendo o tema da
viagem recorrente nesta obra. Aí, como em Oswald, a viagem significa não
só o deslocamento físico dos personagens, como também o questionamento
de uma tradição identitária da nação, com a construção de seu
imaginário. Reivindicam-se, neste instante, as imagens enunciativas,
recriando incessantemente os enunciados de formação, que instauraram a
noção de pertencimento em gestos de interpretação.
Macunaíma,
em sua busca libertária, em uma lógica das mitologias dos povos ágrafos,
exercita aquilo que Gilda de Mello e Souza atribui, a Demanda do Santo
Graal carnavalizada, isto é, a muiraquitã nada mais é do que a
necessidade de encontrar algo de fato importante para a cultura do
colonizado com foi o Santo Graal para a Idade Média Cristã. Dessa
forma, em seu arcaísmo à bricouleur, como diria Lévi Strauss, Macunaíma
atualiza um locus enunciativo, através da rapsódia, enquanto narrativa
fantástica, dos chamados povos primitivos, em um processo crítico-revisionista
de nossa formação.
É
interessante notar que a busca da muiraquitã coloca Macunaíma em
deslocamento constante pelo país. Sai do Norte para São Paulo, passando
por muitas situações e passeando por nossa cultura. Tal viagem
concretiza a coordenada histórica que nos caracteriza, não podendo estar
atrelada à visão teleológica do progresso que determinou o olhar etnocêntrico
e essencialista, raciocinando sempre à luz de um sistema totalizador. Mário
de Andrade, em carta a Carlos Drummond de Andrade, volta a sublinhar a
necessidade do mergulho no nacional e faz
a seguinte advertência :
[...]
Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo,
apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo,
seja bobo, mas acredite que o sacrifício é lindo. [...] N´s temos de
dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós
temos de dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é
grandiosos, é sublime. (ANDRADE,1988, p.22-3)
E
mais adiante, afirma: Eu também já sofri da moléstia de Nabuco. (idem).
O paulista estava se referindo ao texto de Minha Formação de
Joaquim Nabuco em que encontramos:
O
sentimento em nós é brasileiro; a imaginação é européia. As
paisagens todas do Novo Mundo, a floresta Amazônica ou os pampas
argentinos não valem para mim um trecho da via Áppia , uma volta da
estrada de Salermo e Amálfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do
velho Louvre. (1977, p.44)
O
que o grupo modernista defendia era exatamente a superação da doença de
Nabuco. Tanto Oswald quanto Mário defendem um conceito fluido de tradição.
Em Serafim Ponte Grande ocorre aquilo que Antonio Cândido chama de a estética
transitiva do viajante. Ambos desconfiam do porto seguro da tradição, da
identidade e a fatura estética acaba por incorporar esta posição. No
primeiro caso, a errância a bordo de El Durasno é a grande saída, em
que a Lei é posta em suspenso.
Em
Macunaíma, por outro lado, não há a intenção da volta a um
mundo pré-racional, livre da culpa. O que fica é a falta de coerência
em uma única vertente, restando no texto a coexistência do otimismo e do
pessimismo, diante da sorte do povo brasileiro. O herói sem nenhum caráter
encerra a idiossincrasia do brasileiro, produto de três raças, habitante
do Sul da América do Sul, sendo visto, por muitos, como o mais rico dos
pobres e, por outros, com o mais pobre dos ricos. Tal condição
intervalar, que Bhabha (2003) chama de entre-lugar, constitui o espaço
ocupado pelas culturais híbridas, encerra a própria condição de (ex)ilado
: fora da ilha, em constante procura por uma identidade acabada, que não
sendo a imposta pelo discurso de fundação, constrói-se disjuntivamente,
no pacto diuturno da sobrevida. Ainda, segundo Bosi:
O
seu destino, aliás, vem a ser precisamente este: não assumir nenhuma
identidade constante.O que era percebido por Mário com um nó angustiante
e o levara a conferir à rapsódia ao seu quase contemporâneo Clã do
Jabuti o significado de fim de uma etapa. (1988, p.141)
Por
isso, Macunaíma, em constantes deslocamentos, sabe que sua identidade está
em construção e que a origem constitui um discurso que pouco ou nada tem
a ver com a realidade histórico-cultural. Longe de encontrar o repouso,
ao voltar de São Paulo, em sua viagem de retorno, não encontra a paz,
mas a miséria e o desalento, não lhe restando outra opção que não a
ida para a “Ursa Maior”.
Ora,
enquanto as narrativas hegemônicas valorizam a chegada, como ocorre na Odisséia,
de Homero e se repete em Os Lusíadas de Luís de Camões, para não
falar dos textos dos viajantes ao Novo Mundo, enquanto comprometimento com
o espaço, sua apreensão e limitação. As contra-hegemônicas, por sua
vez, como Serafim Ponte
Grande de Oswald de Andrade, Macunaíma de Mário de Andrade e Terras
do Sem Fim de Jorge Amado, para ficarmos só com essas obras, vêem a
viagem como busca das próprias origens, para entendê-las, aceitá-las
tal com se apresentam. Neste sentido, há a valorização não do
enunciado da tradição, mas o processo, o discurso performativo da adesão,
em enunciações dialógicas que rechaçam o monologismo dos discursos
competentes.
Em
Terras do sem fim de Jorge Amado ocorre a viagem como busca identitária.
Esta obra, no primeiro capítulo detém-se no transcurso de um navio da
cidade de Salvador para Ilhéus, no mesmo Estado. Essa última cidade
acenava com o enriquecimento daqueles que chegavam devido à plantação e
comercialização do cacau. Tal promessa impulsionou a vinda de grandes
contingentes de migrantes e imigrantes interessados no lucro e na posse de
terras.
Raros
lenços deram adeuses, só de uma face correram lágrimas, face jovem de
mulher que soluçava arfando o peito. Não existia ainda o novo cais da
Bahia e as águas penetravam quase pela rua. O navio foi se afastando
devagar, nas primeiras manobras. A moça que chorava sacudia o lenço mas
já não distinguia dentre os que respondiam de bordo aquele a quem dera
seu coração. (...) Um senhor velho pegou no braço da moça e foi com
ela, resmungando palavras de consolo e de esperança. O navio se
distanciava. (2002, p.17)
Apesar
de o tema viagem ser recorrente em
outras composições, o que ocorre neste texto aproxima-se do escopo de
escritores como Mario de Andrade e de Oswald de Andrade na busca de
identidade nacional à luz de preceitos que não endossassem noções
como: exotismo, ufanismo, quando acentuavam uma brasilidade essencialista
e acabada.
Terras
do sem fim retoma um poema épico de Raul Bopp chamado Cobra Norato,
publicado em 1931, quando faz menção às terras do sem fim, aludindo à
floresta amazônica e a seus mitos, em síntese, ao próprio Brasil
como um todo. Bopp em seu ensaio Inventário da antropofagia propõe
a valorização dos anais totêmicos e, mais do que isso, uma nova
estrutura de idéias, ou seja, a valorização do diverso e, de alguma
forma, a saída apresentada pelo colonizado ao projeto de racionalidade
excludente. A atualização das idéias de Bopp na obra do baiano encerra
a busca da brasilidade a partir dos referencias do brasileiro e não
enquanto cópia do mesmo.
Há
um texto de uma conferência de Silviano Santiago, proferida na FUNART na
década de oitenta, quando o autor de Em liberdade,
falando da viagem dos modernistas a Minas em busca da tradição,
esposa a idéia da busca do mesmo por analogia, como viu Octavio Paz,
contrapondo-se à de Pound do make-it-new glorioso da
analogia por ruptura. O mexicano defende a idéia da continuidade
da tradição no modernismo, na medida em que esta guarda o dinamismo da
dialética, sem aprisioná-la na síntese, ou na teleologia do progresso.
Em
Terras do sem fim de Jorge Amado, por exemplo, identificamos
a busca do mesmo por analogia, na medida em que há uma passagem que
encerra o processo de hibridação cultural de como ocorreu a resposta do
colonizado em relação ao enunciado do colonizador. Senhô Badaró compra
uma oleogravura, cuja temática alinha-se ao locus amennus do arcadismo,
porém ocorre como que uma realocação, se assim podemos dizer, ao dado
europeu em sua inserção no espaço do colonizado.
De
onde vinha aquele pinicar de viola na noite sem lua? Era uma canção
triste, uma melodia nostálgica que falava em morte. Sinhô Badaró não
se demorara nunca em refletir sobre a tristeza das músicas e das letras
das melodias que cantavam nas terra do cacau, os negros, os mulatos e os
brancos trabalhadores. Mas agora, (...), não sabe por que [recordou]
daquelas figuras do quadro que enfeitava a sala da sua casa-grande. A música
devia vir de dentro de uma roça, de uma casa qualquer, perdida nos
cacaueiros. (2002, p.225)
Assim
como o negro, o branco de alguma forma , se sente exilado em sua própria
terra e precisa legitimar-se a partir do outro. Neste caso, a quadro de
pintura, com temática européia funciona com elemento disparador do
hibridismo local. Não ocorre a cópia do mesmo, antes o país responde
culturalmente ao modelo imposto, reciclando permanentemente a sua
identidade. Esta sempre fluida, não se deixando submeter a um discurso pré-deteminado
e auto-refencial.
3.O
turismo cultural como afirmação da diferença :
A
literatura, ao usar a viagem em suas narrativas, comprometia-se com uma
determinada cartografia do espaço territorial. Esse, na Antigüidade,
limitava-se ao mundo conhecido até então; no Classicismo, à ampliação
de seu domínio. Quanto à literatura produzida em países não hegemônicos,
como o Brasil, podemos dizer que, a princípio, reforçou a mesma visão,
ainda que em algum momento de sua história, no período da emancipação
política de Portugal no século XIX, a delimitação tenha ficado a serviço
dos interesses do Estado-Nação da Modernidade.
A
negação desta perspectiva ocorre na literatura colonizada, quando esta
reivindicou uma dimensão cartográfica que levasse em conta a cultura
também, visto transcender a metáfora base-superestrutura.
Desta forma, obras com Macunaíma de Mário de Andrade e Terras
do sem fim de Jorge Amado, somente para citarmos estas,
ampliaram a busca da identidade nacional através da viagem.
Mas
o que nos interessa aqui é perceber de que modo a temática da viagem,
através da literatura de país colonizado, pode estar a serviço, de
alguma forma, do turismo cultural., enquanto elemento suscitador de
interesse pela alteridade. ainda que saibamos que a viagem turística
envolve fatores não elencados pela literatura. Para tanto, reportamo-nos
à obra O fotógrafo e o
Turista Aprendiz de Mário de Andrade que não sendo literária no
sentido pleno, guarda entretanto o compromisso com a valorização de
nossa tradição cultural tão cara à Poesia pau-brasil e à Antropofagia dos modernistas. Isso
para não falar da viagem a Minas, já no início do movimento,
despertando em Tarcila do Amaral a vontade de ir a Paris não para ver a
última moda, antes para aprender a restaurar quadros com o intuito de
preservar o acervo barroco mineiro e do Brasil à época completamente
abandonado. Esse gesto impulsionou depois a instauração do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em torno da figura de Rodrigo
Melo Franco de Andrade, inspirado na ação empreendida por Gilberto Freyre quando
instaurou, um pouco antes, a Secretaria do Patrimônio Histórico do
Recife.
Nesta
obra, Mário procede a um registro minucioso do que viu e ouviu em uma
viagem à Amazônia e ao Nordeste. Neste relato, há um forte
comprometimento com a cultura visitada e procura
aquilo que Machado de Assis já havia dito em Instinto de
Nacionalidade, texto de 1826, acerca
dos românticos, que procurassem ter o sentimento íntimo em relação
a tudo que dissesse respeito ao Brasil e superassem o instinto de
nacionalidade, ou seja, evitassem o exotismo como forma de caracterização
da nação. Pois bem, é exatamente o que faz o paulista.
À
maneira do flâneur baudeleriano, que sorve pelo olhar tudo o que o
deambular pode oferecer a um
filisteu culto, o paulista arrebata-se com a natureza, não gosta do que vê
quanto à miséria da população, mas registra os usos e costumes, bem
como lhe desperta interesse o léxico regional e as manifestações folclóricas
encontradas. Muito desta pesquisa foi
utilizada em Macunaíma, quando valoriza o saber local e o
ócio criador do amazônico, encerrando o espaço, para ele, da Ursa
Maior, para onde migra Macunaíma, ao optar pela saída da terra. Em 1928
faz também uma viagem ao Nordeste, à qual chama de viagem etnografia.
Nesta, participa de festas populares, recolhe documentação de cantos, de
feitiçaria, de benditos, romances, aboios, bumba-meu-boi,chegança,
reisados, maracatu e cocos.
Mario
de Andrade, na sua busca pelos bens imaterias da nação, comporta-se como
um turista cultural ao perscrutar a cultura do país somente comprometido
com o conhecimento. Prática ligada hoje ao chamado terceiro setor da
economia e operacionalizada através da prestação de serviços.
Claude
Origet du Cluzeau em Le tourisme culturel, afirma que: “O turismo
cultural é portanto uma prática cultural que necessita de um
deslocamento ou que esse possa favorecer a interação com a cultura
[local]. (1998, p.4-5). Sendo a motivação principal daquele que
se desloca, alargar seus horizontes, pesquisar outras culturas, ter acesso
a emoções novas, através da descoberta de um patrimônio e de seu
território”.
A
globalização acena com trânsitos multiculturias, em escala mundializada,
entretanto, nunca, na história da humanidade, a procura pela alteridade
foi tão valorada, a partir da perspectiva mesma da diferença. Não
podemos dizer o mesmo acerca das crônicas de registro de
viagem do século XVI e mesmo dos relatos científicos do século
XIX, voltados para países do Novo Mundo, em que o olhar do estrangeiro
estava comprometido com a diferença, enquanto cópia do mesmo, em
discursos que silenciavam a enunciação, em nome de um único dispositivo
de verdade.
A
sociedade pós-industrial concretiza, de certa sorte, o sonho aristotélico
de libertação do trabalhador da sujeição à máquina, como fala Marx
em O capital (1867).
(...)
se cada instrumento pudesse executar automaticamente, ou melhor, por si
mesmo, sua função própria, tal como as obras-primas de Dédalo que se
moviam por si mesmas ou como os tripés de Vulcano que se punham em
movimento no seu labor sagrado; se, por exemplo, as lançadeiras tecessem
por si mesmas, o mestre de tecelagem não teria necessidade de ajuda, nem
o senhor de escravos. (MARX, 1988:91)
Longe
de o paraíso ter-se instaurado na Terra, o fato é que, apesar de todas
as dificuldades impostas ao gênero humano pelo neo-liberalismo, com sua
economia globalizada e sustentada no terceiro setor, já que a fase
industrial respondeu pelo setor secundário; nosso cotidiano está marcado
pelo consumo de: publicidade, comunicação, pesquisa, empresas de comércio,
finanças, saúde, educação, lazer etc.
Assistimos
à intensificação do turismo cultural, na medida em que, contando com a
infra-estrutura proporcionada pela economia globalizada, essa prática
oferece entretenimento de boa qualidade, não massivo, àqueles que
entendem que o global é produto da soma diferenciada das partes e não a
negação destas em nome do controle.
Desse
modo, ao procurar a diferença, o turista cultural propõe-se o consumo não-alienado,
desautomatizado do pós-fordismo. Oposto, portanto, àquele da fase da
industrialização, quando o trabalhador distanciava-se completamente do
produto de seu trabalho, devido ao princípio de racionalidade, negando,
em síntese, a sua condição de sujeito e sua dimensão de ser crítico
diante do mundo.
4.
Considerações finais:
O
turismo cultural, por se tratar de um lazer ativo, demanda a participação
integral do turista, permitindo a reorganização da sua
experiência, enquanto ganho cultural, de forma ativa e
interventiva, diante do novo.
A
tematização da viagem na literatura ocidental esteve, quase sempre,
comprometida com uma determinada forma de ver o mundo, presa a uma única
cartografia, tanto geográfica quanto cultural. Assim, a literatura de países
não hegemônicos, como o Brasil, pode ensejar a prática do turismo
cultural na medida em que, tendo já superado todas as amarras em relação
a preconceitos pertinentes às nações colonizadas, oferece, como
veiculadora de bens simbólicos imateriais, como atrativo, a cultura
local. A construção imaginária da nação,
vista a partir de uma visão não-hegemônica,
impõe-se como um modo interpretativo, em que o simbólico
dimensiona-se em uma rede inextrincável de relações, tendo como fulcro
conceitual o fato de que modo de produção, meios de produção e relações
de produção não podem ser vistos dissociados de uma dimensão
aplicativa e semantizada do
simbólico.
Nesta
perspectiva, a clivagem imposta ao dado colonizador impõe uma coordenada
outrativa em margens deslizandes, como diria Bhabha (2003). A cultura
local coloca-se proporcionando uma alteração cartográfica, que leva em
conta a ressemantização de sentido, feita esta pela tomada da palavra em
várias práticas enunciativas do colonizado. O locus de enunciação
migrante, sendo híbrido, não almeja por sínteses definitivas por ou
identidades estáveis.