FERREIRA,
Rodolfo. (2003). O Professor Invisível: imaginário, trabalho docente
e vocação. Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Quartet Editora. 160 p.
_____________________________________________
Tornando
visível o mistério do Professor Invisível
Zacarias
Jaegger Gama
Hoje
em dia, estamos sabendo cada vez mais sobre os professores brasileiros,
“uma categoria que ganha pouco, mas se diverte”. A pesquisa que nos
faz essa revelação é patrocinada pela UNESCO. Sua recente divulgação
nos revela ainda que a maioria do professorado é casada, do sexo
feminino, com pais com baixa escolaridade, ganha entre cinco e dez
salários mínimos, não tem computadores domésticos nem navega na
internet. Também ficamos sabendo ser alto o nível de satisfação dos
professores com boa parte do tempo de serviço cumprido; que mais da
metade declara sua aspiração de permanecer na função atual, e que
somente um pequeno porcentual (10,7%) pensa se dedicar a outra atividade.
.
É
surpreendente que 63,4% dos professores entrevistados estão satisfeitos
com a opção de carreira. Porém, talvez mais surpreendente ainda seja o
fato de muitos conseguirem superar a situação de vida dos seus
familiares, o que quer dizer, segundo a mesma pesquisa, que o magistério
é também uma das poucas carreiras a permitir movimentos de ascensão
social.
Estas
revelações da UNESCO são importantes e oportunas. Elas tanto mostram um
retrato atualizado do professorado, às vezes colocando por terra alguma
verdade cujo escopo é o senso comum, como também servem para confirmar
determinadas tendências de investigações feitas nos campi das
universidades brasileiras. Dentre as quais se encontra a pesquisa de
Rodolfo Ferreira, professor-pesquisador da Faculdade de Educação da
UERJ, relatada no excelente livro: “O professor invisível: imaginário,
trabalho docente e vocação”, lançado pela Quartet Editora. Nesse livro, com estilo e eloqüência, discute as razões da
perseverança de muitos professores “em atividades sobre as quais a
maior parte das informações que circulam no meio social atestam
desprestigio e baixa remuneração”.
Antes,
em seu livro “Entre o sagrado e o profano: o lugar social do
professor” (Quartet, 2000), Ferreira tinha suas preocupações voltadas
para os alarmantes índices de abandono da carreira docente; agora, com
mais amadurecimento e ousadia metodológica, quer saber por que muitos
professores escolhem a docência e por que permanecem nesta carreira até
se aposentarem. Ele quer saber quem são, como encaram o mundo e articulam
seus desejos. Se eles são inocentes, acríticos, incompetentes, se têm
baixa estima, ou se, simplesmente, são pessoas despolitizadas e
alienadas. Se são professores por profissão, sem coragem para investir
em outras carreiras, ou se são professores por vocação, em certo
sentido atendendo a um chamado particular.
Em
tese, Ferreira não acredita que a escolha de carreira esteja “apenas
relacionada a alguns valores que circulam nas sociedades capitalistas”,
ou à ingenuidade e à alienação; em sua perspectiva há muitas escolhas
que são influenciadas pelo imaginário das pessoas, em particular pelo
mito da vocação. Em função desse seu pressuposto, seu objetivo de
estudo é o de perscrutar os mistérios que envolvem a vocação, porém,
não como destino predeterminado, mas como “uma das dimensões de
humanidade que não nega qualquer outra”. Sua investigação incide,
então, sobre seu objeto central, isto é, sobre as relações entre estes
mistérios e o exercício do magistério, conjecturando ser falso o dilema
que opõe a vocação e o mestre, de
um lado, e a profissão e o professor, de outro.
Para
realizar a investigação que se propõe, Ferreira rompe, entretanto, com
alguns limites definidos pela ciência moderna adjetivada por Morin (2001)
como “elucidativa, enriquecedora, conquistadora e triunfante”, mas que
do ponto de vista das ciências humanas deixa de pensar os seres humanos
como seres vivos biológicos, dotados de espírito e consciência. Com a
ousadia e os riscos próprios destes tempos de pós-modernidade, vai
“atrás dos arquétipos que podem estar mobilizando esses professores
que reafirmam cotidianamente uma relação com o magistério que parece
extrapolar as tentativas de compreensão realizadas até o momento”,
acreditando ser o imaginário uma das chaves importantes para compreender
os “diferentes caminhos que cada ser humano trilha”, bem como as suas
vinculações a certos trabalhos ao longo de suas vidas. Não por acaso,
seus referenciais teóricos vão de Jung a Hilman, de Durand a Campbell,
de Darwin a Pearson e Fétizon a Gusdorf, entre outros. Não por acaso
ainda, ele próprio, assume publicamente o desejo de ultrapassar o
discurso “moderno” que em sua ótica “se apresenta desgastado
semanticamente”.
Assim,
com o intuito de compreender o mistério (essa coisa que considera
abstrata e desprezada pelos paradigmas da ciência clássica), ou o mito
pessoal dos professores-jequitibás que perseveram e permanecem no
magistério até se aposentarem, mas sem revelar tal mistério, Ferreira
desenha um caminho metodológico rebuscado que procura englobar elementos
da mitocrítica (considerando-se que vai trabalhar com motivos e
situações pessoais, com “diferentes lições e sua correlação com
outros mitos de um dado espaço cultural” e, finalmente, com imagens),
da mitoanálise (dada sua intenção de considerar a amplitude das
narrativas, os mitologemas, as narrativas canônicas, as variações e as
derivações do mito, a constelação de afinidades) e do arquétipo teste
de 9 elementos (AT-9), muito embora, com relação a este último tenha
optado por “um caminho que constitui enquanto hermenêutica”,
na medida em que lhe possibilita, com base em pressupostos dos
hermeneutas de Éranos e Grenoble, interpretar e compreender os textos, a
história (e não uma simples estória) de vida da professora Teresinha,
aquela que se torna central em seu estudo. Ferreira pouco se importa com o
fato de que seja do sexo feminino, ou mesmo de não ter sujeitos
masculinos em sua pesquisa-livro “O Professor Invisível”. O que lhe
importa é que em Teresinha estão “o fruto do carvalho” e o mito
pessoal. Teresinha, pelo menos nas representações típicas do meio
social, é uma das professoras de ensino fundamental que se encontra entre
os que “enfrentam os maiores desestímulos” sem qualquer prognose de
se aposentar.
As
entrevistas de Ferreira com Teresinha tiveram o tom das conversas gostosas
e reveladoras. No transcurso delas a mestra diz ser carioca, nascida no
Méier, aposentada, ainda estar trabalhando nas salas de leitura de duas
escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, e que desde criança
brincava de dar aulas para as suas bonecas. Agora, 36 anos depois, com o
maior prazer, vai passando seus dias com os alunos sentados na roda, no
chão, na contação de histórias com a ajuda de tapetes-cenários que
ela mesma costura e manipula. “É uma viagem na fantasia”, conforme
diz.
Aos
poucos Teresinha se revela para Ferreira, o qual, especulando, intuindo e
baseando-se em suas referências teóricas, vai tornando visível o
mistério da professora. Fica sabendo que “seu mito pessoal é o de que
é possível fazer algo para melhorar a vida das pessoas”. Que vive sob
a influência de quatro dos arquétipos de Pearson: Inocente, Guerreiro,
Mártir e Mago. Que na perspectiva das deusas gregas Ártemis, Atenas,
Héstia, Hera, Deméter, Perséfone e Afrodite, vive “sob algum tipo de
influência de Deméter”. Que seu modo de ser professora confunde-se com
sua própria vida. Que professores como Teresinha buscam, por vocação,
viver seus mitos, “senão como um exercício de humanidade, ao menos
como uma busca por essa humanidade”.
Por
tudo isto, “O Professor Invisível” é um convite ao leitor, em
particular aqueles que têm interesse em dar visibilidade aos “frutos do
carvalho”, ou melhor, conhecer os professores que se distanciam de
outros que, noutra tipologia, mesmo em face da possibilidade de se
revelarem mestres ainda assim podem ser denominados de “profissionais,
eucaliptus, gigolôs”.